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quinta-feira, 11 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25373: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (8): Periquitos, velhinhos e a famosa "batota no mato"...

1. Comentários ao poste P25349 (*)

Joaquim Luís Fernandes (foto à direita), natural de Leiria, foi alf mil, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973, e Depósito de Adidos, Brá, 1974; é autor da série "Acordar memórias"


(i) Luís Graça 

Joaquim, aconteceu-nos a todos... Nos primeiros seis meses (qual quê ?!, nos primeiros três meses), o "periquito" tem os cincos sentidos (olfato, paladar, visão, audição e tato) atentos a todas as potenciais ameaças que vêm do exterior...

Fomos treinados (mas mesmo assim mal e à pressa) para adotarmos comportamentos de segurança na Guiné (nunca ninguém me falou da Guiné, e das suas "armadilhas"!)...

Depois,começamos a relaxar, e acontecem as primeiras "baldas" e os primeiros lamentáveis "incidentes"...

Ao fim de seis meses fomos já "veteranos", "velhinhos como o c...", e depois tudo podia acontecer: as primeiras mortes, estúpidas, por acidente, com o dilagrama, a granada de bazuca 8.9 ou de morteiro 60, as granadas de mão, a mina A/P, o Unimog que capotou, o companheiro que saiu da fila para ir mixar ou cagar na orla da mata, e leva um tiro no regresso...

Parabéns, não tens mortos inocentes na tua consciência...porque foste um oficial competente e responsável, disciplinado e disciplinador... Não era fácil, chamavam-te logo nomes feios, "chicalhão"... (Espero que possas ir alimentando a tua série, interrompida em 2014; eu dou-te uma ajuda, repescando comentários como este...)

7 de abril de 2024 às 12:52 

(ii) Joaquuim Luís Fernandes:

Viva.  Luís Graça! E obrigado pela atenção.

Sei que devo alguns postes ao blogue, mas não sei quando pagarei essa dívida. Tenho sempre outros assuntos prioritários que me escasseiam o tempo e a disposição para me sentar a escrever as minhas memórias e a compor os postes com algumas fotos de jeito.

Por enquanto fico-me pelos comentários, que saem ao impulso do que sinto nos postes que leio. E quando posso.

As observações que fazes no teu comentário supra, no que me respeita, suscitam-me outros tantos comentários, mas hoje não me quero alongar, como algumas vezes faço.

Direi apenas que me interrogo como eu com 21 anos (só fiz os 22 em 30 de Julho de 73) consegui comandar um pelotão de "pessoal já velhinho" que não conhecia nem me foi formalmente apresentado, conquistando gradualmente a sua confiança, sem indisciplinas que perturbassem o normal cumprimento das missões que nos destinaram.

E havia no grupo alguns com modos de ser e estar um pouco problemáticos. Mas tive o bom senso de me conduzir de modo ajustado às circunstâncias.

Concluo que comandei um pelotão disciplinado e não foi por força de usar o RDM para impor a disciplina. isto é: Eu procurei ser disciplinado, correto e respeitador para com todos e penso que o meu comportamento induziu no grupo disciplina e respeito.

Creio que nunca me julgaram de "chicalhão". Sabiam que eu era um paisana a cumprir o serviço militar obrigatório, sem tiques militaristas.Também sabiam, porque várias vezes lhes disse, que o que fazia, era para que tudo nos corresse bem, sem azares, sem castigos, sem mortes e sem feridos.

Mas ouvi algumas reclamações e queixumes por cumprirmos os exigentes patrulhamentos nas matas do Balenguerez e do Burné, nas "barbas" da Caboiana, que sabíamos perigosos. Sabiam que outros grupos que connosco alternavam, muitas vezes se baldavam.

Só nunca lhes disse porque assim procedia. E não era por ser guerreiro. Alguns terão pensado que eu via perigo onde não existia, na minha prudente atitude de conduzir os patrulhamentos como se caminhasse-mos em áreas de contacto eminente. (será que o não eram?)

Mesmo assim, terei-me baldado a um patrulhamento ao Balenguerez (que deu para fazer uma caçada aos javalis) e uma outra tentativa de balda, que foi interrompida pelo Comando em T.Pinto, via rádio, a perguntar qual a nossa posição, pois pretendiam fazer uns tiros de obús a partir do Bachile, visando atingir um grupo do PAIGC que tinha roubado vacas numa tabanca próximo de Bassarel.

Foi uma aflição: Nós estacionados na estrada velha, próximo do local onde as viaturas nos tinham deixado, quando com quase 2 horas de percurso já deveríamos estar perto do Balenguerez.

Chovia a bom chover! Lá dei as coordenadas na direção que deveríamos ter seguido, não muito longe de onde estávamos. E foi caminhar debaixo de chuva a passo acelerado, dentro do possível.

Não intercetámos o grupo que tinha roubado as vacas, mas sim o trilho por onde tinham passado,com vestígios evidentes: a bosta das vacas e os rastos que a chuva não tinha apagado.

E ainda bem, que na balda, atrasámos o percurso. E ainda bem que o grupo do roubo das vacas, vindo em nossa direção, no mesmo trilho, pouco depois de passarem pelo Balenguerez, desviarem para o lado das Matas de Cacheu, que já não era zona da nossa intervenção. Deste modo evitou-se o contacto, frente a frente, cujas consequências não sabemos no que poderia dar.

E fico por aqui. E dizia eu que não me queria alongar.

Abraços
JLFernandes

8 de abril de 2024 às 01:07

2. Comentário do editor LG:

Sobre a famosa "batota no mato", temos 13 referências no blogue. E fizemos inclyusive um "inquérito on line" que, infelizmente, só obteve 45 respostas... As eventuais diferenets formas desta prática estão identificadas e listadas... As três mais frequentes (**):
  • Emboscar-se perto do quartel > 17 (37%);
  • Começar a “cortar-se", c/ o fim da comissão à vista > 17 (37%)
  • “Acampar” na orla da mata, ainda longe do objetivo > 11 (24%)
(**) Vd. poste de 5 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P16800: Inquérito 'on line' (93): "Batota no mato" ... ou no blogue ?... Esperávamos 100 respostas, obtivemos apenas 45... Resultados: as três formas mais frequentes de batota: (i) emboscar-se perto do quartel (37%); (ii) começar a “cortar-se", com o fim da comissão à vista (37%); e (iii) “acampar” na orla da mata, ainda longe do objetivo (24%)... Só não fazíamos batota era com o Natal no mato...

domingo, 7 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25349: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (7): Uma estória passada no Pelundo, na escolta a um transporte de rachas de cibes: periquitos e velhinhos...


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Canchungo > Pelundo > 2008 > Restos do antigo quartel português, ao tempo do BART 6521/72 (Pelundo, 22/9/1972 - 27/8/1974), a unidade que fez a transferência de soberania para o PAIGC, e que era comandado pelo Ten Cor Art Luís Filipe de Albuquerque Campos Ferreira.   

A foto foi-nos enviada, em setembro de 2008, juntamente com as fotos de uma série de ex-camaradas nossos,  manjacos do Pelundo (que estiveram ao serviço do exército português e para quem se pedia apoio), pelo sociólogo António Alberto Alves  que residia na altura (e desde 2006) em Canchungo (antiga Teixeira Pinto) e trabalhava para uma ONGD portuguesa.

Foto: © António Alberto Alves (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário de Joaquim Luis Fernandes ao poste P25341 (*), que decidimos incluir na sua série "Acordar Memórias" (**): o nosso camarada leiriense foi alf mil, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973, e Depósito de Adidos, Brá, 1974:


Este tema das rachas dos cibes (*), usados nas estruturas das coberturas das casas nos reordenamentos na Guiné, mas também no geral, na cobertura das casas das aldeias, vilas e cidades, traz-me à memória um episódio que vivi na Guiné, em fevereiro de 1973, que me ficou gravado bem fundo.

Estaria na 2ª ou 3ª semana de Teixeira Pinto (muito periquito). Recebi ordens para fazer a escolta ao soldado (ou cabo) da Engenharia, adido no BCAÇ 3863 em Teixeira Pinto, que iria, com pessoal civil, recolher uma carrada de rachas de cibes, nas matas que se situavam entre o Pelundo e Jolmete.

No dia seguinte, saímos logo pela manhã com 2 secções a escoltar a viatura de transporte, creio que uma Mercedes, onde iam os carregadores e o responsável da Engenharia. Eu ia num Unimog com uma secção e um furriel (já velhinho) num outro.

Do Comando, nada me disseram do local onde iríamos fazer a escolta, mas quando nos preparávamos para iniciar a marcha, fui informados por um ou mais soldados, os mais próximos, o que tinha acontecido nessa picada, entre o Pelundo e Jolmete, em 1970: o assassínio pela guerrilha do PAIGC, de três Majores, um Alferes e os seus três acompanhantes nativos. 

Fizeram-me a descrição como sabiam, que eu ignorava completamente. Inicialmente passou-me pela cabeça que o que estavam a dizer era só para assustarem o alferes periquito que os comandava. Depois, tomei consciência de que tinha sido verdade e que o local para onde íamos comportava alguns riscos.

Chegados ao local sem incidentes, montámos um cordão de segurança ao redor da área onde era feito o carregamento dos cibes. Eu (periquito e receoso) orientei uma secção como me pareceu melhor e o Furriel (velhinho) orientou a outra.

Terminado o carregamento, preparámos o regresso. O Unimog onde eu ia, seguia à frente, a seguir a viatura de carga e na retaguarda a outra secção. Tudo tinha corrido bem e isso tranquilizava-me.

No regresso, já com o sol a castigar forte, ao aproximarmo-nos do Pelundo, os soldados mais próximos, sugerem-me que parassemos no quartel do Pelundo, para matarmos a sede com umas cervejas frescas. Cedi à sugestão e,  aí chegados, foi deixar as viaturas e ir direito ao bar do soldado, um balcão que dava para o exterior.

Quanto todos estavam reunidos em frente a esse balcão, verifico que o Furriel e um outro soldado não estavam presentes. Senti um calafrio, terei ruborizado que nem um tomate maduro. O que teria acontecido para não terem vindo? 

Senti o peso da responsabilidade por não ter verificado se estavam todos presentes antes de iniciarmos a marcha de regresso. Vários cenários me passaram pela cabeça. A decisão foi voltarmos ao local onde tínhamos estado na esperança de que os encontraríamos.

E assim aconteceu: bastante antes de chegar ao local onde tinhamos estado, lá vinham eles a pé pela picada, com a G3 nas mãos (ou à bandoleira, ou ao ombro)

Não sei (não me lembro) se alguma vez disseram porque não tomaram o transporte no regresso. Também não compreendo como o condutor do Unimog e os outros soldados dessa secção não deram pela sua falta.

Como isto não é uma estória de ficção, só concluo que naquela guerra havia muita balda e falta de rigor no cumprimento das missões. Por isso às vezes aconteciam azares graves que não deviam acontecer.

Serviu-me de lição este episódio e durante o resto do tempo que passei em Teixeira Pinto, em missões de escoltas e patrulhamentos, passei a ser mais cuidadoso, evitando quanto possível as baldas e seguindo os ensinamentos que tinha recebido na instrução: "suor gasto na instrução e na disciplina, é sangue poupado no combate".

E a minha coroa de glória, é que daqueles que me acompanharam, não perdi nenhum.

Abraços
JLFernandes

6 de abril de 2024 às 00:41
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sexta-feira, 21 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12872: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (6): Porto do Carro, a minha aldeia, e Canchungo (ex-Teixeira Pinto), ontem e hoje

1. Sexto episódio da série "Acordar memórias" do nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974):


ACORDAR MEMÓRIAS

6 - Porto do Carro, a minha aldeia, e Canchungo (ex-Teixeira Pinto), ontem e hoje

A figura do ancião, da estória do porco abusivamente extorquido, com o seu olhar penetrante, tem-me acompanhado ao longo dos anos, fazendo-me lembrar pela semelhança, a figura de um outro ancião, da minha aldeia natal, Porto do Carro, quando ainda garoto de 7, 8, 9, 10 anos, me juntava com os outros garotos vizinhos, no largo do Casal das Pombas, palco de todas as brincadeiras e que confinava com o arneiro (quintal) pertença do “Ti Bajona”, o “homem grande daquela tabanca”. Parecia-me um gigante, com os seus pés sempre descalços e negros, as calças de cotim, que tinham sido cinzentas, com uns atilhos nos tornozelos e na cintura, camisa e colete escuros, barrete tão velho quanto desbotado, barba grande e pigarça. Uma figura que inspirava medo e respeito e que a garotada, evitava desafiar ou melindrar, não invadindo o seu espaço. Uma figura singular e tradicional nos usos e costumes, que ainda hoje, povoa as memórias dos garotos desse tempo.

Rapazinhos “djubis” no seu espaço e tempo de todas as brincadeiras, a lembrarem-me que poucos anos antes eu brincava como eles. Era só trocar a vaquita pela burrita e um pouco mais de roupa. (zona próxima do quartel)

Cais do rio Baboque em maré alta, próximo do quartel. Propiciava mergulhos aos “Djubis” e aos soldados algumas pescarias com o recurso do rebentar de uma granada. A recordar os meus tempos, na minha aldeia.

Há 55 anos, as ruas da minha aldeia, assim como o largo do Casal das Pombas, eram de terra batida. Não havia água canalizada, nem esgotos, nem tão pouco eletricidade, tal como ainda hoje nas tabancas de Canchungo. Também como ainda hoje em Canchungo, havia muitos meninos que brincavam na rua até noite dentro, em segurança, descalços, na terra batida, do largo do Casal das Pombas. (No meu ano, entrámos 22 para a primeira classe).

Hoje, as ruas e o largo do Casal das Pombas da minha aldeia estão asfaltados e limpos, têm água canalizada e esgotos, eletricidade e iluminação pública noturna, mas escasseiam os meninos. Algumas famílias continuam carenciadas mesmo que alguns calcem ténis de marca. Mas já não brincam na rua em segurança. E a escola, um dia destes fecha por falta de meninos.

Esta constatação, a par de outras, causa-me tristeza: ver o meu país a definhar, a envelhecer sem esperança. E não tinha que ser assim! Não foi com este futuro precário que a minha geração sonhou! Não foi para um país, com o presente e o futuro comprometido, adiado, como se afigura hoje, que trabalhámos, sofremos e lutámos!...

Mas... e os meninos de Canchungo?... Os que sobrevivem à subnutrição e à doença?...

Continuam a brincar descalços, na terra batida dos largos das suas tabancas, às escuras, tal como há 40 anos, quando eu me fazia criança e brincava com eles, nas suas rodas e eles me chamavam de manta, que eu usava como indumentária, a tiracolo e com que me agasalhava, nas frias noites e madrugadas, em voltas, nas proximidades de Canchungo, que penava, quando palmilhava ou me acoitava, mas sempre em vigilância, para que nenhum mal acontecesse.

Rapazinho que vinha recolher ao arame farpado, junto dos postos de sentinela, as sobras (restos) da comida que os soldados lhe davam. Perante a realidade que observava questionava-me: O que andamos nós aqui a fazer? Que guerra é esta? Como se não deve sentir revoltado este povo?... A nossa presença deverá ser uma afronta!...

Eu revivia e recordava os meus tempos de garoto, no largo do Casal das Pombas, brincando com os meus vizinhos, a correr atrás da bola... e dos sonhos... que quando fosse um homem haveria de ajudar a construir um mundo melhor, mais justo e fraterno. E aonde vão os sonhos?... Continua quase tudo do essencial por fazer: a justiça, a solidariedade...

A fotografia do Ioró Jaló, pela sua parecença com a do ancião da estória do porco, interpelou-me. Quem era este homem? Poderia ser seu filho, sobrinho... Só que no seu olhar não via o ódio e rancor que vi no do outro. Tão só súplica e complacência. Penso nele e em todos os outros na sua situação. Que herança madrasta, nós portugueses lhes legámos! E agora quem os ajuda e auxilia na sua penúria e sofrimento?...

Foto do Ioró Jaló, ex-milicia no Pelundo, (Vd. Postes P2451 ou P5414) 
(Com a devida vénia ao Dr. António A. Alves)

Fotos de: Mama Samba; José Ussumane Injai; Demba Injai; Joaquim Gomes; Bondon Monteiro. (Vd. P2451 ou P5414)
Com a devida vénia ao Dr. António Alberto Alves pelas fotos e bem haja pela iniciativa. Bem hajam todos os que têm ajudado, de algum modo, a minorar o seu sofrimento.

Portugal, enquanto país ocupante daqueles territórios durante 5 séculos, deveria e poderia ter feito mais e melhor do que fez! Será que ainda há condições, espaço de manobra e tempo, para ajudar aqueles povos a saírem da situação em que se encontram e alcançarem uma vida melhor, com paz, desenvolvimento e prosperidade? Assim o desejo e espero.

Gostaria de ter vida, saúde e alguns recursos económicos para poder fazer algo também. Tenho algumas ideias, mas sozinho pouco poderei fazer. Juntando-me a outros e organizados, poderíamos fazer mais. Por que não a “Tabanca Grande” ousar ir mais além? Ser mais interventiva na “coisa pública”; dar mais consequência e visibilidade aos afetos e que estes se concretizem em ações possíveis. Juntos e organizados, poderíamos fazer muito mais a favor do sofredor Povo da Guiné, que nos pede e espera ajuda. E de nós próprios.

Sei que o Blogue não é uma ONG, que há várias a trabalhar e a fazer bem o que podem e onde nos podemos inserir. A ação que preconizo para a “Tabanca Grande” seria de outro nível: vamos chamar-lhe “Grupo de Sensibilização e de Pressão” do maior alcance possível, ao nível político, diplomático... nas esferas nacional e internacional. Será sonhar muito alto?...

Imagem do “Google Maps” da Guiné Bissau, com especial incidência no Chão Manjaco por onde andei, das Ilhas de Pecixe e Jeta até ao Cacheu, que de algum modo conheci e criei laços. Tiveram nestes últimos 40 anos alguma expansão e transformação urbanística, mas continuam tão carentes como então, de desenvolvimento económico autossustentado. Têm alguns recursos, mas há tanto para fazer! Tenho algumas ideias e penso que não deveria deixá-las morrer ou enterrá-las comigo. Mas são tão grandes e eu sou tão limitado, que não sei! Veremos.
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Nota do editor:

Vd. postes da série de:

6 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12802: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (1): Monte Real, 8 de Junho de 2013, o primeiro contacto com a Tertúlia

9 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12812: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (2): O primeiro contacto com a bibliografia da guerra colonial

12 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12828: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (3) : As minhas pesquisas sobre Teixeira Pinto e o "Chão Manjaco"

15 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12841: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (4): Teixeira Pinto, adaptação às pessoas e ao terreno

18 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12851: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (5): O porco que não consegui comer

terça-feira, 18 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12851: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (5): O porco que não consegui comer

1. Quinto episódio da série "Acordar memórias" do nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974):


ACORDAR MEMÓRIAS

5 - O SEGREDO DE...

O PORCO QUE NÃO CONSEGUI COMER

Nesse mês de Junho, iria começar uma nova função, que acumularia com as já habituais; passaria a desempenhar a função de gerente da messe de oficiais. Na necessidade de, mais uma vez, me afirmar responsável e competente, quase como a ter que ganhar o direito a existir, eu que me sentia de fora, pouco "militar", deslocado na classe privilegiada, assumi mais esse encargo como um desafio. Iria empenhar-me para melhorar a qualidade das refeições servidas na messe, dentro dos estabelecidos 30 escudos por pessoa e por dia. Ganharia melhor alimentação e evitaria as duras críticas e acusações que tinha ouvido, dirigidas ao camarada que me antecedera nessas funções.

Uma profícua papaeira do horto do batalhão. Ou uma prova de que com querer, algum trabalho, organização e técnica, a Guiné seria uma terra produtiva e próspera.

Depois de me inteirar do serviço a desempenhar, reuni com o Cabo Vagomestre transmitindo-lhe os meus propósitos visando ganhá-lo para a minha causa. Diariamente, procurava acompanhar as contas dos gastos e as ementas planeadas, incentivando-o a que se melhorasse a confeção das refeições e se variasse, quanto possível. Mas tinha uma circunstância a contrariar os meus intentos: a horta do batalhão, que nos meses anteriores tinha sido generosa e farta em verduras, alguns legumes e leguminosas, estava em final de ciclo produtivo; estava quase tudo seco e já pouco se poderia colher.

Ficaríamos dependentes dos reabastecimentos vindos de Bissau, em coluna, uma vez por semana, com poucos frescos. Era o recurso ao arroz, às massas, aos enlatados e ao peixe da bolanha. Nem com muita imaginação e boa vontade se conseguiriam ementas que agradassem. Por repetitivas, tornar-se-iam enjoativas.

O Mamadú, (?) auxiliar do soldado hortelão. Diariamente prestava serviço no quartel, ou no horto ou no corte da lenha para a cozinha e para o forno do pão. Sempre descalço e de cachimbo na boca.

Perante a marcação que fazia ao cabo vagomestre para que não se caísse na rotina e desmazelo de ementas contestadas, coloquei-me a jeito para que ele me lançasse o repto: “Se o meu alferes quer que se melhore a alimentação, só temos uma solução: ir às tabancas comprar víveres.” E eu aceitei o repto. Segundo o vagomestre (e disso deveria ele saber), as populações das tabancas tinham a obrigação, imposta pela administração civil, de fornecer alguns animais ao batalhão, para a alimentação da tropa.

Depois de me informar melhor, e tomar as providências necessárias, lá fomos, acompanhados de um Cipaio, que serviria de intérprete nas “negociações” e representava a Administração Civil.

Acompanhavam-me, para além do vagomestre, que faria de tesoureiro, alguns soldados do meu grupo e pessoal adstrito à cozinha da messe, em duas viaturas, creio que uma unimog e uma mercedes.

Chegados à tabanca escolhida, não sei se Beniche, se Bajope, se Chulame, que eram ladeadas de férteis bolanhas, iniciou-se o “jogo da apanhada” às galinhas, aos cabritos e aos porcos, que por ali andavam em liberdade, em volta das moranças e das cercas. E o “negócio” lá se ia fazendo, com a intermediação do cipaio e o pagamento feito em espécime (sem fatura e sem recibo).

As férteis bolanhas ao redor das tabancas da zona de Teixeira Pinto. Um grupo de homens (poucos) a preparar a terra para as sementeiras/plantações, virando a leivas com os seus arados. Alguns são ainda meninos outros já velhos. Os jovens adultos faziam a guerra, dos dois lados da contenda. E eu pensava: como seriam produtivos estes campos, se fossem introduzidas outras técnicas e mecanização. Mas o esforço ia todo para a guerra.

As mulheres manjacas, mulheres de trabalho, nos viveiros do arroz, procedem à repicagem para o transplante.

Aspeto exterior das moranças das muitas tabancas dos arredores de Teixeira Pinto; onde pessoas e animais viviam em harmonia e liberdade. Só a guerra e os militares levavam o desassossego.

Já com uma boa “caçada” consolidada, surge à vista um esmerado e bem nutrido leitão. A rapaziada entusiasmada com o “jogo,” enceta uma perseguição ao bicho, que lá se ia esquivando, ensarilhando entre as cercas e as moranças. Mas perante a determinação dos bravos pegadores, não foi longe. Amarrado e transportado para a viatura, grunhia e guinchava que nem um desalmado.

Surge então um ancião, que tomei como sendo o dono do animal, com modos pouco amistosos. Tentou-se a conversação e a negociação, mas o homem estava irredutível. Não percebi uma palavra do que disse, mas entendi que ele não queria vender o porco. Perante os factos, disse ao cabo vagomestre que seria melhor libertar o bicho, mas ele replicou que não o devíamos fazer, que o homem tinha a obrigação de vender o porco e que se não quisesse receber ali o dinheiro, que o fosse levantar à Administração, que era esse o procedimento habitual.

Não me agradava aquela situação, mas perante esta argumentação e as circunstâncias (novamente a minha condição de “pira”, inseguro e pouco firme, a vir ao de cima) cedi e viemos embora com o porco, sem o pagarmos, deixando para trás o ancião furioso, que com o seu olhar agressivo parecia querer fuzilar-nos. Se não era já afeto ao IN, após esse dia passou a sê-lo, com certeza.

Durante a viagem de regresso, autocensurava-me pelo que se tinha passado; deveria ter sido mais firme e não ter consentido em trazer o porco sem o pagar, mas também não tive iniciativa de voltar atrás e devolvê-lo ao dono. Achava que isso me deixaria diminuído na minha autoridade para com o vagomestre, para continuar a pedir-lhe todo o empenho para melhorar o serviço na messe. Mas pensava também no risco que corria, se o ancião, que eu desconhecia quem era, fosse fazer queixa ao Régulo e se este fizesse chegar a queixa até Bissau, ao Com-Chefe, talvez não me livrasse de uma “porrada”; e isso era a última coisa que eu queria; lá se iriam os meus 35 dias de licença, tão desejados. Se isso acontecesse, não sei como me iria aguentar.

Quando passados alguns dias o leitão foi servido na messe, não consegui comer dele. Ou porque estava mal cozinhado, pareceu-me só gordura, ou por remorso. E lá fui, mais uma vez, compensar-me no bar com uma lata de fruta enlatada e uma garrafa de leite achocolatado. Eu tratava-me e cuidava-me bem, para me manter com saúde e em forma.

Durante estes 40 anos esqueci muita coisa, quase tudo, nomes de pessoas e de locais, episódios, etc. Até o número da companhia e do batalhão eu tinha esquecido, mas este acontecimento nunca o esqueci e considero-o uma nódoa no meu comportamento, que desejei impoluto e pautado pelos elevados valores éticos, que tinha levado na mente e no coração, que procurei preservar, cultivar e ser fiel, não o tendo conseguido. A par de outros atos incorretos, confessados a quem de direito na devida altura, este, de caráter mais público, fica bem aqui retratado, nesta série “O segredo de:”. Dele peço desculpa, pelo que representa, a quantos se sintam por ele, atingidos e prejudicados.

Foto tirada da pista que ficava próxima do quartel. Ao fundo, o aspeto exterior das muitas tabancas de Teixeira Pinto. Uma área arborizada com as moranças circulares feitas de barro e cobertas de colmo. Arquitetura ancestral, bem adaptada às gentes e ao clima. Bem melhores que os reordenamentos que a tropa fazia, em áreas descampadas, retangulares, com blocos de barro cozidos ao sol e cobertura de zinco. Na zona havia alguns, mas pouco habitados. O objetivo principal não era servir as populações a quem se destinavam, mas sim controlá-las.
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12841: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (4): Teixeira Pinto, adaptação às pessoas e ao terreno

sábado, 15 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12841: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (4): Teixeira Pinto, adaptação às pessoas e ao terreno

1. Quarto episódio da série "Acordar memórias" do nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974):


ACORDAR MEMÓRIAS

4 - TEIXEIRA PINTO, ADAPTAÇÃO ÀS PESSOAS E AO TERRENO


Edifício Sede da Administração Civil em Teixeira Pinto. Estava situado em frente à porta de armas, no início da avenida principal. A casa do administrador já ficava dentro do retângulo do quartel e era uma boa casa com um belo jardim.


Teixeira Pinto, Junho de 1973

Ia entrar no 6.º mês da minha comissão na Guiné, e desde a primeira semana a sonhar com os 35 dias de licença regulamentar, que cheguei a sentir em perigo com a ameaça de uma “porrada”, quando ainda estava na terceira semana.

Já tinha superado muitas dificuldades de adaptação e de funções – adaptação ao clima, a um ambiente pouco hospitaleiro e corrosivo, os perigos e os medos, as saudades torturantes. Já conhecia as tabancas das redondezas de Teixeira Pinto, onde patrulhava de noite e de madrugada em patrulhas de proximidade e segurança, por vezes com emboscadas faz-de-conta (tipo guarda noturno) e durante o dia, em visitas de “A. Psico”.

Já conhecia alguns dos usos e costumes dos manjacos, da sua cultura e religião, tendo assistido a algumas das suas manifestações. Já tinha sentido e vivido o encanto das suas paisagens e dos sons das suas noites, das suas festas e dos seus choros. Tinham sido meses de intensa aprendizagem e atividades diversificadas.

Foto tirada em Caió, em passagem para uma visita a uma das Ilhas, Pecixe ou Jeta. Fazia “escolta” e companhia ao Alf. Médico Mário Bravo (ao centro). Ao meu lado, o Alf. Mil. Teixeira (?) da CCS. Era o responsável pelo parque-auto e pelos mecânicos do batalhão. À direita do Mário Bravo, o Alf. Mil. Moreira, que estava na sede da companhia em Carenque. Era pacífica esta zona do chão manjaco; Só os mosquitos atacavam. Apetece lá voltar.

E também já tinha muitos quilómetros de estrada, em escoltas a colunas, ao Cacheu e a João Landim. Já levava 2 meses de mata, do Balenguerez a Ponta Costa. Muitas horas de mil perigos e sofrimentos e algumas noites no “hotel estrela da mata”, entregues a nós próprios e aos mosquitos. E sentia ter conquistado a confiança e a amizade dos homens do meu grupo, por quem me via respeitado como chefe e protegido como se fosse o irmão mais novo...

Deslocação por via fluvial, por um dos canais do rio Costa-Pelundo. Partindo de Bassarel, seriamos lançados na margem sul da Península do Balenguerez. Era a primeira vez que o meu grupo fazia esta ação e o homem da lancha não conhecia o canal. Consultando a carta militar, eu descortinava entre tantos canais que o rio tinha na zona, qual era o que deveríamos seguir. E acertei. Mas não me livrava do receio de termos o IN à nossa espera, escondido no mangal, no tarrafo, ou na orla da mata, para a macabra receção. E sentia grande vulnerabilidade. Mas tudo correu bem.

Mas continuava a sentir-me tratado por alguns dos meus pares e por alguns superiores como o sempre alf. “pira” e algumas vezes senti-me hostilizado. Talvez que inicialmente, para eles, eu fosse um tipo um pouco estranho, que não alinhava em todas as suas borgas, antes se isolava, meditativo e até melancólico, a afirmar ideais humanistas e princípios com forte convicção, a questionar as razões daquela guerra, a expor valores em desuso entre a tropa local e diferente dos da sua classe, pondo-os em causa, já “velhinhos” e “apanhados” do clima. Naturalmente eu seria suspeito e era necessário manter debaixo de vigilância e ameaça. (Com o tempo fomo-nos conhecendo e ganhando confiança, respeito e camaradagem).

O meu quarto era o meu refúgio principal. Aí purgava com lágrimas a dor da saudade, na mágoa e na súplica e encontrava a Paz. Aí rezava, escrevia à minha noiva e à família, lia e ouvia música. (Belas músicas que eu ouvia). Mas algumas vezes saía e ia passear sozinho. Um dos locais para onde ia era este que a foto documenta: Nas traseiras do quartel, perto do cais, no limite do rio Baboque. Apreciava a paisagem, meditava e dava largas aos sonhos e conjeturas. Pensava naquele povo, que sofria as consequências da guerra e do subdesenvolvimento e como tudo poderia ser diferente, se uma boa parte dos recursos materiais e humanos gastos na guerra, fossem aplicados no desenvolvimento. E lembrava e meditava as palavras do Papa Paulo VI: - ”O Desenvolvimento é o novo nome da Paz”. (Vd. Carta Enciclica Populorum Progressio – PP87, Março de 1967)

Valia-me a boa relação com os homens do meu grupo, que dia a dia vinha ganhando em confiança e camaradagem. Com eles me identificava e com eles sofria e confraternizava. Sentia também o apoio e confiança do comandante da minha companhia, Cap. Mil. Gouveia.

Confraternizando com o meu grupo, após uma caçada clandestina a 2 javalis em Babol, próximo de Ponta Teixeira. O convívio foi fora do quartel (tinha que ser) num tasco de um senhor libanês de quem não recordo o nome. Fomos visitados por convite, pelo Comandante de Companhia, Cap. Mil. Aires da Silva Gouveia, que estava de Oficial-dia. À sua direita, o Fur. Mil. Op. Esp. Louro, que era da zona de Santarém. Um destemido guerreiro. Gostaria de saber dele para o contactar. Deixo o apelo a alguém que o conheça e queira fazer o favor de me informar.

E tinha um amigo, confidente e confessor, o Alf. Capelão Padre João (de quem gostaria de saber para contactar). Também tinha um grupo de jovens adolescentes, nativos, rapazes e raparigas, dos doze aos dezassete anos, para quem veiculava a minha amizade, quando me reunia com eles, lhes expressava os meus sentimentos fraternos, falando-lhes de Jesus Cristo e do Amor de Deus Pai, que nos tornava irmãos. Eu sentia-os como a minha família local, sendo eu o irmão mais velho. Como eu gostaria de voltar a encontrá-los, estar com eles e saber do rumo que levaram as suas vidas!

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12828: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (3) : As minhas pesquisas sobre Teixeira Pinto e o "Chão Manjaco"

quarta-feira, 12 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12828: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (3) : As minhas pesquisas sobre Teixeira Pinto e o "Chão Manjaco"

1. Terceiro episódio da série "Acordar memórias" do nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974):


ACORDAR MEMÓRIAS

3 - As minhas pesquisa sobre Teixeira Pinto e o "Chão Manjaco"

E onde é que eu ia? Ah! Já sei! Tinha deixado para trás o VIII Convívio do Blogue – Tabanca Grande, com o sentimento de alguma deceção.
Não tinha encontrado nenhum ex-camarada conhecido de Teixeira Pinto. Em contrapartida, tinha trazido comigo seis livros sobre a guerra da Guiné, escritos por ex-combatentes, que iria ler com interesse nos dias que se seguiriam. Porém, o foco principal do meu interesse estava em Teixeira Pinto.

Tinha que continuar a pesquisar e decerto iria encontrar alguns dos meus ex-camaradas, dos quais desgraçadamente até os nomes esquecera. Também me ocorreu que tinha mais de 200 cartas que tinha escrito à minha namorada/noiva/mulher e que iria passar a ler, na busca de reviver o que a memória tinha escondido .

E foram muitos os postes publicados que visitei, que me deram uma noção mais aproximada do que foi aquela guerra e apesar do desgosto que a sua memória me provocava, o meu respeito por aqueles que nela participaram aumentou. A par de alguns actos deploráveis, quiçá compreensíveis dadas as circunstâncias, encontrei descrições de grande humanidade, abnegação, lealdade, coragem, generosidade, amizade e valor. Alguns dos Postes visitados: todos os que julguei relacionados com o Chão Manjaco, os do José da Câmara, do Luís Faria, os relacionados com Teixeira Pinto, com o Bachile, com Capó, com o Balenguerez, com a Caboiana, com o Cacheu, com o Burné... com o Pelundo, mas também com os de outra zonas, Guidage, Guileje, Brá e muitos outros e de muitos autores.

Mas a minha atração era Teixeira Pinto e inicialmente pesquisei mais os postes que lhe julgava relacionados. E abri a carta militar disponível no blogue – deparei-me com mais uma coincidência inesperada: Teixeira Pinto, atual Canchungo, estava inserida numa zona (Regulado) chamada Costa de Baixo. Então... não é que eu morava no lugar de Costa de Baixo, de Leiria, de onde partira, para ir para uma zona na Guiné com o mesmo nome! Coincidências!... Já uma outra coincidência toponímica era a tabanca de Carenque, sede da CCaç 3461, ser homónima da localidade de onde partira e se constituíra (Carenque da Amadora), no RI 1, sua Unidade Mobilizadora. Mas o que mais me agradou ao analisar esta carta militar, foi reencontrar o nome das tabancas, que me soavam bem, quase musicais e me avivavam as memórias e os sentidos, sensíveis aos seus encantos e desencantos. - Binhante, Ucunhe, Bucol, Babanda, Petabe, Canobe, Beniche, Bajope, Chulame, Bechima, Caronca, Cachobar e as de Blequisse...

Imagem parcial da carta militar de Teixeira Pinto, atual Canchungo, (1953) – com a devida vénia ao Blogue e ao “cartógrafo- mor” Humberto Reis.

Nesta busca de notícias daquelas extensas e povoadas tabancas do Chão Manjaco, que tinha calcorreado e conhecido, desejei visitar e saber notícias dos então jovens adolescentes de quem fora catequista, preparando-os para o batismo cristão. E cheguei até à ONG “Bankada” – Andorinhas em Canchungo. Agradei-me de algumas notícias, de outras nem tanto e fiquei com o desejo de lá voltar. Na sequência destas procuras, abri o P2451 e deparei-me com isto: António Alberto Alves, sociólogo, português, a trabalhar na ONG “Bankada”- Andorinhas de Canchungo, a dar-nos conta que o livro “Diário da Guiné – Lama, Sangue e Água Pura” era lido entre os jovens de Canchungo. Curioso! Quem diria!...

Mas uma outra notícia me deixou perturbado: um grupo de ex-militares ou milícias Manjacos, do Pelundo, que tinham militado ao lado das tropas portuguesas, servindo e lutando do mesmo lado da barricada, debaixo da mesma bandeira e que agora viviam em dificuldades, na indigência. E para quem, em seu nome, era pedida ajuda aos ex-camaradas que os reconhecessem. Eu, que nunca tinha estado integrado com tropas ou milícias africanas, não me senti diretamente interpelado, mas fiquei sensibilizado e pesaroso com a sua situação. E, ao ver as suas fotografias, deparei-me com uma que me fez sentir um calafrio, um arrepio... A de Ioró Jaló.

Quem era este homem? De que tabanca? Seria mesmo do Pelundo? Ou de Beniche? Ou de Bajope? Ou de Chulame?...

Ioro Jaló
Com a devida vénia ao autor da foto Dr. António Alberto Alves e aos Editores do Blogue.

O que me fazia reviver esta foto de Ioró Jaló? Que sentimentos me despertava?

As feições deste homem, tornaram-me presente um episódio em que participei, de que não me orgulho, antes me envergonho e que, durante 40 anos, não apaguei da memória.

Um episódio que poderá não ter sido muito grave, dadas as circunstâncias, mas na minha consciência foi. Para quem pretendia ser fiel aos mais elevados ideais e princípios humanistas de coerência, justiça, respeito e solidariedade, o ato cometido foi infame. Cabe-me retratar-me dele, nesta série do Blogue: “O Segredo de...”

Mas para ganhar a compreensão e benevolência de quem o ler e me julgar, convém que faça uma introdução, que sirva de “circunstâncias atenuantes”. Até lá, não se ponham a adivinhar. Será um esforço em vão.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12812: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (2): O primeiro contacto com a bibliografia da guerra colonial

domingo, 9 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12812: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (2): O primeiro contacto com a bibliografia da guerra colonial

1. Segundo episódio da série "Acordar memórias" do nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974):


ACORDAR MEMÓRIAS

2 - O PRIMEIRO CONTACTO COM A  BIBLIOGRAFIA DA GUERRA COLONIAL

O meu regresso às minhas memórias da Guiné, iniciou-se quando um colaborador e companheiro de trabalho (que também escreve livros e com vários prémios literários, de pseudónimo Paulo Assim) me falou que tinha lido recentemente um livro sobre a guerra na Guiné e que referia um episódio, de que eu lhe falara, de um acidente com militares, que tinha provocado vários mortos e feridos, na sequência de uma desavença ocorrida num jogo de futebol; que deveria ser o mesmo episódio e que eu deveria conhecer o seu autor. Prontificou-se a adquirir-me o livro. “Diário da Guiné – Lama, Sangue e Água Pura”, de António Graça de Abreu. Li-o de seguida e com sofreguidão. Era a primeira vez que lia algo sobre a guerra da Guiné, onde também tinha estado e logo a falar-me dos lugares e de pessoas com quem tinha convivido, despertando-me assim para outros interesses...

Também, já há alguns meses me havia sentido “estranho”, ao constatar que a série televisiva “A Guerra”, de Joaquim Furtado, tinha mexido comigo, quando os episódios se referiam à Guiné. Dei comigo a discorrer sobre a condução política e militar de Portugal e da Guiné, a esse tempo, interrogando-me: como tinha sido possível que se tivesse deixado acontecer os “infernos” de Guidage e Guileje. Não era previsível o que aconteceu? Onde estavam os serviços militares de informação e reconhecimento? O que faziam? Por que é que não se actuou preventivamente? Porquê?... Onde estava a competência dos senhores da guerra? Se não havia capacidade para controlar, prever e contrariar a actividade do IN, o que andávamos a fazer? Eu, que não era militar nem guerreiro, via os erros que tinham sido cometidos, remediando tarde e em desespero de causa, com elevados custos humanos, morais e materiais, o que deveria ter sido prevenido e evitado. Mas logo, num ato de autocensura, abafei tais sentimentos, pensamentos e considerações. O que interessava agora pensar nisso? Para que serviria? Que parvoíce!... Os responsáveis já não estarão entre os vivos e ninguém responde pelas causas da guerra e pelos seus erros e consequências!


Sede do BCaç 3863 em Teixeira Pinto. Ao centro, edifício do Comando. À esquerda o das Transmissões.

Quanto ao Alf. Mil. António Graça Abreu, decerto que nos cruzámos em Teixeira Pinto, embora por pouco tempo. Teremos partilhado o mesmo bar ou até a mesma mesa, mas a minha memória não o acusava. Ou se apagara o registo, ou estava imperceptível. Lembrava-me sim do CAOP 1, da cena do simulacro de ataque ao quartel na minha primeira noite, dos acontecimentos do dia 1 de fevereiro de 1973, em que fazia pela primeira vez de Oficial-Dia; do Cor. Pára Rafael Durão e do seu porte e conduta militar, que até respeitava, dos seus frugais pequenos-almoços na messe de oficiais, em mesa separada, à base de frutas (grandes mangos da Índia).

O seu livro recordou-me o número de Batalhão a que eu pertencera, as Companhias que o constituíam, tornando-me possível acordar outras memórias. E agora estava disposto a libertar-me dos bloqueios que tinha montado, recordar e sentir a guerra da Guiné, pensar nos bons e maus momentos, poder analisá-la, criticá-la, não por saudosismo ou masoquismo, nem para condenar os envolvidos, governantes, políticos e militares, mas para reflectir sobre o que aconteceu durante esses anos: sobre a política que Portugal trilhou e as suas consequências, identificando os seus responsáveis, chamando os "bois" pelos nomes.

Mesmo considerando que os erros do passado são irremediáveis, sempre poderemos aprender algo com eles, para o presente e para o futuro e se possível minorar os seus efeitos, pela palavra e pela acção.

Iria também permitir-me procurar e saber dos meus antigos camaradas e talvez um dia encontrar-me com eles; principalmente com os do meu Grupo, o 4.º Pelotão, “Os Americanos”. Espero que ainda estejam todos vivos e de saúde. Mas por onde andarão?


Guião do BCaç 3863. Constituiu-se no RI 1 – Amadora. Esteve na Guiné de 22 Set.1971 a 16 Dez. 1973. Dados que obtive nas minhas pesquisas no Blogue.

Aqui chegado, o passo seguinte foi ir ao encontro do desconhecido e a via seguida foi ir à internet ver o que conseguiria, eu, que até então, pouco ou nada tinha navegado. (Já me bastavam as longas horas que passava agarrado ao computador por razões profissionais, quanto mais desperdiçar o meu tempo livre nesses luxos).

Eis-me agora nisto: Google > Bat. Caç. 3863 e entretanto estava a entrar no Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné. Desde então tem sido quase um vício. Pena é a falta de tempo, pois é um mundo que nunca mais acaba. A corroborar a máxima: “O Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca é Grande”.

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 6 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12802: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (1): Monte Real, 8 de Junho de 2013, o primeiro contacto com a Tertúlia

quinta-feira, 6 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12802: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (1): Monte Real, 8 de Junho de 2013, o primeiro contacto com a Tertúlia

1. Em mensagem do dia 24 de Fevereiro de 2014, o nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974), enviou-nos o primeiro texto para a sua série Acordar memórias:


ACORDAR MEMÓRIAS

1 - O PRIMEIRO CONTACTO COM A TERTÚLIA

Depois de há quase 40 anos ter deixado para trás a Guiné e o serviço militar obrigatório, com o sentimento de um esforço inglório e vão (que me tinha sido exigido em favor da Pátria, por um regime político e um governo que deplorava), enlevado no sonho de um país renovado, livre, democrático e feliz, que a “Revolução de 25 de Abril” prometia e ter optado pelo afastamento e esquecimento de tudo o que se relacionasse com a tropa e me recordasse a minha condição de ex-combatente na Guiné, talvez porque as desilusões tenham chegado a um ponto nunca esperado, iria estar pela primeira vez num encontro convívio de ex-combatentes da Guiné, que faziam parte de um Blogue que descobrira recentemente.

Se, há alguns meses, me dissessem que isto iria acontecer, eu negaria. Não estava nos meus interesses e planos.
O que se passara entretanto para mudar de atitude? Mais à frente explicarei.


Bissau, Maio de 1974 – Zona dos edifícios comerciais da baixa, perto da UDIB. Após os acontecimentos de 26 de Abril de 1974 em Bissau, principalmente após a chegada do Brigadeiro Carlos Fabião, as manifestações anticoloniais começaram a tomar expressões bem visíveis, fazendo-nos sentir que estávamos a mais e deveríamos regressar quanto antes à nossa terra. Era um sentimento que se contagiava.


8 de Junho de 2013, aqui estava eu agora em Monte Real, timidamente, como é o meu padrão de comportamento quando entre estranhos. Para melhor me integrar, tinha decidido que iria participar na missa planeada para início do encontro na pequena capela das Termas. Neste ambiente não me iria sentir tão deslocado. Já conhecia duas das pessoas presentes: o Joaquim Mexia Alves e o jovem padre Manuel Henriques. Depois, havia o sentimento de que naquela Assembleia seriamos irmãos em Cristo, reunidos, para na comunhão da mesma fé, celebrarmos a Eucaristia de Ação de Graças pelo dom da vida, da nossa, da dos ausentes e sufragando a daqueles que já partiram. Foi uma boa opção. E foi um bom começo! 


Capela de Sta. Rita de Cássia –Termas de Monte Real – (Com a devida vénia ao seu autor, Joaquim Mexia Alves) 

Monte Real, 8 de Junho de 2013 - VIII Encontro da Tertúlia - Joaquim Luís Fernandes à direita da foto
Foto: Rui Silva

E mais uma surpreendente coincidência desse dia, veio adensar (ou iluminar) o meu espírito: - A Igreja celebrava, nessa data, o Memorial do Imaculado Coração de Maria, que relacionei com alguns dos postes lidos na véspera: (P7059 ; P8964; P10030), do camarada José da Câmara, que me impressionaram, recordando-me “A Senhora que nunca nos abandonou” e que, por sua vez, tinha relacionado com uma experiência sensorial/emotiva, vivida há uns 5 anos, que me “transportou” às matas do Balenguerez – um dia escreverei sobre isso.

(Quando as vivências pessoais se tornam quase evidências e sustentam o sentimento da Fé)

Maio de 1973- Orla sul da Península do Balenguerez, próximo de Bamoial, entre Teixeira Pinto e Cacheu. A intensa atividade operacional que nos era exigida, em perigosas e duríssimas missões, levou-nos algumas vezes ao quase limite das forças, próximos da exaustão e da loucura.

O que se seguiu não irei descrever com minúcia. Assisti a efusivos cumprimentos e abraços entre camaradas de tertúlia ou de armas, que deixavam transparecer boa disposição, grande camaradagem e amizade. Também me senti bem acolhido pela simpatia que me dispensavam, mas eu ainda não era daquela guerra; tinha caído ali um pouco de paraquedas e a razão principal que aí me levara estava a ser defraudada.
O que me tinha atraído a Monte Real era a possibilidade de poder encontrar algum ex-camarada, que me desse notícias daqueles rapazes com quem tinha partilhado, há 40 anos, medos e sacrifícios, nessas sofridas, perigosas e infindáveis caminhadas, nas matas da Guiné, da assombrosa Península do Balenguerez até às “barbas” da tenebrosa Caboiana.
Sentia e sinto a necessidade de saber deles, de os encontrar e estar com eles, para lhes manifestar o meu apreço e sentimento de gratidão, pela forma respeitosa com que me aceitaram no grupo (“os Americanos” 4.º Pel/CCaç 3461), se submeteram ao meu comando, sendo eu mais novo e inexperiente e me ajudaram a crescer. Tanto que haveria para falarmos e celebrarmos... Mas nem um encontrei.


Teixeira Pinto – 24 de Julho de 1973 – Desfile de continência aos ilustres Comandantes e Chefes na Tribuna de Honra, no dia da elevação da vila à categoria de cidade. (A função faz o órgão... e o figurão) – O meu Pelotão. 


Perante esta circunstância, limitei-me a indagar nos presentes os que tivessem estado em Teixeira Pinto e me falassem das suas vivências nesse local, mas também pouco consegui. Porém, o ambiente foi-me agradável. Boa comida e bebida, os convivas da mesa foram próximos, como se sempre nos conhecêssemos e tudo acabou bem. Este encontro foi para mim uma imersão e uma aprendizagem e vim carregado de livros.
Iria levar por diante uma nova etapa, depois de 40 anos de esquecimento. Iria acordar as minhas memórias e predispor-me a reviver a Guiné daquele tempo, onde muito sofrera, mas onde também fora feliz.

Depois de 10 meses de Teixeira Pinto, onde fui usado como carne para canhão e me atribuíram as mais perigosas missões, para as quais não tinha sido preparado, mas que “cumpri” bem, fui agraciado pela sorte e cumpri 10 meses em Bissau, como oficial de justiça, nos Adidos em Brá. Quase civil e com a companhias da minha mulher.

(Continua)