Mostrar mensagens com a etiqueta Bibliografia de uma guerra. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Bibliografia de uma guerra. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25357: Notas de leitura (1681): "Margens - Vivências de Guerra", por Paulo Cordeiro Salgado; Lema d’origem Editora, Março de 2024 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Porque ficou este amor excessivo pela Guiné, por aqui andamos a testemunhar o que a memória ainda retém, no caso vertente Paulo Salgado, nosso confrade, volta em ondas sucessivas ao Olossato, aproveita acontecimentos vividos nos anos da cooperação e estas vivências da guerra, que agora nos oferece em livro, andam talentosamente entre o antes e o depois. Compete-me fazer uma declaração de interesse, dizendo que conheci o Paulo Salgado nos meses de cooperação de 1991, que viajámos ao Cumeré e ao Olossato, que numa das suas páginas me trata por Mariano e põe-me em Galomaro (diga-se de passagem que no meu tempo era uma quase colónia de férias, mas ele retratou-me entre flagelações e minas anticarro...). Devo-lhe um memorável encontro no Cumeré com o coronel Mamadu Jaquité que me deixava bilhetinhos na picada, sempre tratando-me carinhosamente por "alferes de merda"; e, não menos importante, guardo comovido a recordação da viagem ao Olossato, espero que o Paulo Salgado se recorde que quando ali chegámos se disse que nada de tão edénico tinha visto, sentia-me em Sintra. Enfim, as vivências que partilhei com o Paulo Salgado.

Um abraço do
Mário



Nunca o preço do amor pela Guiné é excessivo, só a morte o pode aniquilar

Mário Beja Santos

Paulo Salgado, depois da sua comissão no Olossato e em Nhacra, voltou à Guiné muito mais tarde como cooperante na área da saúde, durante sete anos, e sobre esta temática e outras incursões já deixara algumas achegas na escrita. Acaba de publicar uma nova incursão, de cariz memorial, pontuada por solilóquios, circunlóquios, viagens ficcionadas mas com personagens de carne e osso, deixa fluir a consciência de como pensava e agia no turbilhão da guerra, e com subtileza articula todos os seus regressos ao anseio da paz e do desenvolvimento, aquela terra, aquela vivência ganham forma de um processo irrefragável, é corpo dentro do seu corpo, e não resisto a comentar o que me ocorreu quando finalizei a leitura das "Margens Vivências de Guerra", Lema d’origem Editora, março de 2024, aquele parágrafo de Álvaro Guerra na sua obra O Capitão Nemo e Eu, 1973, nada de mais belo conheço em termos literários, e tudo por causa daquela guerra que nos irmanou: “Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um Sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e amei como um danado aquela terra que me injetou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor é excessivo, nem a presença da morte o pode aniquilar.”

Paulo Salgado é Alberto, tudo começa no aeroporto de Bissalanca, vem esperar Mateus, irão viajar até ao Olossato, inevitavelmente passarão por Ponte do Maqué, “lá está o que resta do fortim, quadrado fortificado, por onde passaram pelotões de companhias para guarda e salvaguarda da ponte, coberto de capim e arbustos, tudo o tempo levou, mas não levou as memórias que me vêm ao presente”; no Olossato Mateus procura Sali, a sua antiga lavadeira, ela anuncia-lhe que lhe deixou um filho, tem nome de Infali, trabalha nos correios de Bissau, põe-lhe diante dos olhos uma criança de cinco anos, é o neto de Mateus e dá pelo menos nome, Mateus pensa logo em levar esta criança consigo e educá-la; mas há uma outra viagem, Alberto, a mulher e a filha levam um outro antigo alferes, de nome Mariano até ao Cumeré, conta-lhe que em Nhacra, no dia 9 de junho de 1971, houve bastante sobressalto com flagelações do PAIGC, no Cumeré Mariano procura o comandante Demba, o antigo guerrilheiro do PAIGC fora seriamente flagelado no seu aquartelamento por ele e por o seu grupo, depois de uns segundos de embaraço tudo acabou em abraços, e gritou-se viva à Guiné!, e viva à Portugal!

Temos agora uma rotação de lugar e tempo, o antigo médico combatente conversa com uma sua colega, um rasto de memória leva-os até ao Sul, a jovem médica tem muito por contar, e nem lhe passa pela cabeça como fez bem ao veterano da guerra ouvi-la. Voltamos á orla do Morés, há um soldado que chora numa emboscada e será reconfortado pelo seu comandante; há um radiotelegrafista que não queria naquele dia ir em operação, o alferes lá o persuadiu, houve emboscada, a vítima foi o radiotelegrafista.

Temos agora Mateus e Alberto junto do enorme poilão do Alto do Maqué: “As nervuras salientes do poilão são enormes, cabendo ambos numa das fendas, parecendo que, abraçando-a, a magnífica árvore parece recordar-se deles, uma espécie de reencontro entre a majestade e imponência da árvore e a revisitação por estes homens que a ela ocorrem respeitosamente. Sentado, de pé, ao lado, de vários ângulos, deixam-se fotografar por Carolina, embevecida perante aquele cenário, aquele consolo quase pueril dos ex-militares, agora cinquentões.”

E há a memória do rio, quase sempre um fio de água que vaza as suas águas pelos braços do rio Cacheu; naquele local, estratégico, entre Bissorã e Farim, com o Morés à espreita, há recomendações para fazer ação psicológica, organizar manifestações de apoio à política do Governo, Alberto, que comanda a companhia, conversou com onze chefes de tabanca, e houve recados incómodos, do género: “Nosso alferes, a guerra não tem jeito nenhum; o senhor fala com o homem grande de Bissau para falar com o chefe do PAIGC para acabar com a guerra.”

E há as cartas de amor, Fernando Pessoa falava nelas como ridículas, Alberto dirige-se à sua amada, um tanto circunspecto, mas sempre com muitas saudades; traz-se gente da população afeta ao PAIGC numa operação, Alberto conversa com uma enfermeira da guerrilha, ela diz-lhe sem volteios que só quer lutar pela liberdade, o capitão decide que ela e as outras mulheres voltem para onde estavam, como aconteceu; não falta a mágoa de receber mensagens criticando a falta de cumprimento exato do que se devia ter feito numa operação e Alberto/Paulo Salgado dão nos conta, como se todos estivéssemos numa sala de espelhos, em Assembleia Geral, da ansiedade na espera do correio, a morte de um ente querido que nos é comunicada por uma mensagem, os meses passam, há brancos e pretos, mortos e feridos, lá na companhia chegou a funcionar um jornal, de novo “O Tabanca”, morre a mãe de Alberto e ele dedica-lhe um lindo poema, estamos em novembro de 1970, no fim desse ano há um ataque com mísseis terra-terra ao Olossato, o capitão enviar para Bissau o relatório: “Aquartelamento e povoação atacados com mísseis terra-terra; não houve vítimas nem prejuízos; apenas há que refazer o heliporto.” Num relatório não cabe dizer que houve gente escoriada e que se comeu um jantar frio; caso excecional, desapareceu um cabo-condutor do aquartelamento, mandou-me mensagem informando que o militar se teria perdido na mata do Morés.

O cooperante Alberto está agora numa receção na embaixada do Brasil em Bissau, disserta-se e brinda-se à lusofonia. Novo salto até ao passado, Alberto viaja pelas tabancas do Olossato e, mais adiante, fala-se do pontão que liga as duas margens do rio Maqué, que faz a ligação entre Bissorã e Farim, e alguém conta que o PAIG a rebentou com petardos, houve que reconstruir a ponte; muito anos mais tarde, quem contou a esta história, de nome Suleiman, ex-chefe de milícia, foi visitado pelo cooperante Alberto no hospital Simão Mendes, e o que fica escrito a todos nós pertence:
“Que vida de dor, primeiro, português de segunda, depois guineense de segunda, castigado por ter combatido ao lado da trapo portuguesa; agora amortalhado, vencido pelo sacrifício e pela doença, tenho de chorar, para dentro, não se consigo reter as lágrimas, um pedaço da minha vida escoou-se naquela figura íntegra e amiga, que tantas vezes guiou os nossos passos, nossos e de outras companhias, trilhos, carreiros, picadas… e me salvou a vida, evitando o pisar de uma mina… que Alá te abençoe, Suleiman.”

Ainda há muito que esperar desta literatura memorial, na casa dos setentas e dos oitentas são estas acendalhas que tornam esplendente o que Álvaro Guerra nos advertiu em 1973, chafurdou-se na lama das lalas, viveu-se a espiral da solidão, conheceu-se o medo, viram-se crianças esquálidas e de ventre inchado, seres humanos minados pela doença, tudo parecia acabado quando a guerra para nós acabou, mas não, como diz Álvaro Guerra, nunca o preço do amor é excessivo, porque muitos receberam a graça de amar aquela terra como este amor que agora se confessa, não se quer só reter para uso da memória individual.
Olossato: torre abrigo com vista para a pista de aviação
Olossato: abrigo das peças de artilharia – obus 8,8
Olossato: efeitos de uma mina na estrutura da ponte

Estas três imagens foram extraídas do blogue Rumo a Fulacunda, com a devida vénia
Regresso ao Olossato, neste caso Ponte do Maqué, 2006. Paulo Salgado, ex-alferes da CCAV 2721, na companhia do ex-cabo Moura Marques. Imagem retirado do nosso blogue
_____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25342: Notas de leitura (1680): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (19) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 13 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25268: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Lançamento do livro em 2010 - Parte II: vídeo (8' 43'') da intervenção do cor 'cmd' ref Raul Folques

Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) > Raul Folques e Rui A. Ferreira (Sá da Bandeira / Lubango, 1943- Viseu, 2022)


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) > Intervenção do cor 'comd' ref, Raul Folques

Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) > O nosso editor, Luís Graça,  à esquerda, gravando em vídeo a intervenção do cor 'comd' ref, Raul Folques

Foos (e legendas): © Virgínio Briote (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) > Em primeioro plano, oss nossos camaradas, membros do nosso blogue, João Parreira (de costas) e Mário Dias, ex-comandos do CTIG (1964/64),contempporâneos do Amadu Djalõ; em segundo plano, entre os dois,   comandante Alpoim Calvão  (1937-2014).

 Foto (e legenda): © Luís Graça  (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Lisboa >  Museu Militar >  15 de Abril de 2010 >  Lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010). Intervenção do cor  'cmd' Raúl Folques,  cmdt do Batalhão de Comandos da Guiné  entre 28jul73 e 30abri74. 

 Vídeo (8' 43''): © Luís Graça (2010). Alojado em You Tube > Nhabijoes (conta do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


 


Capa do livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il., edição esgotada) 




O autor por volta de meados de 1966.


1.  O lançamento do livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.) foi um acontecimento cultural, social e militar, juntando mo Museu Militar alguns conhecidas personalidades e sobretudo muitos amigos e camaradas, incluindo guineenses, e membros da nossa Tabanca Grande (alguns, infelizmente, já falecidos: o JERO (José Eduardo Oliveira), o Coutinho e Lima, o José Manuel Matos Dinis, o Rui A. Ferreira...

Estamos  recordar alguns dos melhores momentos desse evento, a que o nosso blogue dedicou, na altura,  nada mais mais nada menos do que cinco postes, e nomeadamente as intervenções dos três oradores: deppois do jornalista, escritor e analista político Nuno Rogeiro (*), segue-se o cor 'cmd' Raul Folques, que foi cmdt do Amadu Djaló, em 1973, no Batalhão de Comandos da Guiné. Infelizmenete não temos o texto em formato doc, apenas em vídeo.


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 >  Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) >

 Um guineense, Bamba, antigo dirigente do partido Resistência da Guiné-Bissau / Movimento Bafatá, e antigo ministro da Saúde Pública (Partido criado em 1986 como Movimento Bafatá, na sequência da execução de antigos dirigentes do PAIGC como Carlos Correia e Viriato Pã; nas primeiras eleições multipartidárias, realizadas em 1994, o RGB-MB conquistou 19 dos 100 lugares da Assembleia Nacional; em 1999, tornou-se o 2º maior partido da Guiné-Bissau com 29 lugares dos 102 lugares da Assembleia Nacional). Na altura, em 2010, devia viver em Lisboa. ~

Na foto, Bamba cumprimenta a Giselda, ladeada pela Alice e pelo Miguel Pessoa.  O Bamba era amigo pessoal do Agostinho Gaspar, nosso tabanqueiro e membro da Tabanca do Centro.


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010  >Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) >  Os nosos 'tabanqueiros' Alberto Branquinho e o Coutinho e Lima (1936-2022),  




Lisboa >  Museu Militar > 15 de Abril de 2010 >   Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) >O Rui Alexandrino Ferreira,  ten cor inf ref, ex-cap mil da CCAÇ 18 (1970/72), membro do nosso blogue, veio expressamente de Viseu, para assistir ao lançameno do livro do Amadú. Em contrapartida, teve a agradável surpresa de encontrar ali, por acaso, o Manuel Gonçalves, ex-alf mil mec Auto da  CCS / BCAÇ 3852,   do batalhão  que estava então sediado em Aldeia Formosa (1971/73). O Manuel Gonçalves, companheiro actual da minha amiga Tuxa, estava em vias de se tornar membro da nossa Tabanca Grande. Um dos soldados do seu pelotão era o Silvério Lobo, membro da nossa Tabanca Grande e da Tabanca de Matosinhos. Os dois já se voltaram a encontrar.

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

_________________

Guiné 61/74 - P25267: 20.º aniversário do nosso blogue: Alguns dos nossos melhores postes de sempre (3): "Liberdade ou evasão: o mais longo cativeiro da guerra", de António Lobato (1938-2023) (excertos do livro e notas de leitura de Mário Beja Santos)

 

António Lobato (1938-2024), maj pil av ref  (*): 
É bem evidente a marca da catanada na região frontal, que lhe foi desferida em 22 de maio de 1963, na ilha do Como, por um habitante local.


O António Lobato entrevistado em 1996, num programa da RTP1, "Operação Mar Verde - Parte l", Série "Enviado Especial",  apresentado pelo  jornalista José Manuel Barata-Feyo,   em 7 de julho de 1997. Fotograma capturado e editado, com a devida vénia à RTP Arquivos. (Vídeo: 17' 38'').
 


I. é uma pequena homenagem do nosso blogue ao camarada maj pil av ref António Lobato (Melgaço, 1938 - Lisboa, 2024) (**). Reunimos aqui alguns excertos do seu livro "Liberdade ou Evasão: o mais longo cativeiro da guerra", que teve pelo menos 5 edições (entre 1995 e 2014). A maior parte dos nossos leitores nunca o leu. 

O nosso crítico literário, Mário Beja Santos, recenbseou  aqui a 2ª (1996) e a 5ª edição (2014). Reunimos, entretanto, o essencial das suas notas de leitura: P20534, P20555, P20577 (com a devida vénia...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG)



Capa da primeira ediçáo (1995, Erasmios, Amadora)

´

Capa da quinta ediçáo (2014, DG, Linda-A-Velha)


1. A narrativa do major pil av António Lobato melhora de edição para edição, estou consciente que este aprimoramento vem da reflexão a que ele tem procedido, o que dá um caráter mais intimista à história do seu cativeiro. E, no entanto, somos agarrados sem qualquer possibilidade de despegar a nossa atenção tão avassaladora, veja-se logo aquela aterragem que lhe salva a vida em condições excecionais:  

"O ponto de contacto com o solo confirma-me a justeza do planeamento, mas surge um imprevisto que do ar foi impossível de detectar - o terreno não é totalmente liso; sulcos profundos, espaçados metro a metro, cortam-no de lés a lés. É uma bolanha, terreno preparado para a cultura do arroz. 

"Ao intradorso das asas do T-6 estão suspensas duas metralhadoras Browning, saliências que, ao entrar nos sulcos da bolanha, oferecem uma forte resistência ao deslizar do avião no solo. Atendendo a que este tipo de aterragem é feito com o trem recolhido, o entrar das metralhadoras num dos sulcos teve o efeito de arrancar instantaneamente as asas à aeronave. Fico sentado dentro de um charuto que rebola agora dentro de si mesmo, ao longo do terreno".

E assim vai começar o cativeiro, o mais longo cativeiro da guerra. Um relato superior, de um homem que soube superar a adversidade, que procurou fugir, mas que teve que esperar pela Operação Mar Verde para ser restituída a liberdade. (...)
 

2. (...) No prólogo das diferentes edições do seu livro, dá-nos uma síntese dos acontecimentos e da situação que viveu, nestes termos precisos:

“Em 1963, no céu português da Guiné, dois aviões da Força Aérea colidem na sequência de uma missão de ataque ao solo e após um deles ter sido atingido por projécteis inimigos.

"Um dos aparelhos despenha-se em plena selva e o piloto morre; o outro, aterra de emergência numa bolanha e o piloto, depois de agredido à catanada pela população local é capturado por guerrilheiros do PAIGC e conduzido à vizinha República da Guiné Conacri. Aí, é-lhe facultado optar entre e deserção e a cadeia.

"Optando pela fidelidade aos princípios do seu povo, é encarcerado na temível Maison de Force de Kindia, com o rótulo de criminoso de guerra.

"Durante sete anos e meio é submetido a maus-tratos, subnutrição, isolamento e contínuas ameaças de morte pelos agentes de um governo pró-soviético chefiado por um dos maiores tiranos da África Ocidental – Sékou Touré.

"Tenta três vezes a evasão, mas só na última consegue respirar, durante uma semana, o ar fresco da liberdade. Percorre cerca de noventa quilómetros em plena selva, atravessando a cadeia montanhosa do Futa Djalon em direção à Guiné Portuguesa. Ao sexto dia, é recapturado e reconduzido à prisão de onde partira.

"Ao cabo de mês e meio de total isolamento, é transferido de prisão e libertado, tempos depois, durante a Operação Mar Verde, chefiada pelo Comandante Alpoim Calvão.

"É por instâncias de familiares e amigos, por dever de cidadania e para comemorar os vinte e cinco anos do regresso à liberdade que hoje se propõe condensar em curtas páginas, não apenas os horrores, mas sobretudo algumas das vias possíveis de sobrevivência no meio hostil e o consequente enriquecimento da pessoa humana, quando, perante situações-limite, consegue vencer-se a si próprio”. (...)

Não se irá aqui cotejar as inúmeras alterações introduzidas de edição para edição. O que se pretende relevar é a melhoria substancial da qualidade literária e a introdução de um processo intimista, em edição recente, António Lobato revela as estratégias de que se socorreu para que a tremenda solidão da clausura não o destruísse, pelo menos moral e psicologicamente.

Fala-nos da sua juventude  em Paderne, como se alistou jovem na Força Aérea, depois temos o curso de pilotagem em S. Jacinto, a fase básica na Base Aérea n.º 1 em Sintra, em 22 de maio de 1958, um acidente quase que o ia matando, após dois meses de imobilização, e ao fim de cerca de oito meses de treino intensivo, ei-lo pronto para voar mais alto. Tem 21 anos e é-lhe confiada a tarefa e a responsabilidade de ensinar outros a voar. E, como ele escreve, em 1960 rebenta a guerra colonial.

 A Força Aérea não possui na Guiné qualquer tipo de estrutura. Em julho de 1961, em companhia de um outro camarada, seguirá para a Guiné em missão de soberania. 

Em 19 de setembro de 1961 descola pela primeira vez da pista de Bissalanca aos comandos de um T-6. Descreve com incisão e economia todos estes acontecimentos, casa-se, regressa à Guiné com a mulher e em 21 de maio de 1963 parte em missão para a Ilha do Como, um acidente obriga-o a uma aterragem de emergência, aterra no Tombali, é ferido e levado por guerrilheiros do PAIGC para território da Guiné Conacri.

Não é despiciendo observar como naquela região do Tombali há população afeta ao PAIGC e os guerrilheiros movimentam-se com certo à-vontade. A guerrilha tinha capturado um barco da Sociedade Comercial Ultramarina, de nome Bandim, transportará Lobato para o cativeiro. 

É bem tratado em Sansalé, tem feridas graves na cabeça e num braço. Seguem no Bandim até Boké. Segue-se um prolongado interrogatório. É interrogado, pretendem saber qual o regime político em Portugal, o que ele sabe da situação colonial, Lobato remete-se ao silêncio, depois de ter dado os seus dados militares, depois de uma longa viagem entra na Maison de Force de Kindia 

(...) “Entramos num hexágono aberto para o céu, com duas portas em cada um dos seis lados. Encaminham-me para a direita e indicam-me uma dessas portas, em ferro maciço, com o número 7 ao centro, encimada por uma grelha, feita em varão de diâmetro não inferior a 3 centímetros. 

"Entro e a pesada porta fecha-se atrás de mim com aquele ruído sinistro das portas de todas as prisões do mundo. Dou quatro passos e chego ao fim do espaço de que posso dispor. 

"Do lado direito, fazendo corpo com a parede e até dois terços de comprimento, ergue-se, até à altura de sessenta centímetros, um bloco maciço de cimento armado sobre o qual assenta um velho colchão de pano cheio de palha. Depreendo que é a minha cama. 

"Não sei bem porquê, mas sinto um forte cansaço. Sinto-me deprimido como antes nunca me tinha sentido. Apetece-me chorar. Atiro-me para cima da palhaça e não consigo conter os soluços que me sufocam. Choro tudo o que tenho a chorar e adormeço no cume da infelicidade”. (...)

Segue-se a descrição do dia-a-dia, ele é o prisioneiro da cela n.º 7, falam-nos do currículo de Sékou Touré e como ele mantém o seu regime de terror; vamos saber como é a sua cela, a degradação a que vai ser sujeito, o início da sua luta para se manter corajoso. 

A condição física começa a dar sinais de ruína, como ele próprio comenta:  

(...) “Porque não como uma boa parte das magras refeições, sinto que vou perdendo, lenta mas seguramente, toda a pujança da juventude; porque não me é fornecido qualquer tipo de medicamento, começa a ter fortes ataques de paludismo; porque a alimentação é pobre demais, a cárie dentária torna-se num flagelo; porque permaneço imóvel horas sem fim, começo a ter problemas de bexiga, a urinar pus e a sentir dores de barriga e cólicas insuportáveis. 

"Os ataques de paludismo surgem a uma cadência semanal e manifestam-se por acessos de frio, que me obrigam a bater os dentes durante horas, seguidos de vagas de calor, que me deixam exausto e banhado em suor. As dores de dentes, por vezes são tão intensas que me perturbam a visão e provocam vómitos e tonturas próximas do desmaio. A degradação do meu estado físico, se, por um lado, é dolorosa e me perturba a mente, por outro, prende-me o pensamento ao corpo e não me deixa grandes hipóteses de fuga em busca de recordações bem mais amargas que as dores da carne”. (...)


3.  (...) Descreve primorosamente a luta para se manter racional, para ir resistindo a um corpo que perde tonicidade, ocupa a mente e um dia vem até ao pátio, o recluso pode conviver.

Começam as peripécias, com todos os riscos: escreve à família, dá a sua localização, várias vezes procura a evasão, sempre sem sucesso. A liberdade irá chegar a 22 de novembro de 1970, no decurso da Operação Mar Verde. 

O seu regresso deixa-o atordoado, não pode falar do seu cativeiro, vai à televisão contar umas patranhas. E volta ao seu mundo dos aviões. E terminará o dia numa conferência citando o personalista cristão Emmanuel Mounier:

"Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão".

Não se entende como esta obra não encontrou um editor comercial, é um testemunho único. Vamos agora à edição de 2014, o agora Major Lobato remexeu na obra, deu-lhe outra palpitação sem renegar o escopo inicial. Esta edição catapulta o testemunho de Lobato para o patamar das grandes obras da literatura da guerra da Guiné.


4. Estamos a seguir de perto a edição de 1995, mais tarde tomar-se-á em conta as edições introduzidas na 5.ª edição, de janeiro de 2014, ver-se-á como o testemunho do Sargento Lobato ganhou em vibração literária, em intimismo, em vigor sobre a reflexão de um cativeiro. Ele é o preso da cela n.º 7, em Kindia, Guiné Conacri. 

Procura aperceber-se de quem são os outros presos, vai-se cronometrando com as rotinas, o dia que começa com várias portas de ferro a ranger nos gonzos, as latrinas fétidas removidas das celas, Lobato tem dois baldes, um deles serve de sanita, o outro contém água para beber, para se lavar e para substituir o papel higiénico. 

Põe a mente a funcionar, é preciso resistir à loucura ou ao embrutecimento. Os sentidos afinam-se, a sua capacidade de sobreviver também. O almoço é constituído por quatro bananas cozidas. Pesquisa à volta, põe os sentidos a funcionar, passa por um estado de dormência.

(...) “A minha cabeça está dorida e muito sensível. O simples toque dos dedos nos cabelos parece fazê-los enterrar-se, como espinhos, pelo crânio dentro. Este voltar do meu interesse para o corpo diz-me que continuo consciente da realidade vulgar, mas alerta-me também para outra realidade, muito mais real: é que bastou um simples avivar de sentimentos, provocado por um olhar para o firmamento, para desfazer a ilusão em que sempre tenho vivido de que o corpo sou Eu”. (...)

Põe os ouvidos à escuta, adapta-se às rotinas da prisão, às orações dos muçulmanos, toma consciência de que perde tónus, surgiu a cárie dentária, há momentos de grande desânimo:

(...) “Há cerca de três meses que oscilo entre o ser e o nada. Ou enlouqueço, ou me anulo, ou faço qualquer coisa para sobreviver até onde for fisicamente possível. Este estado caótico dentro de mim chegou ao limite do suportável. Isto que agora me tritura a alma, deve chamar-se desespero”. (...)

Dá luta aos percevejos, vai descobrindo a resiliência, tudo faz para se manter lúcido, doseia a plena atenção com o entorpecimento:

(...) “Quando o coração já não é mais que uma chaga e nem sequer reage aos golpes do punhal da lembrança; quando já não posso mais porque o cérebro, extenuado, se recusa a pensar por mais tempo e a evocar ou a lembrar-se; então a besta reclama, atiro-me para cima do catre e adormeço profundamente. 

"Ao acordar, tudo renasce, recomeço a evocar, a lembrar-me, de novo a sofrer mas com resignação. Consolo-me com a vitória de ter enfrentado a dor, de a ter vencido, de não lhe ter fugido e de ter ganho qualquer coisa de muito preciso que me ajuda a crescer”. (...) 

Depois de um ano de isolamento, é-lhe facultada uma hora de recreio todos os dias, pode agora observar seres humanos e aperceber-se melhor de tudo quanto se passa dentro da prisão. Encontra leprosos, tuberculosos, sifilíticos, gente que vai morrer. 

Então encontra alguém que se chama Chambord Lambert Joseph Alexandre Raymond e que lhe abre espaço para escrever para o exterior. Em 28 de novembro de 1964, da sua cela vedada com cimento e ferro, sai um código e o relatório da missão do dia 22 de maio de 1963, junta informações sobre a prisão em que se encontra, dedica alguma poesia a pessoas que ama profundamente, é de uma extrema beleza a mensagem que manda à mulher:

(...) “Durante toda esta ausência que tanto nos faz sofrer, neste abismo de miséria que submerge, nas horas que tudo me abandona, a fé inclusive, é sempre a tua imagem que me ajuda a flutuar, que me impede do naufrágio irreparável”. (....)

Encontra outro soldado português capturado, António Lauro, de Sernancelhe. Recebe propostas do PAIGC para denunciar a guerra colonial e partir para o exílio, tudo recusa. Aparecem dois graduados portugueses, Rosa e Vaz. Rosa é alferes miliciano e foi capturado em Bissássema, virá a escrever o seu testemunho, cuja recensão existe no blogue. O testemunho de Lobato vai falar das tentativas de fuga e os seus insucessos, na última andará uma semana a monte.

E em 22 de novembro de 1970, acontece a liberdade. Durante a Operação Mar Verde, um grupo assalta a prisão e liberta os 23 cidadãos portugueses, prisioneiros de guerra. Atravessam Conacri e embarcam num vaso da Armada, Lobato é apresentado a Alpoim Calvão, este está inquieto, teme que os aviões MIG, que não tinham sido destruídos, possam vir no alcance dos navios da Armada. Mas nada acontece, o contingente regressa até à ilha de Soga, daqui Lobato é transportado para Bissalanca.

Em 26 de novembro, todos os prisioneiros de guerra aterram na Portela e vão no autocarro para o Forte de Catalazete, estão oito dias consecutivos trancados numa sala com luz artificial e guardados por dois inspetores da DGS. 

Lobato interroga-se se saiu de uma prisão para entrar noutra. Ao fim de oito dias, aparece um coronel da Força Aérea com a missão de propor a liberdade desde que se comprometa a guardar segredo sobre o que sabe do desembarque em Conacri e ir à televisão contar uma evasão fictícia. Lobato está estarrecido, tem que aceitar.

Finalmente vai encontrar-se com a família, segue com a mulher e os pais para Melgaço, onde é recebido apoteoticamente

Passam-se meses sem que a Força Aérea o convoque, Lobato escreve uma carta a Marcello Caetano, é então chamado a Lisboa onde o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea o recebe com gritaria e ameaças. 

O importante é que Lobato volta aos aviões, termina o seu relato falando de uma conferência que fez na Academia da Força Aérea e onde referiu que o choque que o indivíduo sofre quando é brutalmente retirado do seu ambiente habitual e colocado em condições precárias de sobrevivência coloca-o frente a frente consigo como se de duas pessoas distintas se tratasse. 

É uma luta transfigurante, tão intensa como a dialética interior à procura de uma fresta que mantenha o homem no limiar da razão. Lobato conseguiu fundir numa união racional aquilo que prevalece do homem social com o indivíduo.

(...) “A partir do instante em que há passagem do ponto crítico com luz à reconciliação, acede-se a um estado de paz interior, a uma lucidez parente próxima da clarividência, a um racionalismo em que nada existe de insignificante. O que ainda resta da emotividade, reflete-se apenas em esporádicas euforias provenientes de um sentir, revelador da aquisição de qualquer coisa nova que nos sobredimensiona e que Mounier (filósofo francês, criador do personalismo cristão) exprime melhor do que ninguém:

- ‘Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão’.” (...)


5. Na última parte  iremos abordar as adições que acabam por valorizar este testemunho e tornar o depoimento de Lobato uma das memórias mais impressivas de toda a guerra colonial que os portugueses viveram entre 1961 e 1975.

António Lobato mexe e remexe no seu poderoso testemunho, de edição para edição:

 (....) Verificam-se aprimoramentos que, é o meu pensar, tornam este documento imorredoiro na história da literatura da guerra da Guiné, pegam-se em duas descrições, uma a fulgurante aterragem depois do acidente aéreo no regresso da Ilha do Como, é de uma vivacidade impressionante, incluindo não só os gestos necessários à pilotagem mais adequada às circunstâncias como o texto faz fé ao estado de alma de quem vai procurar sobreviver; o segundo texto é uma narrativa de cativeiro, releva o macabro da sordidez do presídio, o macabro e o nauseabundo de toda aquela escravidão a que estavam submetidos os adversários de Sékou Touré.

6. (...) Temos agora uma narrativa ainda mais vigorosa e em muitos pontos ganhou intimismo, espelhando os altos e baixos de um cativo que descobre força anímica para acreditar em si próprio e tentar escapar ao degredo.

A primeira descrição relaciona-se com o acidente aéreo, tem mais detalhe, dinâmica, a clara perceção do risco, a mestria da operação para aterrar em condições excecionalmente hostis:

(...) “O meu avião continua a vibrar como que sacudido por uma peneira gigante, devido ao desequilíbrio provocado pelo hélice todo torcido. Nestes casos, o procedimento para evitar o descontrolo total é parar o motor e saltar em paraquedas, ou então tentar uma aterragem de emergência sem motor.

"Num relance de olhos para o exterior, vejo uma clareira no meio da mata onde me parece que sou capaz de meter o avião. Como o motor está parado, sei que tenho de guardar uma velocidade tal que me permita manter o avião a voar como um planador e fazer uma avaliação muito correta de aproximação ao início da clareira, tão baixa quanto possível, mas sem bater nas árvores que a circundam.

"A quem não está familiarizado com os assuntos de aerodinâmica e pensa que a um avião com o motor parado só resta cair, devo esclarecer que, enquanto houver altitude suficiente para descer e manter uma velocidade de planeio, este voa normalmente até chegar ao solo.

"Perante a rapidez de decisão que a situação exige, o afluxo de adrenalina é tal que todas as faculdades passam a ter uma acuidade várias vezes superior ao normal. Todas as mnemónicas aprendidas há cinco anos atrás, ainda na fase da formação, para fixar procedimentos de emergência, afluem à memória com um rigor e uma fidelidade alucinantes.

"Nos escassos segundos que me separam do contacto com o solo, enquanto vigio e controlo com a cabeça, com as mãos e com os pés, não só o valor sagrado daquela velocidade mínima que ainda permite voar, mas também a altitude, a direção e as manobras de glissagem, perigosas mas necessárias para encaixar o avião no início da exígua clareira, vou simultaneamente executando os restantes procedimentos que contribuem para o sucesso de uma aterragem de emergência, tais como: apertar cintos, abrir cabine, desligar combustível, mistura e magnetos, desligar bateria e assumir uma atitude de corpo e alma bem encostados à cadeira.

"O ponto de contato com o solo confirma-me a justeza do planeamento, mas surge um imprevisto que do ar foi impossível detetar – o terreno não é totalmente liso; sulcos profundos, espaçados metro a metro, cortam-no de lés a lés. É uma bolanha.

"Ao intradorso das asas do T6 estão suspensas duas metralhadoras Browning, saliências que, ao entrar nos sulcos da bolanha, oferecem uma forte resistência ao deslizar do avião no solo.

"Atendendo a que este tipo de aterragem é feito com o trem recolhido, o entrar das metralhadoras num dos sulcos teve o efeito de arrancar instantaneamente as asas à aeronave. Fico sentado dentro de um charuto que rebola agora sobre si mesmo, ao longo do terreno”.(...)

E é com esta chave explicativa, em pleno clímax, que Lobato sai incólume e vai ser capturado, ao princípio ainda acredita que quem com ele vem dialogar o ajudará a percorrer as duas dezenas de quilómetros para chegar a Catió, é brutalmente ferido, o calvário vai começar.

Lobato já está na cela n.º 7 na Maison de Force de Kindia, Guiné Conacri.

Vai-nos contar o início do dia nessa cadeia de segurança onde jazem inimigos de Sékou Touré:

(...) “Não resisto à curiosidade de ver o que se passa no exterior e penduro-me nas barras de reforço da porta para elevar a cabeça a uma altura que me faculte uns metros de horizonte.
O que vejo aterroriza-me! O pátio é hexagonal, um espaço a céu aberto para onde se abrem quatro portas de ferro, totalmente opacas, bem mais baixas que a minha e sem grades a encimá-las, vai-se enchendo de negros de todas as idades, descalços e quase nus, manifestamente subalimentados, que saem por aquelas portas como rebanhos escorraçados por uma fera invisível que os persegue.

"No centro do pátio, chicote em riste e porta de carrasco, um guarda sem expressão facial, tão ameaçador quanto esquelético, orienta para o grande portão de saída aquela enxurrada de negros totalmente desprotegidos, distribuindo chicotadas à direita e à esquerda, vociferando insultos apenas intercalados por nojentas cuspidelas num chão de cimento muito irregular.

"Junto ao portão de saída para o exterior, alinhadas ao lado de cada uma das ombreiras, duas colunas de homens armados. Nos pés trazem sandálias de plástico coloridas pela terra avermelhada dos caminhos que percorrem. Vestem calças engelhadas, de um caqui esverdeado, e uma camisa sem mangas, do mesmo tipo de tecido. À medida que os prisioneiros saem para as GMC que os esperam à porta, vão sendo contados pelos soldados.

"Terminada a tarefa do embarque para trabalhos forçados, os grandes portões fecham-se e tem início outra tarefa, atribuída aos inaptos para o trabalho no exterior e àqueles que alguma vez tentaram a fuga.

"De cada uma daquelas quatro portas opacas, ainda abertas, saem agora pequenos grupos que se movem com alguma dificuldade. Uns são leprosos a que já faltam partes do corpo, sobretudo das mãos e dos pés; outros tossem convulsivamente e expelem escarros amarelos para aquele chão meio desfeito; outros, ainda, apoiam-se às paredes para não tombar e arrastam-se com dificuldade em direção a uma outra porta que entretanto se abriu e dá acesso a uma área de recreio.

"Os menos afetados por doença ou caducidade sustentam nos braços metades de bidões de duzentos litros que transbordam de fezes e outros dejetos. Acompanhados por um guarda, saem pela porta principal. Minutos depois, oiço-os nas traseiras da minha cela a despejar os imundos recipientes.

"Todos os dias, após esta operação, o mau cheiro engrossa como se de coisa sólida se tratasse e põe a prisão a transbordar de nojo. O trágico amanhecer não fica por aqui. O encetar de uma terceira operação obriga-me a descer do meu posto de vigia, mas ainda bem que isso acontece, porque já tenho os braços dormentes de estar tanto tempo suspenso.

"O guarda começa a abrir as portas das sete celas que também dão para o pátio hexagonal. Dois negros estropiados retiram do interior de cada cela um balde de zinco que a seguir despejam num bidão colocado para o efeito num dos ângulos do pátio.

"Também eu tenho aqui dois baldes, sendo um deles substituto da sanita e outro servindo de contentor de água para todos os fins, isto é, para beber, para lavar e para substituir o papel higiénico que por estas paragens é desconhecido”. (...)

A transcrição destes dois textos é um convite para que se releia António Lobato, um jovem sargento piloto-aviador capturado no Tombali, em maio de 1963 e libertado durante a “Operação Mar Verde”, em novembro de 1970.

Foi considerado herói nacional e voltou ao ativo até ter passado à reserva em 1981. Exerceu outros cargos, posteriormente.

É um dos mais impressionantes documentos de vida em cativeiro, senão mesmo o mais impressionante de todos. De leitura obrigatória.
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste 10 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25259: In Memoriam (50): António Lobato, maj pil av, ref (Melgaço, 1938 - Lisboa, 2024), autor de "Liberdade e Evasão: o Mais Longo Cativeiro": Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão, escreveu ele, citando o filósofo Emmanuel Mounier. A sua vida foi também ela uma luta contra o esquecimento e a ingratidão. Repousa, finalmente, em paz, em Rio de Mouro.

terça-feira, 12 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25266: Agenda cultural (850): Síntese da apresentação do livro "MARGENS - VIVÊNCIAS DE GUERRA", da autoria de Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que esteve a cargo do Coronel António Rosado da Luz (Paulo Salgado)


1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro, "Margens - Vivências De Uma Guerra, com data de 10 de Março de 2024:

Caro Luís Graça e Coeditores
Seria interessante que o comentário a este livro MARGENS – VIVÊNCIAS DE UMA GUERRA, cuja apresentação foi feita pelo capitão de Abril, Coronel António Rosado da Luz, fosse elaborado por um dos nossos editores que saberiam escolher os trechos para o Blogue.
Sei, ainda, que o Mário Beja Santos, sempre presente nestas andanças, e carregado dos seus valores, fará uma abordagem à sua maneira.

Transcrevo parte desta apresentação, que me pareceu relevante para o nosso Blogue. De um grande capitão de Abril, cidadão interventivo e activo. Já agora: Este livro é dedicado aos capitães de Abril. No cinquentenário do 25 de Abril.

Paulo Salgado



"Margens – Vivências de Guerra"
Autor - Paulo Cordeiro Salgado

Apresentação pelo capitão de Abril
Coronel António Rosado da Luz

"Foi a primeira vez que me convidaram para APRESENTAR UM LIVRO.
Seguindo a “palavra de ordem” fundamental de “um tropa”,… lá tive que me “desenrascar” …

Nos tempos presentes, por opção, por força das circunstâncias e também por prazer e autorrealização pessoal, a atividade que ocupa 90% do meu tempo é ler.
Ler, estudar, investigar e escrever. E, ler este livro, deu-me imenso prazer por três razões, que me fazem ficar imensamente grato, quer ao Mário Tomé que sugeriu, quer ao Paulo Cordeiro Salgado que aceitou, terem-me proporcionado o imenso prazer de ler, em primeira mão, este livro.

A primeira dessas razões foi a de me terem dado oportunidade para me “desviar” dos temas quase obsessivos que ocupam a minha mente, permitindo-me regressar, por algum tempo, àquilo que posso denominar de “leitura lúdica”.


A segunda, pelo facto dos vários “planos”, logo anunciados no “preâmbulo” do livro, em que o autor decidiu “dar forma” ao tema central desta sua obra, me terem ajudado a refrescar a minha própria abordagem dos tais temas obsessivos que me ocupam a mente.

A terceira e mais importante razão para lhes estar grato é o imenso prazer… e até alguma emoção, …que são proporcionados pela leitura deste livro. O autor escreve, não só com arte, aquela arte de domínio da palavra que nos encanta ler, como escreve com alma, pois consegue pôr – e transmitir - emoção naquilo que escreve.


Mas este não é APENAS, ou, SOBRETUDO, não é um livro de memórias.
É um livro onde as emoções e as reflexões em torno dos dramas e das violências da GUERRA, da VIDA e da MORTE, se espraiam pelo AMOR, pela AMIZADE e pela SOLIDARIEDADE, mas também pela HISTÓRIA, pela POLÍTICA e por essa entidade mítica que nos condiciona, que nos abriga e que “somos”, que é PORTUGAL.

Embora não seja essa a forma como o livro está estruturado, podemos dividir o OBJETIVO do AUTOR em três “tempos”.


O primeiro “tempo” decorre nos dois primeiros anos da década de setenta. O autor deste livro, Paulo Cordeiro Salgado, que era na altura o Alferes miliciano mais antigo de uma companhia sediada no Olossato, a 27 quilómetros da fronteira com o Senegal e situada numa das zonas de guerra mais acesa, do Teatro de Operações da Guiné-Bissau, vê-se de repente, investido nas funções Comandante dessa Companhia, por morte, em combate, do Capitão que a comandava. Até à chegada de um novo Capitão que irá comandar a Companhia (que aqui está hoje presente entre nós) é ele, jovem de vinte e poucos anos, sem qualquer formação ou experiência para tal, que vai passar a ser O SENHOR, quase absoluto, de vida e de morte, sobre uma enorme área geográfica e sobre centenas ou milhares de seres humanos que nela vivem, ou são obrigados a isso.

A missão que lhe impõem é fazer a guerra. Fora mobilizado para ir para aquela guerra pela força de uma Lei, feita por um regime ditatorial, com o qual ele não concordava, para ir combater numa guerra, com a qual ele discordava totalmente. E ali estava agora ele, para matar ou morrer, pessoas que ele naturalmente respeitava como seus irmãos e contra as quais ele não tinha quaisquer motivos para tal. E, a grande maioria das cerca de duas centenas de militares que ele agora comandava, estavam na mesmíssima situação.

Mas há neste livro um segundo “tempo”.

Vinte anos após o fim da sua comissão, a intensidade dos dramas nela vividos pelo Paulo Cordeiro Salgado colaram-se-lhe de tal maneira à pele que ele não conseguiu mais reprimir a necessidade de “ajustar contas com o passado” e regressou à Guiné. Mas desta vez regressou para fazer o oposto da guerra. Regressou como cooperante.
Regressou, não só pela necessidade de se reconciliar consigo próprio, fazendo a sua catarse, como por ter ficado a amar, para sempre, aqueles povos, aquelas paisagens, aquela África.

Como eu compreendo o autor.


Finalmente, o terceiro “tempo” passa-se, 54 anos depois da sua primeira chegada às matas, às bolanhas e aos enormes rios da Guiné que alargam e encolhem duas vezes por dia. Passa-se nos nossos dias. E é nesse terceiro “tempo” deste livro, que se entende com toda a clareza o OBJETIVO do autor, pois é nele que Paulo Salgado, com os pés assentes no presente, resolve olhar para o passado, para o presente e para o futuro, escrevendo este livro.

É agora, 54 anos depois, que ele volta a olhar para os dramas dos “tempos da guerra”, daquela guerra onde ele combateu e, duas décadas depois, para os “tempos da reconciliação”, da reconciliação consigo próprio, com África e com os povos, que ele combateu, mas amou desde o primeiro momento.

E é aí que as reflexões que o autor vai fazendo ao longo do livro ganham um “outro patamar” de interesse. É aí que este livro deixa de ser um “livro de memórias” virado para o passado, para ter uma atualidade dramática.
É que, nesta segunda década do século XXI a que alguns homens desse tempo conseguimos chegar, não só a guerra volta a ser, infelizmente, o tema central do futuro das nossas vidas, como as esperanças de Liberdade e de Democracia, de Fraternidade, de Solidariedade e de Igualdade, quer dos nossos povos irmãos, quer do mundo em geral, começam todos a ser postos em causa.


E é aí, que as reflexões que o autor vai hoje fazendo, ao olhar para as suas vivências de há 54 e 34 anos, ganham um terceiro e mais importante patamar de interesse.

É que este livro é publicado no ano em que se celebram os 50 anos do 25 de Abril».

António Rosado da Luz
10.03.2024

____________

Nota do editor

Vd. post de 21 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25195: Agenda cultural (849): Lançamento do livro "MARGENS - VIVÊNCIAS DE GUERRA", da autoria de Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721 (Guiné, 1970/72), dia 8 de Março de 2024, pelas 17h30, na sede da Associação 25 de Abril, Rua da Misericórdia, 95, Lisboa. Apresentação a cargo do Coronel António Rosado da Luz (Paulo Salgado)

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25214: Efemérides (430): O "making of" do livro de Spínola, "Portugal e o Futuro", publicado há 50 anos (revelações do biógrafo, Luís Nuno Rodrigues)


Luís Nuno Rodrigues - "Spínola:Biografia".
Lisboa. A Esfera do Livro, 2010,  748 pp.. il.

 1. O biógrafo de Spínola, o académico Luís Nuno Rodrigues, tem algumas revelações interessantes sobre as peripécias da publicação do livro "Portugal e o Futuro" (pp. 211-221),  mas também sublinha e analisa o seu impacto na época (pp. 221-243).

Para os nossos leitores, que não leram (por falta de tempo, interesse, oportunidade, etc.) a volumosa biografia de Spínola, de 748  pp.,  aqui ficam algumas "notas de leitura" (tópicos, apontamentos, pequenos excertos)... 

Refira-se que a obra foi objeto de recensão bibliográfica por parte do nosso camarada Mário Beja Santos, que no entanto dedica apenas uma ou duas linhas ao livro "Portugal e o Futuro" (*).


Retomei há dias a leitura deste notável trabalho, esquecido na prateleira. O exemplar que possuo, tem a seguinte amável dedicatória:

"Ao Luís Graça, com estima e consideração do Luís Nuno Rodrigues. Lx, 2 de abril de 2010."


2. Sobre o biógrafo convirá dizer, resumidamente, o seguinte:

Luís Nuno Rodrigues:

(i) Professor Catedrático do Departamento de História do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa;

(ii) Diretor do Centro de Estudos Internacionais (CEI-Iscte) e do Mestrado e Doutoramento em Estudos Internacionais, na mesma instituição;

(iii) Doutorado em História Americana pela Universidade do Wisconsin e em História Moderna e Contemporânea (especialidade História das Relações Internacionais na Época Contemporânea) pelo ISCTE-IUL.

Além disso, (iv) é autor de 9 livros e coordenador de outros 8, tendo publicado 55 capítulos de livros ou entradas em obras coletivas e mais de 30 artigos em revistas especializadas;

(v) A sua obra "Kennedy-Salazar: A Crise de Uma Aliança. As Relações Luso-Americanas entre 1961 e 1963", publicada em 2002, foi galardoada com os Prémios Fundação Mário Soares e Aristides Sousa Mendes;

(vi) Entre outras publicações, conta-se este livro, "Spínola", publicado pela Esfera dos Livros em 2010.



António de Spínola - "Portugal e o Futuro".

Lisboa: Arcádia, 1974, 243 pp.



3. O "making of" do livro "Portugal e o Futuro" (pp. 211/222):

O biógrafo aponta para meados de 1971 a ideia de Spínola começar a escrever um livro que fosse um contraponto às "teses integracionistas" (relativamente ao império colonial português), defendidas por Franco Nogueira (1918-1993), diplomata e antigo ministro Ministo dos Negócios Estrangeiros, no último governo de Salzar ("As Crises e os Homens", Lisboa: Ática, 1971, 545 pp.).

Uma parte significtiva das ideias que Spínola irá defender em "Portugal e o Futuro", incluindo a sua "tese federalista",  já estaria contida num documento enviado a Marcelo Caetano, em 1970 ("Algumas Ideias sobre a Estruturação Política da Nação") (pág. 212).

(...) "Nos últimos meses de 1971 e ao longo de 1971, Spínola escreveu vários capítulos, recebeu textos escritos por colaboradores seus e oficiais que mais de perto com ele trabalhavam, aperfeiçoou  textos em revisões constantes e com múltiplas colaborações" (pág. 212).

O seu novo chefe de gabinete, José Blanoco (que sucedeu a Nunes Barata), recebeu das mãos do general um primeiro texto, datilografado a dois espaços, com centena e meia de páginas. Instado a ler e a comentar, ter-se-á limitado a exclamar: "Isto é uma bomba".

O texto continuaou a ser trabalhado ao longo de 1972, usando Spínola um gravador para onde ditava  as suas emendas, notas, comentários e acrescentos.

Em julho de 1972 escreveria a vários dos seus amigos, em Lisboa, manifestando a sua intenção de publicar um livro, ainda em título: caso dos general Venâncio Deslandes (1909-1985) e  do ministro da Marinha, Manuel Pereira Crespo (1911-1980). Este terá pedido ao amigo,  "encarecidamente",  que nada publicasse sem primeiro falar com ele... O que ele concordou,  acrescntando que  também iria submeter o livro "à prévia leitura do presidente do Conselho" (pág. 213).

Foi nas férias de verão, no Luso, em 1973,  que ficou cncluída a versáo final. O "fiel sargento Gonçalves", de Cavalaria, bateu o texto à máquina.  Francisco Spínola, o irmão do autor, encarregou-se da revisão do texto, e coube a José Blanco, que veio de propósito da Guiné, propor um ou mais títulos. Da lista de doze títulos, Spínola escolheria o último, "Portugal e o  Futuro" (pág. 214).

Depois começaram os contactos com o editor. O contrato com a editora Arcádia  foi assinado em outubro de 1973. Paradela de Abreu ofereceu um aval, do Banco Totta & Açores, para garantir  os direitos de 20% dos  direitos sobre cinquenta mil exemplares da 1ª edição.

O general encarregou-se de  garantir o fornecimento de papel necessário para a publicação do livro, no que contou com a colaboração do António Champallimaud (para o qual Spínola havia trabalhado em tempos, na Siderurgia).

O livro começou a ser composto em várias tipografias (!)... Spínola insistia com o editor que  a data de publicação "poderia ser de um momento para o outro" (sic)... Por outro lado, a ideia era garantir que, caso viesse a ser proibido, fosse possível salvar a maior parte dos exemplares, e depois vendè-los clandestinamente (pág. 215).

Houve cinco revisões finais do livro feitas pelo punho do autor. Nas pp. 215/221, o biógafo faz uma sinopse do livro, que retomaremos mais tarde. (**)

Fiquemos, entretanto, com este excerto do texto que dá início ao cap. 4 ("O Futuro de Portugal"):

(...) "A saída de António Spínola da Guiné representava o fim de uma era, não apenas da política portuguesa naquele território mas, também, do modo português de conduzir as guerras em África. Durante um breve momento, no início dos anos 1970, as Forças Amadas portuguesas tinham conseguido dar 'credibilidade a Portugal em todos os teatros de guerra', conseguindo criar uma janela de oportunidade, um 'compasso de espera', que permitia a condução de negociações sobre o problema colonial português. Na Guiné, esta situação era particularmente visível." (...) (pág. 199),


Citando John Cann, Spínola na Guiné conseguira refrear, em 1970,  o ímpeto do PAIGC e originar um verdadeiro "impasse", com  a sua liderança forte e carismática e o seu programa "Por Uma Guiné Melhor". Mas a correlação de forças começa a desequilibrar-se em 1973. Em Angola , os generais Costa Gomes e Bettencourt Rodrigues tinham obtido praticamente uma "vitória militar". E em Moçambique foi só depois de 1970 que a situação se começou a deteriorar...

Quando regressa definitivamente à Metrópole, Spínola trazia imenso prestígio político e militar, a nível nacional e internacional. Era um general que tinha ganho batalhas. Tinha mostrado, além disso, que havia "soluções políticas" para o impasse da guerrs, tendo encetado negociações com o PAIGC e o Senegal, que Lisboa iria desautorizar. Quando regressa, o governo de Marcello Caterno está prisioneiro da extrema direita do regime, completamente desfasado da realidade e sem qualquer visão estratégica. Tem dificuldade em arranjar um general que fosse capaz de suceder a Spínola. Com relutância, Bettencourt Rodrigues aceita... es tá preparado para "sacrificar" a minúscula Guiné para salvar as joias da coroa do Império (Angola e Moçambique)... Por isso, "Portugal e o Futuro" é uma bomba de relógio que veio apressar a agonia de um regime.

____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

12 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15738: Notas de leitura (807): “Spínola”, de Luís Nuno Rodrigues, A Esfera dos Livros, 2010 (1) (Mário Beja Santos)

15 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15752: Notas de leitura (808): “Spínola”, de Luís Nuno Rodrigues, A Esfera dos Livros, 2010 (2) (Mário Beja Santos)

(**) Útimo poste da série > 23 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25203: Efemérides (429): Foi há 50 anos, em 22/2/1974, que saiu o livro de Spínola, Portugal e o Futuro um livro que se tornou um "best-seller", que toda a gente comprou e que poucos leram e entenderam, mas que abalou um regime...

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25195: Agenda cultural (849): Lançamento do livro "MARGENS - VIVÊNCIAS DE GUERRA", da autoria de Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721 (Guiné, 1970/72), dia 8 de Março de 2024, pelas 17h30, na sede da Associação 25 de Abril, Rua da Misericórdia, 95, Lisboa. Apresentação a cargo do Coronel António Rosado da Luz (Paulo Salgado)

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África""Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier", com data de 21 de Fevereiro de 2024:

Caros Editor e Coeditores,
É isto, meus caros: será que a catarse foi completamente feita? Não me interessa. O que inquieta a minha escrita é saber do Outro, daquele que me acompanhou, cá e lá, nas andanças de uma guerra que foi imposta. Vivências. Sim, vivências do Outro em mim. Vivências de mim no Outro.

Porventura, será o meu último livro, substantivamente memorialista, sobre o modo como eu vivi a Guerra Colonial. Curiosamente: em guerra – na Guiné; em cooperação – na Guiné-Bissau. Já agora, passe a imodéstia: louvado em campanha e louvado pelo Ministério da Saúde da República da Guiné-Bissau...

Uma saudação bloguista.
Paulo Salgado


********************

C O N V I T E

Lançamento do livro "MARGENS - VIVÊNCIAS DE GUERRA", da autoria do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, a ter lugar na sede da Associação 25 de Abril, no dia 8 de Março, pelas 17h30, com apresentação do Coronel António Rosado da Luz.

____________

Nota do editor

Último post da série de 11 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24942: Agenda cultural (848): dia 14, no Centro Científico e Cultural de Macau, o nosso camarada António Graça de Abreu vai apresentar o seu trabalho de tradução dos 170 poemas do poeta chinês 苏东坡 (Su Dongpo, 1037-1101), "um dos grandes génios da poesia universal"

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25104: Casos: a verdade sobre... (42): O "making of" do livro do Amadu Djaló (1940 - 2015), "Guineense. Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.) (Virgínio Briote)



Leiria > Monte Real > Ortigosa > Quinta do Paul > IV Encontro Nacional da Tabanca Grande > 20 de Junho de 2009 > Em primeiro plano, o Virgínio Briote e o Amadu Djaló, um e outro muito acarinhados por todos. Não sei o que é o que Virgínio, um homem sábio, europeu, estava a pensar, mas possivelmente estava a organizar a sua resposta à questão, pertinente, levantada pelo Amadúnico,    outro homem sábio, africano: 

"Os portugueses, a alguns povos, deram-lhes novos nomes e apelidos, livros para estudar e consideraram-nos civilizados. Desta civilização não precisávamos, mas faltava-nos a cultura, porque a cultura, de onde sai não acaba e de onde entra não enche. E no nosso Alcorão está tudo, moral, comportamento cívico e civilização e nós não precisávamos de ser civilizados, o que nos faltava era escola para aumentar os nossos conhecimentos"...




Projecto de capa do livro do Amadu Djaló, membro da nossa Tabanca Grande, já entretanto alterado... Finalmente, e depois de um longo calvário, chegam ao fim os árduos trabalhos do "making of"  do livro, da história de vida do Amadu que teve, no Virgínio Briote, mais do que 'copy desk', um editor literário, um amigo, um camarada, um confidente, um cúmplice, um advogado de defesa, um verdadeiro defensor dos seus interesses, editoriais, morais  e materiais. (...Na edição do 1º volume, que esteve cargo da Associação de Comandos, estava-se então, em fevereiro de 2010,  na fase final de revisão de provas tipográficas. O Virgínio referiu nessa altura a excelente colaboração de dois camaradas nossos, o Carlos Silva e o Manuel Lema Santos. (...)  (LG) (*)


Lisboa >  Museu Militar >  15 de Abril de 2010 > Lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló,  membro da nossa Tabanca Grande, "Comando, Guineense, Português" (Lisboa: Associação dos Comandos, 2010, 229 pp., 150 fotos, preço de capa: 25 €). 

O Amadu e a seu lado a filha (e o neto, que não se vê na foto)...  Foi pena que, entretanto,  não tenha saído em vida o 2º volume, com as aventuras e desvanturas do autor, a seguir à independência do seu pais. Vivia então em Portugal, na Amadora. Acabou a sua carreira militar como alf comando graduado, na CCAÇ 21, comandada pelo ten cmd grad Jamanca, um dos primeiros camaradas guineenses a ser fuzilado pelo PAIGC.


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Lançamento do livro do Amadu Bailo Djaló, membro da nossa Tabanca Grande, aqui na foto com o presidente da Associação de Comandos, dr. José Lobo do Amaral... 

Nas suas palavras de abertura, Lobo do Amaral  fez questão de, em nome da associação,  agradecer "ao sócio comando Virgínio António Moreira da Silva Briote a disponibilidade, competência e dedicação com que acompanhou esta Memória, sem a qual não teria sido poossível esta edição"... 

No final, também nos agradeceu a divulgação dada pelo nosso blogue e manifestou o seu regozijo pela entusiasmo com que foi recebida o 1º volume das memórias do Amadu bem pelo pluralismo das abordagens dos oradores.

Fotos (e legendas): © Luis Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Comentário de Virgínio Briote ao poste P25087 (**):

O Amadu depois do fim do Gr Cmds  "Fantasmas",  do Maurício  Saraiva, voltou para o QG e foi o Luís Rainha que, sentindo que o seu grupo tinha poucos guineenses experientes, o foi lá buscar e trouxe também o Kassimo. 

O Amadu distinguia-se pelas maturidade e pelo bom senso na análise das situações.

Quando o reencontrei em Lisboa, aí por 2005 (o meu anos da reforma), falou-me das recordações que tinha da sua Guiné, da sua família. Pouco tempo depois o Presidente da Assocaição de Comandos  telefonou-me, convidando-me a visitar as instalações na Duque d'Ávila. 

No contacto que tivemos pediu-me um artigo sobre os Gr Cmds do CTIG dos anos 1965/66. Foi pouco depois da publicação do artigo que me voltou a telefonar para novo encontro na Associação. E foi nesse encontro que me falou dos dois maços de folhas A4, que eram uma espécie de diário do Amadu Jaló. 

E depois, foi a leitura ou tentativa de leitura porque havia muitas partes ilegíveis para mim, o reencontro com o Amadú, a visita a casa dele, e o programa que estabelecemos para o esboço do livro. 

Seguiu-se o trabalho, encontros em minha casa, almoçávamos juntos, esclarecíamos dúvidas e andávamos para a frente. Ele fazia questão do livro ser "exactamente" o que tinha escrito, sem nenhum desvio. Foi um trabalho muito longo, por vezes ele adoecia ou tinha alguém em casa doente ou visita da Guiné, o que fez com que dessemos o trabalho pronto para entrega, quase um anos depois. 

O que se passou depois foram divergências, talvez o acordo entre as partes não tenha ficado bem claro, o que levou o Amadú a ficar um tanto queixoso da Associação de Comandos..

Amadu Djaló
Ficou no meu espírito a ideia que era um Homem. Adorava a sua Família e a sua Guiné. E estava numa fase de grande tristeza pela falta de rumo da vida política na sua Terra. Nos últimos meses da sua vida as dificuldades respiratórias acentuaram-se. Levei-o várias vezes ao Hospital Amadora-Sintra, deram-lhe alta e não havia ninguém para o ir buscar. Era inverno, peguei no sobretudo e fui buscá-lo ao hospital para o levar para casa. Não tinha roupa, deixei-o ficar em casa bem agasalhado.

Tempos depois foi novamente internado no Hospital de Belém e lá encontrei o cor Raul Folques em visita a um familiar muito chegado e lhe disse que ia visitar o Amadú. 

Vários episódios se repetiram até que ele queria escrever outro livro, eu disse-lhe que não contasse com a minha ajuda por motivos facilmente compreensíveis.  Ofereceu-me um molhe de folhas A4 e disse para eu fazer o que quisesse com elas. Morreu dias depois e, conforme nos tinha pedido, queria ser enterrado em Bafatá junto aos Pais.

Para finalizar este comentário que já vai longo, o Amadu Djaló, amava a sua Família, a Guiné e Portugal.
V Briote

Nota: este comentário vai sem revisão. Desculpem.


2. Comentário adicional de Joaquim Luis Fernandes ao poste P25087 (**)

Não sei porquê, mas ao acabar de ler o comentário do camarada Virgínio Briote, fui acometido por um sentimento de profunda dor, que me arrasou os olhos de água.

A dor e os dramas que a guerra tece! Quem nela andou e sofreu jamais os esquece.

Para o Amadu Djaló que partiu, que descanse em paz. Para todos nós ainda vivos, que não nos falte a paz.

Que saibamos optar sempre pela concórdia e pela paz E a exemplo dos Maiores, amar a Família e a Pátria Mesmo sentindo que algumas vezes nos é ingrata.

Abraços Fraternos
JLFernandes


3. Em complemento deste importante esclarecimento feito pelo Virgínio Briote, e que editamos na série "Casos: a verdade sobre..." (***): comentário do editor LG ao blogue criado em dezembro de 2010 pelo filho do Amadu Djaló, que vivia em Londres, Idriça Djaló, e que infelizmente não teve continuidade, embora ainda se mantenha "on line" (****)


Meu camarigo (camarada e amigo) Amadu:

Soube pelo teu mano Briote que estavas agora em Londres, ao pé dos teus filhos. Nós estamos bem onde estão os nossos entes queridos. Desejo-te boa estadia e boa saúde. Esse clima não é o melhor para os teus problemas respiratórios. 

Em contrapartida, tens o carinho e o amor da tua família. Na vida nunca temos tudo. Sei também do teu desejo de ainda voltar à tua terra, à nossa querida Guiné. Vamos manter acesa a chama da esperança. Isso vai concretizar-se, esse teu sonho. 

Até lá ficamos também a aguardar a publicação do teu 2º livro de memórias. É importante que o completes. Confia no Briote, que tem sido mais do que teu amigo e irmão. E confia em nós, os membros do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, onde tens muita gente que te estima, admira e leu o livro. (...) . 

Parabéns por este blogue que te abriu o teu filho Adriça. Mas é preciso alimentá-lo... Prometemos vir cá de vez em quando... 

Um Alfa Bravo (ABraço). Mantenhas para toda a família. Luís Graça
 
______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de fevereiro de  2010 > Guiné 63/74 - P5883: Biliografia de uma guerra (55): Lançamento, previsto para fins de Março, do livro do Amadu Djaló, Guineense, Comando, Português: 1º Volume: Comandos Africanos, 1964-1974 (Virgínio Briote)


(***) Último poste desta série > 17 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25079: Casos: a verdade sobre... (41): "Canquelifá era o seu nome" - Uma batalha de há 50 anos (José Peixoto, ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883, 1972/74) - IV (e última) Parte: O nosso batismo de fogo, na bolanha do Macaco-Cão, em 29 de agosto de 1973

(****) Vd. poste de 6 de dezembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7391: Blogues da nossa blogosfera (40): Amadu Bailo Djaló, agora em Londres: Guineense, Comando, Português (Idriça Djaló)