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terça-feira, 23 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25431: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte II) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte II)

Belmiro Tavares

2023/24


Na época em que procurávamos cativar os guineenses que viviam na miséria mais execranda, no Senegal e convencê-los a instalar-se em segurança quase total, em Binta, o chefe da ex-tabanca de Ujeque informou que, quase em frente à sua tabanca e perto de Guidage, havia um acampamento de pessoal não combatente – não tinham armas em sua posse.

O 3.º pelotão da CCaç 675, o do alf. Tavares, foi enviado àquela zona para encontrar e desativar o tal acampamento. O 3.º GComb seguiu, em viaturas, até Ujeque; ali, o pessoal apeou-se os veículos rumaram a Guidage onde permaneceriam até serem chamados.

O pessoal do 3.º pelotão, logo, se embrenhou no capim e, em breve, avistou um jovem encarrapitado num morro de bagabaga; seria um sentinela afastado. O 3.º pelotão aproximou-se, cautelosamente, do sentinela; quando já não era possível acercar-se do vigia sem serem vistos, o Tavares ordenou ao guia, Malan, que o convidasse a vir até nós. Houve troca de palavras entre os dois; logo, nas calmas, o sentinela desceu do morro e… seguiu, sem correrias, em direção ao acampamento. Um soldado perguntou ao seu alferes:
- Atiro?
- Não! – respondeu o alferes
- Ele vai avisar os outros!
- Tanto melhor! Eles debandam e não há mortos! É melhor assim!

Em breve chegámos ao acampamento… já despovoado. Havia ali panelas ao lume (faltavam toalhas e talheres nas mesas… que não vimos); o pessoal havia debandado, em segurança.

Retirámos todos os seus pertences das barracas e colocámo-los onde as chamas não chegariam. O acampamento foi destruído – não queríamos intrusos no nosso território! Mais tarde, eles voltariam ao local para recolher os seus bens não danificados.

Os nossos carregadores (milícias) vieram de mãos a abanar. Não houve pilhagem! O mais importante aconteceu: não houve mortos e aquelas pessoas não perderam os seus parcos pertences. Uns tempos mais tarde, aquele pessoal rumou a Binta, onde se instalou para iniciar uma nova vida, sob a proteção da nossa tropa – encontraram, ali, a sua “terra prometida”.

Conclusão: uma guerra sem mortos será quase inconcebível mas aconteceu, naquele mísero acampamento, entre Ujeque e a fronteira do Senegal. Há dias de sorte!

Em sentido contrário, vamos contar um caso miserável, aberrante, que ocorreu já perto de Buborim numa das primeiras vezes, em que nos aproximámos do limite oeste da nossa zona. A claridade matinal já inundava, afavelmente, a floresta densa. O silêncio era quase total! Três pelotões seguiam, paulatinamente, quase sem ruídos, rumo ao limite oeste da nossa zona. Eis que os soldados da frente avistam três homens (pessoal desarmado) que, despreocupadamente, caminhavam, estrada fora, em nossa direção. Iriam procurar fruta e hortaliça que iam crescendo nas aldeias abandonadas. Os soldados da cabeça da coluna ocultam-se entre o capim. Alguém (crê-se que apenas um combatente) dispara cruelmente: um morreu logo, outro ficou gravemente ferido e o terceiro (cremos que ileso) conseguiu fugir daquele local azarento. Alguém desobedeceu, estupidamente, às ordens do nosso benigno capitão.

O fur. mil, Oliveira, começou a tratar, desveladamente, o ferido, embora o seu estado aparentasse ser muito grave.

O nosso afoito capitão estava inconsolável! Não dizemos de “cabeça perdida” porque tal nunca aconteceu! Pior ficou quando ouviu o ferido clamar, repetidamente:
- “Quero falar com o capitão!”

Pouco depois, o nativo entregou a alma a Allah!
Nós não sabemos, com certeza, quem foi o autor dos disparos… já não interessa!

No texto anterior, falámos de uma figura catita da CCaç 675; desta vez, vamos falar de outra ou outras personagens com certo carisma e que nos acompanharam na Guiné durante dois anos muito longos – ponham longo nisso! Não há regras para tal escolha mas falaremos de muitos, certamente. Não interessa a ordem. O próximo caso será aquele a quem o fur. mil. enf. Oliveira, já falecido, também, apelidou de “homem tranquilo”. Este epíteto assentava-lhe que nem uma luva! Como devem calcular, trata-se do soldado n.º 2326, Jerónimo Justo (o seu nome completo) que pertenceu ao pelotão do nosso caríssimo amigo, alf. Santos. Era um soldado extremamente calmo, educado e bem-falante. Colocava as palavras com rara precisão. Faleceu há uns anos mas os filhos (Natália e José Luis) passaram a acompanhar-nos. Em 2022, o filho, José Luis a sua esposa, Maria de Lurdes e o filho, Tiago estiveram connosco em Famalicão e em Évora.

Devido à ausência forçada da nossa cobradora habitual, Maria Luisa Figueiredo, a nora do soldado Justo acompanhou o Tavares na cobrança e cumpriu cabalmente a sua missão. Até parecia, já, um velho elemento da CCaç 675; afinal era a primeira vez que ela se via entre a nossa rapaziada. Em setembro de 2023, repetiu a dose – agora é já um elo inquebrantável da CCaç 675.

Em 2023, a filha do soldado Justo, Natália (agora Cardoso) compareceu em Santo Tirso; trouxe o filho, Ruben e a sua namorada, futura neta do nosso companheiro. O Ruben é um “velho” conhecido. Quando o vimos pela primeira vez, ele teria quatro anos; era o companheiro do avô, já acamado. Hoje, abeira-se dos trinta e trouxe a namorada, Denise – é a mais nova aquisição da CCaç 675. Foi “obrigada” a prometer que não mais faltará às nossas confraternizações. Nós não pagamos trespasses nem ordenados chorudos! Isso acontece no futebol! Nós queremos dar e receber amor, fraternidade, amizade pura e camaradagem: estas são as nossas moedas.

Voltemos ao soldado, Justo. Cerca de um ano, após a sua morte nos ter sido anunciada – obra de um companheiro que vive na zona de Gondomar, sold. at. n.º 412, Manuel Cardoso – fomos (o Oliveira, o Moreira e o Tavares) colocar a lápide na sua sepultura, no cemitério de Gondomar. Após várias tentativas falhadas para encontrar o seu sepulcro (o cemitério era grande e disforme e uma parte encontrava-se em obra de ampliação) pedimos ajuda a um coveiro, ali presente. A sepultura do Justo estava, ali, ao lado. Ficámos aturdidos! Totalmente desconcertados! Se tivéssemos ido colocar a lápide, logo que soubemos do desenlace, tê-la-íamos entregado ao próprio… ainda vivo. O Justo tinha sido sepultado, precisamente uma semana antes da nossa ida ao cemitério. Nunca soubemos como aconteceu tal engano. Agora não interessa. Já lá vão tantos anos e… o crime (?) já prescreveu.

Estávamos os três companheiros a conversar com o coveiro, quando este anunciou que a viúva do Justo se aproximava, trazendo um braçado de flores frescas para substituir as que lá colocara na véspera.

Segundo o coveiro, ela ia, lá, diariamente. Perante esta informação, o Tavares dirigiu-se à senhora, anunciando-se. Ela ficou enormemente surpreendida por ter, à sua frente, os velhos amigos do seu marido. Ela comentou, textualmente:
- Recordo, perfeitamente, o seu nome. Quando o senhor telefonava ao meu marido, eu atendia e passava-lhe o telefone. Quando isto acontecia, ele ficava tão contente! As suas cartas eram o maior tesouro dele; ele guardava-as religiosamente, em memória dele, eu guardo-as todas com muito carinho.

Anos volvidos, a viúva do Justo acompanhada por toda a família, encontrou-se connosco, num restaurante, em Santo Tirso, onde realizámos mais uma confraternização com as gentes do norte. O fur. enf., Oliveira esteve presente, também. Esta “mini” foi organizada pelo companheiro Mário Pinto que não se poupou a esforços e nada falhou. Antes do repasto, o Tavares ligou ao nosso general, anunciando que “a ala norte da CCaç 675 está reunida”. O telefone passou de mão em mão e todos falaram com o nosso magnífico comandante.

Já é tempo de falarmos mais um pouco do nosso amigo e companheiro, Jerónimo Justo – antes que seja demasiado tarde.

Ele era, sem sombra de dúvida, o militar mais calmo da companhia; era também um dos mais cumpridores, apenas… porque sim. Nunca foi visto exaltado com quem quer que seja; qualquer desaguisado que, porventura surgisse, era resolvido no diálogo e sem qualquer irritação. A sua voz muito gutural nunca subia de tom. Não era necessário impor-lhe nada, porque ele, sabendo o que deveria ser feito, dedicava-se de alma e coração a qualquer tarefa a que o serviço obrigasse e levava os companheiros na sua cola. Para ele, o serviço era sempre “coisa séria” e ele cumpria a contento. Quer no aquartelamento quer em pleno mato ele dava nas vistas pela sua calma e serenidade. Como lhe assentava bem o epíteto “homem tranquilo” que o nosso dileto amigo fur. mil. Oliveira, (era também o nosso cronista-mor) lhe atribuiu.

A sua roupa andava sempre impecável! Ou ele tinha um ferro de engomar sabia usá-lo ou Malan Turé tratava melhor da roupa do Justo do que da dos outros. Era exemplarmente cuidadoso e apresentava-se sempre devidamente fardado.

Mesmo em pleno mato, onde podíamos ser surpreendidos com tiros, a qualquer momento, se o Justo necessitava limpar o nariz ou o suor do rosto, ele não tinha pressa: desdobrava “tranquilamente” o lenço, limpava o nariz ou o rosto sem o amarrotar; logo, o dobrava, impecavelmente, antes de o introduzir no bolso. Era caso único! Enquanto procedia a tais tarefas se, algum dia, ouviu tiros, cremos que ele não deixaria de dobrar, devidamente, o seu lenço antes de o reintroduzir no bolso; depois, responderia ao fogo dos adversários, se fosse necessário. Era quase inacreditável mas era mesmo assim!

Se se encontrava no aquartelamento, meia-hora antes do almoço ou do jantar, o Justo iniciava a lavagem cuidada da sua marmita; depois da refeição, ele procedia a nova à lavagem da mesma, que era o seu prato de todos os dias. Poderíamos dizer que era a sua imagem de marca! Nunca mudou o seu comportamento, durante aqueles dois longos anos, desde maio de 1964 a fins de abril de 1966. Foram longos para caramba! Mas ele não alterou em nada a sua maneira de ser!

Para amenizar o ambiente pesadíssimo em que vivíamos, o nosso pessoal, nos intervalos da guerra, arranjava maneira de se divertir e fazer rir os companheiros. Outras vezes, inventavam artimanhas para poupar dinheiro que, naqueles tempos, era tremendamente caro e era sempre pouco.

Aproveitamos para lembrar que, na Guiné um soldado ganhava cerca de 2.500$00 mensais; como podia deixar à família, até 60% daquele montante recebia, lá, cerca de “900 pesos” (peso era o escudo da Guiné). Este montante não era fixo; variava de acordo com o número de dias de cada mês. Um soldado ganhava mais em janeiro que em abril; para ele, o pior mês do ano era fevereiro.

Um dia falei disto com uns adolescentes. Um deles, mais perspicaz, argumentou, com certa razão e alguma ironia:
- Se bem percebi, um soldado ia para a guerra, arriscava a vida, durante 24 horas por dia e recebia, mensalmente, algo como €4.50 (quatro euros e cinquenta cêntimos).
- É verdade! Respondemos: Mas tinha cama, mesa e roupa lavada (se a lavasse), uma espingarda para se defender ou atacar os adversários e não pagava as munições que gastava; o bilhete para viajar nas viaturas militares com assentos de ripas… duras para caramba… era gratuito.
- Mesmo assim, era uma barbaridade! Se, como disse, uma cerveja custava dez escudos, se o soldado bebesse uma mísera cerveja por dia, gastava quase a totalidade do salário. E o resto? Ele teria outras necessidades!
- É verdade! Mas, antes de mais, não deves falar em “mísera cerveja”, pois tratava-se de uma garrafa de 0.70 ctl (70 centilitros) era o dobro da capacidade das de cá; por outro lado, com novecentos escudos, um soldado podia comprar trezentos maços de tabaco de qualidade acima da média. Hoje, com €4.50, tu podes comprar apenas um maço, se… não abusares na qualidade.

Podemos concluir, brincando, que Salazar não pagava tão mal quanto parece mas… enviou-nos para aquela guerra miserável de má memória. Fomos enviados para a Guiné! Este era, de longe, o pior destino. - Divertindo-nos mais um pouco. A guerra serviu, acima de tudo, para “desemburrar” os nossos jovens, principalmente, os que nasceram na província profunda, lá, onde Judas poderia perder as botas se por lá passasse, algum dia. Naquele tempo – dizia-se – “o país vivia fechado, isolado da civilização”; a maioria dos mancebos ia à tropa mas, regra geral, quedava-se, num dos quarteis do distrito.

Recordo um conterrâneo (uns quinze anos mais velho que eu) que assentou praça em Abrantes. Que absurdo! Foi parar ao fim do mundo! Durante meses, todas as mães daquela aldeia reuniam-se, à tarde, em casa da mãe daquele azarado magala e rezavam para que ele voltasse, em breve, são e salvo; consideravam que Abrantes ficaria “sete cabos de machado” para além do inferno que, só por si, já ficaria incrivelmente afastado do mundo.

Normalmente, os jovens casavam na aldeia, onde nasciam ou num qualquer lugarejo vizinho. A guerra “libertou-os”! Depois do regresso, muitos emigravam – a França era o destino da maioria. No entanto, cremos que não deveria ser necessário “inventar” uma guerra ou responder a quem a criou para abrir os olhos aos jovens.

Nós, os componentes da CCaç 675, aos quais, por sorteio, coube um capitão como não havia outro, conseguimos criar uma família com 160 elementos “dantes quebrar que torcer”, amigos de todas as horas e muito mais do que isso. Se não tivéssemos ido à guerra e, se não pertencêssemos à CCaç 675, não estaríamos, hoje, aqui, a confraternizar e honrar os nossos mortos. No entanto, será aconselhável esquecer as coisas más da vida, preservando o lado bom porque… tristezas não pagam dívidas!

Depois de tanto divagar, voltemos ao nosso tema: - os ardis dos nossos rapazes para economizar uns magros cinquenta escudos por mês e a dividir por dois, não podem ser lançados à feras.

Dois dos nossos companheiros engendraram um estratagema para poupar uns “pesos” na lavagem da roupa. Marcaram a roupa de um com uma linha e apenas um enviava a roupa dos dois para a lavadeira. Tudo correu como esperado, durante algum tempo mas, eis que a lavadeira descobre a marosca, talvez porque a roupa marcada seria de tamanho diferente da outra ou porque este militar enviava para a lavadeira mais roupa que qualquer outro. A “negrinha” (lavadeira) não era tão inexperiente como eles pensavam. Os dois bons malandros começaram a pagar cinquenta escudos cada um, como os outros, e não apenas 25$00. E há quem diga que a lavadeira “não tem esperto nos cabeça!”. Tiveram sorte porque ela não sabia, ainda, o que eram retroativos. Os “engenhocas” nem sempre são bem sucedidos.

Quem foram os espertalhões? Podem acusar-se porque não será aplicada qualquer punição. O caso há muito, já prescreveu mas teve a sua graça. Esta quase anedota “viveu”, na clandestinidade, durante mais de cinquenta anos, mas… agora, encontrou a luz do dia. Iniciou uma nova vida! Avante, valentes da Gloriosa CCaç 675!

Mudando um pouco o azimute… lembram-se do soldado n.º 2169, João Nunes do Nascimento, do 3.º pelotão? Que foi o nosso último morto em combate. Pois bem! Lá, na sua aldeia, natal, Sarzedas, às barbas de Castelo Branco, a junta de freguesia decidiu prestar uma singela mas honrosa e merecida homenagem ao jovem herói da terra, morto em combate, em defesa da Pátria, na Guiné, no dia 30 de julho de 1965. Faltavam quase nove meses para o fim da nossa comissão! O que aconteceu era impensável, naquela época. Ninguém imaginaria que tal coisa, ou algo semelhante, pudesse acontecer-nos! Mas a vida é feita de surpresas!

Lá, no meio da aldeia, existe um pequeno largo e a Junta decidiu dar a essa “praça” o nome do nosso companheiro e amigo. Alguém terá alvitrado que o tal largo seria demasiado pequeno para perpetuar a memória dum jovem que, sem regatear, deu a vida pela Pátria.

À margem daquela praça, havia uma casa que pertencera aos pais do Nascimento. Os irmãos do nosso companheiro decidiram doar o imóvel à Junta para que a praça pudesse ser alargada, adquirindo, assim, uma maior dimensão e uma aparência mais significativa. Os herdeiros prestaram assim uma significativa homenagem ao irmão, João, o nosso companheiro. É louvável a atitude dos irmãos, principalmente, porque, na província, as pessoas são muito ciosas dos seus bens, particularmente, dos que herdaram dos seus maiores. Neste caso, os irmãos esqueceram a parte material, dando prioridade ao espiritual.

Cabe aqui lembrar (ou informar) que os pais do Nascimento, na companhia de uma filha, tomaram parte em duas das primeiras cinco reuniões que tiveram lugar em Lisboa – missa na Igreja da Luz e almoço, no restaurante Ferro de Engomar, na estrada de Benfica. Pediram desculpa e deixaram de comparecer, devido à sua idade já avançada e… às dificuldades de transporte.

Anos mais tarde, a mesma irmã, o marido e outro irmão do Nascimento tomaram parte em várias reuniões – a última das quais, em Aveiro, de triste memória pela maneira como fomos, ali, tratados e… estávamos num quartel de paraquedistas! Enorme bronca! Hoje, a irmã do Nascimento vive num asilo e o irmão já faleceu. A lápide, em memória do Nascimento foi colocada na sua sepultura pela irmã (de quem falámos) na companhia do Santo Marques, o apontador de morteiro, ferido em Caurbá e do Tavares. Certamente, esta nossa atitude terá despoletado a decisão da Junta… ou talvez não…

Sabemos que as obras de alargamento e remodelação estão em andamento mas são obras públicas e, nas pequenas freguesias do interior o dinheiro não abunda; por vezes surgem obras mais ou menos prementes e tudo se complica. Convenhamos que, em nosso modesto entendimento, a homenagem a um herói da Pátria não deveria – não poderia, em acaso algum, ser relegada para segundo plano. No entanto, sabemos que, nos tempos que correm, tudo pode acontecer. Basta mudar a cor política dos membros da junta. As justificações inócuas e um tanto estapafúrdias surgem fora de tempo e… o carro não se move. Aguardemos por melhores dias!

Falemos um pouco sobre este nosso companheiro. Como sabem, era natural de Casal das Águas de Verão um nome claramente bucólico – freguesia de Sarzedas. Um outro companheiro, o soldado n.º 2179, Francisco Lopes Mendes, chamava-lhe “Sarrazedas” – eram bons amigos e, lá na santa terrinha eram quase vizinhos; pelo menos agiam como tal. Creio que já se conheciam antes da tropa.

O Nascimento era frontal mas respeitador e educado. Estava sempre disponível para qualquer serviço dentro ou fora do aquartelamento.

Um dia o alf. Tavares “teve” de ir para o mato, comandando o 1.º pelotão, o do alferes Costa, durante uma patrulha, lá para bandas de Sanjalo, quando o alf. Foitinho comandava a CCaç 675, devido ao ferimento gravíssimo do nosso mui ilustre capitão. Enquanto deglutia uns goles de café, o Tavares transmitiu ao Costa:
- Logo, à hora determinada, tu sais com o meu pelotão para nos recolher, junto à ponte sobre o rio Caur. Tal como não quero que o teu grupo saia sem um oficial, também não gosto que tal aconteça com o meu!

O alf. Costa respondeu que, à hora prevista, já estaria melhor e, de qualquer modo, sairia com o 3.º pelotão. Assim aconteceu.

O alf. Tavares recorda que o pessoal do 1.º pelotão se comportou, naquele dia, como gente adulta; parecia que já tinham andado, longos tempos sob as ordens do Tavares. Este alferes afirma que os seus subordinados, olhando para ele e pelo movimento dos lábios e dos olhos, entendiam o que ele pretendia que se fizesse. Com os soldados do 1.º pelotão, tal não poderia acontecer, pois era a 1.ª vez que atuavam sob o seu comando. No entanto, todos se comportaram como deviam e como o Tavares pretendia… não houve falhas! A boa vontade supriu a habituação. Faltava esta nota de agradecimentos aos militares do 1.º pelotão, pelo seu comportamento exemplar, naquele dia… e não só!

Mais ou menos à hora pré-determinada, os nossos três grupos de combate encontravam-se junto à ponte atrás citada, na margem esquerda do rio. Logo, o Tavares transmitiu ao Costa, como segue:
- Toma conta dos teus soldados; eu vou juntar-me ao meus.

O Tavares subiu para uma das viaturas e, logo, o Nascimento se colocou em sentido; disciplinada e educadamente, perguntou:
- Meu alferes! Dá licença?
- Sim! - Respondeu o Tavares.

Ele começou:
- Nós temos um alferes para sair connosco para o mato! Não queremos ser comandados por outro, a não ser que o senhor, por qualquer motivo válido, esteja impedido de o fazer. Se tal voltar a acontecer, certamente, nós não sairemos para o mato com outro oficial e… seja o que Deus quiser!

O Tavares argumentou:
- Hoje, antes da saída, aconteceram coisas muito desagradáveis! Não houve tempo para vos avisar e, mesmo assim, saímos com mais de meia hora de atraso. Isto, como sabem, é sempre perigoso, porque pode comprometer a segurança do grupo.

O Nascimento pretendeu desabafar (algo estava atravessado na sua garganta) e voltou à carga:
- O nosso alf. Costa não estava em condições de ir para o mato, a comandar os seus soldados mas teve condições para passar o resto da noite e manhã a agredir os dois subordinados que apenas fizeram o mesmo que ele. Isso é que nos fez sair do sério! Conduziu-nos a esta situação muito desagradável.

O Figueiras, um algarvio ciclista, sold. Nº 2033, entrou na conversa, alegando:
- Já cá não está quem falou! Está tudo devidamente esclarecido! Creio que devemos encerrar este assunto! Se possível, devemos esquecê-lo!

Em boa verdade, aquele tema passou à história, excepto, o que aconteceu, umas horas mais tarde.

(continua)

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Nota do editor

Vd. post anterior de 22 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25425: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte I) (Belmiro Tavares)

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25425: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte I) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte I)

Belmiro Tavares

2023/24

No início de 2023, divulgámos os “Retalhos I”[1] à maioria dos nossos companheiros. Em 2024, faremos nova comunicação aos nossos rapazes. Ninguém pode esquecer que “a Gloriosa” continua viva e de boa saúde.

A nossa CCaç 675 é aquela máquina! Sempre afinada… mas os seus filhos (somos nós) têm a obrigação de a alimentar. Sabemos que ela não é exigente: contenta-se com pouco! Basta um chisco de amor, de carinho, alguma dedicação e… ela rejuvenesce e está sempre de braços abertos para acalentar os seus filhos. Como bem sabeis, ela tinha, inicialmente, mais de 160 filhos; hoje somos apenas um pouco menos de cem – corrupção do tempo. Estes números até amedrontariam muita gente mas… a CCaç 675 nunca tremeu, ainda não treme nem há de tremer, nunca! Resta-nos uma consolação: os seus netos (filhos e outros familiares dos antigos combatentes) vão seguindo as peugadas dos seus antepassados. É verdade! Será – temos a certeza – um caso único! Um caso digno de estudo!

Já repararam na quantidade de pessoas (os descendentes e outros familiares dos antigos combatentes) que têm vindo a acompanhar-nos? Uns, com o devido respeito, ocupam o lugar dos pais ou avós que, obedecendo às rigorosas leis da vida, foram partindo. Filhos, irmãos, sobrinhos e netos têm vindo a tomar parte nas nossas confraternizações. É sintomático! Aquele bichinho, criado no meio de tantos sacrifícios, entre inúmeros perigos, “temperado” com água lodosa e salgada das bolanhas e com montes de pó das estradas de terra batida e das “picadas” – dizíamos – aquele animalejo não morre cedo! Por isso, nós afirmamos: a nossa CCaç 675, a menina dos nossos olhos, viverá enquanto nós quisermos. Fiquem com esta certeza: - chegada a nossa hora… nós partimos mas… ela fica!

Agora – escrevemos no princípio de 2023 surgiu mais um caso bicudo: não conseguíamos contatar a viúva do soldado n.º 2166, Eurico Leite Magalhães ou outro familiar para lhes entregar a lápide, pois ninguém, nem de noite nem de dia, atendia os telefones de que dispúnhamos. Pensou-se que ela teria ido viver com um dos seus filhos. Onde? Manuseando os nossos alfarrábios, encontrámos o telefone duma “loja de óculos” que pertencera ao nosso Magalhães e fizemos a ligação. A senhora que nos atendeu já tinha vendido a loja mas ficou com o telefone. Solicitámos-lhe, encarecidamente, que tentasse descobrir o contacto de alguém da família do nosso companheiro. Volvidos poucos dias, a senhora informou que o filho, Miguel Magalhães, era membro da direção do Maia Futsal e transmitiu-nos o telefone do clube.

Mais um caso resolvido… a contento!

Proclamamos, mais uma vez, que o povo português é extraordinário; também é único! Basta um pedido, apelando ao sentimento e todos se esforçam para ser prestáveis… sem pedir nada em troca.

Nós sabemos – muitos de vós sabem também – que o alf. Tavares correu “mundos e fundos”, procurando companheiros cujos paradeiros eram desconhecidos; sempre encontrou pessoas amáveis e prestantes que não olhavam a esforços para ajudar no que ele precisava. A única aberração foi a CRC de Guimarães que pretendia cobrar 30$00 (trinta escudos) por cada informação e um envelope selado e endereçado para enviar a resposta. Foram mandados “tocar tangos na sua rua”. Era o mínimo que se podia fazer.

Contactado o filho do nosso Magalhães, ele prometeu comparecer com a esposa e a mãe, na nossa confraternização, em Santo Tirso. Será mais um filho da CCaç 675 a tomar parte em futuras reuniões, em representação do pai. Por azar, não pôde comparecer mas veio a irmã com o marido, na companhia da mãe, a viúva.

Meus caros! Vencemos mais uma batalha mas, desta vez, os despojos são chorudos. Viva a gloriosa, CCaç 675!

Vamos citar os companheiros e os descendentes dos falecidos que compareceram na confraternização do norte, no dia 24 de setembro de 2023.

Em representação do sold. n.º 2326, Jerónimo Justo, compareceram:
- Uma filha, Natália Cardoso;
- Um filho, José Luis Justo;
- A nora, Maria de Lurdes;
- O neto, Ruben e a sua namorada, é filho da Natália;
- O neto, Tiago é filho do José Luis.

Em representação do sold. n.º 2166, Eurico Leite Magalhães, compareceram:
- A esposa, Virgínia;
- A filha, Ângela e o marido.

A doutora Teresa Mesquita e seu filho, dr. Francisco Mesquita, foram visitas frequentes durante cerca de 30 anos, sem qualquer falta, em representação de seu irmão e tio, o nosso companheiro fur. mil. Álvaro Mesquita, morto em combate. Como se lembrarão (ninguém o esquece) ele foi vítima fatal da explosão duma mina anticarro, na estrada de Bigene, entre Sansancutoto e Genicó Mandinga, no dia 28 de dezembro de 1964. Foi a primeira mina que nos fustigou… e de que maneira! Foi, entre várias, a de mais graves consequências. Este ano, por motivos aceitáveis não puderam comparecer.

A viúva e o filho do alf. Mendonça prometeram comparecer mas, à última hora, a cooperativa de Felgueiras marcou a vindima das uvas da sua quinta para aquela data. Foi pena! Mas aquele vinho é fabuloso! Há que preservá-lo!

O fur. mil Mouta e o sold. cond. n.º 2552, Baltazar (residentes em Albergaria-a-Velha e em Águeda, respetivamente) foram juntos até Santo Tirso.

O sod. 28, Martins (do morteiro) compareceu com a esposa e outro familiar.

O sold. 30, Monteiro Pinto, também do morteiro, trouxe consigo a esposa, o filho e a nora. Há alguns anos, por relevantes serviços prestados na organização duma confraternização do pessoal do norte, o Pinto foi “louvado, verbalmente” pelo alf. Tavares e, em consequência, foi promovido a “31”. Tratou-se de uma razoável progressão na carreira. A promoção, por tardia, não teve efeitos no “pré”. Provavelmente, teve-se em devida conta o facto de ele ter tentado (e conseguiu durante algum tempo) “ludibriar” a lavadeira e… mais não contamos.

O 1.º cabo corneteiro, n.º 2440, Gabriel A. Rosa trouxe consigo a esposa, um filho e dois netos. Partiram da Estrada da Beira, distrito de Coimbra e juntaram-se a nós em Santo Tirso.

O sold. n.º 412, Manuel Cardoso, não compareceu por causa do Covid; passou um mau bocado!

O alf. Tavares, na companhia da filha e do genro, partiu de Lisboa e fez “escala técnica”, em Sever do Vouga, a sua terra natal.

Por último, mas muito mais importante, o nosso sublime general, Alípio Tomé Pinto, deslocou-se, no dia 23, à região de Viseu para confraternizar com os antigos combatentes da sua companhia de Angola. No regresso de Viseu, o alf. Tavares preparou-lhe uma imprevista emboscada (se não fosse imprevista não era emboscada) mas proveitosa, na A25; foi feito prisioneiro e foi “obrigado” a jantar e a pernoitar em Sever do Vouga. Cremos que terá sido um bom castigo!

Já viram algo parecido? Um mísero alferes (na verdade ele vale por dois mas apenas em volume e peso) aprisionar um senhor general e obrigá-lo a comer e pernoitar naquele interior profundo da Beira Litoral, lá, onde o Judas talvez tenha perdido as botas?! Cremos que terá sido uma penalização de respeito! Ou terá sido um grande abuso! Na CCaç 675, até disto acontece!
Será que o abusador escapa duma valente e merecida “porrada”?!
Perdoai-lhe, Senhor, porque, por vezes, ele não sabe o faz! Será, talvez, fruto da idade!

No dia seguinte, domingo, 24 de setembro, seguiram para Santo Tirso; pelas onze horas, encontravam-se; no local de encontro.

Aproveitámos a oportunidade para entregar a lápide à família (viúva, filha e genro) do Eurico Magalhães, que faleceu, há alguns anos. A viúva brindou-nos com uma ligeira preleção cheia de carinho e agradecimento. Mais tarde, ela informou que aquela lápide não podia ser colocada na sepultura do marido; ele encontra-se num “gavetão” e ocupa o lugar cimeiro. Que iria colocá-la no jardim da sua casa.

No fim de contas, a família CCaç 675 vai rejuvenescendo a olhos vistos: uns vão partindo – por vontade de Deus! – mas outros vão entrando por amor aos familiares e por adoração à nossa CCaç 675, à qual os seus antepassados, honrosamente, pertenceram. Eles vão partindo! Mas fica a amizade férrea, pura, simples, desinteressada… eterna. Desta vez (mais uma vez) não houve missa pelos nossos falecidos, porque, em Santo Tirso, não há igrejas abertas depois das 11H00. Por outro lado, com a “chamada dos mortos” e a entrega da lápide, esquecemo-nos de rezar um Pai Nosso e uma Avé Maria; que Deus e os nossos mortos nos perdoem!

O almoço foi de boa qualidade e bem servido – até parecia que estávamos a comer em Binta! Tivemos direito a uma sala só para nós, onde passámos uma boa parte da tarde, em amena cavaqueira. Cerca das 18H00, os de mais longe (o nosso general e o alf. Tavares) foram os primeiros a partir.

Unidos pelo espírito da CCaç 675, mais uma vez, cumprimos a nossa nobre missão. Todos recolheram aos seus aposentos… sãos e salvos… e sem mais emboscadas. Na verdade, a emboscada é um vício que nos ficou dos tempos de Binta mas, agora, elas são mais meigas.

Nas emboscadas que os nossos adversários nos prepararam houve apenas um morto: o saudoso fur. mil Álvaro Mesquita. Na primeira emboscada, quando vínhamos de Lenquetó, tivemos dois feridos (o 2.º sarg. Marques e o 1.º cabo Marques); em boa verdade, este não era um dia bom para os Marques. Isto ocorreu no dia 4 de julho de 1964. Não recordamos outros feridos nas emboscadas, que os nossos adversários nos prepararam. Eles, graças a Deus, não poderão dizer o mesmo.

Recordemos a significativa emboscada da serração, na estrada de Farim. Esta terá sido a emboscada mais minuciosamente preparada pelo nosso ilustre capitão e foi superiormente executada pelo alf. Santos e seus “muchachos”. Os sete combatentes que compunham o grupo tombaram: cinco morreram na estrada; um apareceu morto entre o capim a 50 metros do local e o último (era chefe) morreu ao entrar no Senegal, com um tiro no rosto e outro nas costas. É caso para dizer que era muito grave voltar as costas à célebre CCaç 675, a Gloriosa.

Não temos palavras para narrar o espírito de união existente entre nós; essa amizade, como todos vós bem sabeis, foi gerada no meio dos maiores perigos, nas bolanhas de Binta e arredores, com alguns graves acidentes pelo meio, mas… pelo que estamos a reviver e a construir… podemos afirmar que valeu a pena. A CCaç 675 continua a ser única.

Passado o verão de 2023 voltaremos a colocar lápides nas sepulturas dos nossos mortos. A máquina não pode parar! Creiam que até já é um razoável “sacrifício” mas o dever a isso nos obriga!, principalmente, tendo em devida conta a nossa idade já provecta. Mas é uma satisfação enorme conviver com os descendentes dos nossos companheiros que já partiram. Todos deliram com a nossa atitude e a nossa presença benfazeja, porque se trata de um caso único, um grande amor. A nossa CCaç 675 foi e continua a ser um caso digno de estudo. Pela positiva, ela foi diferente de qualquer outra e assim continua. Acima de tudo, comove-nos o respeito, a gratidão e quase adoração dos “doridos” o que provoca em nós uma enorme satisfação do dever cumprido, uma alegria desmedida.

A verdade nua e crua é que na guerra aprendemos a matar mas o nosso mui ilustre capitão ensinou-nos algo mais e de suma importância: ensinou-nos a respeitar as vidas dos nossos adversários, principalmente, as dos que, sem armas, os acompanhavam ou a isso seriam obrigados. Para nós, matar seria uma inevitabilidade! Mas os homens da CCaç 675, ao contrário de muitos outros, não matavam desnecessariamente. Eliminávamos o adversário apenas quando não havia alternativa e, acima de tudo, se a nossa vida estava em jogo, correndo sérios riscos. Assim, a escolha não seria tão complicada quanto possa parecer. Nós não podíamos premir o gatilho por “dá cá aquela palha”. O nosso capitão, logo de início, determinou:
- Ninguém dispara sobre mulheres e crianças!
- Ninguém atira sobre homens desarmados!

Creiam que, em Binta, as regras, mesmo as internas, tinham de ser, escrupulosamente, cumpridas. Era mesmo isso que fazíamos. Todos sabíamos obedecer às ordens no nosso mui ilustre capitão.

O senhor general, Arnaldo Schulz, que foi, no nosso tempo, governador da Guiné, dizia que o nosso capitão já não era um “Pinto”; era já um galo… muito importante e… acima de tudo, duro de roer!

Pouco depois de ter sido determinado que não podíamos disparar sobre mulheres, crianças e homens desarmados, um soldado comentou com o seu alferes, seu comandante de pelotão, como segue:
- Oh meu alferes! Se nós matarmos as mulheres, as crianças, os homens desarmados e também alguns armados, em breve, a guerra acaba por falta de combatentes do outro lado – missão cumprida! Vamos para a santa terrinha!

Responde-lhe o alferes:
- Brinca com coisas sérias e verás o que te acontece! Sujeitas-te a um grande trambolhão!
- Não, meu alferes, isto é só brincadeira, entre nós!
- Creio que queres mesmo divertir-te e não pensas em transgredir. É bom que seja assim!

A conversa acabou ali.

Naqueles tempos, o mais importante era ir acordando, todos os dias, com o dedo grande do pé a mexer! Onde é que já ouvimos este dito tão interessante?! Para justificar o que atrás narrámos, acerca de poupar a vida de certas pessoas (infelizmente, ainda não foi inventada uma guerra sem mortos) vamos recordar a nossa ida (visita de cortesia) a Genicó Mancanho, na estrada de Guidage; naquele tempo – princípios de julho de 1964 – era ainda uma “picada”… de triste memória pelas terríveis dificuldades com que fomos, ali, mimoseados… até que, depois de muitos e duros sacrifícios, passou a ser estrada de… terra batida.

Esta operação ocorreu, no dia 10 de julho de 1964, poucos dias após o nosso badalado “batismo de fogo”. O cerco à aldeia foi parcial (cerca de ¾ de perímetro) para que, quem assim pretendesse, pudesse fugir em segurança… mais ou menos relativa. A parte não cercada ficou, propositadamente, voltada para o Senegal, que ficava ali perto. Fomos recebidos a tiro mas não houve mortos nem feridos em nenhuma das partes beligerantes. Os habitantes daquela pequena tabanca (aldeia) refugiaram-se no Senegal e lá viveram, miseravelmente, durante largos meses.

Anos mais tarde, já depois da independência da Guiné, aquela aldeia foi reativada; um dos casais para lá enviados (temos indicação que foram quatro) foi a nossa conhecida Dandan e o marido. Ela foi aprisionada em Mansacunda e não quis voltar ao “mato”. Chorou, copiosamente, durante o dia todo, pensando (temendo), certamente, que viria a ser comida pelos “caras pálidas”.

Há mais de trinta anos, uma africana da Guiné hospedou-se no hotel Dom Carlos, onde o alf. Tavares trabalha. Pela manhã, ela perguntou ao porteiro de serviço onde ficava a “rua não sei quê de farmácias”. Perguntaram-lhe se não seria a Rua da Sociedade Farmacêutica; eufórica, ela respondeu que sim. Explicaram-lhe onde ficava a tal rua e ela foi tomar o pequeno-almoço.

Logo, o Tavares entrou na sala e um rapaz que, estava ali, de serviço, e tinha cumprido tropa na Guiné, informou:
- Esta moça é da Guiné e sabe muito acerca da guerra.

O Tavares perguntou-lhe se podia comer, na mesma mesa. Para início de conversa, perguntou-lhe de onde era natural:
- Sou de Bissau!
- Nasceste mesmo, lá?
- Nasci no norte, perto de Farim!
- Em que tabanca?
- Genicó Mancanho, perto de Binta.
- A tua aldeia estava cercada de bananeiras, anormalmente, altas!
- Como “sabi”?
- Eu ajudei a destruí-la, porque fomos recebidos com fogo!

Ela comentou:
- É verdade! A tropa não nos matou a todos porque não quis; se a tropa fosse tão má como nos contavam, ninguém sobreviveria para contar como tudo aconteceu!

Todos fugiram, em segurança, para o Senegal. Pouco mais atarde, ela partiu com a família para Bissau. Cresceu um pouco e andou, durante anos, a carregar armamento e géneros alimentícios da Guiné Conacry para o Oio. Após a guerra, foi enviada para a Checoslováquia para tirar um curso de farmácia. Agora, veio a Lisboa para fazer um curso de atualização.

Durante a sua permanência no hotel, tomou sempre o café da manhã com o amigo, Tavares; afinal… nunca foram inimigos.

Recordemos outros casos:
- Dos trinta e nove prisioneiros que trouxemos de Lenquetó, apenas um foi abatido, porque nos conduziu, intencionalmente, à tremenda emboscada que o seu bi grupo nos preparou perto Caurbá; quando fugiu para se juntar aos seus subordinados, teria de ser baleado. Inevitável!

- O prisioneiro de Cufeu estava apavorado, temendo ser comido pelos soldados brancos, mas nada de mal lhe aconteceu.

- O padre de Gebacunda, uma povoação no norte do Oio, mesmo frente a Binta. Viveu connosco uma vida airada; pediu para ir ao Senegal para trazer as suas duas mulheres; foi e… não mais voltou! Pela aparência, ele seria mais abade que padre!

- Uma prisioneira da região Buborim viveu em liberdade total, no aquartelamento de Binta. Volvidos cerca de quinze dias, o nosso capitão perguntou-lhe se pretendia continuar em Binta ou voltar ao mato. Ela, dando uma no cravo outra na ferradura, alegou que todos a trataram bem, mas… os familiares estavam no mato e gostaria de voltar para junto deles… se o capitão de Binta autorizasse.

O nosso ilustre comandante de companhia ofereceu-lhe um saco de arroz e uns “panos”, informando:
- Os “panos” são para ti! O arroz é para a família! Diz ao pessoal que retire as abatis da via, porque o caminho é de todos! Se não obedecerem, destruiremos os vossos acampamentos e… não há mais arroz nem “panos” para ninguém!

Na verdade, eles retiraram as abatis pequenas e queimaram algumas das outras. Entenderam que a tropa de Binta deveria retirar as grandes. Se a estrada era de todos, o trabalho não deveria ser só deles.

Fizemos vários “prisioneiros” mas nenhum entrou na prisão – em Binta não havia disso – porque não era necessário. Também não eram obrigados a apresentações temporária à PSP, nem usavam pulseira eletrónica! Modernices!

(continua)

_____________

Nota do editor

[1] - Vd. post de 7 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24631: CCAÇ 675 - Guiné, 1964/66 - Retalhos do nosso pós-guerra - I (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil Inf)

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24899: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (19): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Mês de Agosto de 1970



"A MINHA IDA À GUERRA"

19 - HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: CAPÍTULO II - ACTIVIDADES NO TO DA GUINÉ

MÊS DE AGOSTO DE 1970

João Moreira



SITUAÇÃO
1. TERRENO
O capim cresceu desmesuradamente, as bolanhas estão alagadas. Os percursos tornam-se mais difíceis embora de dia a chuva ajude pois refresca.
Emboscadas noturnas insuportáveis pois a chuva é permanente.

2. NT
Mais experientes e adaptados, como é natural. Actuação calma.

b. ACTIVIDADE
Actividade normal com 1 saída diária.
Em 07AGO70 operação ALMA MINHA do BCAÇ 2861.
Uma série de notícias referem concentração de Grupo IN (MAQUÉ) na região de NHANE, BISSAJAR, BANCOLENE.
A CCAÇ 13 de BISSORÃ e a CCAV 2721 seguem juntas até BISSAJAR onde se separam. A CCAV 2721 para se dirigir a NHANE a CCAÇ 13 para BANCOLENE e JAGALI MANCANHA. Dois contactos da CCAÇ 13 em que sofre 1 ferido grave e provoca 2 mortos confirmados ao IN, recupera 3 (M) e 3 (C), captura 1 pistola e 1 canhangulo e destrói 5 casas de mato e meios de vida.
A CCAV 2721 não contacta e recupera 1 (M) em NHANE.
A operação foi comandada por PCV pelo Cmdt. Batalhão e foi apoiada por 1 heli-canhão.
Em 19 fugiram 2 mulheres que tinham sido recuperadas em JULHO em IRACUNDA.
Domingo, 231700, grupo IN não estimado flagelou o quartel e povoação com morteiro 82 durante 10 minutos, de BINTA 7E6 provavelmente. Provocou 1 ferido grave e 1 ligeiro, ambos civis. Foi pedido apoio aéreo visto ser a melhor maneira de provocar baixas. Dois FIAT não se fizeram esperar e metralharam a zona.
Mais tarde, série de notícias C-3 recebidas da CCAÇ 2465 refere que o IN sofreu 5 mortos nesta flagelação, entre os quais um comandante de grupo. Estas notícias são no entanto improváveis no julgar deste comando.
Em 26 fugiu 1 homem que fazia parte do grupo recuperado em IRACUNDA. Com este homem iam a fugir mais 4 mulheres que no entanto foram impedidas por elementos da população nos trabalhos agrícolas.
Nota-se já com a experiência que fica de Companhias anteriores que os MANDINGAS fogem muito enquanto que os BALANTAS pouco.
Este facto não deverá ser só atribuído a idiossincrasia étnica, a mentalização, etc.
Assim o facto mereceu uma pequena investigação, e algumas conclusões expostas no relatório A/P.

​EXTRACTO DO RELATÓRIO PERIÓDICO DE ACÇÃO PSICOLÓGICA N.º 5/70

FACTORES DA SITUAÇÃO PSICOLÓGICA

POPULAÇÃO

Motivações susceptíveis de virem a ser exploradas pelo IN
Acerca da fuga de recuperados mandingas, muito mais frequentemente que de outras etnias, provoquei uma discussão aberta entre os chefes da população fixados no OLOSSATO e elementos recuperados tendo chegado a uma conclusão que é possível tenha interesse:
(a) Um dos motivos que os levam a fugir são laços afectivos com elementos que ficaram no mato, por ordem de importância: filhos, maridos, mulheres e irmãos.
(b) No entanto há um outro, talvez ainda mais importante e que segundo concluí, conhecida mesmo entre a população controlada pelo IN e que pode ser um dos factores impeditivos de apresentações além de, como já disse, provocar fugas:
- Os recuperados, quando são libertados para se integrarem na população, vão, como é natural, para casas de parentes com os quais habitam e colaboram até poderem adquirir a autonomia social e económica.
Ora, enquanto entre fulas e balantas existe uma verdadeira vontade de entreajuda, entre os mandingas (nos quais se nota desde a chegada dos parentes um excesso de zelo e de afinidades de parentesco) persiste um certo espírito de exploração económica e de cobiça sexual, que tentam efectivar à sombra da bondade e vontade de ajuda do parente desprotegido.
Assim este último, ao fim de algum tempo começa a sentir-se alvo de pressões a que dificilmente tem coragem para resistir (não têm os parentes as "costas largas" com o apoio e confiança das autoridades civis e militares, enquanto elas são as réprobas, têm a "cabeça cheia de vergonha" e não devem merecer a total confiança das autoridades? - possivelmente serão os próprios parentes que lho faz "ver" explícita ou implicitamente por meio de observações, conversas, insinuações, censuras) e vai cedendo lentamente, parte das vezes permitindo até violações à tradição que tão fortemente o marca. A rapariga que tem o noivo no mato e se vê a casar com um camafeu estabelecido. O artífice que vai começando a ganhar "patacão" e é explorado "ab início" sob a alegação que está a ser ajudado pelo anfitrião. O "tio"ganancioso que recolheu em casa a rapariga recuperada e põe dificuldades ao seu casamento com o rapaz de que gostou porque quer receber o pagamento respectivo, (pois o pai dela está no mato, "sabe-se lá onde e como coitado") mas não tem direito a esse pagamento enquanto o pai dela for vivo, podendo aparecer em qualquer altura e exigir o dote à família do rapaz que não está para pagar duas vezes (não se trata aqui de respeitar um direito de tutor visto a rapariga ter já entrado na maioridade). O velho ou quase, que cobiça os braços da rapariga para a lavoura e a sua beleza e juventude para carinho e prestígio senil, forçando-a sob pretexto de gratidão a união desigual.
Enfim, um sem número de pressões, pequenos ultrajes, a que recuperado se vê sujeito no seio dos seus próprios irmãos e que forçosamente afectam a sua vontade de permanência.
Quase me arriscaria a dizer que o problema dos familiares (mesmo os filhos) ficados no mato, é de somenos importância, perante a submissão a que se veem obrigados, até porque a psicologia gentílica é muito mais atreita a factores de ordem económica e social do que propriamente a uma afectividade na maior parte das vezes consequência daqueles mesmos factores.
Suponho que o problema existe realmente e não é de desprezar para recuperação e integração dos Mandingas.

Em 27 durante a picagem da estrada para BISSORÃ, para uma coluna de reabastecimento, foidetectada e levantada 1 mina A/C reforçada com 1 mina A/P em BINTA1I8.31.

Da crítica à Act. Op. n.º 78 do COMANDO-CHEFE consta que:
"A CCAV 2721, que vinha desenvolvendo apreciável actividade, acusou, no período, ligeira quebra de rendimento".
A esta crítica respondeu o BCAÇ 2861: "Em referência à crítica supra, informo V. Exª. que a ligeira quebra de rendimento da CCAV 2721 foi devido ao facto de nos dias 29 e 30 de Julho, embora previstas acções nas regiões de BISSAJARINDIM e COLI SARE, conforme constava do Planeamento da Actividade Operacional elaborado pela CCAV 2721, aprovado por este Comando, do qual se envia 1 cópia, se terem realizado colunas auto entre OLOSSATO-BISSORÃ e BISSORÃ-OLOSSATO.
Por lapso não foi mencionado no n/SITREP n.º 529, a realização da coluna auto, BISSORÃ-OLOSSATO, a cargo da CCAV 2721.

Da crítica n.º 80 transcreve-se:
" . . . anotando-se ausência da actividade noturna da guarnição do OLOSSATO (CCAV 2721)."

(c) RESULTADOS
- Baixas ao IN
Recuperado - 1 elemento da população
Apresentado - 1 Elemento da população

- Material capturado
Mina A/C - 1 levantada
Mina A/P - 1 levantada

- Baixas NT
feridos - 2 elementos da população


Com baixa para saídas, por ter arrancado uma unha e não poder calçar.
Bilhete de Identidade Militar

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24877: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (18): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Julho de 1970 - Acção "Bacará"

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24631: CCAÇ 675 - Guiné, 1964/66 - Retalhos do nosso pós-guerra - I (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil Inf)



C. CAÇ. 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - I

Belmiro Tavares

A C. Caç. 675 continua viva! Apesar de fortemente “desfalcada”… quanto mais velha, melhor! Isto não acontece apenas com o Vinho do Porto. É caso para dizer que nada (ou quase nada) conseguirá impedir-nos de cumprir a nossa extraordinária missão… a não ser a morte… por enquanto. A essa ainda não conseguimos sobrepor-nos, mas… na nossa segunda vinda a este mundo, talvez não tenhamos… adversários invencíveis. Até lá… seja o que Deus quiser!

Passe a graça! É de graça!
Coloquemos, de novo, os pés no chão!

Ultrapassada a pandemia (dela ainda restam certos resquícios mais ou menos percetíveis) regressámos às nossas confraternizações anuais mas, agora, com mais genica. Dado que temos “companheiros” espalhados por todas as províncias do continente (temos também um “teimoso” que, de boa saúde, vive na Madeira) e porque a idade vai ditando as suas leis rígidas, decidimos organizar, anualmente, dois convívios: um para a “rapaziada” do norte e outro para os que vivem na zona sul. Não creiam que há sectarismo nesta decisão. Nem pensem! Cada um escolhe, de sua inteira e livre vontade, em qual pretende participar; por outro lado, todos podem estar presentes nas duas. Todos serão bem-vindos! Acima de tudo, que ninguém esqueça os familiares.

Acontece que nem só de convívios vive a nossa C. Caç. 675, a gloriosa. Voltámos a colocar lápides nas sepulturas dos nossos companheiros que, entretanto, nos foram abandonando, para sempre. É a rígida lei da vida!

Esta é já a terceira série! No início dos anos setenta (século passado) colocámos as primeiras quatro lápides nas sepulturas dos três companheiros que morreram em combate, na Guiné (soldado Augusto, furriel miliciano Vilhena Mesquita e o soldado João Nascimento); como entretanto, faleceu o 1º cabo enfermeiro nº 2533, António Martins; morreu num acidente de viação, aquando da visita a sua mãe, em Tondela, a sua terra natal, depusemos também uma lápide na sua sepultura.
A partir de maio de 1966, terminada a comissão na Guiné, o Rato ficou a viver em Lisboa; exercia a profissão de enfermeiro num qualquer hospital da capital.

Falemos um pouco deste cabo enfermeiro que nos acompanhou na Guiné durante dois anos infindáveis e de quem se contam inúmeras brincadeiras inofensivas e engraçadas.
No dia a dia, era um desenrascado nato mas era igualmente corajoso e competente no desempenho das tarefas inerentes à sua especialidade – enfermagem.
Não defendemos que ele era melhor ou mais eficiente que os outros dois, pois todos eram bons, briosos e decididos. Acontece que, quando o doente (ou o ferido) confia plenamente em quem o trata (médico ou enfermeiro) se o profissional sabe insinuar-se e é bem aceite, é meio caminho andado para a total recuperação. Era o que acontecia com o “Rato”. Ele sabia penetrar no coração e na alma do doente e o este confiava, piamente no que ele dizia ou fazia.

Vamos contar duas façanhas acerca do “Rato”; ambas ocorreram em Guidage mas em épocas diferentes e sob as ordens de oficiais diversos.

A primeira ocorreu em março de 1965, quando o mui ilustre e digno “capitão do quadrado”, em cumprimento de ordens superiores, enviou para Guidage (um posto fronteiriço no norte da Guiné) o signatário destas linhas com o seu pelotão. Ao receber a ordem de partida, o alferes, mui respeitosamente, perguntou ao seu comandante qual era a sua missão naquele autêntico desterro. Seria preferível viver na sede da companhia com toda uma série de patrulhas frequentes e mais ou menos perigosas ou “morrer de tédio” na solidão de Guidage? Que venha o diabo e escolha!

O sábio capitão de Binta respondeu que, segundo informações da PIDE (polícia internacional de defesa do estado), um grupo de chefes políticos do PAIGC (partido africano para a independência da Guiné e Cabo Verde) iria deslocar-se a Sambuiá (uma base fortíssima a norte do Cacheu e a poucos quilómetros da fronteira com o Senegal) para apaziguar as chefias daquela base; havia, ali, desentendimentos graves entre os chefes. Seria urgente reverter a situação, enquanto era tempo. Nós pensaríamos o contrário: quanto mais desentendimentos… entre eles… melhor!

Quanto à PIDE, essa salazarenta organização policial de má fama, podemos dizer que, durante a mui longa e perigosa guerra colonial, ela prestou muitos e valiosos serviços às nossas Forças Armadas; em alguns casos, houve resultados notáveis. Lembremos apenas o apoio que os “pides” prestaram, durante anos, aos nossos prisioneiros, nos calabouços de Conacri e a sua posterior libertação – operação Mar Verde. Poderá dizer-se que, mesmo aquilo em que não acreditamos ou de que não gostamos ou até odiamos, pode proporcionar ajuda prestimosa às nossas cores, como é o caso. Esta é a face boa e patriótica da PIDE.

Durante vários anos, umas dezenas de militares portugueses penaram miseravelmente na prisão de Conacri (capital da Guiné ex-francesa), cujo governo apoiava, abertamente, a guerrilha da Guiné-Bissau que pretendia libertar-se do domínio português. Por incrível que possa parecer alguns conseguiram sobreviver ali, penando, durante bem mais de uma dezena de anos.
Graças a Deus, a PIDE não os abandonou!
Imagine-se os perigos que alguns “pides” correram para fazer chegar aos nossos prisioneiros lembranças e correspondência dos seus familiares. “Mascaravam-se” de comerciante, subornavam polícias e carcereiros para poder contatar diretamente aqueles prisioneiros infelizes, massacrados e abandonados. Faziam isto, duas vezes por ano, no mínimo.

A PIDE colaborou, abertamente, na operação “Mar Verde” que provocou a libertação daqueles portugueses e trouxe-os de volta a Portugal. Entre aqueles massacrados prisioneiros, havia pelo menos um piloto aviador de nome Lobato, creio.
Esta terá sido, talvez, a faceta mais apreciável e até louvável daquela “salazarenta organização policial”. A maior parte das grandes operações levadas a cabo durante a Guerra do Ultramar, teve por base informações da PIDE e a tropa ia agindo a contento.

A missão deste vosso alferes, junto à fronteira norte, era impedir a passagem dos tais chefes políticos, pelos nossos terrenos, nas imediações de Guidage. Mui respeitosamente, este alferes manifestou a sua opinião:
- Para cumprir, cabalmente, tal missão eu terei de montar emboscadas permanentes, ao longo da fronteira. Acontece que, durante a noite, os adversários podem passar bem perto das nossas barbas, sem que nos apercebamos de tão ousada e perigosa presença. Por outro lado, nem os meus soldados nem eu poderemos suportar, impunemente, tão desmesurado e perigoso sacrifício que, na pior das hipóteses, poderá tornar-se inglório por falta de resultados. Ninguém nos informa sobre o itinerário aproximado que eles vão usar nem sequer a hora de passagem. Eu preciso dos meus soldados (e eles necessitam de mim) até ao fim da comissão que ainda é quase uma miragem. Trata-se dum sofrimento enorme e, certamente, sem resultados condizentes e poderá marcar-nos, negativamente, para o resto da nossa comissão.

A resposta do inigualável capitão foi clara e… convincente. Ei-la:
- Como deve calcular, eu confio em si! Faça o que melhor entender para cumprir a missão, cabalmente, enaltecendo o bom nome da nossa C. Caç. 675 e das nossas Forças Armadas.
Você leva consigo o enfermeiro Martins que, a qualquer hora, é eficiente; leva também o Machado (um soldado atirador natural de Cheleiros, Mafra), que tinha ganas de ser enfermeiro; na prática, até foi.

O alferes em causa e o seu pelotão lá foram até Guidage; no grupo seguiram o Rato (enfermeiro) e o Nhaca (ajudante ou aprendiz de enfermagem).
O enfermeiro Martins não perdeu tempo para iniciar a sua atividade, lá, quase sobre a linha de fronteira, onde o diabo perdeu as botas. Começou a dar consultas diárias, não só aos militares mas também aos civis que, vindos do Senegal, ali procuravam “mezinho” para todas as suas maleitas. Em Guidage, onde estava sediado um outro pelotão, praticamente não havia população civil; mais tarde… havia ali um bom número de “retornados” – portugueses da Guiné que, para fugir às agruras da guerra, se refugiaram no Senegal, junto dos seus irmãos étnicos (etnia mandinga) que viviam nos dois lados da fronteira.

Imaginando que os medicamentos ali distribuídos, gratuitamente, poderiam ir parar às “mãos” dos nossos adversários que tinham apoio do governo do Senegal, o alferes determinou que o “mezinho” teria de ser tomado, ali, pelos “doentes” e na presença do enfermeiro ou do seu ajudante.
O enfermeiro Martins, por seu lado, exigia que os “doentes” civis o chamassem por dr. Martins. Para terem direito a consulta gratuita e aos medicamentos “à borla”, os doentes teriam de trazer galinhas ou frangos para oferecer ao sr. Doutor. Era um João Semana… dos tempos modernos!

Sabendo que a população dava “apoio logístico” (ou a isso seria obrigada) aos guerrilheiros do PAIGC, o alferes informou os supostos doentes:
- Se, durante a minha permanência aqui, em Guidage, este quartel for atacado, eu enviarei umas morteiradas (granadas de morteiro, neste caso de calibre 81) sobre a vossa aldeia.
Todos negaram dar apoio aos combatentes, nossos adversários, mas nós sabíamos que a sua atuação (no mínimo a de alguns) era bem diferente do que nos transmitiam, amigavelmente.

Dias volvidos, o quartel de Guidage foi atacado (em modo soft); nós respondemos em força ao ataque dos adversários e, logo, duas ou três granadas de morteiro caíram na aldeia senegalesa. Conclusão:
1 – Não houve vítimas entre os civis – o que muito nos agradou;
2 - Durante uma semana não tivemos lavadeiras.

Como em Guidage não havia população civil, as mulheres senegalesas lavavam a roupa a cada um de nós, cobrando esc. 50$00 por homem/mês. Por outro lado, o nosso conhecido, “dr. Martins”, perdeu a clientela civil. Em breve tudo se recompôs: eles precisavam de tratamento médico e as lavadeiras faziam-nos uma falta do caraças. O dr. Martins (um enfermeiro autopromovido a doutor) recuperou a clientela e continuou a ser “remunerado” com galinhas e frangos.
No final das consultas, o enfermeiro Martins tinha de proceder à conferência do material utilizado - era tempo das vacas magras! Os descartáveis (usa e deita fora) ainda não tinham sido “inventados”. Um dia, faltava uma agulha da seringa; tudo era controlado ao centavo e ao centímetro. A falta de uma mísera agulha de seringa poderia dar origem a castigo severo se se provasse que houve dolo e/ou negligência. A balbúrdia (irresponsabilidade) surgiu entre nós, uns anos mais tarde, logo após a Revolução dos Cravos.

Por vezes podia-se driblar a justiça se houvesse inteligência e bons conhecimentos técnicos.
Vejamos: os caldeiros da nossa cozinha estavam irremediavelmente deteriorados; era tal a sua debilidade que já não “suportavam” a soldadura. Naquele tempo, tudo tinha duração estipulada, mas os materiais recentes não tinham a qualidade e a duração dos antigos. No entanto, o legislador “esqueceu-se” de colocar em prática a adaptação e a correção necessárias. O célebre capitão de Binta solicitou à Intendência que procedesse à substituição dos ditos caldeiros porque “já não cumpriam o fim a que se destinavam”. Pediram explicações. O capitão argumentou que a ruína prematura se devia ao uso excessivo dos caldeiros. Todos eram usados diariamente porque fornecíamos aos soldados sopa e um prato às duas refeições.

Eis a resposta dos entendidos (burocratas) da Intendência:
- O uso excessivo não justifica a ruína prematura!
Seria inútil argumentar porque… o chefe tinha sempre razão!

Volvidos poucos dias, os nossos adversários (os combatentes do PAIGC) colocaram uma mina na estrada de Guidage (mais precisamente na bolanha de Cufeu) a qual foi despoletada por um caminhão Mercedes. O motor da viatura “desencaixou-se” e desapareceu nas águas turvas e lodosas da bolanha. Apenas o condutor da viatura ficou ferido num pé; foi evacuado para Lisboa e… meses mais tarde, “passou à peluda”.

O nosso excelente capitão informou a Intendência que todos os caldeiros seguiam na viatura sinistrada e desapareceram nas águas pútridas da bolanha de Cufeu. Recebemos, imediatamente, caldeiros novos… em folha. Valeu a pena! É o que vale a burocracia!

Perante aquela falta duma mísera agulha de seringa, o enfermeiro alertou o seu ajudante:
- O Nhaca! (era a alcunha do soldado Machado) falta uma agulha da seringa! O Machado esbugalhou os olhos, bateu com a palma da mão na testa e saiu do “consultório” em corrida desenfreada, em direção à bolanha que servia de fronteira entre a Guiné e o Senegal; bolanha é um terreno alagadiço onde também se cultiva arroz. Abeirou-se duma “bajuda” (rapariga, “teoricamente”, virgem), levantou-lhe a saia (um tecido enrolado à cintura) e recuperou a tal agulha que ela levava espetada no traseiro.
Acreditem que é verdade!
Correu de regresso até ao aquartelamento e, esbaforido, disse, contente, ao seu chefe:
- Está aqui a agulha que faltava!

Meses mais tarde o mesmo enfermeiro e o mesmo ajudante voltaram a Guidage, exercendo as mesmas tarefas, mas agora integrados em outro pelotão. Os dias corriam modorrentos mas, de repente, tudo se complicou… e de que maneira!

Ao fim da tarde de determinado dia, dois soldados (o Coelho e o Artur José) saíram do quartel, espingardas na mão, para tentar caçar algo que lhes proporcionasse um bom petisco. Certamente, não terão avisado os seus superiores de tão inopinada saída. Entretanto, à hora pré-determinada, o sargento de serviço fechou o portão (uns fios de arame farpado) e armadilhou-o, como acontecia, a cada dia. Os “pretensos caçadores” voltaram, de mãos vazias. Não se lembraram que o portão poderia estar armadilhado, e abriram-no, displicentemente, para entrar. A armadilha funcionou. Cumpriu-se o aforismo: - “as nossas armadilhas nunca falham… contra nós!”
O Coelho foi atingido por uns tantos estilhaços (mini estilhaços)… nada de grave; o Artur, por seu turno, ficou com a veia femural desfeita numa extensão de sete centímetros.

A noite caía inapelavelmente! O helicóptero já não podia sair da base, em Bissau – não estava equipado com meios de orientação noturna. Era a guerra dos pobres!
Era imperioso que o Artur se “aguentasse” vivo até às primeiras horas da manhã e que a perna não gangrenasse. Noite de dor profunda! Noite de esperança! E a gangrena? Estaria de acordo? Podia ser fatal!
O Rato (enfermeiro e dr. Martins) iria ser confrontado com um dos momentos mais difíceis e fantásticos da sua vida; manteve-se ao lado do Artur, durante toda a noite, dando-lhe apoio moral… e medicamentoso para impedir que a gangrena “levasse a melhor”.

Amanheceu! A vitória daquela dupla (Martins e Artur) era uma realidade! A gangrena e a morte foram vencidas! Como terá o Martins conseguido aquela estrondosa vitória? – Não sabemos! Ninguém sabe, como tal aconteceu! Apenas ele saberia e já não consegue dizer nada. Desgraçadamente, o Martins foi o nosso primeiro morto, após o regresso da Guiné. Faleceu numa deslocação que fez a Tondela, a sua terra natal, para visitar a sua mãe. Faltou-lhe ali, certamente, um “enfermeiro Martins” para que não perdesse a vida em um miserável acidente com uma motorizada.

Logo pela manhã, o helicóptero levou o Artur para o HM 241, em Bissau. Ao aperceberem-se do seu estado tão melindroso, os médicos “afiaram facas e cutelos” para amputar a perna do Artur sem ter em devida conta o esforço, a dedicação, o saber e o profissionalismo do Rato e o enorme sofrimento do Artur.
Por sorte, encontrava-se ali um médico, que vivera, durante uns anos, nos EUA, trabalhando num hospital onde eram tratados muitos mutilados da guerra do Vietname. Ele alegou que: “para amputar, há sempre tempo”. Pela primeira vez, em Portugal, “um tubo de plástico” foi usado para substituir sete centímetros de uma veia femural que se encontrava destruída nessa extensão. Graças a Deus!

O Artur continua de boa saúde, no Monte da Estrada, nas imediações de Relíquias, a sua terra natal; continua a servir-se da perna que Deus lhe deu. Na zona, onde a artéria femural fora substituída por um mísero tubo de plástico (não seria, certamente, um plástico qualquer), a coxa tem ainda um perímetro, significativamente, inferior ao da outra mas… é a sua perna, graças a Deus… e também às artes mágicas e milagrosas (quase) do enfermeiro Rato.
Que a terra lhe seja leve!

Diz o nosso povo que “a conversa é como as cerejas” (engatam-se umas nas outras) e com razão. Vejamos.
Dois soldados da C. Caç. 675 eram naturais de Relíquias, concelho de Odemira; um é o Artur José (seu nome completo) de quem temos vindo a falar; o outro era o Manuel José (é também o seu nome completo); faleceu há já uns anos. Acontece que, apesar do que ficou aqui expresso, não pertenciam à mesma família. Mas há mais estranhezas: ambos eram “filhos de mãe incógnita”.

Nunca entendemos esta situação! Sabíamos o que era o “pai incógnito” mas nunca tínhamos ouvido falar de “mãe incógnita”… ultrapassava o nosso entendimento.
O 1º sargento da companhia, Antero dos Santos, apresentou uma explicação algo estapafúrdia… que não nos convenceu.

Na verdade, é obra! Dois rapazes nascidos na mesma povoação, têm o mesmo sobrenome, não pertencem à mesma família e, para cúmulo, ambos são filhos de “mãe incógnita”. Mas há mais! Nasceram no mesmo ano, foram para o mesmo quartel, pertenciam à mesma companhia e ao mesmo pelotão - o primeiro, comandado pelo alf. Costa (já falecido) e que, tal como os dois soldados, era também alentejano. Era natural de Beja!… Por mero acaso… não era de Relíquias!
Um caso assim, só poderia pertencer à C. Caç. 675.

Na sepultura do Rato (enfermeiro Martins) bem como na do Manuel José, já se encontram as respetivas lápides da C. Caç. 675.

O furriel enfermeiro José Eduardo Reis de Oliveira, mais conhecido por JERO (o acrónimo elaborado com as iniciais de seu nome) fez questão de estar presente, em Tondela, pois o Rato seria seu colaborador mais dileto. Aliás, o JERO esteve presente na colocação de outras lápides.

Um dia partimos para o norte com seis lápides na mala do carro. No 1º dia colocámos cinco – quando acabámos de depor a última (furriel Mesquita, em Famalicão) já era noite escura. A irmã e o sobrinho (Drª Teresa Mesquita e seu filho Dr. Francisco Mesquita) do malogrado Álvaro Mesquita, tiveram a amabilidade de nos oferecer um lauto jantar… no restaurante, “O Tanoeiro”, em Famalicão. Por sinal, o dono era nosso amigo, de longa data E por falar em lápides…
Vila Nova de Famalicao > Cemitério local > 8 de julho de 2010 > O Belmiro Tavares e o JERO junto da campa do Álvaro Manuel Vilhena Mesquita.

Uns anos após a colocação das quatro primeiras lápides, já nos anos 80/90 (século passado) encomendámos uma nova série de 45 lápides. Para que isto se tornasse realidade, calcorreámos outros tantos cemitérios de norte a sul, ou seja, desde Caldas das Taipas (bem no extremo norte do país) onde jazem os restos mortais do sold. corn. 2444, António da Silva Lopes, até Vila Real de Santo António onde repousa o sold. cond. auto, 2466, João Alexandre de Jesus Alexandre. Este foi ferido num pé, aquando do rebentamento estrondoso duma mina, na bolanha de Cufeu, estrada de Guidage, como acima foi referido.

Nós temos apregoado aos ventos que, tendo em conta as várias facetas das nossas vidas, fomos uma companhia positivamente diferente de todas as outras. Em tempos idos, através do blog luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com, perguntámos:
- Quem tem vindo a fazer reuniões anuais para recordar a nossa passagem por aquela malograda guerra miserável?
A melhor resposta que nos chegou referia uma companhia que falhou apenas um ano.
À pergunta: - Quem trasladou os seus mortos, durante a guerra? Apenas duas unidades responderam afirmativamente.

Nota: o governo da época não pagava a urna de chumbo para a trasladação; apenas fornecia o transporte (os navios vinham vazios). À época, uma urna própria para esse fim custava esc. 8.000$00 (oito mil escudos); na Guiné, um alferes auferia um vencimento pouco superior a 6.000$00.

À pergunta: Quem colocou lápides nas sepulturas dos seus mortos em combate? Ninguém respondeu, afirmativamente.
Não seria necessário perguntar se alguém colocou lápides, tal como nós, nas sepulturas dos antigos combatentes, que morreram após o regresso.

Sempre defendemos que a C. Caç. 675 era… diferente pela positiva, de todas as outras.
Hoje, tendo em conta que ninguém perpetuou a memória dos seus mortos durante o pós-guerra, podemos afirmar, sem receio de errar, que somos uma companhia única.

Perto de um milhão de jovens participou na guerra colonial; em mais de seis mil companhias (cada companhia era constituída por cerca de cento e sessenta mancebos) apenas uma companhia - a gloriosa C. Caç. 675 - cometeu tal proeza.
Tudo isto se iniciou na Guiné, onde, sob um sol tórrido, e no meio dos maiores perigos, começámos a ser diferentes:
- Os nossos soldados distinguiam-se pelo aprumo e pelo seu comportamento garboso;
- Pacificámos a nossa zona – algo mais de 400 km2 (quatrocentos quilómetros quadrados);
- Lutámos também à procura da paz (na nossa zona, claro)
- Cerca de dois milhares de guineenses abandonaram o Senegal onde viviam em grande penúria, passando a viver em liberdade e a produzir riqueza à sombra da nossa companhia e da nossa Verde/Rubra. Nunca, mesmo em tempos idos, aquele povo recebeu tanto “patacão” (dinheiro) pelo amendoim que produziu. Para isso, foi mesmo necessário controlar (dominar) a ação perniciosa (criminosa) dos funcionários das grandes empresas comerciais que ali compravam amendoim. “Manga de patacão” clamavam os chefes de família quando venderam a mancarra (amendoim) que produziram, em 1965. Eles sabiam que produziram mais que em outros anos; também sabiam que naquele tempo não havia “desvios”!

Já em 2023, recomeçámos o nosso fadário; encomendámos mais 25 lápides, e no dia 16 de abril, colocámos as primeiras cinco, nas sepulturas de outros tantos companheiros:
- Em Caldas da Rainha, colocámos a primeira – eram 09:00 – na sepultura do Joaquim Lopes Henriques (o Caldas), soldado nº 2225. Estavam presentes a viúva e o filho. Não foram parcos nos agradecimentos. Os seus olhos brilhavam de alegria!
Seguimos para Alcobaça, a terra natal do furriel miliciano enfermeiro, Oliveira, mais conhecido por JERO. Estavam presentes: a viúva, os filhos e um generoso grupo de bons amigos do nosso companheiro. O silêncio (e o respeito) era audível! Grande camaradagem!
- Partimos para Batalha, cemitério de Jardoeira. Aqui repousam os restos mortais do J. Santos Frazão, soldado atirador 2236. Não compareceu nenhum familiar! O Frazão não tinha filhos e a viúva, quando se viu sem o seu marido, voltou à sua terra natal – Arouca. Já consegui o seu contato e informei-a do que fizemos para que ela não viesse a ser colhida de surpresa.

No mesmo cemitério está sepultado o Carlos Agostinho Vieira, o 1º cabo R. M. 2645; era o encarregado das munições, em Binta. Toda a família esteve connosco: viúva, filhos, filhas, noras, genros e netos. Aliás já quase todos tinham participado das nossas reuniões anuais. No fim da cerimónia, a família do Vieira convidou-nos para almoçar. Logo informei que o convite seria aceite mas cada um pagaria a sua parte. Por artes de magia pura, o repasto foi oferecido pela família do Carlos Vieira. A todos, os nossos sinceros agradecimentos! Em resposta, uma boa parte da família esteve presente na reunião deste ano, em Benavente. Presentearam-nos com uma “box” de vinho que o Vieira fabricou… antes de “partir”. Foi a sua última colheita! Tratou-se de um gesto de grande simpatia para com a nossa rapaziada.

A viúva do Vieira tomou parte no funeral do Lua; ela decidiu ir connosco para nos indicar o caminho para o cemitério onde o José Pires Carreira (o Lua) está sepultado; era o soldado atirador 2244. A viúva e uma filha estavam presentes. Ficaram extremamente contentes por terem ali os companheiros de seu marido e pai.
Só encontrámos boa gente! Todos rejubilaram com a nossa presença e pela atitude da C. Caç. 675. É ela que nos move.

Neste dia, 16 de abril, a “equipa de colocação de lápides” foi chefiada pelo nosso mui querido general, Alípio Tomé Pinto; era coadjuvado por um alferes (o Tavares), por dois furriéis (Luís Moreira e Mogo Miguel; este era o acordeonista privativo da C. Caç. 675) e pela condutora civil – Ana Luisa – filha do alferes Tavares.
Pela primeira vez, eu “convoquei” o nosso general para estas tarefas pois temos obrigação (pelo menos moral) de preservar o nosso adorado chefe. Aconteceu desta vez porque o nosso general nutre uma consideração especial pelo furriel Oliveira, por ser o nosso cronista-mor e, além disso, foi o seu padrinho de casamento.
O nosso general vinha radiante e surpreendido pela alegria, simpatia e carinho com que aquelas gentes nos receberam; prometeu estar presente noutras colocações de lápides.

No dia 21 de maio, colocámos mais duas lápides, no cemitério dos Prazeres, em Lisboa: uma no jazigo onde está guardado o corpo do nosso querido médico, dr. Martins Barata; outra foi colocada junto dos restos mortais da Srª Dª Maria Lucília Pinto, a mui digna esposa do nosso general. Surpresa? Não! Todos se lembram, certamente, que a srª Dª Lucília sempre nos acompanhou desde janeiro de 1964, quando a C. Caç. 675 foi formada, no RI 16, em Évora; mesmo quando a saúde começou a abandoná-la, ela fez sempre questão de estar presente nas nossas confraternizações. Por tudo isto, o mínimo que poderíamos fazer era: - chamar-lhe mãe.
Por outro lado, se a companhia tem um pai, o nosso general - deveria, também, ter uma mãe; mais ninguém teria precedência neste assunto. É caso para dizer que, agora, nós somos órfãos de mãe.

Neste dia, a nossa equipa era constituída por: o nosso general, a viúva e a filha do fur. Mil. enf. Oliveira, um filho do dr. Barata, o Tavares, o Moreira, o Mário Cardoso e o Filipe.
Que Deus nos dê vida, saúde e ânimo para levar mais esta nossa tarefa a bom porto. Acontece que o último de nós a morrer ficará sem lápide. Ou talvez não! Aguardemos!

Brevemente, retomaremos a nossa tarefa mui nobre. Desta última série, falta colocar 18 lápides. Serão depostas em vários cemitérios desde Maia (Porto), Gonçalo (Guarda), Covilhã, Alcanena, Idanha-a-Nova e Serpa. Há vários em cemitérios diferentes do distrito de Setúbal.

Acabámos de saber que o Vítor Bramão, soldado atirador 2032, sepultado em Faro, não pode “receber” a lápide que até já foi elaborada. Os seus restos mortais passaram à vala comum; a família não os reclamou, porque não foi avisada. Quando se apercebeu, já era tarde. Lamentamos, profundamente!

Aconteceu o mesmo com o soldado Ap. Metre. 2041/63, António Manuel Rola Garrido, que foi abatido, em Monsanto, por forças extremistas, pouco depois da Revolução dos Cravos. Afinal… fez-se a Revolução e os mortos continuaram. Ele era guarda prisional e foi morto a tiro, quando conduzia um “criminoso” ao tribunal. Foi vítima da “politiquice” de extremistas!

Damos por terminado o relatório desta nossa tarefa… até esta data. Dentro de alguns meses, depois do verão, haverá mais.

Lisboa, julho de 2023

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domingo, 2 de abril de 2023

Guiné 61/74 – P24187: (Ex)citações (423): Camaradas que se separaram na Guiné (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas que se separaram na Guiné

Camaradas,

Nesta fase da vida, que já vai longa, há momentos que nos enchem de saudade e, sobretudo, de uma amizade que persiste, não obstante o tempo passado.

No pretérito dia 18 de março, 2023, celebrámos o 50º Aniversário do 1º Curso de 1973 de Operações Especiais/Ranger, em Lamego, tal como havia antes anunciado, sendo que por lá revivemos instantes que jamais esqueceremos. Foi, no fundo, um “folclore” de emoções, tendo em linha de conta os laços que nos unem de uma especialidade que nos terá dado um outro traquejo para enfrentar a guerra Colonial, ou do Ultramar.

Neste encontro, marcado pela excelência entre camaradas e alguns dos seus familiares, revi o camarada Pedro Neves, almoçámos lado a lado, tal como demonstra a fotografia, sendo que o “peso da idade” mui dignamente transformou os nossos corpos.

Aqui vos deixo um texto do meu livro “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ-BISSAU 1973/1974 MEMÓRIAS DE GABU”, Editora Colibri, Lisboa, editor Fernando Mão de Ferro


Camaradas que se separaram na Guiné
Pedro Neves foi para Binta, eu para Gabu


No QG, em Bissau, com o Pedro Neves no dia em que chegámos à Guiné – 2 agosto de 1973

Atesta a lonjura do tempo que o rótulo de uma amizade que teima em permanecer imutável entre dois velhos camaradas de armas, atravessam géneses de uma eternizada amizade e predispõem-se de forma clara a tecer comentários vantajosos entre sexagenários que se conheceram nos verdes de uma juventude irreverente, onde a sua condição militar ditou uma estima que se mantém, e manterá, indestrutível.

Reconheço que durante a minha vida militar travei inúmeros conhecimentos com camaradas e desse rol de personagens com os quais mantive contactos pessoais, nesses velhos tempos, alguns deles existem que permanecem patentes na montra das nossas excêntricas recordações.

Agora, o meu memorial para um justo debate, recai num velho camarada de nome José Pedro Neves. Um amigo com o qual partilhei momentos inolvidáveis por terras de Lamego. Fomos instruendos do 1º curso de 1973 de Operações Especiais/Ranger e instrutores do 2º curso, sendo que ambos demos instrução ao 1º grupo de cadetes, onde tivemos como aspirante Daniel Pereira, um rapaz de Cabo Verde que, tal como eu, fizemos a recruta no CISME, em Tavira.

Ditou a bolinha mágica da fortuna, ou azar, que fossemos contemplados com uma comissão na Guiné. Uma mobilização que, como era suposto, se apresentava como cruel. Tratava-se do princípio de uma nova rota militar e que usurpava maquiavélicas coincidências para dois jovens que não conseguiram ludibriar a malvadez do futuro.

Aconteceu que a ida para terras de além-mar fosse plena de coincidências. Comparecemos ao embarque no aeroporto de Figo Maduro, só que o voo foi suspenso, sendo que a viagem se protelou por vários dias. “Desarmado” e boquiaberto com a situação deparada, o Pedro, um homem de coração enorme, prontificou-se a solucionar a condição de um camarada ranger, entretanto desapossado de um lar para pausadamente aguardar pela ordem de partida.

“É pá, não tenhas problemas, ficas na minha casa”. Uf, que alívio, pensei. E lá fomos a caminho do seu lar. Os pais do Pedro receberam-me com pompa e circunstância, dormi, comi e bebi, passeámos pela capital e nada me faltou nos dias antes do embarque. Obrigado pela hospitalidade e sobretudo sensibilidade!

Partimos então para a ex-província ultramarina no dia 2 de agosto de 1973, no mesmo avião que descolou de Figo Maduro, Lisboa, e partilhámos o mesmo banco da nave, saboreámos a refeição servida a bordo, bebemos o fresco líquido (whisky) de um copo e trocámos ideias sobre a sorte que nos esperava na guerra.

Chegados ao aeroporto de Bissalanca fomos depois conduzidos para as instalações militares do QG, em Bissau. A receção foi cordial. Faltaram as passadeiras vermelhas para receber em apoteose os ilustres mancebos acabadinhos de aterrar em solo africano. Os barracões, como recordam aqueles que por lá passaram, estavam entolhados de camaradas, alguns já velhinhos na guerra e os recentes “piriquitos”. Notava-se, a olhos vistos, que os brilhos das divisas dos novos guerrilheiros impunham ordem numa hierarquia que a plebe muito bem conhecia.

As camaratas, com camas sobrepostas, sugeriam o sentimento de uma desolação profunda sobretudo para os recém-chegados. Procurámos o poiso, acomodámos a nossa bagagem e envidámos esforços no sentido de uma visita ao centro de Bissau. O objetivo era conhecer novas paragens, aliás, tal como sucedeu.

Entretanto fomos informados do horário das refeições que eram servidas no refeitório da messe de sargentos, defronte às nossas esplendidas “residências”, sendo que pelo meio das amenas cavaqueiras lá surgiam as brincadeiras do “piu-piu”. Sons jocosos emitidos pela velhada que parecia estar de partida para a metrópole depois de uma comissão que não lhes terá dado tréguas.

Lembrando essas famosas camaratas no QG, alcunhadas como o Biafra, recordo que eram uma espécie de tudo ao monte e fé em Deus. Algumas das camas eram pomposamente ornamentadas com redes mosquiteiras. A malta de passagem pelas instalações colocava as artimanhas e por lá ficavam. Serviam depois de abrigos para os novos hóspedes. O zumbido agudo noturno dos mosquitos era ensurdecedor. Ali deparamo-nos de pronto com o clamor da primeira batalha.

Chegou a hora da despedida. O Pedro lá partiu rumo a Binta e eu a Nova Lamego, Gabu. Nas minhas novas instalações reencontrei outros dois camaradas que tiraram o curso de Operações Especiais/Ranger comigo em Penude: o Rui Álvares e o Cardoso. Acontece que o Cardoso acabou por demandar para uma outra zona da Guiné, enquanto eu e o Rui permanecemos em Gabu.

Do Cardoso nunca mais tive informações. Perdi-lhe o rasto. Sei que era natural de Moimenta da Beira. Desejo que esta ausência poderá ter um fim em vista se porventura algum camarada que leia este pequeno texto nesta obra me dê alvíssaras desse meu velho amigo. O Cardoso tinha uma estatura baixa. Gostava de reencontrá-lo tal como aconteceu há uns anos com o Rui. Com cabelos brancos, ou com falta deles, como é o meu caso, reconhecer-nos-emos de imediato e lá acontecerá aquele fraterno e apertado abraço.

Interiorizando os contextos de as minhas memórias Gabu, realço a passagem pelas instalações do QG, em Bissau, afirmando convictamente que esse espaço foi visitado, e revisitado, por muitos camaradas que fizeram escala na capital guineense ao longo da sua comissão militar na guerrilha da Guiné.

Curioso era a arquitetura dessas instalações. Mas como a sua utilidade era simplesmente casual, a malta acomodava-se como podia e não refilava com o que lhe era colocado à disposição. Lembram-se, camaradas? Toca a desafiar essas recordações e sacar cá para fora essas velhas lembranças.

Dessas passagens breves pelo QG, recordo que numa das idas para o faustoso resort, encontrei dois amigos de Beja, um o furriel comando de nome Chico Dias, que me levou a provar um prato a que chamavam “ninho de andorinha”; outro o furriel Zé Felício, um rapaz com o qual mantenho uma indestrutível amizade.

Recordo o desafio proposto pelo Chico Dias na prova do ninho de andorinha, uma refeição cujo tempero era feito na base do muito piripiri africano. Escusado será dizer que o sacana do ninho de andorinha levou-nos a refrescar as gargantas com uma boa dose de cervejas. Não me lembro do fim, mas aquilo fez efeito, isso fez.

Experiências comestíveis guineenses que, à época, fazia mover montanhas de prazeres africanos! 
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

7 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 – P24125: (Ex)citações (422): Os combatentes, Vietname e Portugal (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)