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quinta-feira, 21 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25294: Blogpoesia (799): No Dia Mundial da Poesia - "Lágrimas" (Mário Gaspar, ex-Fur Mil Art MA)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Gaspar, ex-Fur Mil Art, Minas e Armadilhas da CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de hoje, 21 de Março, Dia Mundial da Poesia:

Caros Camaradas do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné
Os anos passam e os jovens que partiram para uma guerra, e deixaram de sonhar – o meu caso – atingiram uma outra idade mascarada com um rosto de cabelo grisalho.
Tive ontem Alta do Hospital Pulido Valente. Foi mais um internamento, a juntar a outros. Em pouco tempo, desde 2022 estive hospitalizado 7 longos meses, sem resultado algum.
Sou Deficiente das Forças Armadas, diz-se com um mundo de benefícios – e com razão de ser – mas verdade seja dita que sempre me considerei alguém com Saúde e hoje sou simplesmente um bicharoco sem significado para aquilo que denominaram de Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Mas, não é essa a razão que considero importante para hoje. É o Dia Mundial da Poesia. Chorar não choro. Não recordo sequer qual a última vez que chorei. A Guerra Colonial foi uma fonte de lágrimas.

Aqui vai o contributo de um Aprendiz, também da Poesia, referente a este dia.
A Minha Homenagem aos Soldados Portugueses – os Melhores Soldados do Mundo – sempre foi a minha opinião.

Abraço a todos os combatentes
Mário Vitorino Gaspar


“Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
A coragem do último sorriso…”
José Gomes Ferreira


Lágrimas

Lágrimas nascem…
correm ao desafio!
Umas crescem,
outras, ao desvario
desaparecem
fio a fio!
Perdidas aos molhos,
brotam dos olhos!
Lágrimas aos bocados,
são versos,
beijos chorados…
Vagos, dispersos,
de todos os lados,
pontos diversos!
Mulher que chora…
Ama, a cada hora...
Lágrimas são lume,
ardem… É cruel!
Doce volume,
favo de mel,
vermelho de rosa…
cor da alma!
Flor cheirosa,
escorre com calma…
Lágrimas têm o rumo,
e, num instante –
presumo –
de modo elegante,
assumo,
e cativante,
tem o seu caminho,
o rosto, seu ninho!


____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25251: Blogpoesia (798): No Dia Internacional da Mulher - "A Mulher que amanha o peixe", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P25293: (In)citações (266): No Dia Mundial da Poesia - O que penso (Adão Cruz, Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887)

O QUE PENSO

adão cruz

É muito difícil saber o que é a poesia. Duvido de quem diga que sabe o que é a poesia. Desde a depuração absoluta da palavra à respiração de Deus, tenho ouvido todas as definições. Isso não impede, contudo, o direito que temos à manifestação do nosso pensamento. Penso que a poesia é um sentimento como outro qualquer. Por isso eu prefiro chamar-lhe sentimento poético. Um sentimento como o sentimento do amor, o sentimento da alegria, o sentimento da tristeza, o sentimento do medo. Parece-me, contudo, um sentimento muito subtil, uma espécie de brisa mágica, uma essencialidade rítmica e harmoniosa da vida, uma espécie de musicalidade, quase uma ascese ética e estética que nos transporta à mais nobre e sublime expressão da realidade, através das mais impressivas, expressivas e sugestivas formas da nossa linguagem. O sentimento poético tem uma certa parecença com o sentimento místico. É quase indefinível, é um estado de hipersensibilidade, um ser-se de outra maneira, um sair do não-autêntico, um quase sentir a verdade total e o amor universal. Ele combina a palavra justa com toda a energia sinestésica e sensível que faz o poema acordar.

A poesia não é a cópia da realidade, mas a simbolização, a evocação e a invocação da beleza e da nobreza da vida. O fenómeno poético é entendido como harmonia verbal em que todos os materiais fonéticos e simbólicos se fundem num resultado de suprema fruição estética. Por isso, o mundo dos sentimentos é extremamente complexo. Os sentimentos nascem, vivenciam-se, estruturam-se, apuram-se e afinam-se, podendo escalonar-se, em qualquer ser humano, entre o básico e o sublime. Para o bem e para o mal. Só desse mundo caldeado pelo tempo na alma humana nasce a poesia, como luz nas trevas, como broto de água ou vulcão, como sangue nas veias túrgidas ou fresca chuva nas entrelinhas da secura. Outro berço não tem. Por isso penso que criar poesia pode não ser encastelar versos uns em cima outros em baixo, fazer rebuscadas rimas, escrever labirínticas coisas que ninguém entende, inventar modas que podem não passar de execuções sumárias da poesia. O próprio poema, a matriz literária habitual da poesia, pode ser estéril e seco, ou mesmo a negação da poesia. A poesia percorre transversalmente qualquer forma de expressão artística, podendo ter uma presença mais viva num texto em prosa do que num poema, ou ser muito mais sentida num quadro ou numa peça de música do que em qualquer forma de expressão literária.

E qualquer obra de arte, qualquer forma de expressão artística, só o é se contiver dentro de si a poesia. Penso, ainda, e parece haver estudos que o comprovam, que o sentimento poético e o sentimento artístico enriquecem e enobrecem todos os nossos processos de humanização, criam grandes afinidades com a consciência, aproximam-nos de todos os mecanismos de identificação da verdade, afinam todas as outras emoções e sentimentos, ajudam-nos no caminho do equilíbrio e da harmonia. Assim sendo, o sentimento poético pertence à esfera dos afetos. Todos nós possuímos no nosso cérebro o mesmo esquema neural do sentimento, já que é esse o esquema da nossa espécie. Mas o padrão neural do sentimento, o padrão sentimental de cada um é completamente diferente em cada um de nós e em cada momento da vida.

____________

Nota do editor

Último post da série de 28 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25225: (In)citações (265): A Guerra. Nos últimos tempos as notícias tendem a ser brutais e deprimentes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23132: Manuscrito(s) (Luís Graça) (209): O (futuro) museu nacional da guerra colonial...


Típico grafito dos "bunkers" da Guiné... Imagem (e legenda): LG (2019)


1. O museu nacional da guerra colonial

por Luís Graça

Um dia até as pombas da paz do Picasso repousarão
no museu da guerra,
em relicários, de aço,
mais as moscas, regressadas dos campos de batalha,
das  bolanhas, das chanas, das savanas, das florestas-galeria
de além-mar em África.
As moscas, e os mosquitos,  espetados em alfinetes lá ficarão  
nos respetivos mo(n)struários.

No museu nacional  da guerra colonial 
só haverá mo(n)struários.

Agora elevadas à categoria de artefacto cultural,
as moscas, exangues. cobertas de terra verde-rubra,
mais a merda das moscas, liofilizada,
como os grelos e o bacalhau que comias na noite de Natal.

No Norte do teu pais,  onde há gente decente, 
diz-se: "Com a sua licença, a merda".

Um dia ouviste o senhor comandante do teu batalhão,
veterano da guerra da Guiné
e especialista em águas minerais,
dizer, enquanto beberricava o seu uísque com água de Perrier,
"Chiça!, sempre mais vale uma mosca na sopa
do que um míssil na messe de oficiais".

A tua não foi uma guerra tamanha, foi tacanha,
de baixa intensidade, 
escreveu o escriba do jornal
agora promovido a historiador oficial.

Eh!, pá, não viste mísseis hipersónicos a cruzar o Geba ou o Corubal,
o Cacheu, o Mansoa,o rio Grande de Buba, o Cumbijã, o Cacine,
mas milhões de insetos caíam-te na sopa.

Salgada, a sopa, da água da bolanha, fria, 
desconsolada, a saber a ferro, 
boa para  a anemia.

A responder-lhe, ao veterano,
seria com a célebre frase de um general prussiano
(um general das guerras napoleónicas,
ainda por cima prussiano,
sempre é mais ovoestrelado
do que um tenente coronel do exército colonial):
"A guerra não é mais do que a continuação da política de Estado
por outros meios".
Fim de citação, ponto final,
... e siga a Marinha até ao Terreiro do Paço.

Dizia-se que era o mais longe onde se podia ir,
para não haver derrapagens no orçamento militar.

De megafone em punho,  à laia de baioneta,
ouvirás o guia-mor do museu,
herói, deficiente, maneta, 
o olhar baço, o peito ainda ardente,
a falar-te da arte e da ciência da guerra.
E da importância que era devida aos detalhes de barba do combatente 
mesmo nos felizes e alegres dias da paz.

Lá estava o aviso exposto na tua camarata:
"Mais vale perder um minuto na vida,
do que a vida num minuto".

Nunca chegaste a perceber
por que razão é que o soldado tinha que ser tosquiado,
como o cordeiro da Páscoa.
Dizia o cronista-mor do reino,
que fez a cobertura mediática do desastre de Alcácer Quibir,
que era para ir ao encontro da deusa da morte, 
devidamente ataviado.

Rebobinando o filme da história desta guerra 
(e afinal de todas as guerras),
vê-se que  faltou sempre a visão do todo
ao marechal de campo,
visão que só podia ser major do que a soma dos detalhes.

A única filosofia de vida que tu, soldado, ouviste na tropa,
for ao teu tenente de instrução de especialidade,
era simples e prática, e não rimava com liberdade:
que a merda era o adubo... da vida, blá-blá;
que era fazendo merda, que tu aprendias, blá-blá.

E sobretudo nunca te devias esquecer
que era com a merda dos grandes, cá,
que os pequenos se afogavam, lá.

À quinta feira (seria ?, que importa o dia!),
depois da feira do gado bovino,
fazia-te, a ti e à malta do pelotão, rastejar na bosta,
enquanto ele namorava com a sopeira do capitão,
debaixo da janela, bem aparadas as patilhas
e perfumadas as virilhas.

É por isso que  ainda hoje não gostas... de xarém,
as papas de milho com conquilhas,
muito menos à moda de Tavira.

Na tropa-do-um-dois-três-e-troca-o-passo,
do vira do Minho a Timor,
nunca soubeste onde ficava o Norte.
Nem nunca soubeste pôr ao pescoço o baraço
para te enforcares no pau da bandeira.
Ou saltar o galho com garbo
ou fazer um manguito de bravata,
nem fazer o nó à gravata,
nem onde pôr a mão esquerda,
nem o ombro arma,
a arma no ombro
ou o ombro na arma
e muito menos, porra!,  ajustar o amuleto da sorte, 
ao peito.
Pior: não sabias sequer a letra do hino,
de cor e salteado
 nem tão pouco fazer o pino.

...Mas nem por isso te chumbaram, desgraçado,
que a pátria te chamava  e tinha pressa.

Depois um dia, no meio da guerra,
quiseram mandar-te para a psiquiatria,
o que era estranho, porque o Erre-Dê-Éme
em todo o seu articulado,
não previa a figura do inimputável
nem a do cacimbado
ou do apanhado do clima
"Deem-lhe um valium dez,
metem-no numa camisa de forças",
gritou o comandante das tropas em parada
ao médico, amável,
ao enfermeiro, calado que nem um rato,
ao maqueiro, rapaz cortês,
e merda para todos os três.

"Sempre era mais cómodo e barato
do que embrulhá-lo em papel selado!"

Deficiente das forças armadas,
prometeram-te depois um mundo melhor,
protésico e radioativo, 
com escudo de proteção,
sem armas de arremesso,
seguro contra todos os riscos e outras tretas:
só não te disseram o preço.

"Não, muito obrigado,
mais vale andar neste mundo em muletas
que do no outro em carretas".

Procuravas, além disso, uma mão...
Sim, a direita, com cinco dedos,
disposta a ajudar o teu pobre braço.
Esquerdo, sinistro, decepado.
 
Davam-se alvíssaras 
a quem salvasse o império,
tu deste o braço.

Morrer eras quando tu chegavas um beco sem saída
e não tinhas um kit de salvação.
Morrer em Nhabijões,
em Madina do Boé,
em Gandembel,
em Mampatá,
na Ponta do Inglês,
em Gadamael
ou em Missirá
... ou no Pilão, numa cena canalha,
tanto te fazia.
A morte não tinha SPM como os aerogramas da Cilinha,
e só morria quem não tem estrelinha,
que a sorte protegia os audazes
e quem morria, morria de vez,
e queria mortalha.

O mesmo era dizer: 
que o deixassem finalmente em paz!


A vida com a morte se (a)pagava.
Havia sempre moscas 
à espera do teu cadáver, prometido e adiado,
E jagudis, e formigas bagabaga, e um dia aziago,
E um primeiro sorja da CCS que te punha os pontos nos ii.
E um capelão que te fechava os olhos,
com extrema unção e a devida compaixão, divina,
e missa simples, sem cantorias nem  sermão.
E um coveiro que te pregava as tábuas do caixão.
E como a viagem era longa até casa,
ias hermeticamente fechadom
não fosse o diabo tecê-las!

"Não perturbem, do defunto, o sono eterno!",
podia ser o teu epitáfio.

A prática, diziam-te, levava à perfeição,
exceto no jogo da roleta russa
que jogavas nas picadas da Guiné,
a G3 contra a Kalash,
a pica contra o fornilho,
o pé contra a mina APê, 
o coiro, encardido, contra o Erre-Pê-Gê Sete,
russo ou chinês, do internacionalismo proletário!
Por isso tu vivias cada dia,
como se aquele fosse o único que te restasse
no calendário de parede, no teu abrigo,
grafitado com gajas nuas.
E muitos traços, em conjuntos de sete,
marcando a eternidade de uma semana.

Ah! E os órgãos de Estaline, não te esqueças,
dos órgãos, mesmo que hoje já estejam embalsamados
lá no mausoléu.
 
Cada dia era o primeiro,
o único, o original, o irrepetivel,
no jogo da vida e da morte!
E antes de rezar as matinas,
as mãos erguidas ao céu,
fazias o teste do dedo grande do pé esquerdo,
o do joanete,
o dos calos,
o das bolhas,
o da unha encravada,
o das matacanhas,
o das pisadelas,
o mais azarento,
o rebenta-minas!

Lembras-te, ó Marquês, sem acento circunflexo ?!

Não sabias se o pintor de Guernica
(ou Gernika, que o topónimo era basco
),
gostaria de ter conhecido Adão e Eva no Paraíso, em pelota,
pobres amantes.
Ou a Terra Prometida quando era rica,
e era sempre primavera, nunca inverno,
e nela corria então o leite e o mel,
mais o ouro,  o petróleo e os diamantes.

Afinal, todos os pintores preferem fazer batota,
querendo entrar no céu
e pintando o inferno.


Não, afinal, nunca chegaste  a conhecer, em vida,  
nenhum museu da paz, 
apenas o desta guerra, ao vivo e a cores,
e que não tinha cenários de opereta:
as balas eram de puro aço ,
e as bombas não eram treta.
Também sempre detestastes  as pombas 
que te cagavam a varanda e a janela,
e muito menos eras fã do Picasso.

Camarada: que a terra da tua Pátria, ao menos, te tenha sido  leve!
Sit tibi terra levis!, 
como já diziam os soldados romanos
que te colonizaram.
 

3 out 2012 (*). Revisto, 21 de março de 2022, dia mundial da poesia (**)



Guernica, de Picasso, 1937. Óleo sobre tela, 349 cm × 776 cm. Museu Rainha Sofia, Madrid, Espanha... Imagem do domínio público: Cortesia da Wikipedia.]


2. Comentário do nosso editor:

Já há, no nosso país, um Museu da Guerra Colonial, que eu por acaso ainda não visitei. Fica em Vila Nova de Famalicão, terra de alguns dos nossos grã-tabanqueiros, como a Rosa Serra ou o Joaquim Costa.

Mas é uma museu municipal... Nasceu, segundo se lê no sítio, no ano de 1999, através de uma parceria entre o município de Vila Nova de Famalicão, a ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas) e a AlfaCoop (Externato Infante D. Henrique de Ruilhe). Teve por base um projeto pedagógico intitulado "Guerra Colonial, uma história por contar"-

Oferece ao visitante uma exposição permanente que pretende retratar o itinerário do combatente português na Guerra Colonial (1961-1974), atrvés de áreas temáticas como: O Embarque; O Dia-a-Dia; As Operações Militares; Os Nativos; A Ação Social e Psicológica; A Religiosidade; Os Horrores da Guerra; A Morte; A Correspondência e as Madrinhas de Guerra.

Pormenor importante: todo o acervo museológico foi cedido ou doado por antigos combatentes ou seus familiares, por delegações da ADFA e pelos vários ramos das Forças Armadas Portuguesas.

Mas, segundo (in)confidências de círculos próximos da senhora ministra da defesa nacional, este museu pode vir a ser "nacionalizado", e passando a ser apenas um polo regional de um projeto museológico muito mais vasto e ambicioso, de âmbito nacional, com várias parcerias: museu do exército, museu da marinha, museu do ar (FAP), arquivo histórico-militar, academia militar, universidades... O projecto integrar-se-ia nas Comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril.

Questão delicada e que divide os potenciais promotores é a sua designação: Museu Nacional da Guerra do Ultramar, Museu Nacional da Guerra de África ou Museu Nacional da Guerra Colonial ?


Interessante parece ser a ideia, do ministério da defesa nacional, de tentar salvar e recuperar as páginas e os blogues mantidos por antigos combatentes na Internet. Mas tudo isto ainda está no segredo dos deuses (ou das deusas)...
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 deoutubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10475: Blogpoesia (306): S. T. T. L., Sit tibi terra levis!... Que a terra da tua Pátria, ao menos, te seja leve!.. (Luís Graça)

sábado, 26 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23113: Agenda cultural (804): Dia Mundial da Poesia: Em Volta de Herbero Helder. CCB, Belém, Lisboa, hoje, sábado, dia 26, das 15h00 às 18h00. Entrada gratuita:



Imagem: Sítio da Fundação Centro Cultural de Belém (2022), com a devida vénia


Dia Mundial da Poesia: 

Em Volta de Herberto Helder


Centro Cultural de Belém, Lisboa, sábado, dia 26 de março de 2022, 
das 15h às 18h. Entrada gratuita.


Seleção de alguns eventos (*)


15:00 – 18:00 | Feira do Livro | Receção do Centro de Congressos e Reuniões – Piso 1

Realizar-se-á na Receção do CCB uma Feira do Livro com a presença de várias livrarias e editoras. Aqui poderá encontrar aquele livro que há muito quer ler, a obra do seu poeta preferido ou as mais recentes edições do mercado.

15:00 – 18:00 | Exposição Bibliográfica | Foyer da Sala Luís Freitas Branco – 
Piso 1

Estarão em exposição algumas das primeiras edições da obra de Herberto Helder. Esta exposição bibliográfica foi concebida em parceria com a Biblioteca Nacional Portuguesa.


15:00 – 18:00 | Maratona de Leitura | Sala Fernando Pessoa – Piso 2

Leitura dos poemas vencedores do concurso Faça lá um Poema e entrega de prémios aos mesmos. Este momento será intercalado com a leitura de poemas de Herberto Helder por diferentes convidados. Nesta Maratona de Leitura terá ainda lugar o lançamento de Postais da República com os poemas vencedores. A apresentação estará a cargo da atriz Ana Sofia Paiva.

Parceria com o Plano Nacional de Leitura. (...)


15:00 – 18:00 – Exposição | Foyer da Sala Sophia de Mello Breyner Andresen – Piso 2

Desenhos em Volta de os Passos de Herberto Helder

A obra poética e literária de Herberto Helder é o mote desta exposição de ilustração de Mariana Viana, que interpretou livremente os textos do livro Os Passos em Volta através de desenhos de figuras de animais (alguns explícitos no texto), ou antropomórficas, como se de um Bestiário se tratasse. Esta exposição é composta por formas que viajam de lugar em lugar, metamorfoseando-se ao longo de um fio condutor que se renova e que evoca um novo lugar.


15:00 – 18:00 | Diga Lá um Poema | Bengaleiro Norte – Piso 1

Espaço aberto ao público para leitura dos seus poemas em voz alta. Estas leituras são filmadas e reproduzidas no monitor que se localizará na receção do CCB. O alinhamento é feito mediante inscrição do público no local.


(...) 16:00 – 17:00 | Conversa | Sala Luís de Freitas Branco – Piso 1

Em Volta de Herberto Helder

Uma conversa informal sobre a vida e obra de Herberto Helder, com a presença de Rosa Martelo, Luís Quintais e moderação de Vasco Santos.

16:30 | Documentário | Sala Almada Negreiros – Piso 2

Meu Deus Faz Com Que Eu Seja Sempre Um Poeta Obscuro

Será exibido o documentário biográfico Meu Deus faz com que eu seja sempre um poeta obscuro, de António José de Almeida, sobre a obra de Herberto Helder (**). O documentário tem como base depoimentos de diversas personalidades, intercalados com a leitura de excertos de obras da sua autoria.

__________

Notas do editor:


(**) Sobre o poeta, Herberto Helder (Funchal, 1930 - Cascais, 2015) ver a entrada na Wikipedia.

Vd. também o poste de 29 de março de  2015 > Guiné 63/74 - P14416: (Ex)citações (269): O poeta Herberto Helder (1930-2015) que eu "conheci"... (António Graça de Abreu)

quarta-feira, 21 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18440, Manuscrito(s) (Luís Graça) (140): No Dia Mundial da Poesia...Um conto: "Feliz Natal e Bom Ano Novo"


Feliz Natal e Bom Ano Novo

por Luís Graça



Centro de Saúde de X…, concelho de Y…, Portugal. Aqui bateu a crise à porta. E bateu forte. 


Os pobres, os velhos, as mulheres, as minorias, ciganos, cabo-verdianos, guineenses… Os jovens sem escolaridade, sem emprego, sem futuro. Os adultos desempregados. Os desempregados demasiado velhos para arranjar emprego, demasiado novos para se reformarem. Os reformados que não vão ter tempo de gozar a reforma, e fazem contas à vida e riscam os dias no calendário, que faltam para receber a pensão.  As crianças que tiveram o azar de nascer em tempo de crise ou de pré-crise. As crianças que tiveram simplesmente o azar de nascer aqui e agora. Os avós, que voltaram a acolher, em casa,  os filhos e os netos. O comércio que fechou portas. As empresas 'deslocalizadas', como agora se diz... E até as farmácias que se queixam que o negócio já teve melhores dias... Em contrapartida, vai-se o ouro dos brincos e ficam as orelhas furadas... Ou vão-se os anéis e ficam os dedos... E as tatuagens nos braços. E os grafitos nas paredes. E a cabeça, por enquanto, em cima do pescoço... E os males da alma, sobretudo esses, que não se podem extirpar como o cancro...

Aqui a vida é cruel. Simplesmente cruel: não há escala para medir a crueldade. Há só um grau: a crueldade... Não há o muito cruel, o bastante cruel o assim-assim, nem muito nem pouco, o pouco cruel, o nada cruel... 

Apesar de ainda haver médico, medicamentos genéricos, assistência. Apesar de haver psiquiatras e saúde pública e até meninas do serviço social. E um segurança à porta, sempre é bom para as estatísticas do emprego haver um segurança à porta: é um posto de trabalho a mais. 

Enfim, ainda há o SNS - Serviço Nacional de Saúde, ou o que resta dele.  Há pelo menos tabuletas, gabinetes disto e daquilo. E gente de bata branca. E portas que se abrem e fecham. E gente que espera. Também não têm mais nada que fazer nesta manhã, do primeiro dia de inverno.
 Não faltam doutoras para tratar da gente, ao menos…
− Por enquanto… Sabe o vizinho dizer-me até quando ?

− Pensam que eu não sou maluca, pá… mas eu sou mesmo!... Vou lá fora fumar um cigarrinho.

Não diz cigarro, diz cigarrinho como se um cigarrinho fizesse menos mal que um cigarro. Tem os dedos amarelos da nicotina. O cigarro mata, diz a embalagem do maço de cigarros. A Rita tem uma idade indefinida, mas alguns traços ainda jovens e finos. Envelheceu precocemente, ou já está há muito nos entas. É cliente habitual do centro de saúde, faz daqui a sua sala de estar, usa um “piercing" no sobrolho... É ou foi auxiliar de educação infantil.
 Já sou freguesa…mas nunca mais me chamam p'rá Junta Médica.

Pega no maço de “Passo Malo” (, corruptela de “Pass Mall”) e sai intempestivamente.  Um jovem casalinho, ele, com ar de deprimido, não pára na cadeira, cheio de tiques. Ela, gordita, com ar maternal, traz o marido à “doutora”. Diria que são ambos ciganos... Como se conhece um cigano ?...Não arrisco...

O delegado de propaganda médica (será?) boceja, enquanto folheia o jornal local, de distribuição gratuita. Os títulos de caixa alta falam por si… Falam da “nova pobreza”, da associação cristã em prol da juventude desvalida que anda na droga, do bairro que tem má fama e pouco proveito... "Feios, porcos e maus", não diz mas pensa muito boa gente que não é cá do bairro...
− Sou preta, portuguesa, com muita honra... Nasci aqui, não conheço a terra dos meus avós e dos meus pais, que eram do Gabu. Mas nunca fui ao Porto. Um tio-avô combateu pelo lado dos portugueses. Em Buruntuma. Fugiu para o Senegal depois da independência. Acho que era milícia ou coisa assim.

Agora faz voluntariado, a Fatumatá. 
− Fátima, é melhor chamar-me Fátima..

Trabalhava numa empresa de limpezas industriais que fechou as portas. A patroa voltou para Angola. E deixou cá dívidas e gente de braços caídos. Chamavam-lhe a "rainha do Congo". Lá na associação, a Fatumatá faz distribuição de bens de primeira necessidade, roupas e outras coisas de uso quotidiano que fazem falta aos moradores, muitos deles, os homens e jovens, que trabalhavam na construção, agora parada. Também se dá o leitinho às criancinhas.

Onde é que eu vi já este filme ? A Caritas, no meu tempo, de escola, a distribuir os restos da América rica, o queijo, a farinha, o leite em pó, as roupas usadas… Há 60 anos atrás... A história repete-se, a crise, as receitas, a caridade dos ricos, a entreajuda dos
pobres, a sopa dos pobres... Ainda comi desse queijo, e desse pão, ainda bebi desse leite, ainda vesti  essa roupa usada... E ainda hoje me sinto desconfortável: é horrível ser objeto da caridade dos outros...E, no entanto, eu devia estar grato... aos meus irmãos católicos norte-americanos.

Outro título que salta à vista do tablóide da região: “A classe média já pede ajuda”... A classe média, que raio de conceito sociológico ?!.. No guiché, as mulheres fazem confidências (ou queixas ? ou pedidos ?) à funcionária, assistente técnica (nome pomposo, para a categoria de administrativa, na nomenclatura da função pública que ainda emprega e dá estatuto e paga vencimento ao fim do mês…). 

É também confidente e parte da rede social de apoio desta pobre gente… O sofrimento, a dor, a doença, a crise... tudo o que é mau suporta-se melhor se for partilhado. Tiro o chapéu aos cuidadores que não têm quem cuide deles...

A Rita voltou com um copo de plástico de café. Gente triste, baça, deprimida… Usada e abusada, em casa, na fábrica, no bairro...
− Gentinha, somos gentinha, vizinho.
− Gentinha, parece repetir o delegado de propaganda médica (será ?), que olha para o relógio, impaciente.
− Tudo a correr bem consigo ?  − pergunta a senhora do guiché à Rita.
− Tudo numa boa, querida!... Só tou à espera da baixa.
− Tem a consulta marcada, Rita, mas há gente à frente.

Dezoito doentes (e ou acompanhantes) à espera, cinco são homens, o resto são mulheres, duas cabo-verdianas, mais a Fatumatá / Fátima, luso-guineense…
− Adeus, Paulinha.
− Tudo de bom para si!

− Ciao, querida!

Não sei se é tudo para a "doutora" ou as "doutoras" da psiquiatria. Aqui funciona também uma USF – Unidade de Saúde Familiar. Mas deve ser ao lado. O guiché em frente é o da psiquiatria. São as mulheres que alimentam a consulta, os homens, por preconceito e estigma social, não aparecem… Ou só em situações mais graves, rebocados pelas mulheres. E com problemas de alcoolismo.

Ligo, discretamente,  o gravador de som: 
− Ó dona Paula, não passaram já 20 minutos ?
− Ó senhor António, acalme-se, deixe-me trabalhar, a doutora já o chama.
− Paula, saudinha para si e para os seus. Até à próxima.
− Adeus, meu amor, as melhoras... Olhe, e Bom Natal e Feliz Ano Novo!

A Rita, de Vila Vicosa, já não quer regressar à sua terra natal, quando se reformar:
− É uma pasmaceira, a província... Saí de lá menina e moça. E aqui tenho as amigas do peito. Mas tenho que lá voltar para fazer a minha árvore ginecológica (sic)...

A Rita é uma mulher com "pergaminhos"... Um das suas fantasias é a sua hipotética pertença a gente de teres e haveres, de nobre linhagem, com raízes na Casa de Bragança... Já foi princesa ou duquesa noutra incarnação. Insiste na sua ideia obsessiva da "árvore ginecológica"...
− Genealógica, Rita...  
− emendo-lhe, com um sorriso de delicadeza, condescendência e compaixão.

Desligo e volto ligar o gravador de som... Ainda tem pilhas, como as vidas desta gente.
− A crise ?!...
− Bom, a crise... boa pergunta, sei lá quando começou… E muito menos sei quando vai parar… 

“Bom Natal e Feliz Ano Novo”: a crise é circadiana, amanhã é sábado, e o sol volta a nascer. Daqui a dias é Natal. Ainda bem que é Natal... E valha-nos ao menos a santa ilusão de que um dia vamos ser todos ser felizes... 

Natal todos os dias, Natal todos os anos. A crença de que alguém vai descobrir a pílula da felicidade (e, "by the way",  ficar muito rico)... Ou que a gente vai ganhar o Euromilhões. E que a dona Rita ainda vai a tempo de descobrir que é descendente de Dom Afonso I de Bragança. E que a malta vai durar até aos 100 anos, a menos que não morra antes de uma bactéria no hospital. Ou de Alzheimer (de que Deus nos livre!)...

E todos os anos a Paulinha e a "doutora" nunca se esquecerão de desejar aos seus utentes, por esta altura, "Bom Natal e Feliz Ano Novo!"... A fórmula é mágica e tem uma tremenda eficácia terapêutica... mesmo que simbólica!

Não sei do que seria dos doentes da "doutora", se não houvesse ao menos esta locução mágica, "Feliz Natal e Bom Ano Novo"... O que seria de nós se não houvesse, ao menos, o eterno retorno, as quatro estações, e o Natal e o Ano Novo, o nascer e o morrer ?

Este ano a "doutora" vai de novo fazer férias na neve... É a melhor altura do ano: nas próximas duas semanas, até ao fim do ano, ninguém vai estar doente... porque é Natal e logo a seguir Ano Novo!... São quinze dias em que a sua agenda tem uma página em branco. Branco como o manto de neve que ainda vai cobrindo os picos da Serra Nevada.

Luís Graça
21/12/2012. Revisto, hoje.


PS - Gosto de escrever nos consultórios médicos, nos bancos dos hospitais, nas salas de espera dos centros de saúde, e até nas camas das enfermarias ... Só nunca escrevi a bordo das ambulâncias do 112 nem no bloco operatório... Afinal, ainda são os  sítios do mundo onde  a palavra esperança faz sentido ou mais sentido...  

Em prosa ou verso, tanto faz, que hoje, 21/3/2018,  é Dia Mundial da Poesia... Este "conto" foi tirado dos "meus caderninhos", e tinha a data de 12/12/2012... Só alterei para 21 por causa da proximidade do Natal...

terça-feira, 21 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (114): No Dia Mundial da Poesia... Quem não faz 69, não chega aos 100!

1. Os portugueses (e as portuguesas) não gostam de fazer 69...Dizem: "Ah!, faço 68 + 1"... 

Confesso que não sei por que é que eles (e elas), os portugueses (e as portuguesas)  não gostam de fazer 69!... 

Não conheço ninguém que chegue aos 100, sem fazer  69!...

Hoje, 21 de março de 2017, Dia Mundial da Poesia,  lembrei-me de um soneto que fiz ainda há umas semanas atrás, em homenagem  a um amigo, camarada e parente que fazia justamente 69,.,. Não o vou identificar, por razões óbvias, não sendo ele nosso grã-tabanqueiro, nem me tendo dado autorização para isso. Mas faço questão, até como apreço e homenagem a todos os que fazem 69, este mês, de reproduzir aqui  o "manuscrito" que lhe fiz e li, em voz alta, num almoço de uma tertúlia a que ele pertence (e eu também, por afinidade...), e onde nos juntámos para comer um delicioso arroz de lampreia,

O soneto era antecedido por uma extensa dedicatória:(que o leitor do blogue pode passar por cima).


Parabéns, Rogério, quem não faz 69, não chega aos… 100!

Um soneto natalício,
uma brincadeira poética,
uma singela homenagem a ti,
que és a ave canora
da tertúlia dos caminheiros
da Quinta das Conchas…
Tu não  quiseste dizer nada a ninguém,
mas no sábado fizeste 69…

Este é o pretexto para a gente te cantar os parabéns,
com amor e humor…
Além do mais,
tu és meu primo, conterrâneo, amigo e camarada…
É também,
juntamente com outros caminheiros e amigos oeste-estremenhos,
membro da nossa tertúlia da Praia da Areia Branca.

Contigo partilha um bom pedaço do ADN dos Maçaricos,
incluindo uns comuns tetravôs,
nados e criados em Ribamar da Lourinhã,
e que conheceram o terror das invasões napoleónicas, em 1807…

Sabemos que fá foste quase tudo na vida,
filho de pescador e de poeta,
tu próprio pescador na juventude, antes da tropa,
exímio tocador e competente professor de viola,
baladeiro,
cantautor

Tens o mar no teu ADN,
és um lídimo representante da tribo dos Maçaricos
de Ribamar da Lourinhã,
gente que andou desde Quinhentos
a abrir a autoestrada da globalização
sem cobrar portagem…

Como Pedro,  foste escolhido pelo Senhor
para ser seu representante na Terra,
mas não passaste nos testes…
Em contrapartida, foste engenheiro agrónomo,
com diploma passado pelo ISA,
competências que puseste ao serviço da banca nacionalizada, nossa…
Foste banqueiro do povo
sem nunca teres posto a mão na massa (leia-se: no cofre),
razão por que,  no fim da carreira,
nunca poderias ter apanhado a comenda
da república de Belém.
Não és comendador,
com muito orgulho,
mas és casado com a Leonor.
com muitas bênçãos de amor…
Dizem que te enamoraste dela
quando ela, ainda adolelescente, ia para a fonte dos amores,
descalça, formosa,  mas pouco segura,
com o cântaro à cabeça….
Não consta que tu, nosso trovador ,
tal como o Camões,
tenhas sido acusado de pedofilia…
Para já tens a sorte,
quando chegares aos 100 anos,
de ter uma babá, só para ti,
a teu lado…

Foste soldado contra a tua própria guerra,
fizeste a guerra em Angola,
e no peito ostentas com orgulho,
não uma cruz de guerra do 10 de junho,
mas um porrada que te deu um general,
por, sendo tu oficial miliciano,
estares a acamaradar com o Zé Soldado…

Parabéns, Rogério,
por teres chegado até aqui,
ao km 69
da tua autoestrada da vida!
Obrigados, dizemos todos nós,
por seres nosso caminheiro,
por caminhares ao nosso lado,
obrigados pelo privilégio da tua companhia e amizade
e pelos momentos de canto e encanto
que já nos proporcionaste,
e vais por certo continuar a proporcionar…

E eu acrescento:
“Força, parente,
que até aos 100
é sempre em frente!”...

Ontem como hoje,
cuidado apenas com as minas e armadilhas,
não só as dos inimigos mas também as dos amigos…
Como diz o povo,
“Que Deus me proteja dos meus inimigos,
que dos amigos cuido eu”…

E agora vamos lá ao soneto,
que é uma paródia a um dos mais belos e lancinantes poemas da língua portuguesa,
escrito pelo Elmano Sadino,
mais conhecido por Bocage,
e que morreu há 211 anos…
Pelas minhas contas, ele nunca fez 69,
morreu aos 40 anos, em 1805.

Só uma nota de circunstância:
constou-nos que tinhas posto a viola no saco…
Os teus amigos ficaram, naturalmente, alarmados…
Vejo agora, com regozijo,
que a notícia foi um bocado exagerada…


Já Rogério não sou, o baladeiro…

Já Rogério não sou, o baladeiro,
Minha voz emudeceu, aos sessenta
E oito mais um, pró ano setenta,
E até me esqueci que sou… engenheiro!

Confuso, pus no saco a viola,
E, no prego, as minhas partituras;
Mas, pior que nos dedos as tremuras,
São as brancas que me lixam… a tola!

Que raio – grito ! – foi este aniversário,
Que até a vela apaguei à socapa,
Com medo de voltar ao infantário ?!

“Come a papa, Rogério, come a papa”!,
Essa… guardem-na pró meu centenário,
Se não ‘tiver' choné, tirem-me… uma chapa!

Luís Graça

Tertúlia dos caminheiros da Quinta das Conchas,
Almoço de lampreia, "Tasca do João", Lumiae, Lisboa, 21/2/2017
________________

Nota do editor:

Último poste da série >  12 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17128: Manuscrito(s) (Luís Graça) (113): Não há mortes grátis!

terça-feira, 22 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15889: Notas de leitura (821): Micropoemas do livro "Haikus do Japão e do Mundo" (Lisboa, Gradiva, 2016): seleção e oferta do autor, António Graça de Abreu, para os nossos grã-tabanqueiros

Antonio Graça de Abreu, escritor, poeta,
sinólogo, nosso camarada, com a sua esposa;
 foi alf mil, CAOP 1 [Teixeira Pinto, Mansoa 
e Cufar, 1972/74]; é membro sénior  da nossa 
Tabanca  Grande, e ativo colaborador do 
nosso  blogue com mais de 170 referências.
1. Mensagem de Antonio Graça de Abreu

Data: 12 de março de 2016 às 15:35
Assunto: FEMINA
                      
Pela cópula entre homem e mulher, o yin e o yang obtêm o que necessitam, céu e terra conhecem paz e tranquilidade.

Anónimo, Clássico da Paz e Tranquilidade, dinastia Tang (619-907)

Se não trazem amantes para os quartos,
as vidas dos anjos não passam de um sonho.
                                                           
Li Shangyin (813-858)

Grave e leda no gesto, e tão fermosa
Que se amansava o mar de maravilha.

 Camões, Os Lusíadas, Canto VI, 21




Meus caros camaradas da Guiné:

Quando abríamos a vida em pleno para uma vida sexual activa e esfuziantemente bonita (tínhamos 21/23 anos),e em nós crepitava o fogo natural que os deuses nos concederam
para amar e entrar no feminino,
evanescente e mágico,
enviaram-nos para uma guerra, que não era nossa.

Vivemos durante dois anos, no calor e na metralha dos dias,
com a ausência da mulher amada,
a quase castração de amar,
o refugo do sexo.

Regressámos um dia.
E tínhamos, nem todos, à nossa espera a mulher,
companheira, tolerante e amiga,
que, pós Guiné, nos foi acompanhando,
ao longo de décadas e décadas de sinuosa vida,
que envelheceu connosco
e que, eleitos, entre os nossos combatentes e camaradas da Guiné,
continua a ser a almofada segura a que nos encostamos,
o corpo a que nos abraçamos,
ainda no desvairo final dos dias,
a mulher que nos sabe amar.
Essa será a companheira de sempre.
Em breve, partiremos para o aconchego dos deuses,
para o canto do Céu,  do vazio e do nada.
Com a certeza de termos amado,
de termos sido amados.
Ou então, de termos delapidado o amor na carícia sublime e falsa
em corpos de jade,
de mármore,
de carne serena ou exaltante,
perfumada, acariciante e breve.
Em corpos que jamais foram nossos,
e eram e são também os nossos corpos.
Muitas mulheres entraram, e saíram,
e voltaram a entrar nas nossas vidas.

Ex-combatente da Guiné, peço ao Luís Graça
que publique estes meus mini-poemas,
com imagens, sensibilidades, encantamentos,
sobre o erotismo suave, a lascividade perfumada.
Os poemas já têm seis anos de idade, mas são eternos.
E tenho para o meu novo livro, ainda este mês, com a Ed. Gradiva,
mais 200 poemas sobre as meninas/mulheres,
eternas companheiras,
a mais fantástica criação inteligente de Deus,
as figurações e fadas que povoam as nossas vidas.
Se valer a pena, dar-vos-ei notícias.

Abraço,
António Graça de Abreu


2. Comentário do editor:

Concordámos em não publicar o "power point" na medida em que o António não tinha a certeza sobre a autoria dos créditos fotográficos... As imagens foram recolhidas na Net por uma amiga. Não podem ser publicadas no nosso blogue, por causa da proteção da propriedade intelectual e do consequente risco de violação dos termos de utilização deste espaço que o Google nos concede.

A vida é feita de compromissos e de respeito pelos direitos dos outros...Os poemas e as fotos são belíssimos, os poemas são do António mas as fotos não. Em contrapartida o nosso camarada arranjou-nos uma alternativa... Os nossos leitores não ficam defraudados.  Obrigados pela compreensão de todos, e pela generosidade do autor. Os editores.

3. Mensagem de hojem do Antonio Graça de Abreu, com data de hoje

 Meu caro Luís:

Obrigado pelo teu cuidado. As imagens são de facto da Net, não sei de onde. Não fui eu que fiz o "power point", mas uma amiga. Por isso será melhor não colocar imagens, não vá o Google implicar.

Mas mando-te mais minipoemas da lascividade perfumada, cheios de erotismo suave.

Sem imagens, encaixam na bloguepoesia e já lá dizia o Camões, no canto IX de Os Lusíadas:

"Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
mas julgue-o quem não pode experimentá-lo."




Capa do livro. Cortesia da Gradiva  (vd. aqui página doFacebook):

"Recorrendo a uma forma poética de origem japonesa (haiku),
onde se valoriza a objectividade,
o autor apresenta um conjunto de poemas
que levam o leitor a viajar por locais distintos,
no Oriente e no Ocidente".


4. Figurações e fadas

E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.

Luís de Camões

“Não escrevas poemas de amor, são os mais difíceis.”

Rainer Maria Rilke (1875-1926)


267

Vim para ouvir
as palavras sagradas do monge budista,
mas penso na mulher de seda e rosmaninho.
Meu ser desliza na brisa
ao encontro da voluptuosidade faiscante
dos braços da minha amante.

278

Encontrar bom porto
nas mil enseadas
do teu corpo.

293

Chegamos à casa da aldeia.
Sob a cama, o criquilar de um grilo
saúda os amantes.

294

Mostrar-me-ás os caminhos do Tao,
yin e yang tatuados no teu ombro.
Depois, enlaçados, avançaremos para a noite.

295

Que sede!
O meu balde de prata
desce célere para o teu poço de jade.

296

As minhas mãos nos teus seios,
montículos de seda cor de rosa,
tépidos flocos de neve.

297

Perfeitíssimos
os teus seios.
E duas framboesas.

298

A seda dos teus seios
no molde dos meus dedos.
Hoje não vou lavar as mãos.

299

Entro no teu jardim.
Aberta para mim,
uma flor de marfim.

300

A tua roupa
esconde música celestial.
Dispo-te.

333

No duplo jade do teu corpo,
teus seios de fruta e avelã.
Meus lábios em viagem.

334

Para eu viajar em ti
entreabres a flor
adormecida no teu ventre.

335

Acaricio
o teu monte de jade,
fresco como musgo verdejante.

301

Beijos, carícias rendadas
dos meus lábios,
música sumptuosa no teu corpo.

302

Nua. Com os lábios teço,
na perfeição do teu corpo,
um vestido de ternura.

303

Partir-te ao meio,
embrulhando cada metade em mim.
Comer-te.

304

É sexo, é amor,
é poesia.
Todo o teu corpo é magia.

307

Que perfeição!
Limpa e pura, 
a água do teu banho.

308

Crisântemos na água do teu banho.
A tua nudez limpa
e perfumada.

310

Uma flor na névoa.
O teu pequeno pavilhão de cereja
abre-se para mim, como um livro.

311

Sou um hífen à solta
pousado
no mel do teu ventre.

312

Adormeces
no canto
silencioso dos meus braços.

325

Vasco Graça Moura fala
de “perfumes da penumbra da mulher.”
Quem sou eu para desejar
fragrâncias de um corpo jovem
para o grito dos dias 
e os silêncios da lua?

355

Meu desatino,
empilhar na volúpia da memória
os meus amores de outrora.

356

Sempre a mulher inexistente.
Beijo o vazio,
até sangrar a polpa dos meus lábios.





Poemas do meu novo livro Haikus do Japão e do Mundo, Lisboa, Gradiva Ed., 2016 [, coleção Cantares de Amigo, preço de capa , c. 15 €], saído da tipografia há três dias.

Com um abraço do António Graça de Abreu.

______________

Nota do editor:

domingo, 23 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12886: Memórias de um Lacrau (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70) (Parte X): Quando a corte dos Lacraus chegou a Canquelifá...



Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > O Valdemar Queiroz, a fumar, com o filho de um soldado da companhia
 


Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova  Lamego > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > O Valdemar Queiroz,  de sargento de dia (1)



Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova lamego > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > O Valdemar Queiroz,  de sargento de dia (2).. [Meados de 1969, tempo das chuvas. LG]

Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição. L.G.]



1. Mensagem, de hoje, 1h50, do Valdemar Queiroz:

Boa noite, Luís Graça;

Chego atrasado, no Dia Mundial da Poesia... E tenho pena de não saber de cor o poema "D. João VI e a mulat", completo...

Quando a corte de D. João VI
Chegou a Paquetá,
Tudo servia de pretexto
P’ra censurar, p’ra criticar
Certa mulata que havia lá!...


Quem sabe esta pérola completa, que mete perninhas de frango nos bolsos de D. João VI, é o ex-fur mil Aurélio Duarte, da nossa CART 11, que é de Coimbra, e que, depois de uns estrondosos, eferreás, declamava esta poesia em que o D. João VI respondia aos inimigos da mulata nestes termos:

Já lhes disse que aqui em Paquetá
Eu sigo a lei da corte de Lisboa
E não me digam que a mulata é má
Porque eu decreto que a mulata é boa...


Hoje faz 44 anos que estvémos juntos em Canquelifá!...

Tivemos um desentendimento a jogar matraquilhso na rua.principal, num fim de tarde. Já bem bebidos, resolvemos jogar matraquilhos, mas de cócoras, sem ver o recinto de jogo  (Ganda bezana!)... As bolas entravam de um lado e do outro e o Aurélio perdeu.

Ele não gostou e embrulhámos os dois à tareia, sozinhos, sem ninguém para nos separar. O Duarte com o seu metro e oitenta e  e eu com o meu metro e sessenta e sete... . Eu, com mais agilidade, deixei-me cair e o Duarte foi projetado, estatelando-se. Partiu um braço e, assim, andou, num grande sofrimento uns meses.

Ainda hoje ele me diz. "Ò Queiroz, aquele teu golpe de judo em Canquelifá!"...

Um abraço, Queiroz.


Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Canquelifá > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > Bajudas <


Foto. : © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição. L.G.]

2. Comentário de L.G.:

Em tua homenagem e ao teu amigo e camarada Aurélio Duarte, e aos demais Lacraus,  recordando os bons velhos tempos de Paquetá, quero eu dizer, Canquelifá, ai vai a letra completa, recuperada da Net... Um alfabravo. Luis
____________________

“D. João VI e a mulata”

Música; Armando Rodrigues
Letra: R Calado
Disponível no You Tube
Cortesia de Manuel Casimiro de Lopes Lopes

Canto de Villaret da Côrte de D. João VI e a Mulata de Paquetá,
gravado no Teatro Boa Vista,
em Lisboa no ano de 1954.

Quando a corte de D. João VI
Chegou a Paquetá,
Tudo servia de pretexto
P’ra censurar, p’ra criticar
Certa mulata que havia lá.

Diziam que ela era um perigo,
Que ela era uma tentação,
E que um marquês de nome antigo
Desdenhava o rei, não cumpria a lei,
P’ra ser só dela o cortesão.

Mas, quando alguém o censurasse,
Pedindo ao rei que a exilasse
Pelo mal que fazia,
D. João VI trincava uma coxinha,
De frango ou de galinha,
E sempre respondia:
–  Já lhes disse que, aqui em Paquetá,
Eu sigo a lei da corte de Lisboa
E não me digam que a mulata é má,
Porque eu decreto que a mulata é boa.

Certa noite muito escura,
A moça se assustou,
Vendo surgir uma figura,
Gorda, a ofegar,
Que, sem falar,
Nos gordos braços logo a apertou,
Ela sentiu-se muito aflita,
Como a dizer que não,
Até na treva era bonita,
E lá fez de conta, que ficava tonta,
Sem saber que era o seu D. João.

Mas,  quando alguém o censurasse,
Pedindo ao rei que a exilasse
Pelo mal que fazia,
D. João VI trincava uma coxinha,
De frango ou de galinha,
E sempre respondia:
Já lhes disse que aqui em Paquetá
Eu sigo a lei da corte de Lisboa, 
E não me digam que a mulata é má
Porque eu já sei como a mulata é boa.

[Letra disponível aqui... Por Linhas  Tortas > 17 de março de 2008 > D. João VI...Reproduzida com a  a devida vénia] [Revisão / fixação de texto: LG]

___________

sábado, 22 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12883: Blogpoesia (385): O Dia Mundial da Poesia, 21 de Março de 2014, na nossa Tabanca Grande (XVI): Écloga em tempo de guerra, de David Mourão Ferreira, com anotações de Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974)

1. Mensagem, com data de ontem, do nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974):

Caro amigo e camarada Luís Graça

Não sendo poeta mas gostando de poesia, não posso deixar de responder positivamente ao desafio que nos lanças.

Assim, valendo-me de um dos livros de poesia, dos que me acompanharam durante a minha comissão na Guiné e nos quais procurava afogar as minhas mágoas, escolhi um poema para partilhar com a Tertúlia, se assim o entenderes, que lia com frequência, como desabafo, protesto e consolo, chegando ao ponto de modificar algumas palavras para melhor se enquadrarem com a flora local e melhor o sentir.


O livro é: "A Arte de Amar, 1948/1962",  de David Mourão Ferreira. Lisboa Editoral Verbo 1973, 271 pp. O poema é: Écloga em Tempo de Guerra , que ele dedicou a Jos]e Regio

As palavras entre parenteses [, retos, em itálico], junto a outras similares dos versos, eram as que trocava, não alteravam o sentido nem a rima do poema e assentavam melhor na minha situação.

Em anexo envio o poema, com essas adulterações. Faz dele o que julgares melhor.

Um abraço

JLFernandes


2.  ÉCLOGA EM TEMPO DE GUERRA,

de David Mourão Ferrerira

A José Régio


Só grilos desafinados
povoam a solidão.
Pastor de almas de soldados,
sigo nos campos lavrados,
sem ouvir o coração.
Se o ouvisse, que ouviria?
Alegria?
Certo, não.

Sem palavras e sem gestos,
pisando estevas e trigo [capim],
nestes caminhos funestos
alimento-me dos restos
do passado que persigo [há em mim].
(E nem sequer receamos,
entre os ramos,
o inimigo.)

Sob céus de Primavera,
por entre olivais [palmeirais] de prata,
seguimos... e quem nos dera
que a nossa febre esquecera
quem de nós nos arrebata!
Não são ’stranhos que tememos.
Bem sabemos
quem nos mata.

Que destino tão errado,
o que haviam de me impor!
Pastor a soldo forçado
de um gado que não é gado,
nem precisa de pastor!
E vamos!, vidas marcadas
p’las espadas
do terror.

“Maldito seja quem faz
profissão da nossa morte!
Quem ordena, lá de trás,
em segurança, na paz
que injustamente o conforte!”
(Mudos embora, este grito
fica dito
desta sorte.)

E vamos, como ciganos,
mas sem nenhuma aventura.
Seguem, atrás, os garranos,
pacientes, quase humanos,
a moer a terra dura.
– E segredam-nos os ventos
que estes tempos
são loucura.

À sombra de um castanheiro [mangueiro],
eis que paramos, cansados,
para instalar um morteiro
que faça fogo certeiro
sobre outros, sobre outros gados
– inocentes como o nosso,
mas que um fosso
fez danados!

Nenhuma ordem nos chega.
Ainda bem! Inda bem!
– E, cegos, na noite cega,
cada corpo é uma entrega
à calma que lhe convém.
Até o vento, mais brando,
vem sonhando
com alguém...

... E sonha então cada qual
com as pastoras distantes...
Uma zagala, um zagal...
No recanto de um pinhal [palmeiral],
promessas exuberantes...
(Anda sempre a mesma história
na memória
dos amantes!)

Se o dia há-de ser de luta,
que a noite não tenha fim!
Ao menos, quem quer desfruta
a placidez impoluta
de um primitivo jardim.
E se mais nos não concedem,
se é esse o preço que pedem,
seja assim!

David Mourão Ferreira / [Adapt. de Joaquim Luís Fernandes]

3. Comentário de L.G.:

Joaquim, a fechar esta longa maratona em que quisemos, à nossa maneira, celebrar o Dia Mundial da Poesia (*), que foi ontem, 21, deixa-me discorrer sobre este estranho fenómeno: dizem que Portugal é um país de poetas, mas não de leitores de poesia... É provável que se publiquem mais do que um livro de poesia por dia, sendo muitas as edições de autor. Estamos a falar de 3% de todos os títulos em língua portuguesa que, em 2012, atingido um total de 9473 (dos quais 73% são originais e os restantes 27% são traduções (Fonte: Pordata - Base de Dados Portugal Contemporâneo). 

Estamos a falar de monografias, ficam de fora desta estatística as publicações periódicas...Mais de 5% do total de originais (N=6892) devem ser livros de poesia...

No entanto, quando falamos de poetas e de poesia, é preciso mostrar alguma cautela com a palavras (i) "poeta" é o que escreve poesia, mas também o "idealista", o "sonhador", o que "é dado a devaneios",  o "o que anda sempre nas núvens", o até o "pateta"... A palavra tem, às vezes, em certas bocas, conotações pejorativas.. Por exemplo, diz o povo: "De poeta, médico  e louco, todos nós  temos um pouco"...E da poesia diz que é "a música da alma",,,

Quem, de nós, na adolescência e na juventude, não escreveu pelo menos uma quadra, uns versos, uns poemas com ou sem rima, à sua amada ? E na Guiné, nas horas de solidão e lassidão, nos diários, nas cartas e nos aerogramas, escreveram-se versos...  Não importa a qualidade literária, são documentos de uma época e de uma geração... Muitos ter-se-ão perdido... Outros foram destruídos.. Outros ainda estarão esquecidos algures, numa gaveta, mala ou baú...

Joaquim, fechas com chave de ouro esta nossa iniciativa, que mobilizou cerca de duas dezenas de autores, incluindo 3 amigas nossas, a Regina Gouveia, a Joana Graça e a Filiomena Sampaio. E, contrariamente, à ideia feita de que a poesia não se lê, o nosso blogue teve, ontem,  6ª sexta-feira, o melhor desempenho da semana, com um nº de visitas superior a 2600. Bem hajam a todos e todas!

Já agora, que fostes desencantar  (e adaptar)  o conhecido poema de David Mourão Ferreira (1927-1996), "Écogla em tempo de guerra", deixa-me, Joaquim, dar aos nossos leitores só uma pequena dica, para melhor interpretação dos versos do  poeta...

Este poema tornou-se conhecido quando, em 1971, foi musicado, em França, por Luís Cília, Mas o David Mourão Ferreira tê-lo-á escrito muito antes, na altura em que cumpria o serviço militar, e por sinal em Portalegre, onde foi reencontrar (e fez amizade  com) o grande poeta e esritor José Régio (1901-1969), natural de Vila de Conde. (Régio viveu praticamente toda a sua vida naquela cidade do Alto Alentejo, onde foi professor de liceu, e onde tem um museu, que é visita obrigatória, a Casa-Museu José Régio).

Este poema deve datar de 1952 quando o poeta foi aspirante, miliciano, em Portalegre, no BCA nº 1, presumo, e onde deve ter dado instrução a recrutas:

"(...) Pastor de almas de soldados, / sigo nos campos lavrados, / sem ouvir o coração. / Se o ouvisse, que ouviria? / Alegria? Certo, não.( (...) Que destino tão errado,/ o que haviam de me impor! Pastor a soldo forçado / de um gado que não é gado, / nem precisa de pastor! / E vamos!, vidas marcadas /p’las espadas do terror." (...) "E vamos, como ciganos,mas sem nenhuma aventura. / Seguem, atrás, os garranos, /pacientes, quase humanos,/ a moer a terra dura." (...).

Essses tempos já longínquos de 1952 foram evocados por David Mourão Ferreira no número especial de "A Cidade – Revista Cultural de Portalegre" (4/5, nova série, 1990), "integralmente dedicado aos 20 anos da morte do poeta José Régio e do pintor D’Assumpção, duas personalidades marcantes das letras e das artes ligadas à capital do Norte Alentejano" (, cito a págína Largo dos Correios, de António Martinó de Azevedo Coutinho, uma personalidade marcante da vida cultural e social de Portalegre, onde nasceu em 1935).

 (...) "Disso mesmo [da complexa personalidade de José Régio]  tive sobejas provas ao longo dos cinco meses - de Março a Agosto de 1952 - em que diariamente privei com ele aqui em Portalegre, para onde me tinham arrastado, como aspirante-miliciano [, de cavalaria, a deduzir pelas botas do futuro escritor, professor universitário e figura mediática, com o seu inseparável cachimbo, na foto à esquerda, cortesia do sítio Largos Correios...], as irrevogáveis obrigações do meu serviço militar. 

"Daí data efectivamente o auge do nosso convívio. Já por mais de uma vez aludi a essa experiência e, muito em particular, numa longa entrevista que me foi feita, em Abril de 1982, pela excelente revista A Cidade, que nesta cidade se publica. Não desejo pois repetir-me. Mas não posso deixar de rapidamente reevocar aqui o que tais cinco meses para mim significaram na companhia quotidiana de José Régio e do pequeno mas extraordinário grupo de seguros e provados amigos com que nessa altura ele aqui contava: Feliciano Falcão, Arsénio da Ressureição, Lauro Corado, Firmino Crespo, João Tavares, Adelino Santos. Rara a tarde ou a noite em que pelo menos com alguns deles nos não reuníssemos no Café Central. Mais raro ainda o fim de tarde que eu não passasse com Régio no seu pequeno gabinete de trabalho desta ‘casa velha’ -’velha, grande, tosca e bela’- em que decorreram muito para cima de trinta anos da sua existência.

"E dávamos grandes passeios aos domingos… Ora a pé, pelo interior da cidade e pelos seus mais próximos arredores, ora no automóvel de Senhor Adelino Santos, que desempenhava, na ocasião, as funções de secretário-geral do Governo Civil. E eram então improvisadas excursões até Marvão, Castelo de Vide, os Olhos de Água…” [cit por Largo dos Correios > 17 de março de 2013 > David e José II].

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 22 de março de  2014 >ãManuel Sampaio / Artur Conceição / Rui Vieira Coelho