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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25440: Historiografia da presença portuguesa em África (420): Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Desconhecia inteiramente a existência de Bissau como capital do distrito da Guiné em 1835. Rebusquei em autores da época, como Lopes de Lima, em historiadores como Veríssimo Serrão, nenhuma referência a Bissau capital, ainda por cima no ano seguinte ao fim da guerra civil. Mas os factos documentais comprovam a nomeação. Bastou-me ler a indispensável Memória de Honório Pereira Barreto que diz verdades com punhos, que fala de um governador que não governa, de uma capital reduzida a uma fortaleza sem o mínimo de condições e a um quadro administrativo caótico, e tudo o mais que se recolhe neste artigo, acrescendo que Cacheu não se conformou com a criação da capital em Bissau e viveu-se no enigmático território guineense com dois distritos, o de Bissau e o de Cacheu durante cerca de 10 anos. Esta é a verdade dos factos, tenho que agradecer a Philip Havik a iluminação que trouxe para esta questão que era dada como inexistente.

Um abraço do
Mário



Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941

Mário Beja Santos

Até recentemente, dava como certo e seguro de que a Guiné portuguesa jamais tivera capital até ser desafetada de Cabo Verde, o que ocorreu em 1879. Ao longo dessa década resolvera-se a questão de Bolama, houvera o dramático desastre de Bolor, Lisboa tomou a decisão de dar autonomia a um território que não possuía fronteiras precisas, a Carta Constitucional não referia a Guiné, mas mencionava Cacheu e Bissau, porque havia o sobe e desce de Praças, Presídios e Feitorias. Num livro respeitante aos cadernos de campo do professor Orlando Ribeiro, um dos coordenadores, um investigador com créditos firmados, Philip J. Havik, assumiu que Bissau obtivera o estatuto de capital em 1835. Escrevi para o blogue um artigo “Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941?”, vasculhei em obras da época qualquer referência à capital, nada encontrei até que se me deparou um despacho do Visconde Sá da Bandeira datado de 29 de abril de 1858 referindo Bissau como a capital da Guiné portuguesa e residência do respetivo governador, erguendo a povoação à categoria de vila com a denominação de vila de Bissau.

Estava armada a confusão, e na altura desafiei um conjunto de investigadores a pronunciarem-se sobre a questão. Philip Havik respondeu, e do modo seguinte:
“As reformas feitas na sequência da revolução liberal em Portugal foram decididas de aplicar a reorganização administrativa por decreto de 16 de maio de 1832 à Guiné em 1834, criando uma Prefeitura de Cabo Verde e a Guiné. Por conseguinte, o distrito da Guiné transformou-se numa comarca, ainda dependente de Cabo Verde, com a sua sede em Bissau, governado por um Subprefeito. Isto foi feito através do decreto de 30 de agosto de 1835. Bissau serviu como capital da Guiné até que se tornou uma província independente com um governo autónomo em 1879, com capital em Bolama através da lei de 18 de março de 1879.”

E o investigador recomendava referências na obra de João Barreto, A História da Guiné (1418-1918), Lisboa, 1938, e no artigo de Arnaldo Brasão, A Vida Administrativa da Colónia da Guiné, publicado no Boletim Cultural da Guiné portuguesa, volume II, n.º 7, 1947. Não posso esconder a minha surpresa, eu tinha lido a importante obra de Lopes de Lima, de 1844, e não se mencionava qualquer capital em Bissau. Um artigo publicado por Teixeira da Mota e Fausto Duarte sobre as efemérides da Guiné portuguesa referia a criação da comarca da Guiné, dirigida por um Subprefeito, mas nada se mencionava sobre a capital, uma comarca é só reorganização administrativa, vinha na sequência do ambicioso projeto de Mouzinho da Silveira de alterar em profundidade a administração do território, gerando municípios, comarcas e entidades apropriadas da administração, desde a justiça à atividade aduaneira. Lendo a História de Portugal de Veríssimo Serrão, encontrei a referência à criação do lugar do governador da Guiné, com residência em Bissau.

Impunha-se, pois, apurar a densidade e a operacionalidade desta capital de que desconhecia qualquer referência. Procurei um verdadeiro tira-teimas, Honório Pereira Barreto e a sua Memória sobre o estado atual da Senegâmbia portuguesa, causas da sua decadência e meios de a fazer prosperar, Lisboa, 1843. Lendo este importantíssimo texto, constata-se que o território desta Senegâmbia tinha uma dimensão fluida, a presença portuguesa era submetida a uma permanente hostilidade e os recursos escassíssimos, como Barreto logo abre a sua introdução: “Se nesta província houvesse um Boletim de Governo aonde se estampasse os ofícios e relatórios das diversas autoridades, não me veria obrigado a escrever esta Memória, cuja matéria é tão superior a minhas forças; porque então apareceria em público o verdadeiro estado destas Possessões.” É um discurso sempre franco, duro e doloroso: “Vive-se em Senegâmbia portuguesa sem segurança alguma; a todos os momentos seus habitantes são vexados pelo gentio, fere-se e assassina-se impunemente, e em Lisboa lê-se no Diário do Governo que as Possessões Portuguesa, nesta parte, estão em ordem, e vão florescendo.”

E a sua narrativa não esconde a inexistência de poder político, da vida das instituições, enfim, o caos reina por toda a parte: “Desgraçadamente se pode dizer que nestas Possessões há um governador e comandante; mas que não há governo. O país está inteiramente desorganizado. Todos os empregados, desde o primeiro até ao último, ignoram quais são as suas atribuições, e, por consequência, quais são os seus deveres: só tratam de seus negócios, pois são negociantes. Não há lei administrativa (nem outra) que vigore, e por isso é suprida pela vontade dos governadores. A vontade deles faz a lei; o capricho executa; as paixões julgam; os rogos dos Gentios, dos amigos fazem minorar, e perdoar as penas.”

É facto que falando do concelho de Bissau, Barreto dirá que é composto da Praça de Bissau, capital do governo, do presídio de Geba, do ponto de Fá, da ilha de Bolama e do Ilhéu do Rei. E apresenta Bissau deste modo: “É uma Praça situada na ilha deste nome, e construída segundo o sistema de Vauban; mas não foi acabada. Não tem obras algumas exteriores, à exceção dos fossos já quase entulhados, e aonde se planta algodão, milho e índigo. O quarto da tropa está quase a cair, e por isso a maior parte dos soldados moram em palhosas; o indecente quartel dos oficiais aonde chove como na rua; o arruinado armazém do governo; e a pequena e destelhada capela com invocação de S. José, que é o orago da praça. O governador mora no quartel dos oficiais em uns quartos pequenos e ridículos.” Há, pois, uma capital do distrito da Guiné portuguesa, da Guiné não se conhece bem a configuração e a importância da capital é dada pelo governador que anda a comprar parcelas do território de diferentes régulos, e em todas as direções. É vila, por despacho do Visconde Sá da Bandeira, será cidade em 1914 e terá mesmo o seu primeiro plano de urbanização concebido pelo engenheiro Guedes Quinhones; o governador Vellez Caroço dar-lhe-á em 1923 o seu primeiro foral.

Philip Havik refere João Barreto e Arnaldo Brasão. Para mim, continua a ser um mistério a data de 1835. João Barreto refere que em 1851 o Governador-geral de Cabo Verde, Fortunato José Barreiros, tomara a iniciativa de unificar o governo da Guiné fixando a sua sede na vila de Bissau e escreve que a partir de 1852 deixou de existir o governo autónomo de Cacheu, passando a existir um distrito único com sede em Bissau. Alegou o governador ter tomado esta resolução para dar unidade à ação governativa. Era nomeado interinamente governador da costa da Guiné (já ouvimos falar de Possessões, de Senegâmbia e de Guiné portuguesa…) o Tenente-Coronel Alois Dziezaski com algumas competências do governador-geral. Bissau é capital do Distrito da Guiné portuguesa.

Arnaldo Brasão, no seu artigo, chama a atenção para a Guiné constituída como uma unidade administrativa, em 1834, com atribuições conferidas por legislação de 1835, referindo igualmente o papel do governador, a quem ficavam sujeitos todos os serviços públicos. “Os governos inferiores, presídios, estabelecimentos marítimos ou do interior, formavam governos subalternos que se regulavam pelo que estava determinado para o governo das praças do reino.”

As lutas entre absolutistas e liberais refletiram-se nas colónias, e adianta Arnaldo Brasão: “Cacheu, que fora o primeiro núcleo de colonização e de povoamento não poderia conformar-se com uma situação de subalternidade em relação a Bissau, que passar a ser a capital desde 1835, e por isso solicitou a sua separação que o governo cartista se apressou a satisfazer em março de 1842, passando desde então o território guineense a ser constituído por dois distritos, mas subordinados ainda ao governo de Cabo-Verde. Esta situação durou perto de 10 anos, porque em setembro de 1851 procede-se à unificação administrativa, sendo escolhido novamente Bissau para sede do governo.”

Considero totalmente corretas as observações expendidas pelo investigador Philip J. Havik, em 1835 Bissau tornou-se a capital de distrito de um território com dimensões indefinidas e dentro de um quadro que um lídimo protagonista da época, Honório Pereira Barreto, mostrou que se tratava de uma capital de ficção. Um governador sem governo, uma capital reduzida a uma fortaleza sem o mínimo de comodidades e cercada por populações hostis.

Dou como esclarecida a existência de uma capital de ficção, numa província de ficção, que passou a uma realidade depois do sobressalto de Bolama e com contornes definidos depois de a França nos ter subtraído o Casamansa, as fronteiras ficaram parcialmente definidas em 12 de maio de 1886, o governador da Guiné terá a sua capital em Bolama.


Monumento a Honório Pereira Barreto, em Bissau, em tempos coloniais
O que resta da Bolama dos tempos áureos
Um pormenor da fortaleza de S. José da Amura na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25401: Historiografia da presença portuguesa em África (419): Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941? O estado da questão (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25194: Historiografia da presença portuguesa em África (410): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
O Tenente Costa Oliveira estava muito longe de ser um ilustre desconhecido na Guiné. Antes de ser nomeado comissário para a demarcação das fronteiras, o que ocorreu em 1888, acompanhara as obras do presídio de Bolor e, como se verá num texto posterior, trabalhou a cartografia da Guiné, dedicou mesmo um artigo sobre a matéria ao seu amigo Luciano Cordeiro. O que ele descreve em jeito de considerações finais e conclusão, e que dita o final do seu trabalho, que aqui se resumiu, tem muita matéria para reflexão, fica-nos mesmo a impressão de que se estava a candidatar a governador: pronuncia-se sobre os efetivos militares indispensáveis para manter os indígenas a respeito, propõe mesmo embarcações à prova de bala, é a favor da mudança da capital para Bissau, sugere concretamente nomes de locais a ocupar, antevê a prosperidade económica da colónia na cultura do amendoim. E nas conclusões emite mesmo um juízo drástico: a Guiné ou é rica ou não é, ou se aposta no seu florescimento ou ela continuará a ser um sorvedouro de dinheiros e um matadouro de funcionários - neste caso o melhor é ofertá-la à França, é potência próspera, está ali mesmo à volta, será perda indolor. Para que conste, também assim se pensava em 1888

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhe um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, Comissário do Governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. 

Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa. Depois de curta estadia em Bolama, seguiu para o Casamansa. No final do seu importantíssimo documento vai tecer considerações e elaborar uma conclusão que nos deve merecer a melhor atenção.

As suas observações decorrem do facto de ser um conhecedor da realidade guineense, anteriormente a esta missão da demarcação de fronteiras já estivera na Guiné. Agora as suas considerações são tanto de caráter político-militar como deixa explicitamente recados ao modelo de desenvolvimento do território que muda em Portugal a imagem da colónia. Em termos militares dirá coisas como esta:

“Geba, Farim e Cacheu são Praças de guerra só no nome, pois com as suas muralhas rotas, peças de ferro em deplorável estado e apeadas, guarnecidas por meia dúzia de soldados indisciplinados e mal-armados, estão completamente à mercê do gentio, admirando-nos até como o nosso prestígio, e não outra coisa, tem contido em respeito as tribos próximas.”

Reportando-se à natureza das embarcações indispensáveis para a navegabilidade dos rios, escreve:

“Permitam-me agora descrever rapidamente as lanchas que conviriam ao serviço da Guiné, devem satisfazer as seguintes condições:

 1) Demandar desde 30 até 50 centímetros de águas; 
2) Terem fundos chatos por causa dos encalhes; 
3) Poderem conduzir até 50 praças com o respetivo armamento, etc.; 
4) Terem velocidades superiores a 8 milhas por hora; 
5) Terem duas máquinas independentes e separadas por uma divisória longitudinal, acionando duas rodas na popa; 
6) Um aparelho de luz elétrica; 
7) Costado de aço impenetrável às balas de qualquer espingarda, com tombadilho e castelo, e o intervalo entre estes protegidos também por chapas de aço; 
8) Guarita couraçada para abrigo do comandante e homem do leme; 
9) Armamento – metralhadores e peças de tiro rápido; 
10) Finalmente, que possam queimar indiferentemente lenha ou carvão.”

Nas considerações gerais, dá prioridade à escolha da capital da província, é contrário à opinião que a capital esteja no rio Grande de Bolola, é a favor de Bissau, e explica porquê:

“Está situada no ponto mais central da província e na embocadura do rio Geba, de cujas margens e dos sertões por onde corre se deve esperar toda a prosperidade da colónia; tem um porto excelente e de fácil acesso para navios de grandes dimensões e tonelagens, com um ilhéu fronteiro, o ilhéu do Rei, de salubridade incontestável e cuja situação eminentemente favorável deve ser aproveitada para se construir ali o sanitarium, enfermaria militar, aquartelamentos, etc.; com outro ilhéu próximo, o de Bandim, onde se deve instalar o lazareto.” 

E propõe mesmo medidas para modificar as condições climatéricas de Bissau, desde arrasar o muro que cerca a vila até proibirem-se os correios e chiqueiros dentro dela, havendo de fazer o plano da nova cidade, ele não deixa de fazer sugestões sobre praças ajardinadas e como deve ser a residência do governador.

Há alguns aspetos curiosos das suas sugestões, por exemplo:

“Em Cacheu ou Buba fabricava-se tijolo e telha. Julgamos indispensável fazer renascer essa indústria para acudir às necessidades da província. Todos sabem que nos plainos da Guiné não há pedra; mas a Holanda também a não tem, e o tijolo é quem a substitui até nos passeios laterais de algumas ruas de cidades formosas e importantes. Também se nos afigura convenientíssimo montar em Cacheu uma serração de madeiras. 

Assim que a nova Bissau estiver nas condições de receber o chefe de província e de mais funcionários, a sede do governo será transferida de Bolama, ficando ali só a ala esquerda do batalhão, e delegações da Alfândega, Capitania dos Portos e Correio. Haverá que proceder a ocupações: ocupar S. Belchior e mandar pôr o forte em condições de poder resistir a qualquer ataque pelo gentio, depois tomar posse de Sambel-Nhantá e cuidar de Geba, bem como ocupar um bom número de povoações no Corubal".

Mas o Tenente da Armada Real não se fica por aqui. Tem opiniões próprias sobre as alfândegas, a Capitania dos Portos, as missões, as cadeias, os hospitais e enfermarias, o dispositivo militar. Não se compadece com a míngua do que existe na agricultura, indústria e comércio, é a favor de todo o apoio à cultura da mancarra, mas também da purgueira, cana do açúcar, tabaco e algodão. Recorda que no anexo do seu relatório vem o traçado completo da delimitação do território tal como foi definido pela convenção luso-francesa. Recorda a quem o lê que se impõe atuar em continuidade para que haja paz no território, e escreve:

“Para tranquilidade da Guiné, e para se poder desenvolver agrícola e comercialmente, deve o chefe da província obstar por todos os meios ao seu alcance, incluindo os da força, às guerras entre as tribos que povoam o território chamado português. Desde que se delimitaram as fronteiras da província, as suas condições políticas mudaram consideravelmente; por exemplo, outrora não convinha por forma alguma intrometermo-nos na política gentílica, atualmente é uma necessidade. Os Fulas ocupam há muito terrenos pertencentes aos Biafadas; o bom senso aconselha que se convide Mamadu Paté, atual chefe do Forreá, a abandoná-los, e como esta ocupação não se poderá fazer sem Mudi-Yaiá pugnar os seus imaginários direitos sobre aquele território, será conveniente ouvir a França que também deve desejar fazer iguais arranjos.” 

O tenente da Armada Real tem uma tese muito própria sobre a independência do Forreá, era a favor da independência do Forreá português e francês, havia também que delimitar os territórios dos Biafadas e Nalus, auxiliando aqueles que se mantivessem sossegados e fiéis à nossa bandeira, castigando os conflituosos, demitindo o prendendo os chefes, e nomeando outros à nossa escolha.

E chegamos assim às conclusões: 

"pretendemos demonstrar que a Guiné portuguesa, apesar de tudo quanto dela se diz, é uma colónia de futuro comercial brilhante, se cuidarmos da sua organização interna. O nosso país é pobre, bem sei e não pode nem deve arriscar capitais imprudentemente; todavia, deste dilema ninguém poderá sair – ou a Guiné é rica ou não é. Se é rica e pode ter ainda um futuro brilhante, dê-se-lhe o que for preciso para a fazer desenvolver, prosperar. Se não é rica e o défice cresce anualmente em progressão assustadora, e é um sorvedouro dos dinheiros da metrópole e um matadouro de funcionários, ceda-se à França".

Em suma, não se pode dizer que este documento escrito por quem foi não tem algo de profético e ressuma uma mentalidade muito própria do seu tempo, um olha imperial onde não falta o empirismo, o conhecimento científico e um inequívoco fervor, apostando no futuro da Guiné. Resta esclarecer o leitor que voltaremos a Costa Oliveira e a um outro importante documento, a cartografia da Guiné.
Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecidoAtual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia.

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Nota do editor

Último post da série de 14 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25172: Historiografia da presença portuguesa em África (409): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (6) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24793: Historiografia da presença portuguesa em África (391): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Março de 2023:

Queridos amigos,
É com desgosto que acaba esta leitura de uma publicação que não suspeitava existir há 1 mês. O arco cronológico tem imensa curiosidade, corresponde a um período de grande desinteresse com a Guiné, apostava-se forte e feio em Angola e Moçambique, em Bolama, o governador não tinha meios militares para intervir energicamente na guerra do Forreá, que estilhaçou completamente toda a economia da região Sul. No Casamansa, a França prosseguia a sua política implacável de nos enxotar, assim se chegou à convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886, aumentou a superfície da colónia, perdeu-se a nossa presença nos rios Casamansa e Nuno, irá estiolar o nosso comércio na Serra Leoa. Os correspondentes da revista referem-se a estes acontecimentos, chegara-se mesmo ao cúmulo de entregar a colónia a uma companhia majestática ou de ali sair de armas e bagagens, por falta de meios. Tenha-se em conta a diatribe de Alexandre Herculano sobre a questão do Casamansa. Entretanto, procura-se fazer crescer a nossa influência no arquipélago dos Bijagós. A década de 1890 iniciara-se com uma crise financeira internacional que irá devastar as instituições monárquicas, uma crise que fará estremecer o nosso Terceiro Império, o Africano. Por artes do surto ultranacionalista, durará até à descolonização.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação As Colónias Portuguesas, revista ilustrada (6)

Mário Beja Santos

A publicação As Colónias Portuguesas, Revista Ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. Não posso esconder o entusiasmo que sinto ao folhear estas páginas, elas comportam informações que, por um lado, corroboram o que a historiografia vai lavrando, e, por outro lado, temos inesperadamente acesso a testemunhos que se afiguram genuínos, um dos redatores efetivos, António A. F. Ribeiro terá montado uma rede de contactos e o que vai aparecer sob a forma de correio parece-me de insofismável valor.

Como se advertiu o leitor, estamos no derradeiro volume da Revista, são os números correspondentes a 1890 e 1891, o estado de muitas páginas é deplorável, dada a inequívoca importância desta publicação espera-se que um dia ela venha a ser digitalizada, comporta elementos que nenhum investigador desdenhará tomar nota.

Já não há imagens da Guiné, as que aqui se mostram pertencem a outro universo colonial, atenda-se ao retrato do então major Dias de Carvalho, no fim do século o distinto oficial-general permanecerá na Guiné um bom lapso de tempo e deixará um relatório do maior valor; e peço a atenção do leitor para o início de uma noticia sobre a Guiné, mostra o que era o estado de espírito da elite colonial, o propósito confessado era ministrar uma aprendizagem aos indígenas que servisse o comércio e a indústria.

Curioso me pareceu o que foi escrito no número referente a 31 de maio de 1890, passo a transcrever:
“O Sr. M. F. Galibert, que fazia parte da comissão destinada a fixar, de acordo com a comissão portuguesa, os limites da Guiné, escreveu um interessante artigo com o título ‘En Sénegambie’, que encontramos publicado no Bulletin de la Societé de Géographie Commerciale de Paris. E então destacam-se alguns trechos, julgam-se os mais pertinentes do artigo.
Buba caíra; e caíra desde que o Governo português, conhecendo a sua importância comercial julgou dever estabelecer ali um posto aduaneiro. Na sua queda arrastara Bolama à qual fornecia toda a riqueza. Dez anos de centralização, de funcionalismo militar, excluindo qualquer outra cooperação, tinham bastado para chegar a este resultado. E fala assim de Geba:
Este país está em formação. E em mãos inteligentes seria de uma riqueza inesgotável. Portugal parece havê-lo compreendido; e tem feito sacrifícios excecionais em favor de Geba.
Tem sustentado guerras para expulsar das suas vizinhanças as tribos inimigas, substituindo-as por povos pacíficos. Mas Geba não tem defesa. É uma grande aldeia com três mil habitantes e quinhentas casas feitas de adobe e cobertas de colmo.

Galibert revela-se surpreendido com a adaptação dos guineenses, tece as seguintes observações.
Entre os que compreenderam os seus deveres para com a civilização, os que mais títulos têm de reconhecimento dela, é, com toda a justiça, Portugal. A língua portuguesa fala-se desde a Serra Leoa até à Gorêa; é a língua comercial. A pequena Guiné está cheia de agrupamentos portugueses, em que a civilização, inseparável da expansão do cristianismo, mostrou a sua eficácia e desmentiu a suposição de que o negro é rebelde ao aperfeiçoamento. Em 1878, a Guiné, explorada pelo comércio francês, estava de tal maneira florescente que se lhe deve a sua autonomia. A política dos concelhos locais, de que os interessados, os franceses, eram rigorosamente excluídos, consistiu desde então em vexar em impostos todo o comércio estrangeiro. Como os franceses eram os únicos que tinham bens prediais no país, o valor das suas propriedades sofre. Os franceses retiram-se quase todos. Só ficou a casa Blanchard, que tinha grandes interesses comprometidos em grande número de propriedades, que podem avaliar-se em 50 mil hectares. No lugar dos que abandonam o país, Portugal não pôs lá ninguém.”

Documento do maior interesse me parece outra notícia, também sem assinatura sobre o arquipélago dos Bijagós, reza o seguinte:
“De um bem escrito relatório do Sr. Joaquim da Graça Correia e Lança, governador interino da Guiné Portuguesa, vamos escolher algumas informações interessantes relativas aos Bijagós.
A ilha das Galinhas tem 600 habitantes e 3 povoações. O gentio é pacífico. Os habitantes vão em canoas a Bolama, Bissau e às feitorias do Rio Grande comprar tabaco, aguardente, armas, pólvora e tecidos, em troca de laranjas, galinhas, arroz, azeite de palma e chabéu (fruto da palmeira). A permutação faz-se em geral do seguinte modo. Por 1 folha de tabaco trocam-se 4 laranjas, por 1 barril de pólvora de 4 libras 6 galinhas, por fazenda no valor de 360 reis 1 galão de azeite, por fazenda no valor de 960 reis 1 bushell de arroz. É uma das ilhas que mais se presta a uma larga exploração agrícola. Possui muito boa água, extensas pastagens, gado em abundância. Correia e Lança escreveu que esta gente procede dos antigos escravos de D. Aurélia Correia, que em 1833 para ali fora habitar com o seu marido, Caetano José Nozolini, levando de Bissau, do ilhéu do Rei, todos os escravos da sua casa que ascendiam a uns 400. Como era uma das principais casa de Bissau, fácil lhe foi fazer uma das melhores instalações na ilha das Galinhas.”


O artigo procede com mais comentários sobre a ilha das Galinhas, a salubridade da região e as expectativas de uma riquíssima exploração agrícola, o governador interino elenca as madeiras exóticas como a calabaceira, o poilão, a goiaba brava e o pau carvão. Mais adiante, fala na ilha de Orango, teria 8.260 habitantes e 29 povoações. “O rei de Orango é absoluto e déspota. Ninguém na ilha pode negociar, nem possuir bens; só ele possui canoas que manda a Bissau. É com ele que os negociantes se entendem para os negócios comerciais.” E deste modo termina a notícia: “Há no arquipélago vários outros ilhéus sem importância. O número total das ilhotas e ilhéus é de 53. Este arquipélago pode, convenientemente explorado, concorrer em grande escala para a prosperidade e largo desenvolvimento da Guiné.”

E aqui findam as notícias sobre a Guiné porque desapareceu a revista que neste período há que o confessar, tem o seu enfoque nos acontecimentos do ultimato britânico, detalha minuciosamente o tratado feito com Inglaterra, Angola e Moçambique são as colónias a que dá verdadeiro realce, compreende-se, foram desencadeadas as campanhas de pacificação e ocupação, de acordo com os ditames da Conferência de Berlim, encetava-se a prosperidade da nossa África Austral.

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24768: Historiografia da presença portuguesa em África (390): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (5) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24768: Historiografia da presença portuguesa em África (390): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Algumas destas lamúrias e comentários dramáticos, como o de Teixeira de Aragão que sugere a alienação da colónia por só dar prejuízo e não possuir riquezas, tem a ver com a atmosfera geral de política portuguesa sacudida pelo Ultimato, havia mesmo uma corrente parlamentar que punha, em desespero de causa, a entrega de algumas parcelas coloniais a companhias majestáticas, chegou a ser proposto uma para a Guiné que seria administrada pelo italiano, marquês de Liveri e Valdusa, este inclusivé pediu os contributos do general Dias de Carvalho para lhe fazer um relatório sobre a Guiné, de que resulta um documento que ainda hoje é referencial; a Guiné vive a ressaca das guerras do Forreá, o profundo desgosto da perda do Casamansa, chegou António da Silva Gouveia, ele vai aparecer na lista dos correspondentes de As Colónias Portuguesas; o estilo das notícias que vêm da Guiné são marcadamente cáusticas, lamentosas, as queixas chegam mesmo à posição dos governadores escolhidos pelo ministro da Marinha e das Colónias, deixa-se nas entrelinhas que são ineptos ou impreparados. Não voltaram a haver imagens da Guiné, as que encontrei, referentes designadamente a Angola e Moçambique, são de inexcedível importância. Oxalá que toda esta publicação venha a ser digitalizada, alterará, estou certo, alguns ângulos da investigação colonial. E confesso que estou a despedir-me desta revista a muito custo, foi para mim uma verdadeira revelação.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação As Colónias Portuguesas, revista ilustrada (5)

Mário Beja Santos

A publicação As Colónias Portuguesas, Revista Ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. Não posso esconder o entusiasmo que sinto ao folhear estas páginas, elas comportam informações que, por um lado, corroboram o que a historiografia vai lavrando, e, por outro lado, temos inesperadamente acesso a testemunhos que se afiguram genuínos, um dos redatores efetivos, António A. F. Ribeiro terá montado uma rede de contactos e o que vai aparecer sob a forma de correio parece-me de insofismável valor.

Devo esclarecer o leitor que a partir de agora, isto é, os números ferentes a 1890 e 1891, o manuseio da publicação é delicado, dado o adiantado estado de deterioração das folhas, e digo isto com imenso pesar, o acervo de ilustrações é de insofismável importância e o que nos é dito pelos correspondentes na Guiné de modo algum pode ser iludido, a despeito, claro está, de o enfoque de quem escreve assesta primordialmente nos interesses económicos e das preocupações dos comerciantes.

Estamos em 1890, período onde irão intervir três governadores: Joaquim da Graça Correia e Lança (1890), Augusto Rogério Gonçalves dos Santos e Luís Augusto de Vasconcelos e Sá (1891). O leitor que se prepare para o tom amargo, fatídico, tristonho das notas expedidas para as colónias portuguesas. Logo a primeira:
“No Moniteur das colónias publicou ultimamente o Sr. Dureme, negociante francês que por largos anos residiu na Guiné, uma correspondência acerca da situação desta província portuguesa. A competência de quem a escreve veio demonstrar-nos com quanta razão nós, insistentemente, temos pugnado para que os poderes públicos lancem olhos de ver para esta possessão, que se vai rapidamente definhando. O Sr. Durem analisa as causas que na sua opinião principalmente têm concorrido para o abandono em que se acham quase todas as propriedades agrícolas da nossa Guiné. Atribui este triste resultado às guerras continuadas entre Fulas e Biafadas, ao empobrecimento do solo e aos impostos excecionais que oneram não só os géneros cultivados, mas também o solo, as casas de habitação, os armazéns de comércio.
Sem negarmos a importância destas diferentes causas, quase que poderemos reduzi-las todas a uma só, o errado sistema económico que seguimos na administração desta província. A Guiné está numa situação especial. Cingida por colónias estrangeiras, precisava de estar habilitada a lutar favoravelmente com elas nas suas relações comerciais. Precisava de ter uma legislação que se não prendesse com princípios gerais, e se não pretendesse amoldar a regras adotadas por outras regiões, mas que principalmente procurasse ocorrer às circunstancias especiais que ali se dão. Porque têm sucessivamente abandonado a Guiné tantas sucursais de casas francesas de Bordéus, de Marselha e do Havre que ali estavam estabelecidas? Porque têm sido transferidas para as colónias francesas ou abandonado o comércio da Guiné? Porque não podem lutar com as condições difíceis em que as coloca o nosso sistema tributário, e especialmente as dificuldades que tão insensatamente a nossa administração opões às transações comerciais num país que não pode, por qualquer lado que se encare, comparar-se com outros quer da Europa quer do Ultramar.”


Temos agora outra postura na secção de um outro número em 1890:
“Há dias apareceu num jornal um artigo que tinha por título – A província da Guiné Portuguesa necessita com urgência de um governador. Diremos que estamos plenamente de acordo. Em nenhuma província portuguesa se reclama, mais que na Guiné, a presença de um governador que saiba compreender bem as necessidades daquela província. Um governador inteligente, enérgico, prudente, conhecedor da província que administra, está habilitado a resolver, acertadamente, sobre os casos ocorrentes, porque conhece de perto as causas de muitos factos. Quem se interesse pelas nossas colónias, deve ter tido mais de uma vez ocasião de se amargurar ao ver as apreciações desencontradas, que aqui lhes chegam. O artigo a que nos referimos é firmado por um militar, o Sr. Francisco António Marques Geraldes.” E o autor desta nota explica acontecimentos relacionados com violência praticada por um régulo na região de Geba, que Marques Geraldes conhecia na perfeição. Indiretamente o texto deixa no ar a ideia de que era necessária mais autoridade, e essa faltava".

Estamos agora em 1891, o ano derradeiro desta publicação. Chamou-nos à atenção um outro considerando acerca dos colonos que mandávamos para África, no caso vertente Moçambique: “Passagens grátis para Moçambique. O paquete Luanda, da Mala Real Portuguesa, leva de Lisboa para a província de Moçambique grande número de indivíduos a quem o governo resolveu dar passagens grátis. Estes indivíduos não contraem por esse facto qualquer encargo com o Estado. São plenissimamente senhores da sua vontade, tanto na escolha do lugar para onde se destinam como nos meios de vida que aí puderem arranjar. Nós, porém, não podemos deixar de lamentar esta forma porque se deixam embarcar tantos desgraçados, velhos, novos, mulheres e crianças, tudo de embrulhada, sem saberem para onde vão, nem ao que vão. Não é esta decerto a emigração de que carece Moçambique.”

Com o título Carta sobre a Guiné temos agora a transcrição do jornal O Economista de um documento de Teixeira de Aragão referente à alienação da nossa possessão da Guiné:
“Alienar colónias é um princípio que nos parece dever ser olhado com todo o cuidado, e sõ extremos quer financeiros quer de ordem política administrativa poderiam desculpar tal passo, depois de esgotados todos os recursos de as fazer florescer. Estudem-se a sério as questões económicas administrativas particulares dos povos da Guiné, envide-se energia e escolham-se funcionários honestos e hábeis e a Guiné terá um futuro desafogado. Pedimos permissão para combater a opinião que se formou acerca da Guiné Portuguesa. A Senegâmbia Portuguesa acha-se exatamente nestas condições: o terreno que ali possuímos é de facto limitadíssimo, não encerra riquezas minerais, e são, por assim dizer, retalhos de que só podemos tirar proveito despendendo quantias fabulosas que nunca poderão ser compensadas. A ilha de Bolama é o maior trato de terreno que ali possuímos, o resto são verdadeiras tiras de terra importantes tais como, Bissau, Cacheu, Farim, Geba, as margens do chamado rio de Bolola, etc. Podíamos, é verdade, estender o nosso domínio até à zona que a última divisão territorial nos concedeu, mas para isso seria necessário sustentar ali uma numerosa força armada, que impusesse respeito ao gentio desenfreado da terra firme, que vivendo unicamente da rapina, bastante numeroso e aguerrido, faz continuas correrias nos terrenos que de direito possuímos. Acima de Geba encontram-se jazigos de ouro, mas aqueles terrenos ficaram compreendidos na zona francesa, pela demarcação a que ultimamente se procedeu. O gentio da Guiné, o mais pacífico, não se sujeita a um trabalho agrícola regular, costumado à sementeira do arroz e à mancarra, suficiente para as suas necessidades e que pouco trabalho lhe dá, difícil será submetê-lo e acostumá-lo a outras culturas. Ora, qualquer destes géneros é pobríssimo; o arroz, geralmente de má qualidade, vermelho a que chamam limpsado, e quase todo consumido na própria província; a mancarra, semente pouco oleosa, tem diminuído o preço no mercado, vendendo-se a buxula (cerca de 35 litros) à razão de 240 reis em fazendas, que pouco mais valem de 400 reis em dinheiro. Concordamos que as hostilidades que temos movido ao gentio da terra firme tenham prejudicado a Guiné, desviando o comércio para as possessões francesas e inglesas; mas também é certo que, em muitas ocasiões, essas guerras têm sido necessárias a fim de pôr cobro aos insultos, correrias e rapinas. Não podemos dizer, com verdade, que a Guiné não seja suscetível de desenvolvimento, mas esta demanda tais sacríficos da metrópole que não julgamos que possam ser feitos, nem, se o forem, possam um dia ser compensados. Julgamos, pois, um benefício e mesmo uma necessidade alienar a não só a Guiné como todas as colónias que, pela sua pequena extensão, não prometam futuro; isto em proveito de outras que, extensas e ricas, nos podem trazer prosperidade.”

(continua)

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Nota do editor

Último posta da série de 11 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24746: Historiografia da presença portuguesa em África (389): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (4) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 6 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24122: S(C)em comentários (5): E no Geba, às portas de Bafatá, cantava-se, em 1967: "Oh! São, oh São / E o vento mudou / E ela não voltou / E ela partiu / P... que a pariu, Nunca mais ninguém a viu..." (A. Marques Lopes, cor inf ref, DAF)

Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Geba > CART 1690 (1967) > "Aqui era a nossa discoteca... Aqui cantávamos a Sandie Shaw e o Eduardo Nascimento... E bebíamos uns 'shots' valentes", diz o A. Marques Lopes (o terceiro a contar da esquerda).


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Geba > CART 1690 (1967) > Igreja de Geba, onde já ninguém ia rezar... Devia ser de meados dos anos 30 do séc. XX, e estava em estado de grande degradação. Havia um projeto da ONG Viver100Fronteiras para a sua reconstrução.

Fotos do álbum de A. Marques Lopes, um dos históricos do nosso blogue, coronel inf, DFA, na situação de reforma, ex-alf mil da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968). 

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Lembram-se da Sandie Shaw, e da sua "Pupet on the string" (Marioneta, à letra, em português), um dos grandes êxitos do "hit parade" musical do ano de 1967? Foi com esta canção que a provocante inglesa Sandie Shaw (n. Londres, 1947) ganhou o Festival Eurovisão da Canção de 1967, em Vienba... Ainda por cima teve a irreverência de cantar desçalça, naquela época, por protesto, dizia-se, pela conservadora BBC ter pensado seriamente em "tirar-lhe o microfone" depois descobrir que a rapariguinha andava envolvida numa cena de adultério... 

Com 20 aninhos, imaginem, e aquelas hormonas todas a fervilhar!... Ficou no goto dos rapazes de Geba que deviam ter sensivelmente a mesma idade que ela ...e tinham testosterona para dar e vender...


2. Já o Eduardo Nascimento, um pouco mais velho (nascido em Angola, em 1944) era um pacato rapaz lusitano, tal como o Eusébio... Tem hoje direito a entrada na Wikipédia, onde se diz uma infâmia: que terá ido ao Festival Europeu da Canção por vontade expressa de Salazar, quando um "pretinho" dava jeito à máquina de propaganda do Estado Novo...

(...) Líder do conjunto angolano Os Rocks, participou num dos concursos de música ié-ié, realizados no Teatro Monumental, em Lisboa. Em 1967 perenizou-se com o tema O Vento Mudou, vencedor do Festival RTP da Canção

A música foi representar Portugal no Festival Eurovisão da Canção, realizado em Viena, ficando em 12º lugar (ex-aequo com a Finlândia), entre dezassete países. 

Eduardo Nascimento foi o primeiro negro a pisar os palcos da Eurovisão. Dizia-se na altura que tinha sido Salazar quem quisera que Eduardo Nascimento representasse Portugal, para provar que não era racista. O tema viria a ser gravado pelos Delfins, por Adelaide Ferreira e pelos UHF. 

Com Os Rocks Nascimento gravou ainda dois EP (...). O cantor continuou a actuar com Os Rocks até 1969, altura em que voltou para Angola e abandonou a carreira musical. Posteriormente veio a exercer funções na TAP." (...)

Os rapazes do Geba, às portas de Bafatá, cantarolavam, em 1967, uma paródia de "O Vento Mudou", numa típica manifestção de bom humor de caserna: 

"Oh! São, oh São, 
E o vento mudou, 
E ela não voltou....
E ela partiu,
P... que a pariu,
Nunca mais ninguém a viu..." 
 
3. O nosso camarada Nuno Nazareth Fernandes, autor da música, ex-alf mil, BENG 447 (Brá, Bissau, 1972/74), radialista em Bissau, no PIFAS, membro da nossa Tabanca Grande, nº 684,  já aqui desmentiu categoricamente essa "boca foleira" (que vai ficar na Wilipédia!), afirmando que no Festival RTP da Canção de 1967, "o Eduardo Nascimento ganhou com o todo o mérito, porque era a melhor canção, e rompia com o chamado nacional cançonetismo", e sendo  falso que o Salazar tenha imposto o seu nome para ir ao festival da Eurovisão (**).

Reiteramos as nossas desculpas ao Eduardo Nascimento e ao Nuno Nazareth Fernandes. 

S(C)em Comentários (***). 

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


5 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24121: S(C)em comentários (4): A Massiel de Ingoré, ou melhor, a cantora espanhola, que venceu o Festival da Eurovisão da Canção em 1968, e que deu a alcunha à autometralhadora Daimler ME-78-63, ao tempo em que o nosso Zé Teixeira passou por lá (e também deu uma voltinha com ela...), entre maio e julho de 1968

(***) Último poste da série > 5 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24121: S(C)em comentários (4): A Massiel de Ingoré, ou melhor, a cantora espanhola, que venceu o Festival da Eurovisão da Canção em 1968, e que deu a alcunha à autometralhadora Daimler ME-78-63, ao tempo em que o nosso Zé Teixeira passou por lá (e também deu uma voltinha com ela...), entre maio e julho de 1968

quarta-feira, 1 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24111: Historiografia da presença portuguesa em África (357): História das Ilhas de Cabo Verde e “Rios de Guiné” (séculos XVII e XVIII), por António Carreira; Edição do Autor, 1983 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Das suas andanças pelo Arquivo Histórico Ultramarino, António Carreira catou alguns documentos que haviam escapado ao grande pesquisador que foi o Padre António Brásio, autor de uma notável coletânea (5 volumes, de 1342 a 1650) dos melhores repositórios sobre a área dos rios de Guiné e Cabo Verde. "Estudados detidamente, pensei logo em divulgá-los, com anotações e comentários, alguns deles em edição fac-similada. Só que nenhuma instituição cultural e/ou científica se mostrou interessada em fazê-lo. Não é de estranhar. É a eterna contradição que caracteriza a sociedade portuguesa designadamente no campo da cultura. Apregoa-se insistentemente a existência de Centro de Estudos Africanos destinados a apoiar e a orientar este tipo de investigação; mas salvo uma ou outra exceção não o podem fazer dada a posição de apagada e vil tristeza em que vivem. Daí que a investigação de campo e o estudo e a publicação dos seus resultados se confine, em regra, a tarefas individuais de uns tantos maduros e destituída de apoios das instituições estatais e privadas". E António Carreira fez edição de autor, temos hoje livro raríssimo, obra que faz falta em qualquer desses Centros de Estudos Africanos, pôs na capa um dragoeiro, cuja goma ou resina foi utilizada durante largos anos na farmacopeia. Como ele escreveu: "Como se fala agora com tanta insistência na proteção da natureza, parece que ela deve ser objeto de medidas especiais que impeçam a sua destruição".

Um abraço do
Mário



O dom de investigar, o dom de saber comentar:
António Carreira, aquele historiador sempre indispensável


Mário Beja Santos

A obra intitula-se Documentos para a História das Ilhas de Cabo Verde e “Rios de Guiné” (séculos XVII e XVIII), por António Carreira, Edição do Autor, 1983. Explica a razão da publicação: “Divulgação de documentos de grande interesse para o conhecimento da ação dos portugueses na costa ocidental africana nos anos de 1600 até final de 1700. Eles mostram as vicissitudes por que passaram os contratos de arrendamento de tratos e resgates, e as falcatruas cometidas pelos contratadores, falcatruas essas facilitadas pela impossibilidade do Governo controlar os negócios; e de outro lado, o contrabando de escravos e a desenfreada concorrência comercial de Franceses, Ingleses e Holandeses, por vezes apoiada na guerra de corso, visando pôr termo às atividades dos portugueses na costa a partir do Cabo Verde até à Serra Leoa”. É uma documentação úbere de informações de tempos e lugares em que a presença portuguesa esteve permanentemente em causa, tanto pela hostilidade de estrangeiros como pela guerrilha dos autóctones. O estudioso tem acesso a relatórios, cartas, pareceres, regimentos, despachos que permitem conhecer a agressividade dos régulos em torno da Praça de Bissau, os problemas alfandegários, a situação comercial na região, contratos de arrendamento, regimento do presídio e alfândega de Farim, reclamações dos comerciantes contra as taxas de direitos.

António Carreira foi um investigador modelar, encontrava nos arquivos manuscritos e sabia comentá-los como ninguém. Veja-se como ele introduz a questão do termo Rios da Guiné, que era a expressão mais utilizada na documentação antiga, precedeu o uso da expressão Guiné, mas sempre com sentido indefinido, fazia parte da área da jurisdição da Capitania de Cabo Verde, cujo governador entregava regimento ao capitão mor de Cacheu, o regimento de 1614 recomendava: a difusão da religião católica através da catequização dos gentios; a fiscalização da navegação e do comércio de e com os estrangeiros, impedindo a venda de escravos, de cera, de marfim e de ouro; impedir por todas as formas a entrada em Cacheu de algodão proveniente da Gâmbia e de outros pontos; exercer o controlo dos preços de compra dos escravos. Carreira comenta que os princípios de que os capitães mores, feitores e ouvidores dos rios de Guiné de estarem subordinados ao Governador das ilhas de Cabo Verde não tinha significado efetivo e real.

Aborda depois o investigador topónimo Guiné que designava uma larga zona sem limites compreensíveis. E recorda que o Padre Baltazar Barreira em carta escrita em Santiago a 1 de agosto de 1606 procurou esclarecer assim os limites da Guiné: “Esta parte de África que os portugueses propriamente chamam Guiné começa no rio Senegal e corre pela costa até a Serra Leoa, obra de 180 léguas de norte a sul”. Viajando no tempo, Carreira dá-nos conta dos ciclos económicos enquanto se apertava o cerco à presença portuguesa até que se chegou a uma situação, que precede as decisões da Conferência de Berlim em que a nossa presença na Senegâmbia era constituída por as praças e presídios de Ziguinchor, Cacheu, Farim, Geba, Fá, Bissau e Guinala. Estas praças e presídios, também designadas por feitorias, estavam instaladas nas margens dos rios, em limitados espaços formando pequenos povoados de comerciantes europeus, filhos da terra (grumetes) e mestiços cabo-verdianos, espaços ocupados mediante licença das autoridades tradicionais, contra o pagamento de renda anual (a daxa). Refere o autor a história destas feitorias, o aparecimento da primeira Fortaleza de Bissau, construída em 1696, a história das diferentes companhias comerciais de vida breve, a gradual presença portuguesa a partir do século XIX, observando Carreira que da soberania portuguesa só se deve falar a partir de 1915, dando-nos o contexto das turbulências vividas no solo continental por quase todo o século XIX: em 1840 eclodiu um conflito entre Fulas e Mandigas, que levou à derrota destes últimos e as guerras sucessivas que assolaram o Alto Geba, no Gabu e no Forreá. Lançara-se entre 1842 e 1845, no Quínara, a cultura da mancarra, que se mostrou florescente, mas com a guerrilha que se intensificou a partir de 1876, tudo se perdeu. E o autor não deixa de enfatizar que a chamada Guiné portuguesa é uma figura política e jurídica surgida da Convenção Luso-francesa de 1886.

Temos depois o rol dos documentos do século XVII, o autor chama à atenção para a incapacidade organizativa da Coroa em afastar ou punir a concorrência, limitava-se a estabelecer contratos de exploração por administração direta por vários anos; mostra igualmente o autor a existência de conflitos entre o Governador de Cabo Verde e os agentes do rei nos rios; e assim chegamos ao relato do feitor da Fazenda Real, em Bissau, José António Pinto, caminhamos para o final do século XVIII, dá-nos conta da situação nas praças e presídios, veja-se a pungente descrição que ele faz do presídio de Geba:
“O pequeno número de que se compunha a sua guarnição são negros, pardos e alguns brancos, tanto uns como outros ali são mandados degredados por tremendos crimes, os quais são brancos já não conservam sentimentos alguns da sua cor nem de costumes europeus vendo que ali são degradados por toda a vida, continuam em dar exercícios aos seus diabólicos costumes, roubando armazéns de noite. Sargentos, furriéis e cabos são da mesma natureza, brancos, negros, pardos, ladrões e facínoras, de forma que como sequazes dos soldados não só não há respeito, mas quando o pretendem ter, opõem-se-lhe e rebelam-se os culpados que ficam sem castigo (…)”. É extensa a denúncia, dá-nos depois a descrição do porto de Bissau, das ilhas de Cabo Verde e sua guarnição militar, refere a Fazenda e o negócio da panaria e da purgueira, refere as ilhas e as forças militares.

A obra de António Carreira faz-se acompanhar de muito texto em fac-simile, dos documentos aludidos dá por inteiro o regimento da Alfândega de Cacheu de 1797, temos igualmente um apenso documental com requerimentos, nota de emolumentos, reclamações, lista de navios chegados a Bissau no final do século XVIII.

Obra de indiscutível interesse para quem pretende estudar estes séculos da nossa precária presença naqueles pontos da costa ocidental africana.

Fortaleza do Cacheu
Planta da Praça de S. José, Bissau, 1864
Interior da Fortaleza de S. José da Amura, cerca de 1925
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24089: Historiografia da presença portuguesa em África (356): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (10) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23634: Historiografia da presença portuguesa em África (335): As missões católicas na evolução político-social da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Reiteradas vezes aqui se tem feito referência ao padre António Joaquim Dias, um franciscano que viveu 8 anos na Guiné e que deixou descrita a história das missões católicas na Guiné, foi o pioneiro, mais tarde distinguir-se-á o trabalho, que continua a ser referência essencial, do padre Henrique Pinto Rema, já aqui largamente citado. Faz-se sinopse de uma conferência proferida por este missionário franciscano em agosto de 1942, ele dá conta desse historial missionário e da obra que se começou a efetuar a partir de 1932, data marcante para o reinício da atividade missionária na Guiné, onde os franciscanos preponderavam e preponderam.

Um abraço do
Mário



As missões católicas na evolução político-social da Guiné Portuguesa

Mário Beja Santos

Não é a primeira vez que aqui se fala no missionário franciscano padre António Joaquim Dias [foto à direita], viveu na Guiné mais de 18 anos, e sobre ela escreveu abundantemente, no boletim mensal dos missionários franciscanos, como leitor recordará. No entanto, este sacerdote virá a destacar-se como investigador e historiador com nome de António Joaquim Dias Dinis, foi mesmo condecorado em 1961 com a Ordem do Infante pelos seus relevantes trabalhos. Não deixou de ter polémicas, como aquela que travou com Teixeira da Mota pela descoberta da Guiné.

Proferiu uma conferência sobre as missões católicas no curso de férias da Faculdade de Letras de Coimbra, em 20 de agosto de 1942, e o seu trabalho de marca científica será publicado na revista Biblo, volume XIX, 1943. Começa por referir que regressara há meses da Guiné após 8 anos consecutivos de atividade nas missões católicas. Dedicara-se ao estudo do passado da colónia, nomeadamente das suas missões, razão pela qual aceitara o convite para abordar este tema.

Não ilude verdade, diz serem bastante débeis os ecos da nossa atuação missionária na Costa da Guiné, do século XV ao século XX, não existiam ruínas nem vestígios do passado missionário. Dá ao auditório um vasto leque de informações, desde a geografia à etnografia. Apresenta-lhes uma definição de missões católicas: assistência e ação religiosa e civilizadoras, dos sacerdotes católicos e dos seus colaboradores leigos. E recorda que a Guiné Portuguesa é o território que pertence a Portugal desde que no século XVII principiou o cerceamento dos nossos vastos domínios. A delimitação da Guiné, a Terra dos Negros, principiava a norte na margem do rio Senegal, e faz então uma citação do Canto V d’Os Lusíadas, estrofe 102:
A província Jalofo, que reparte
Por diversas nações a negra gente.


Cita documentos comprovativos sobre a finalidade religiosa dos Descobrimentos, lembrando que em 1455 o Infante D. Henrique entregara a espiritualidade da Guiné à Ordem de Cristo. Em 1462, o Papa Pio II, em breve dirigido a um bispo de Rubicão, nas Canárias, diz constar-lhe que ele andava empenhado em converter infiéis, moradores nas ilhas Canárias na província da Guiné, e que, em razão da pobreza da terra e dos habitantes, os presbíteros e clérigos seculares se recusavam a viver ali.

O conferencista destacou a atividade missionária de Frei Afonso de Bolano, nomeado pelo Papa Xisto IV, em 1472, Núncio Apostólico para a conversão dos infiéis, a viverem em Granada, Guiné, África e ilhas do Atlântico. Tal nomeação gerou polémica com os superiores das Ordens Religiosas, e a decisão acabou por ser revogada. No entanto, Xisto IV outorgou em 1475 que Frei Afonso Bolano recrutasse 16 religiosos da família franciscana nas províncias de Portugal, Santiago de Compostela, Castela e Aragão. Esta missionação revelou-se ineficaz, por várias causas: isolamento em que viviam os visionários; clima mortífero; o islamismo tudo fazia para dificultar a atividade missionária; antipática e até a hostilidade do indígena para com o europeu, em razão da escravatura. E observa: “Não me parece que a Missão tenha findado por menos zelo dos obreiros; mas sim por motivos idênticos aos que tornaram improfícuas as expedições dos missionários dominicanos a Benim e ao Senegal em 1487 e 1488, respetivamente”.

Foram depois chamados os Jesuítas para fundar um colégio em Cabo Verde e missionário na Guiné. Os Jesuítas enviaram os padres Baltasar Barreira, Manuel de Barros e Manuel Fernandes e o irmão leigo Pedro Fernandes. Barreira apresentou o seu programa ao Provincial dos Jesuítas: tratava-se de uma missão para examinar as condições da região e sugere que ela se mantenha no maior segredo. O padre Baltasar Barreira partiu de Santiago em dezembro de 1604, aportou em Guinala, no rio Grande de Buba, e daqui desceu para a Serra Leoa. Na sede em Lisboa dos Jesuítas, em São Roque, deu-se uma inflexão estratégica, ofereceram-se padres para Angola, pois considerou-se que Cabo Verde era insalubre para ter um seminário. Aconteceu que não foi concedido a Companhia de Jesus o exclusivo da missionação de Angola, foi nomeado para Bispo de Angola e Congo um dominicano. Então os Jesuítas fundaram uma missão na Serra de Leoa, foi aqui que Baltasar Barreira e Manuel Álvares encetaram atividade missionária. O rei Filipe, em 1608, mantinha os Jesuítas em Cabo Verde e ordenava visitas à Guiné. Em Cabo Verde fundar-se-ia uma casa professa. Dificultava-se a ida de padres para a Guiné alegando que faziam falta em Cabo Verde. Em 1642, os Jesuítas abandonaram definitivamente Cabo Verde e Guiné.

Escreve o autor: “É digno de censura a teimosa dos reis castelhanos, que, por via do colégio e por coisas de somenos importância, impediu a missão missionária na Costa da Guiné, precisamente quando ela ali era mais necessária”. E regressaram então os franciscanos.
Aos poucos, a presença estrangeira cresceu na Costa da Guiné. Houve projetos de introduzir Capuchinos Italianos, mas não se concretizou. Os franciscanos chegaram a Cabo Verde em janeiro de 1657. Desembarcaram em Cacheu dois padres, em 1660. Principiaram a sua atividade na etnia Banhum e passaram a Farim, seguiram para os Cassangas e depois o Casamansa. E chegaram a Bissau onde os cristãos estavam abandonados e a igreja paroquial encerrada.

Foram criadas, nas décadas seguintes, hospícios em Cacheu, Bissau e Geba. O primeiro bispo de Cabo Verde que visitou Guiné foi D. Frei Vitoriano do Porto, e por duas vezes. O autor traça um martirológico missionário impressionante. As ordens religiosas entraram em franca decadência em finais do século XVIII. Deu depois a extinção das Ordens, em 1834, foi golpe mortal na região, as cristandades definharam. O renascimento deu-se em 1932, com a reabertura da missionação: renasceram as antigas paróquias de Bissau, Bolama, Cacheu e Geba. “Na Missão Central de Bula, nas escolas missionárias de Bissau, Có, Pelundo, Churo, Cacheu, Geba, Bor, e no asilo-creche de Bor, as futuras gerações aprendem a amar a Deus”.

Asilo da Infância Desvalida de Bor, em 1939
Em Geba reabilita-se uma Igreja
Imagens da missão franciscana na Cumura, na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23616: Historiografia da presença portuguesa em África (334): Personalidades e olhares sobre a Guiné que poucos recordam ou conhecem (Mário Beja Santos)