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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25438: Humor de caserna (59): O anedotário da Spinolândia (X): Alferes, cabra de mato!... Pum, pum!!! (David Guimarães, ex-fur mil at art, MA, CART 2716, Xitole,, 1970/72

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David Guimarães, Guiné-Bissau, 2001

1. O David Guimarães (ex-fur mil at inf, MA, CART 2716 / BART 2917, Xitole, 1970/72) é um dos nossos "dinossauros", um dos nossos VCC (velhinhos como o c...).

Ele é do tempo do "blogueforanada", que deu origem ao atual blogue... Ele, o Sousa de Castro, o A. Marques Lopes, o Humberto Reis... foram alguns dos primeiros camaradas que me ajudaram a "exorcizar os meus fantasmas" da Guiné...
Tem 113 referências no nosso blogue.. E hoje faz anos. 77. Entrou tarde para a tropa, quando chegou ao Xitolee tinha já 23, e, quando regressou a casa, 25.

Claro que, ao fim destes anos todos (vinte!), só muito raramente ele aparece agora no blogue... É mais "feicebuqueiro" do que "blogueiro", como tantos outros... Mas a gente não se esquece do seu papel, na "proto-história" da Tabanca Grande. Tenho especial carinho e amizade por ele.

E, neste dia, além de já lhe ter telefonado e mandado "by air", para Espinho, um "balaio" cheio de votos de parabéns e de muita saúde e coragem para o resto da caminhada... (que de minas e armadilhas sabe ele!), vou ressuscitar duas das suas histórias deliciosas, passadas ainda no tempo em que eles "periquitos",o pessoal da CART (chegaram em maio de 1970).. Tem um fino sentido de humor, o David, ou não fosse ele um ex-fur mil at inf, de minas e armadilhas, que viu morrer um sapador (Quaresma) e outro furriel ficar cego (Leones).

Estas duas histórias merecem figurar no "anedotário da Spinolânda"... Diz o Carlos Matos Gomes, no seu novo livro ("Geração D: da Ditadura à Democracia", Lisboa, Porto Editora, 2024), a Guiné sempre foi até ao fim, "uma coutada pessoal de Spínola" 
(páf. 188), ao ponto de querer transformar os comandos africanos numa guarda pretoriana... 

Justa ou injustamente, temos falado aqui na Spinolândia (*), e no seu anedotário (que alimentava o nosso humor de caserna)... Na realidade, o nosso general parecia comportar-se, no CTIG, como se fosse o dono daquilo tudo... E o pessoal também o via como tal... 



Humor de caserna > O anedotário da Spinolândia>  Alferes,  cabra de mato!... Pum, pum!!! 
 
por David Guimarães


(i) Alferes, cabra de mato!


Um dia, novinhos ainda, piras, com as fardinhas novinhas em folha, aí vamos nós. Sai o 1º Grupo de Combate. Patrulha em volta do aquartelamento para os lados de Seco Braima, o que era normal: acampamento IN....

Era bem de manhã. E a certa altura, zás, ouve-se o matraquear de espingardas automáticas:

− Que coisa!... Oh diabo, estão a enrolar…

Os morteiros fixos lá fazem fogo de barragem. Novamente os experientes homens de armas pesadas. E que eficientes! Como eles faziam aqueles morteiros dispar tão amiúde e certeiro... Cessar fogo, tudo silêncio à volta, fora os abutres que logo foram ver o que acontecia.

− Que aconteceu? E agora... Estará alguém ferido ? O que aconteceu ? O que vamos fazer ?

Nenhum deles disse nada... mas voltaram depressa. E nós nem percebíamos ainda porque que é que eles voltaram assim tão rapidamente... Bem, lá regressa, da patrulha, o 1º Grupo de Combate. Ofegantes, e agora dentro do aquartelamento esboçando sorrisos, todos pretos... Que coisa, sempre que havias tiros ficava-se todo preto!

−Que aconteceu ?!...

Lá vem a explicação: o grupo estava a instalar-se, para um tempinho em posição de emboscada. Uma cabra de mato passa em frente... Um soldado diz para o aferes,  muito baixinho:

− Alferes, cabra de mato!
−  Atira-lhe − , responde o Alferes… 

Há rico tiro, pum, pum!!!

E não é que o IN estava lá emboscado, do outro lado da cabra ? Seriam poucos, mas ao sentirem-se detectados deram uns tiros e fugiram, pois que entretanto também começaram a cair bem perto as granadas do morteiro do aquartelamento....

− Manga de cu pequenino

Olha que sorte, a santa cabra do mato! ... Foi ela, afinal, o nosso anjo da guarda. O Correia voltou com o seu grupo de combate inteiro e o soldado que detetou a cabra... herói. Mais tarde,  foi-lhe proposto e concedido o prémio Governador Geral. Todos achámos muito bem, veio à metrópole. Se não fora assim, nunca iria lá de férias, porque não tinha dinheiro para isso...

Ninguém soube se a cabra morreu ou não, mas os homens, depois de contados, estavam todos... E os abutres também voltaram ao aquartelamento e continuaram a comer o que restava da vaca morta nesse dia...

A guerra tinha disto também, e ainda bem... Como entendê-la ? Só um combatente... Este era o nosso tempo de recreio de guerra dentro da guerra.

(ii) O Caco Baldé no Xitole

Um helicóptero que pousa na pista do Xitole, gente da alta e o Homem Grande (General, Comandante-Chefe e Governador do CTIG - Comando Territorial Independente da Guiné): António de Spinola, ele mesmo, mais conhecido por... Caco Baldé!

Spínola, Governador e Com-Chefe, era conhecido por  Caco, Caco Baldé, Homem Grande de Bissau...

Volta à companhia, verificação da posição das NT dentro do Aquartelamento... Rapidamente se forma um U, cada qual fardado o melhor que podia, era um ver se te avias.... Sua Excelência, de pernas afastadas, mãos atrás das costas, impecavelmente fardado e com seu monóculo começa assim um discurso:

− Tenho péssimas informações do Batalhão [ BART 2917, com sede em Bambadinca ], à exceção desta companhia [ CART 2716 ]... Continuem,  etc., e tal e tal...

E lá foi o homem embora: meteu-se no helicóptero e saiu pelos ares da Guiné, algures no Leste, rumo a Bissau, possivelmente.

− - Porra que elogio, mas para quê? Ele afinal até é bom!

− Porreiro !   −  dizia um...

− Que se foda !  −  dizia outro...

− Bem, sempre é melhor este elogio do que o contrário...

− Que se lixe, já foi...

− Mas seremos assim tão bons para levar este elogia? Tão novos... merda, que se dane!...

Percebemos pouco tempo depois o que ele nos queria a dizer... Tinha-se realizado a Op Abencerragem Candente (Ponta do Inglês, Xime, 25 e 26 de Novembro de 1970, que o Luís e o Humberto já têm aqui evocado várias vezes), com um porrada de mortos e feridos...

Aí percebemos melhor o discurso do General quando na ordem de serviço veio o seguinte (reproduzo de cor): Segue para a Metrópole o tenente coronel de artilharia M. F.,  por ser incompetente para comandar um Batalhão... Em seu lugar nomeio João Polidoro Monteiro, tenente coronel de infantaria, etc. etc. etc... 

Nestas coisas, o Caco Baldé não brincava em serviço, cortava a direito... Não percebo por que é poupou o major A.C. (dizem que foi por ser antigo professor da Academia Militar...).

− Ai,  olha, ele varreu com o Nord Atlas  −   assim chamávamos nós ao M. F. (um bom homem, mas que de guerra efectivamente só deveria saber o que vinha nos livros)... 

Apanhou uma porrada desse nível e, ainda por cima, estava de férias, enquanto o A. C., o principal responsável pelo fracasso dessa operação e o consequente desastre, ficava...
 
__________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 6 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25396: Humor de caserna (58): O anedotário da Spinolândia... O "Fugitivo", por Manel Mesquita ("Os Resistentes de Nhala, 1969/71", s/l, ed. autor, 2005, pp. 130/132)

Guiné 64/74 - P25437: 20º aniversário do nosso blogue (10): Inconfidências de um antigo combatente que é mais "blogueiro" do que "feicebuqueiro": Se eu não tivesse criado este blogue, hoje seria 'mais feliz, livre, saudável e provavelmente rico' ? (Luís Graça)


1. Humor com humor se (a)paga... e é ainda o que nos vale, rir e saber rir. Mas nesta onda de comemorações dos 20 anos do nosso blogue (*), deixem-me, caros leitores, partilhar aqui um pequeno segredo... 

Já me têm dito ou insinuado que se eu não tivesse "a m... do blogue", hoje seria "mais feliz, livre, saudável e provavelmente rico"... Acusam-me, às vezes, de ter prejudicado a minha vida pessoal, familiar e profissional por causa das... "blogarias", da "m... da guerra" e dos camaraadas da Guiné", etc. 

Ainda é cedo (espero eu...) para arrumar as botas, lavrar o testemento vital e, mais importante ainda, fazer as "partilhas" ... Por que eu sei que "fica cá tudo", um gajo leva, ou não pode levar,  nada de "material"para  o outro mundo "imaterial"... Não sei o que é que conta lá: quando eu era pequeno, diziam-me que eram as "boas acções" (ainda se escrevia com dois c).

Vem isto a propósito de um aniversário em que, se calhar, há pouco a celebrar (aos olhos dos críticos do blogue)...Não me compete a mim fazer esse juízo. Limitei-me apenas a usar a "força da inércia"... O comboio começou a andar, muito lentamente é certo, em 23/4/2004... 

Uns meses antes, ainda se estava na fase dos "ensaios": era versão beta do nosso blogue, que antes de se chamar "Luís Graça & Camaradas da Guiné", era o "blogue-fora-nada" e depois o "blogue-fora-nada-e-vão-três"... 

Em 1999, quatro anos antes, já tinha criado, muito antes que os meus colegas, a minha página pessoal e profissional... Ao fim de vinte e poucos anos, a instituição onde trabalhei "descontinuou" a página... (Recuperei-a,  há tempos, mas é um "aqruivo morto", não a posso atualizar)

Só por mera curiosidade dos "blogueiros" (que nos leem) (ou que ainda são mais "blogueiros" do que "feicebuqueiros", o que começa a ser raro), posso adiantar que o primeiro poste (ou postagem) que publiquei no "blogue-fora-nada" foi este, que a seguir reproduzo, com data de 8/10/2023...

Ao reler  "conto com mural ao fundo", quase 25 anos depois, não deixo de esboçar um sorriso amarelo, quiçá amargo... E penso na minha vida: e eu não tivesse tido e-email, nem página na web, nem blogues, nem computador(es) ?... Será que hoje seria "mais feliz, livre, saudável e provavelmente rico" ?
 
A pergunta é idiota, porque não tem resposta... Não há "ses" na vida de um  homem. Só há uma vida, única, irrepetível... Sei que não vou ter outra "chance", se a desperdicei, tenho que assumir as consequências até ao fim e beber a taça amaraga da "cicuta"... 

Mas o leitor pode ler ou reler a história e, até, eventualmente, achar-lhe piada...Eu, confesso, que mr deixou deprimido a releitura do meu primeiro "conto com mural ao fundo" (em parte adaptado)...


Blogue-fora-nada > Estórias com mural ao fundo - I: Ter ou não ter (e-mail)

por Luís Graça


Tenho por (mau) hábito perguntar às pessoas que vou conhecendo "se têm e-mail"... Mas depois de ler a história a seguir, não vou ter mais lata para o fazer: 

(i) é indelicado; 
(ii) pode ser embaraçoso; 
e (iii) até pode dar azar... 

Um dia houve alguém que me respondeu, com agressividade mal contida: "Não tenho... mas será que já é obrigatório ?"...

Nós, os ex-clérigos (durante séculos o pessoal universitário, incluindo os estudantes, estavam sujeitos ao direito canónico e só com o triunfo do liberalismo é que o reitor de Coimbra passou a ser um leigo!), temos dificuldade em imaginar um mundo sem livros, sem cátedras e, agora, sem Internet, sem blogues e sem e-mail...

Não sei se é obrigatório ter e-mail (ou se vai sê-lo em breve), mas a verdade é que todos os dias nos ameaçam com a infoexclusão, uma espécie de upgrade das labaredas do inferno. Há muito boa gente que hoje em dia teme ser acusada de infoanalfabeta e pensa que, "pelo sim, pelo não, sempre é bom ter e-mail, não vá o diabo tecê-las"... E quem diz e-mail, diz outras buzzwords horríveis tais como url, password, username, nib...

Já assim pensavam, noutro contexto, os cristão novos de Trancoso que assinalavam, com uma cruz, as suas casas, não fossem os cristãos velhos desconfiar que eles eram judaizantes, logo ignorantes e inimigos da fé cristã (a única, a verdadeira, a dominante)... A cruz era a password e o e-mail daqueles tempos em que os portugas sucumbiram à tentação totalitária...

Por isso, "ter ou não ter e-mail: eis a questão" é uma história com moral... E com mural ao fundo. 

Ponderei seriamente se havia de a pôr a circular entre @s car@s ciberamig@s... Há sempre o risco de uma leitura demasiado literal, apologética, direi mesmo...primariamente neoliberal !!! Mas, pensando bem, o que conta são os factos, a narrativa (digna do melhor do Reader's Digest, diga-se de passagem). 

A moral, cada um que a tire. E quanto ao mural, cada um que o pinte... Moralistas e grafiteiros do meu país, divirtam-se! 

A minha (moral) é apenas a da filosofia baseada na evidência. E quanto ao mural, sempre preferi o branco-da-cal-da-parede. Com aviso: 

(i) pintado de fresco; 
(ii) por favor não encostar à parede; 
(iii) é expressamente proibido fuzilar (contra o muro).

Por azar o meu, recebi esta mensagem por e-mail, através de um amigo angolano (J.D.) que, coitado, também ele tem e-mail... Dei à história o meu toque pessoal. Vocês usem-na (e socializem-na)... para os devidos efeitos. Não posso evitar eventuais tentativas de branqueamento da história. A história é para se usar e branquear, dizem os historiadores oficiais. Mas esse não é o meu ofício. No fim, não se esqueçam do nosso trato: Ciber-humor com ciber-humor se paga...

Ter ou não ter e-mail: eis a questão!

Um homem respondeu a um anúncio da MicroDura com uma generosa oferta de emprego para desempregados de longa duração. O lugar era para empregado de limpeza. 

Um adjunto do Gestor dos Recursos Humanos (GRH) entrevistou-o, fez-lhe um teste (tão simples como varrer o chão, apanhar o lixo e enfiá-lo num saco) e disse-lhe:

- Parabéns, o lugar é seu. Dê-me o seu e-mail para eu lhe poder enviar a ficha. Depois de preenchida e devolvida, aguarde que a MicroDura lhe comunique a data e a hora em que se deverá apresentar ao serviço nos nossos headquarters.

O homem, embaraçado e nervoso, respondeu que não tinha sequer casa, e muito menos computador, e muito menos ainda Internet, endereço de correio electrónico e essas coisas todas. 

Aí o valente adjunto do GRH da MicroDura ficou branco como a cal da parede... Por essa é que ele não estava à espera!... Um cidadão norte-americano sem e-mail, o que era uma aberração sociológica, bloguissimamente falando !... O que iria pensar o Mr. Bill Gaitas ?!... Por fim, recompôs-se e disse:

- Lamento muito, mas se eu o senhor não tem e-mail, isso quer dizer que virtualmente não existe; e, não existindo, não pode ter o privilégio de pertencer ao admirável mundo novo dos colaboradores da MicroDura.

O homem saiu, envergonhado e, pior ainda, mais desesperado e desempregado que nunca. Tinha apenas 10 dólares no bolso. Em vez de ir ao McSandocha’s matar a fome, resolveu entrar num Bigmercado e comprar uma caixa de 10 quilos de tomate para revenda. 

Em menos de duas horas vendeu a mercadoria, porta à porta, num dos bairros mais próximos (habitado por negros e porto-riquenhos), tendo assim conseguido duplicar o seu capital. Repetiu a operação mais três vezes e obteve um lucro de 60 dólares.

No fim do dia, concluiu que podia sobreviver dessa maneira, pelo menos por uns tempos. Passou a trabalhar mais horas por dia. Rapidamente aumentou o seu pecúlio, e em breve comprou a sua primeira carrinha, em segunda mão. Uns meses depois trocou-a por um camião.

O resto da história é fácil de adivinhar: ao fim de um ano e meio já era dono de uma pequena frota e ao fim de cinco estava milionário, ao tornar-se o principal accionista de uma das maiores cadeias de distribuição alimentar nos Estados Unidos... 

Como podes imaginar, caro leitor, esta história de sucesso só podia ter acontecido na Terra Prometida e já se tornou um casestudy nos mais famosos cursos de MBA.

Pensando no futuro da sua nova família, o nosso homem resolveu fazer um não menos milionário seguro de vida. Chamou um corretor ao seu escritório e acertou um plano. Quando a reunião estava praticamente concluída, o corretor de seguros pediu-lhe o e-mail para lhe poder enviar rapidamente a proposta de contrato. 

O homem-que-se-fez-a-si-próprio respondeu, com a maior naturalidade deste mundo, que simplesmente não tinha nem nunca tivera nem nunca provavelmente viria a ter um endereço de e-mail. O corretor não queria acreditar e comentou, em tom de brincadeira:

- Você não tem e-mail e construiu todo este império!... Imagine até onde poderia ter chegado, se tivesse e-mail!... Quem sabe se não poderia estat agira sentado na cadeira presidencial,na Casa Branca!

O homem ponderou as palavras do corretor e respondeu-lhe, com a mais fina das ironias:

- Olhe, se eu tivesse e-mail, ainda hoje andaria, feito cão, a lamber o chão do escritório do Bill Gaitas!!!

Moral da história:

1. Ter ou não ter e-mail, eis a questão.

2. Se queres ser empregado de limpeza da MicroDura ou doutra grande empresa, procura antes de mais ter um e-mail.

3. Se não tens e-mail e gostas de trabalhar, ainda podes vir a ser milionário (ou até bilionário).

4. Se por acaso recebeste esta mensagem por e-mail,  é por que estás mais perto de ser empregado de limpeza do que ser milionário (para não falar de bilionário)...

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terça-feira, 23 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25432: 20.º aniversário do nosso blogue (9): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (VI): Na sua já famosa carta aberta a Salazar e Caetano, de 2010, o 'sínico' António Graça de Abreu recomendava-lhes vivamente a leitura do nosso blogue, lá no além...


Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf Mil António Graça de Abreu junto ao obus 14... Antes estivera em Teixeira Pinto. Terminará a sua comissão em Cufar, no sul, nas vésperas do 25 de Abril de 1974.

A 8 de Abril de 1974, em Cufar, escreve no seu "Dário  da Guiné": 

"De Lisboa a minha mulher continua a dizer-me coisas de espantar. Ao fim deste tempo todo, por exemplo: 'Não contas senão o superficial, a tua vivência aí chega a mim só pela rama'. Como é possível?!... Em vinte e um meses e meio fui três vezes a Portugal,  da Guiné escrevi-lhe trezentas e quarenta e sete (347, tenho tudo numerado!) cartas e aerogramas, desdobrei-me na narrativa, na descrição minuciosa do meu quotidiano e desta guerra, desde os muitos pormenores aparentemente insignificantes aos contextos maiores em que vivo. 'Não contas senão o superficial'. Como é possível ?!..." (in Diário da Guiné..., 2007, p. 211).


1. Esta carta aberta já aqui foi publicada há mais de 13 anos... Foi escrita pelo António Graça Abreu, antes de empreender uma grande viagem à China,  com pedido de publicação, em 21 de Maio de 2009... Lamentavelmente, por um monumental lapso nosso, só seria publicada 18 meses depois, em 16 de novembro de 2010... Merece agora voltar à montra principal do nosso blogue, no dia do nosso 20.º aniversário...

Como o dissemos na altura, é uma peça antológica, é um  documento de belo recorte literário e de mordaz ironia, senão mesmo de delicioso sarcasmo, sob a forma de carta aberta aos dois políticos que formataram este país e este povo, durante mais de meio século, legitimando uma guerra, de longa duração, a milhares de quilómetros de casa, e para  a qual ambos foram totalmente incapazes de encontrar uma inteligente e honrosa saída política... 

Não é um documento panfletário, é uma reflexão, didática, serena, bem humorada,  sobre as oportunidades perdidas por e para todos nós (incluindo os povos africanos, que poderiam ter chegado à independência por meios pacíficos, proveitosos e honrosos, para os dois lados, reforçando os nosssos nossos laços históricos comuns).

Mas é também uma carta de confiança no futuro, de confiança em Portugal, e nos portugueses, de confiança e de orgulho  na geração, a nossa,  que soube fazer a guerra e a paz, independemente dos efeitos perversos, contra-intuivos, n
ão-esperados, que teve a descolonização, um processo em grande exógeno, sobre o qual Portugal de 1974/75 não podia ter grande controlo: 

"Penso que não combatemos pela Pátria salazarista e marcelista mas por um Portugal e uma Pátria que nos circulava no sangue e no entendimento. Essa Pátria não nos pode ser negada. Era, é a nossa terra, eram, são as nossas gentes".
 

BI militar do nosso amigo e camarada António Graça de Abreu: 

(i) ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74; (ii) membro da nossa Tabanca Grande desde 2007; (iii) tem mais de 340 referências no blogue; (iv) é sinólogo, tradutor e escritor, autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp).

Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2011). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
Carta aberta aos Profs. António de Oliveira Salazar 
e Marcello Caetano

por António Graça de Abreu


(i) Introdução

António Graça de Abreu, ex-alferes miliciano na Guiné-Portuguesa, humilde cidadão que teve a ventura de nascer no ano de 1947, durante a longa jornada autocrática de V. Exª., Sr. Presidente do Conselho Dr. António de Oliveira Salazar, e depois de viver extremadamente os últimos anos da ditadura mole e pouco iluminada de V. Exª., Sr. Prof. Marcello Alves Caetano, também Presidente do Conselho, confessa, do fundo das circunvoluções do seu desgastado coração, que anda há um ror de anos com vontade de vos escrever.

A primeira dificuldade, para além da minha inabilidade e ausência de qualidades para me dirigir a tão excelsas e ilustres figuras da nossa História Contemporânea, tem a ver com o embaraço de enviar esta carta para o espaço adequado. Qual o lugar onde hoje se encontram, Excelentíssimos Dr. Salazar e Dr. Marcello Caetano? No fofo azul do Céu, nas agruras amarelas de uma passagem prolongada pelo Purgatório, nos calores vermelhos do Inferno?

Como não sei qual foi o destino que para vós Deus escolheu (dependente por certo de tudo quanto executaram ou mandaram fazer na vossa breve/longa vida terrena), envio esta carta para o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, na certeza de que terá um molho bem cheio de leitores, gente de excelente qualidade, e que V. Exªs., onde quer que estejam, a irão ler.

Este blogue do Luís Graça na Internet  – coisa que não existia no tempo de vossas vidas– é um imenso sucesso de comunicação. São testemunhos de ex-combatentes da guerra na antiga Guiné Portuguesa, trocas de opiniões, entendimentos, desentendimentos, desabafos, uma espécie de terapia colectiva, muitos anos após o regresso dessas paragens quentes e amargas que nos marcaram a todos.

A segunda dificuldade, ao escrever esta carta, prende-se com o modo de vos tratar. “Excelências, Senhores Presidentes do Conselho, Prof. Dr. Salazar, Prof. Dr. Marcello Caetano”? Todas estas denominações vos pertencem, associadas à importância e dignidade dos cargos que, em ditadura, ocuparam ao longo de tantos anos.

Ora, há uns três meses atrás, o António Lobo Antunes, ex-oficial miliciano médico em Angola, 1971/1973, na crónica que assina na revista Visão, escreveu um texto algo zangado com Deus que, no início de 2009, lhe levou dois dos seus melhores amigos. E António Lobo Antunes resolveu tratar Deus por tu. Ele é um pouco, ou muito despassarado, mas enfim…

Eu também tenho as minhas guinadas e manias, mas pairo baixo, a razoável distância do autor de Os Cus de Judas. E os Profs. Salazar e Marcello também não são deuses.

Não me levem a mal por, em bicos de pés no alto do meu banquinho de escritor pequeno e medíocre, (mas com quinze livros publicados), desejar tratar-vos igualmente por tu, com todo o respeito. Mas acho que não sou capaz.


(ii) A História

O nosso Portugal é uma das nações mais antigas da Europa. Fechados neste rectângulo, de costas voltadas para Espanha, tínhamos o oceano diante de nós. E, a partir do século XV, antes de quase todos os outros povos, embarcámos na ousadia e na loucura de navegar o mar. 

Áfricas, Américas, Índia, China, Japão, Austrália, nada do que eram então os grandes mares e as imensas terras desconhecidas parece ter escapado às quilhas das naus, ao calcorrear português, ao entendimento, nem sempre esclarecido, das gentes da pequena pátria lusitana. Demos “novos mundos ao mundo”, é verdade. E fixámo-nos em muitos desses lugares. Fomos ficando. Em meados do século XX ainda estávamos em Macau e Timor, na Índia, em Moçambique e Angola, nas ilhas de S. Tomé e Cabo Verde, na Guiné.

Depois de descobrirmos mais de meio mundo, face à pequenez do Portugal europeu, alimentámos naus e naus carregadas de mitos e sonhos. O bom do padre António Vieira (1608-1697) acreditava ainda num impossível Quinto Império lusitano espalhado pelo mundo e falava de nós como os que “têm a terra portuguesa para nascer e toda a terra para morrer”.

No século XIX construímos a ideia irrealista de um mapa “cor-de-rosa” a unir, sob domínio português, as terras de Angola e Moçambique. Na I Guerra Mundial (1914-1918) enviámos forças expedicionárias para França, para a Flandres, entre outras razões, para mostrar que tínhamos força (não tínhamos!..) e que outras potências europeias seriam mal sucedidas se algo fizessem para se assenhorearem das nossas colónias. 

Tivemos quinze mil mortos, (corrijam-me se estou enganado!),  bons filhos da terra portuguesa, nessa guerra estúpida e inútil. Como quase todas.

Em 1953, escrevia o general Norton de Matos, em choque aberto com V. Exª., Dr. Salazar, e que mais tarde haveria de se candidatar a Presidente da República pela chamada Oposição: 

“Que a vossa principal tarefa seja o engrandecimento da Pátria, dignificando-a (…). Não deixais que ninguém toque no território nacional. Conservar intactos os territórios de Aquém e Além-Mar é o vosso principal dever.” (in Norton de Matos, A Nação Una, Lisboa, Ed. Paulino Ferreira e Filhos, 1953).

Tudo isto V. Exª. conhecia, Dr. Salazar e, na linha do pensamento tradicional português e até do de alguns dos vossos opositores, Portugal afirmava-se “uno e indivisível”, estender-se-ia do Minho a Timor, eram “muitas raças, uma só nação”. Uma utopia, um sonho lindo e perigoso, inevitavelmente condenado pelos ventos e avanços da História.

A partir dos anos sessenta do século XX, quase todas as colónias das nações europeias em África transformaram-se em países independentes. Sabemos hoje que muitas dessas independências foram prematuras e constatamos como muitos dos pobres povos dessas terras, libertos do nada meigo jugo colonial, têm sido tratados pelos seus governantes africanos e chefes associados ao tribalismo, à incompetência, à corrupção, ao esmagamento dos mais elementares direitos humanos.

No que a Portugal diz respeito, naquele fatídico ano de 1961, perdíamos a Índia e logo de seguida iniciava-se a luta armada em Angola, com o massacre pela UPA (União dos Povos de Angola) de milhares de portugueses inocentes. 

O ódio racial era real e antigo, ao contrário do que a propaganda do regime de V. Exª., Dr. Salazar, queria esconder. A tese das “muitas raças, uma só nação” continuava a ser enganosa e iria provocar imensos sofrimentos ao povo português e aos povos de Angola, Guiné e Moçambique.

(iii) A Guerra

“Orgulhosamente sós”,  embarcámos aos milhares, de armas na mão para lutar contra o “terrorismo” em Angola. Em 1963, com o eclodir dos conflitos armados na Guiné e em Moçambique, novos espaços de guerra se abriram para os portugueses. Os chamados Movimentos de Libertação organizavam-se, contavam com poderosos auxílios externos (União Soviética, China, etc.) e Portugal fez um esforço tremendo para combater, com algum êxito, esses guerrilheiros que acreditavam lutar por um futuro melhor para a Pátria deles e queriam pôr fim a quatro séculos de mau colonialismo. O sangue, a dor, a morte passaram a fazer parte do quotidiano de Angola, Guiné e Moçambique.

Sempre na senda de um “passado glorioso”, da exaltação da nossa História, e também por razões económicas  
– Angola era, é, talvez o país mais rico de África – V. Exª, Dr. Salazar, insistia na “defesa da Pátria”, e V. Exa., Dr. Marcello Caetano, excelente professor na Faculdade de Direito de Lisboa, não discordava uma linha da política ultramarina seguida por Salazar.

Em 1968, eu não era nada de especial, tinha vinte gloriosos anos, vivera já durante um ano em Hamburgo, na Alemanha e, na Faculdade de Letras de Lisboa, fazia parte da Direcção da Pró-Associação de Estudantes e do Grupo de Poesia e Canção da Faculdade. Muitas vezes eram da nossa responsabilidade as primeiras partes dos espectáculos semi-clandestinos do Zeca Afonso, do Adriano, do Fanhais, do Zé Jorge Letria. Eu dizia poemas do Pessoa, da Sophia, do António Gedeão. Deste último, ainda sei de cor a Lágrima de Preta. Ignoro se V. Exas, Salazar e Marcello, são muito dados a estas coisas da poesia, mas aí vai:

Encontrei uma preta que estava a chorar
Pedi-lhe uma lágrima para analisar,
Recolhi a lágrima com todo o cuidado
Num tubo de ensaio bem esterilizado.
Mandei vir as bases, os ácidos, os sais,
As drogas usadas em casos que tais.
Nem sinais de negro, nem vestígios de ódio,
Água, quase tudo, e cloreto de sódio.

Podem pois adivinhar de que lado político eu me situava. A PIDE já me tinha debaixo de olho e o meu processo na PIDE (podem consultar, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PIDE/DGS, procº. 9175 C7 NT 7555) é muito interessante e equivale às medalhas que, por bem, não ganhei na Guiné Portuguesa.

Os tempos tinham mudado, em finais dos anos sessenta do século passado cada vez mais pessoas e muita juventude, sobretudo a que frequentava as universidades, começava a contestar a vossa autoridade e a justiça das guerras em África.

E o vosso erro foi não terem entendido, para bem de Portugal e dos povos africanos, que a era gloriosa da Pátria portuguesa espalhada pelos quatros cantos do mundo pertencia a uma História de que nos podemos e devemos orgulhar, mas era apenas isso, o passado.

V. Exª., António de Oliveira Salazar e depois, a partir de 1969, V. Exª., Marcello Caetano, descartavam as hipóteses de negociações com os movimentos de libertação. E os conflitos não tinham solução. Não conseguíamos vencer os guerrilheiros em luta, nem éramos vencidos por eles.

O povo português, os povos africanos sofriam barbaridades. Em nome de quê, porquê, para quê? Vocês estavam a adiar o inadiável, o inevitável.

Em 1968, V. Exº., Dr. Salazar nomeia o então brigadeiro António de Spínola para governador e comandante-em-chefe das tropas na Guiné. Spínola, que fora tenente-coronel em Angola, apercebe-se da impossibilidade de se ganhar militarmente a guerra. A questão era política, sempre foi política e ao lançar a estratégia política de Uma Guiné Melhor António de Spínola pretende transformar o “inimigo em nosso amigo”. Consegue alguns resultados e o PAIGC treme. Spínola começa progressivamente a alicerçar a ideia de uma muito maior autonomia para os territórios ultramarinos, uma espécie de federação lusófona, e inicia estranhas negociações com o “inimigo” que, em 1970, se viriam a saldar pelo cruel e cobarde assassínio de três majores portugueses por guerrilheiros do PAIGC.

V. Exª., Dr. Salazar, tinha caído da cadeira de lona no forte de Santo António do Estoril, batido com a cabeça no chão e incapacitado, ainda sem acreditar, terminava o seu longo consulado ditatorial ao leme dos destinos tortos de Portugal.

V. Exª., Dr. Marcello Caetano, era um homem mais aberto e moderno. Mas não acabou com a ditadura, nem com a polícia política, nem com a asfixia da sociedade portuguesa. No que às guerras de África dizia respeito, foi muito mais “continuidade” do que “evolução”. Portugal permanecia num doloroso beco sem saída.

Até que em 1973, de início por razões reivindicativas e corporativistas que tinham a ver com promoções na carreira, um grupo de capitães, oficiais do quadro permanente, todos marcados pela inutilidade, irracionalidade e impossível solução das guerras de África, decide avançar para um golpe militar e depor o regime que governara Portugal a partir de 1926.

V. Exª., Dr. Salazar, desde 1970, dormia o definitivo sono dos injustos na sua campa térrea de Santa Comba Dão. E V. Exª., Dr. Marcello, foi exilado para o Brasil. As guerras de África iam acabar porque o problema tinha solução, era, sempre foi político.

O que veio a seguir já não é da vossa responsabilidade, sois apenas culpados por ter protelado, adiado até ao impossível, uma necessária solução política para os conflitos em África.

A descolonização, como sabem, foi um inenarrável desastre, as tragédias da guerra civil em Angola, os conflitos em Moçambique, os massacres em Timor, o fuzilamento de centenas de militares e civis africanos na Guiné, homens que tinham combatido ao nosso lado ou apoiado as tropas portuguesas, enfim todo um rosário de mágoas, dor e morte que não terminou com a independência desses territórios. Como foi possível, pós independência, que quase todos os mais destacados e heróicos comandantes da guerrilha do PAIGC também tenham sido mortos em lutas intestinas entre eles? Como é possível que hoje, ano de 2009, quase metade das mulheres da Guiné-Bissau estejam ainda sujeitas à excisão do clitóris, uma prática bárbara, atentatória dos mais elementares direitos da mulher, direitos humanos? Como é possível que hoje, 2009, em Bissau não exista uma única livraria?

Mas não foi para me debruçar sobre estes temas que vos escrevi. Vamos falar de nós.

(iv) Combatentes

A minha mulher é chinesa [foto à esquerda], criada na Xangai comunista, República Popular da China, onde nasceu em 1961. Há dois anos atrás, quando resolvi ir buscar o meu diário de guerra na Guiné, mais uns aerogramas da época [foto abaizo], e comecei a passá-los ao computador prevendo uma possível publicação em livro, a minha mulher zangou-se comigo. Via-me sofrer ao reescrever os textos, constatava como aquele diário ainda bulia comigo, houve dias em que, na escrita, algumas lágrimas me rolavam pela face, e ela não gostava. Fala bem português, está em Portugal há 24 anos e disse-me mais ou menos o seguinte:

“Então que prazer estúpido tens em mexer nesses papéis, tu afinal pertenceste a um exército colonial que andou a matar os pobres dos pretos. Não é melhor tentar esquecer tudo isso e dedicar o teu labor a trabalhos mais saudáveis”?!..




Cópia de aerograma, original, escrito em linhas concêntricas, reproduzido no livro "Diário da Guiné".


Em Julho de 2008 tentei e consegui convencê-la a ir comigo a Fátima, ao segundo encontro dos camaradas da CCaç 4740, com quem estive em Cufar, sul da Guiné, durante dez meses. Fomos à missa (o que raramente acontece!) com muitos dos homens da companhia 4740 e ao almoço com eles e famílias. E a minha mulher entendeu por fim o que une estes antigos militares da Guiné. Compreendeu, em palavras simples, como somos amigos, entendeu a alegria que temos em nos reencontrar, em recordar, em nos sentirmos irmãos.

[ À esquerda, capa do livro do nosso camarada António Graça de Abreu, Diário da Guiné: Lama, Dangue e Água Pura.  Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007.... 


É isto, senhores Dr. Salazar e Dr. Marcello Caetano, que vos quero dizer, dar-vos a conhecer a evolução das nossas vidas. 

A guerra marcou-nos a todos, mas somos hoje companheiros fraternos, camaradas de armas recordando um duro passado comum, em terras que não eram as nossas, mas que continuam a exercer sobre nós todos os fascínios. Fomos obrigados a fazer uma guerra, é verdade, mas a grande maioria de nós também sabia fazer a paz, quase todos tiveram a humanidade e a dignidade de sair de cabeça levantada dessa guerra.

Centenas de milhares de homens passaram pelas guerras de África. Quase nove mil combatentes, no melhor dos seus vinte anos, lá perderam a vida. “Malhas que o império tece”, ou melhor, malhas cerzidas por uma política cega, de que vocês os dois foram os principais fautores.

Os meus heróis são os soldados portugueses que tombaram para sempre numa guerra injusta tendo por horizonte as bolanhas, o tarrafo e o verde e vermelho da bandeira portuguesa, os meus heróis são esses guerrilheiros anónimos do PAIGC que caíram no seu campo de luta.

(v) A Guiné

O velho Confúcio, nascido na China antiga no ano de 551 a.C., disse mais ou menos o seguinte: “Se conheces, actua como homem que conhece, se não conheces, reconhece que não conheces. Isso é conhecer”.

Como, apesar dos meus 62 anos, conheço ainda tão pouco, devo confessar-vos, Drs. Salazar e Marcello, que neste blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné tenho aprendido muito sobre o que aconteceu nos onze anos de guerra na Guiné e sobre esta essência tão obtusa de sermos portugueses.

Os testemunhos dos homens que viveram o conflito é sempre e naturalmente plural. Os nossos dois anos de Guiné tiveram cenários e tempos diferentes, as terras fulas de Bafatá e Nova Lamego (Gabú), o chão manjaco, com o Cacheu e Teixeira Pinto (Canchungo), Mansoa e o Morés, no sul, as terras do Tombali e do Cantanhez. Diversos espaços de luta, de excelente, extraordinária camaradagem e também de sofrimento. Ora, a Guiné dos anos 1964, 1967, 1970, 1972 ou 1974 não corresponde exactamente a um mesmo enquadramento logístico e estratégico. A guerra prolongou-se por onze anos. Depois, hoje escrevemos de memória, trinta e tal, quarenta e tal anos transcorridos. E a memória esquece, distorce, obscurece, exalta o entendimento.

Mesmo assim, muitos dos testemunhos dos ex-combatentes neste blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné assumem-se como marcos fundamentais das nossas vidas, imprescindíveis para entender quem fomos e somos.

Recomendo-vos vivamente a leitura do blogue, Profs. Salazar e Marcello.

Transparece, no entanto, em alguns dos textos publicados no blogue, reflexo também de falsas ideias feitas em estratos da sociedade portuguesa, uma constante ideológica de assumir culpas, de lançar culpas para o parceiro do lado, de subestimar as forças militares portuguesas e, lógico, de sobrevalorizar o poder dos guerrilheiros do PAIGC. Política, má política.

Fomos obrigados a combater contra povos pobres que acreditavam lutar por um futuro mais risonho para as suas pátrias. Não fomos militarmente derrotados. Porque, quase sempre fomos bravos, “forte gente” com “fracos reis”, como diria o nosso Camões.

Mas, V. Exª., Dr. Marcello Caetano, com algum fundamento, estava assustado com o que acontecia na Guiné, a partir de Abril de 1973, com os mísseis Strela e com a debandada de Guileje. Em Lisboa, com censura nos jornais, sem liberdade de imprensa, corriam extravagantes boatos. Dizia-se de boca bem aberta, mas à boca calada, que os aquartelamentos portugueses no sul da terra guineense caíam uns após outros. Contava-se que um quartel, a 30 quilómetros de Bissau, havia sido tomado pelo PAIGC, com centenas de mortos. Em Junho de 1973, à noite, às escondidas, em muros da cidade de Coimbra, alguém escrevia : “se tem o seu filho na Guiné, considere-o morto.”

Em V. Exª., Dr. Marcello Caetano, a preocupação crescia. Em Junho de 1973, mandava chamar o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Costa Gomes, recentemente regressado da Guiné e perguntava-lhe:

 
– A Guiné é defensável e deve ser defendida?
(…) A resposta do General Costa Gomes foi categórica:

 
– No estado actual, a Guiné é defensável e deve ser defendida.”

(in Marcello Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1974, pag.180.)


A menos de um ano do 25 de Abril, Costa Gomes considerava a Guiné “defensável”, o que era verdade em termos militares. Sim, mas à custa de tantos sacrifícios!… Quanto ao “deve ser defendida” era a perpetuação da tese política da defesa cega das terras africanas do império.

A Guiné-Bissau tornou-se um país independente a 23 de Setembro de 1974 e logo depois Costa Gomes chegou a Presidente da República portuguesa. As malhas rotas que o império tece.

(vi) Conclusão

António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano, Excelências

Espero que tenham lido com atenção esta minha despretensiosa carta. É apenas um desabafo do coração, mas espero que, graças ao fantástico e extra-terreno blogue do Luís Graça & Camaradas d Guiné, tenha chegado ao vosso mundo.

Nós hoje, somos ainda uns duzentos mil ex-combatentes da Guiné. Sexagenários e septuagenários, jamais esquecemos esses cada vez mais distantes dois anos das nossas vidas. Penso que não combatemos pela Pátria salazarista e marcelista mas por um Portugal e uma Pátria que nos circulava no sangue e no entendimento. Essa Pátria não nos pode ser negada. Era, é a nossa terra, eram, são as nossas gentes.

Com vinte e poucos anos, quase todos nós demos o melhor de nós próprios (às vezes a própria vida) numa guerra que não desejámos. Mas temos orgulho na nossa bandeira e nesse estranhíssimo sortilégio de se nascer português.

Homens, ex-militares da Guiné, somos hoje duzentos mil irmãos.

Saúda-vos, com pouca amizade, o António Graça de Abreu

(Revisão / fxação de texto, negritos,  numeração dos subtítuos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG)
____________

Nota do editor  L.G.:

(*) Último poste da série > 23 de abril de  2024 > Guiné 61/74 - P25428: 20.º aniversário do nosso blogue (8): Bem hajam!, a minha palavra de gratidão para os nossos editores e colaboradores (João Crisóstomo, Nova Iorque)

Vd. também poste de 21 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25418: 20º aniversário do nosso blogue (6): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (V): Canjadude, pânico no abrigo Norte: Ei!!!!!… malta… um Crooocoodiiiloooo!!!... (José Corceiro, ex-1º cabo trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", 1969/71)

domingo, 21 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25418: 20º aniversário do nosso blogue (6): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (V): Canjadude, pânico no abrigo Norte: Ei!!!!!… malta… um Crooocoodiiiloooo!!!... (José Corceiro, ex-1º cabo trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", 1969/71)

Foto nº 1


Foto nº 2 


Foto nº 3

Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > CCAÇ 5, "Gatos Negros" (1969/71) >  Fotos do álbum do José Corceiro

Fotos (e legendas): © José Corceiro  (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Excertos do poste P5669 (*), do José Corceiro, ex-1º cabo trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos"(Canjadude, 1969/71), membro da nossa Tabanca Grande desde 25/12/2009 (**)

(...) Estarei certo se afirmar que, nos dois anos e tal que passei na Guiné, na CCAÇ 5, em Canjadude, em situações normais (excluindo doença ou descanso por trabalho nocturno) não me deitei na cama meia dúzia de vezes no período entre as 12.00h e as 15.00h, o chamado “almoço e dormir a sesta”, é um hábito que nunca consegui adquirir e nunca senti falta dele.

Nesse período do dia (considerado de descanso) eu, se o tempo o permitisse, após o almoço era frequente ir até às rochas de Canjadude (Foto nº 2), que me ajudava a suavizar o desconforto da tensão do passar dos dias, alentando-me a escrever uns aerogramas, cartas, ou outras escritas que para mim eram essenciais. Era neste local de inspiração, expansão e tranquilidade, que eu amenizava a minha paz interior. (...)


José Corceiro
Encontrava amenidade ao ir até à Tabanca, ilusão de porta aberta que me deixava partir para a descoberta da terra da fantasia que eu sonhava, onde alguém por mim esperava. Envolvia-me com o seu povo, a tentar compreender e analisar os seus costumes, vivências e necessidades, que despertavam no meu íntimo, sentimentos consistentes de amizade e solidariedade. 

Deleitava-me, nesta hora, ir até à bolanha para ter contacto de proximidade com as lavadeiras, apreciar a destreza e desembaraço com que amanhavam a roupa.

(...) O dia 8 de Novembro de 1969, vá lá o diabo saber porquê,        o meu relógio biológico, neste dia, não me despertou para após o almoço ir para as rochas, Tabanca, ou   Bolanha e fiquei no abrigo                                                  Norte,   o meu hotel de 5 estrelas, todo refastelado no 1.º andar do beliche,                                  esparramado na minha cama, descontraído e absorto a ler o livro A Selva,                                      do Ferreira de Castro. 

Era perto das 13.30h, os alojados do abrigo estavam quase todos nas suas camas deitados, cada um a ruminar o seu abrolho, uns a cabecear, a sonhar, a ninar, a ressonar, a rosnar, outros a sonhar acordados, praticamente silêncio nocturno!

Eis senão, quando no meio deste sossego, agitando toda a tranquilidade, ouve-se uma voz aflita e horrorizada, dar um grito de alerta e perigo:
Brasão da
CCAÇ 5


- Ei!!!!!… malta… um Crooocoodiiiloooo!!!!!…..

Tudo alarmado olha e fica apavorado, pois toda a minha gente vê um crocodilo 
dentro do abrigo!!!!!.. Entra tudo em pânico, cria-se ali colossal agitação e sobressalto, com a inesperada visão do arrojado e assustador visitante, ouvem-se gritos de alvoroço por todo o lado. 

Num abrir e fechar de olhos transforma-se o abrigo em abrupta balbúrdia, que mais parece uma capoeira, cujos galináceos se excitam e aterrorizam com a entrada duma raposa matreira, no poleiro.                    Os aquartelados das camas do rés-do-chão, do beliche, quais macacos trapezistas começam a trepar emaranhados, para as camas do andar de cima,                        para encontrar protecção e afastar-se do perigo de tão ameaçador intruso. Outros, pegam na G3, posição em riste, dedo no gatilho, enquanto outros, de granada numa das mãos e a outra orientada para argola da cavilha, preparam-se para o assalto final ao temível e tímido bicho. Este, por sua vez, tentava descobrir refúgio e ocultação, procurando alguma toca debaixo das camas onde se pudesse abrigar e aninhar. 

Eu, curioso e incrédulo, observo com olhar mais atento e vejo parte do bicho, pois era descomunal, certifico-me que já em tempos tivera, nas rochas, contacto com um irmão deste, em tudo igual, ainda que de tamanho inferior. Daí, o meu grito sedativo:

- Ei!!!… rapaziada, tenham calma, que o réptil é da família das Iguanas, é um lagarto,  não faz mal a ninguém…!

Mas, o meu alerta de apelação para amainar o rebuliço, não surtiu efeito nenhum, palavras caídas em saco roto, estavam todos tão apavorados que só viam ameaças e perigo de vida, causada pelo indefeso animal.

O espaço no abrigo era acanhadíssimo, pois havia beliches de duas camas dum lado e do outro, um corredor estreitíssimo ao centro. A falta de espaço, aliada ao desalinho e confusão no abrigo, provocaram uma desarrumação caótica, devido às deslocações das camas e ao desorganizar objectos que se apoiavam nestas. O bicho encurralado movimentava-se naquela anarquia sem que ninguém o conseguisse imobilizar.

Eu, ao ver que os meus apelos lenitivos entravam por uma orelha a 5km/h e saiam pela outra a 100km/h e ao constatar que ninguém conseguia infundir um pouco de calma naqueles desgovernados militares, fiquei receoso e inseguro, pois temia que a todo o momento rebenta-se ali uma granada, que estavam distribuídase colocadas nos locais menos apropriados, ou que algum mais distraído, sentindo-se ameaçado começasse a dar tiro de rajada de G3. Ao ver-me envolvido em tamanha patacoada,  esgueirei-me dali, fui dar uma volta à Tabanca. Regressei passado meia hora, encontro o abrigo numa barafunda assustadora, até havia dificuldade para entrar, e, deparo-me com os meus haveres em displicência total, muitos deles caídos e espalhados pelo chão e o desgraçado do bicho já tinha sido sacrificado.

Logo depois de arrumar os meus objectos, que estavam num desmazelo de inspirar piedade, fui tentar investigar como chegou o “lagartão” ao abrigo. Consegui descobrir os últimos passos do atormentado animal, antes de se enfiar no corredor que o conduziu ao cadafalso.

Os répteis foram os primeiros vertebrados a libertar-se do meio aquático. São quanto à temperatura do corpo, devido ao seu sistema circulatório, ectotérmicos (calor vem de fora) isto quer dizer o seguinte: são animais que para regular (subir ou baixar) a temperatura do corpo, procuram ambiente adequado para equilibrá-la. Se têm o corpo muito quente, intuitivamente, acção de sensores, procuram sombra, se tem o corpo frio, procuram Sol, fonte de calor. Esta particularidade está definida no seu código genético e têm sensores que determinam o agir comportamental, mediante a temperatura do organismo.

O nosso “lagartão”, da ordem dos sáurios (esquamates), deve ter-se empanturrado de calor em cima de alguma rocha, (as rochas são concentradoras de calor e os répteis procuram-nas para se aquecer) às tantas, porque aqueceu excessivamente, teve necessidade de encontrar sombra para se refrescar, vai daí, deixou-se cair para dentro de uma das valas (trincheira) que ia desde as rochas à porta do abrigo Norte. Sendo assim, entrou no corredor que o conduziu, sem pedir licença, à porta da forca. Foi uma aventura sem retorno para o nosso animal ectotérmico.

Na foto do lagarto, que tinha quase dois metros de comprido, à frente do lado direito, são visíveis as pegadas do lagarto que confirmam os passos até cair na vala. Depois de cair nesta, não tinha capacidade de sair pelos próprios meios, pois a vala tinha mais dum metro de profundidade e era estreita de paredes na vertical. (Esta foto, não dá a real corpulência do animal porque foi tirada de muito longe, para grande enquadramento e agora teve que ser reduzida)


PS - Legenda da Foto n.º 1  > "O lagarto que procurou refúgio no abrigo Norte. Tinha cerca de 2m de comprido a foto devido a ter sido tirada de longe não dá a real corpulência do animal. Lado direito é visível as pegadas do bicho."

(Seleção, revisão / fixação de texto, edição das fotos: LG)


2. Comentário do editor LG:


Na Guiné, viu-se de tudo: manadas de elefantes junto ao arame farpado,  ou de gazelas a comer a mancarra da tropa, mulheres a alimentar ao peito cabritinhos órfãos, "jacarés" (que é coisa que não há), "mabecos" (que também não há), etc., para além de Mig 17 a sobrevoar Bissau à noite... E até "foguetões" a cair na sopa...

A história que o José Corceiro nos contta é uma delícia, e merece ser conhecida de todos... Podemos pô-la no anedotário da Spinolândia... Mas o soldado português não tinha que saber tudo, nem teve tempo, na recruta, na especialidade e na IAO, de aprender a distinguir a diferença entre um "lagarto" e um "lagarto preto"... (animais, de resto, de difícl observação).

Quanto ao bichinho da histótia, tudo indica, pela foto nº 1 e pela  descrição do autor, tratar-se de  um "Lagarto Preto" (em crioulo) (Osteolaemus tetrapis), animal hoje protegido na Guiné Bissau...É um réptil pacífico, inofensivo para o ser humano. Também lhe chamam noutras partes da África Equatorial crocodilo-anão.



Fonte: Guia de Identificação dos Animais da Guiné-Bissau. República da Guiné-Bissau, Direcção Geral dos Serviços Florestais e Caça, Departamento da Fauna e Protecção da Natureza, s/l, 34 pp. s/d (Disponível em formato pdf, aqui, no sítio do IBAP ,


Não confundir com o "Lagarto" p. d. (o crocodilo-do-Nilo, a que a tropa chamava "alfaiate")  nem com as iguanas... Sobre os répteis da Guiné-Bissau, vd. poste P22401 (***)

Por último, este poste  é publicado no  âmbito do 20º aniversário do nosso blogue (****).

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5535: Tabanca Grande (196): José Corceiro, ex-1º Cabo Trms, CCAÇ 5 (Gatos Pretos) (Canjadude, 1969/71)

(**) Vd. poste de 15 de março de  2010 > Guiné 63/74 - P5996: José Corceiro na CCAÇ 5 (6): Pânico no abrigo norte, crocodilo à vista

(***) Vd. poste de 24 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22401: Fauna & flora (16): Répteis da Guiné-Bissau que é preciso conhecer e proteger: 2 crocodilos, o crocodilo-do-Nilo (Lagarto) e o Lagarto preto; 
e duas linguanas (a de água e de mato)

Vd. também poste de 24 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22399: Fotos à procura de... uma legenda (153): Uma vez por todas, não havia nem há "jacarés" na Guiné-Bissau, mas "crocodilos" (e outros répteis)

terça-feira, 16 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25396: Humor de caserna (58): O anedotário da Spinolândia (IX)... O "Fugitivo", por Manel Mesquita ("Os Resistentes de Nhala, 1969/71", s/l, ed. autor, 2005, pp. 130/132)


Capa do livro do Manel Mesquita, 
"Os Resistentes de Nhala", ed. de autor, 2005, s/l, 2055, 144 pp. 
(Gráfica: Quadra - Produções Gráficas Lda, Vila Nova de Gaia.)
(Contactos do autor: tel 22 762 07 36 | telem 963 525 912)


1. Não havia só as anedotas do "Caco Baldé", ou do "Gasparinho"... Havia uma Spinolândia, do Cacheu ao Cacine... Naquela guerra, todos os bons pretextos para um gajo se rir ajudavam a passar o tempo e amenizar as agruras do arame farpado e das operações no mato (*)... 

Há "cromos" que ficam para a eternidade, "grafados" no papel. Outros vão desaparecer dos neurónios da nossa memória.  Já aqui citámos alguns dos "heróis" do livro do Manel Mesquita,   "Os Resistentes de Nhala, 1969/71" (ed. de autor,  s/l, 2005, 144 pp.), como por exemplo o Mário...

O Mário já estava farto de estar na Guiné e um dia encheu-se de coragem e interrompeu o general, em plena parada, em Aldeia Formosa, para expor a sua situação: "Vossa Excelência, meu general, dá-me licença ?" (**)...

O general deu-lhe "licença" e o Mário ganhou um "bilhete" para regressar a casa  no primeiro barco... A história foi contada pelo Manel Mesquita, o autor dos "Resistentes de Nhala",  soldado da CCAÇ 2614 / BCAÇ 2892 (Bissau, Nhala e Aldeia Formosa, 1969/71). 

O nosso crítico literário já lhe dedicou em tempos, ao livro e ao seu autor (que conheceu a caminho de Fátima), duas saborosas e generosoas "notas de leitura" (***)

(...) "Este testemunho deixa-me emudecido, o Manel é um coração pacífico, nunca mais esquecerá Nhala. E o que ele vai registar de tipos humanos, camaradas que encontrou, gente inesquecível, é surpreendente." (...) 

Nessa galeria de figuras humanas, do tempo da Spinolândia, está o "Fugitivo"... Merece figurar aqui num poste, na montra grande do nosso blogue. Não sei se o Spínola o conheceu, mas deveria, por certo, de gostar de o conhecer. Nós gostámos e pedimos licença ao Manel Mesquita para partilhar o seu retrato-robô com os nossos leitores. É um retrato feito a traço grosso, convenhamos. Mas o leitor vai-se rir a bandeiras despregadas, como nós rimos. 

É uma figura bem típica da "literatura  pícara" da nossa guerra. Como é nosso timbre, não fazemos juízos de valor sobre os nossos camaradas... A verdade é que "a tropa mandava desenrascar"... E o "Fugitivo" era um militar desenrascado... À letra, desenrascado é alguém que se sabe "livrar de um perigo, de apuros, de dificuldades."...

Reproduzimos aqui, com a devida vénia, essas duas páginas do livro. É também uma homenagem aos "resistentes de Nhala", os bravos da CCAÇ 2614.


O "Fugitivo"

por Manel Mesquita

O "Fugitivo" era natural e residente no concelho de Sintra. Era fisicamente muito baixo e entroncado, um artista a jogar futebol, preferia o lugar de médio atacante.

Quando fomos para a recruta, rodava na televisão uma série com o nome "O Fugitivo". Ele assentou praça com um braço ao peito por fratura. Como havia outro, o outro levou com a alcunha de "Maneta". E o nosso Manuel Pedro M... levou com a alcunha de "Fugitivo". 

Nunca se importou. Era uma pessoa alegre e com sentido de humor. 

(i) A tomar banho, um dia, deu nas vistas o seu curto pénis, foi motivo de chacota durante toda a comissão, principalmente na presença de mulheres africanas. Ele não desarmava, dizia que era proporcional ao corpo.

(ii) Quando veio de férias, gabou-se e passou a constar-se que andava com uma determinada moça jeitosa e com dote. Tinha barba muito forte, uma manhã foi ao barbeiro, todos os cumprimentaram o recém-chegado e deram-lhe a vez. 

Quando o barbeiro lhe passava a navalha de barba pela parte da frente do pescoço, perguntou-lhe:

− Então você é que é o tal que se gaba que anda a comer a minha filha?!

O Manel Pedro (como é lá conhecido) perdeu o sentido de humor, quase perdia a fala:

− Eu?!..., na, na, eu não!... É mentira. Isso é uma grande mentira..., eu até nem gosto de mulheres!!!...

O barbeiro voltou-se para a sua mesa de trabalho, passando a navalha pelo assentador.

O "Fugitivo" mostrou  por que lhe chamavam tal nome: levanta-se da cadeira, larga as toalhas e, junto da porta, grita para dentro:

− Eu... eu até sou paneleiro!

Fugiu da barbearia com a barba meia feita e meia por fazer e toda por pagar, nunca mais  por ali ele quis passar. 

Mostrou, mais uma vez,  que não foi por acaso  que o batizaram como "Fugitivo". Ficou então a saber a que a tal Maria do Carmo era a filha do barbeiro...

(iii) Quando convidado para um petisco, era sempre o primeiro a aparecer. Era um bom garfo! Para trabalhar e para as saídas (para o mato) era sempre o último. Quando preparávamos a saída, o alferes perguntava se estava o "Fugitivo"; se sim, estava tudo, podíamos sair.

Escapava-se,  sempre que podia,  às faxinas e outros serviços de quartel.

(iv) Um dia segredou a um de nós que a namorada se queixava que nos aerogramas e cartas não lhe mandava palavras doces... Então o "Fugitivo" encheu-lhe uma aerograma de palavras como: marmelada, geleia, mel, açúcar, compostas, etc., isto para o pequeno-almoço;  para o almoço: laranjas, tangerinas, etc.; para  o lanche, marmelada, mel, geleias, etc.; para o jantar:  uvas, figos, maçãs, pêras, etc. 

(v) Um colega estava com uma máquina fotográficas na mão, ele meteu-se  todo dentro de um bidão e... pediu-lhe:

− Tira-me uma fotografia de corpo inteiro para mandar à moça.

(vi) Num dos patrulhamentos, parámos para descansar junto à "Bolanha dos Passarinhos". Tirou a carga para descansar e,  quando levantámos, nunca mais se lembrou que deixara ali no chão o cano suplente da HK 21. 

Quando chegou oa aquartelamento deu pela falta. Preocupado, disse a todos a enrascada  em que estava envolvido, que tinha que ir lá  buscar o cano. 

Como raramente falava a sério, ninguém se acreditou. Era noite, preparou-se e começou a ir sozinho. Foi aí que o pessoal se acreditou, e apareceram voluntários a comunicar e a pedir autorização ao capitão para ir ao local.

O "chefe" comprendeu a aflição do soldado e mandou uma viatura. Soubemos que havia correio em Buba, aproveitámos  e fomos lá buscar o que para nós era importante receber. A viatura avariou, e não havia mecânico. Desenrascámo-nos, mas chegámos ao aquartelamento era quase meia-noite, sem jantar e sem comunicações com ninguém, mas já com o cano que era considerado material de guerra.

(vii) Dizem que um dia mandou dizer à mãe (não sei esta é verdade, ele nega; "lerpar" era um calão que queria dizer, para nós, morrer)... Ter-se-á referido a um colega duma aldeia vizinha, nestes termos:

− Minha mãe, o ... (nome do fulano) lerpou. Vai antes do tempo. Um dia destes ele vai chegar aí, num barco.

Na volta do correio, a mãe respondeu-lhe:

− Meu filho, vê se lerpas também, para vires mais cedo daí! 

(Revisão / fixação de texto para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG)

Fonte: in Manel Mesquita, "Os Resistentes de Nhala", ed. autor. s/l, 2005, pp. 130/132.
(Gráfica: Quadra - Produções Gráficas Lda, Vila Nova de Gaia.)

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Notas do editor:

(**) Vd. poste de 26 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25308: O Spínola que eu conheci (36): A história do Mário, da CART 2478, contada pelo Manuel Mesquita, da CCAÇ 2614 ("Os Resistentes de Nhala: 1969/71", ed. autor, 2005)

quarta-feira, 6 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25242: Notas de leitura (1673): Recordando o Augusto Cid (Horta, 1941 - Lisboa, 2019) e o humor na guerra (Virgínio Briote)


 





Cartoons da guerra... Do álbum 
Que se passa na frente?!!, com a devida vénia...

1. Mensagem do nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote:

Data - 4 de fevereiro de 2024, 21: 58

Assunto - Recordando o Cid e o humor na Guerra

Augusto Cid nasceu na Horta, em 1941 e morreu em Lisboa em 14 de março de 2019. Publicou os livros.
Dois anos antes de morrer, em entrevista ao Jornal I, Augusto Cid, que foi antigo combatente em Angola, não deixou de desenhar.

“Curiosamente eu fazia a minha guerra – não a guerra que eles queriam que eu fizesse. Cumpria a minha obrigação, julgo eu, mas depois quando chegava ao destacamento rapava dos meus lápis de cores e das minhas aguarelas e fazia um cartoon sobre aquilo. Quando vi que havia umas páginas de cartoons numa revista militar pensei: ‘Posso trabalhar com eles’. Curiosamente não era mal pago. Davam-me 150 paus por cartoon, que era dinheiro. E faziam concursos em que o prémio era 500 escudos e eu ganhava quase sempre, portanto ganhava mais nos desenhos que fazia do que como furriel”, recordou.

"A guerra é uma boa escola da vida. Só tem um pormenor: é que se pode morrer com facilidade durante o ensinamento. Tirando isso, é uma belíssima escola”, disse ainda.

Anexo alguns "bonecos" do Cid,  extraídos do livro "Que se Passa na Frente" (com a devida vénia...)

Abraço do V. Briote

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