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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Guiné 64/74 - P25437: 20º aniversário do nosso blogue (10): Inconfidências de um antigo combatente que é mais "blogueiro" do que "feicebuqueiro": Se eu não tivesse criado este blogue, hoje seria 'mais feliz, livre, saudável e provavelmente rico' ? (Luís Graça)


1. Humor com humor se (a)paga... e é ainda o que nos vale, rir e saber rir. Mas nesta onda de comemorações dos 20 anos do nosso blogue (*), deixem-me, caros leitores, partilhar aqui um pequeno segredo... 

Já me têm dito ou insinuado que se eu não tivesse "a m... do blogue", hoje seria "mais feliz, livre, saudável e provavelmente rico"... Acusam-me, às vezes, de ter prejudicado a minha vida pessoal, familiar e profissional por causa das... "blogarias", da "m... da guerra" e dos camaraadas da Guiné", etc. 

Ainda é cedo (espero eu...) para arrumar as botas, lavrar o testemento vital e, mais importante ainda, fazer as "partilhas" ... Por que eu sei que "fica cá tudo", um gajo leva, ou não pode levar,  nada de "material"para  o outro mundo "imaterial"... Não sei o que é que conta lá: quando eu era pequeno, diziam-me que eram as "boas acções" (ainda se escrevia com dois c).

Vem isto a propósito de um aniversário em que, se calhar, há pouco a celebrar (aos olhos dos críticos do blogue)...Não me compete a mim fazer esse juízo. Limitei-me apenas a usar a "força da inércia"... O comboio começou a andar, muito lentamente é certo, em 23/4/2004... 

Uns meses antes, ainda se estava na fase dos "ensaios": era versão beta do nosso blogue, que antes de se chamar "Luís Graça & Camaradas da Guiné", era o "blogue-fora-nada" e depois o "blogue-fora-nada-e-vão-três"... 

Em 1999, quatro anos antes, já tinha criado, muito antes que os meus colegas, a minha página pessoal e profissional... Ao fim de vinte e poucos anos, a instituição onde trabalhei "descontinuou" a página... (Recuperei-a,  há tempos, mas é um "aqruivo morto", não a posso atualizar)

Só por mera curiosidade dos "blogueiros" (que nos leem) (ou que ainda são mais "blogueiros" do que "feicebuqueiros", o que começa a ser raro), posso adiantar que o primeiro poste (ou postagem) que publiquei no "blogue-fora-nada" foi este, que a seguir reproduzo, com data de 8/10/2023...

Ao reler  "conto com mural ao fundo", quase 25 anos depois, não deixo de esboçar um sorriso amarelo, quiçá amargo... E penso na minha vida: e eu não tivesse tido e-email, nem página na web, nem blogues, nem computador(es) ?... Será que hoje seria "mais feliz, livre, saudável e provavelmente rico" ?
 
A pergunta é idiota, porque não tem resposta... Não há "ses" na vida de um  homem. Só há uma vida, única, irrepetível... Sei que não vou ter outra "chance", se a desperdicei, tenho que assumir as consequências até ao fim e beber a taça amaraga da "cicuta"... 

Mas o leitor pode ler ou reler a história e, até, eventualmente, achar-lhe piada...Eu, confesso, que mr deixou deprimido a releitura do meu primeiro "conto com mural ao fundo" (em parte adaptado)...


Blogue-fora-nada > Estórias com mural ao fundo - I: Ter ou não ter (e-mail)

por Luís Graça


Tenho por (mau) hábito perguntar às pessoas que vou conhecendo "se têm e-mail"... Mas depois de ler a história a seguir, não vou ter mais lata para o fazer: 

(i) é indelicado; 
(ii) pode ser embaraçoso; 
e (iii) até pode dar azar... 

Um dia houve alguém que me respondeu, com agressividade mal contida: "Não tenho... mas será que já é obrigatório ?"...

Nós, os ex-clérigos (durante séculos o pessoal universitário, incluindo os estudantes, estavam sujeitos ao direito canónico e só com o triunfo do liberalismo é que o reitor de Coimbra passou a ser um leigo!), temos dificuldade em imaginar um mundo sem livros, sem cátedras e, agora, sem Internet, sem blogues e sem e-mail...

Não sei se é obrigatório ter e-mail (ou se vai sê-lo em breve), mas a verdade é que todos os dias nos ameaçam com a infoexclusão, uma espécie de upgrade das labaredas do inferno. Há muito boa gente que hoje em dia teme ser acusada de infoanalfabeta e pensa que, "pelo sim, pelo não, sempre é bom ter e-mail, não vá o diabo tecê-las"... E quem diz e-mail, diz outras buzzwords horríveis tais como url, password, username, nib...

Já assim pensavam, noutro contexto, os cristão novos de Trancoso que assinalavam, com uma cruz, as suas casas, não fossem os cristãos velhos desconfiar que eles eram judaizantes, logo ignorantes e inimigos da fé cristã (a única, a verdadeira, a dominante)... A cruz era a password e o e-mail daqueles tempos em que os portugas sucumbiram à tentação totalitária...

Por isso, "ter ou não ter e-mail: eis a questão" é uma história com moral... E com mural ao fundo. 

Ponderei seriamente se havia de a pôr a circular entre @s car@s ciberamig@s... Há sempre o risco de uma leitura demasiado literal, apologética, direi mesmo...primariamente neoliberal !!! Mas, pensando bem, o que conta são os factos, a narrativa (digna do melhor do Reader's Digest, diga-se de passagem). 

A moral, cada um que a tire. E quanto ao mural, cada um que o pinte... Moralistas e grafiteiros do meu país, divirtam-se! 

A minha (moral) é apenas a da filosofia baseada na evidência. E quanto ao mural, sempre preferi o branco-da-cal-da-parede. Com aviso: 

(i) pintado de fresco; 
(ii) por favor não encostar à parede; 
(iii) é expressamente proibido fuzilar (contra o muro).

Por azar o meu, recebi esta mensagem por e-mail, através de um amigo angolano (J.D.) que, coitado, também ele tem e-mail... Dei à história o meu toque pessoal. Vocês usem-na (e socializem-na)... para os devidos efeitos. Não posso evitar eventuais tentativas de branqueamento da história. A história é para se usar e branquear, dizem os historiadores oficiais. Mas esse não é o meu ofício. No fim, não se esqueçam do nosso trato: Ciber-humor com ciber-humor se paga...

Ter ou não ter e-mail: eis a questão!

Um homem respondeu a um anúncio da MicroDura com uma generosa oferta de emprego para desempregados de longa duração. O lugar era para empregado de limpeza. 

Um adjunto do Gestor dos Recursos Humanos (GRH) entrevistou-o, fez-lhe um teste (tão simples como varrer o chão, apanhar o lixo e enfiá-lo num saco) e disse-lhe:

- Parabéns, o lugar é seu. Dê-me o seu e-mail para eu lhe poder enviar a ficha. Depois de preenchida e devolvida, aguarde que a MicroDura lhe comunique a data e a hora em que se deverá apresentar ao serviço nos nossos headquarters.

O homem, embaraçado e nervoso, respondeu que não tinha sequer casa, e muito menos computador, e muito menos ainda Internet, endereço de correio electrónico e essas coisas todas. 

Aí o valente adjunto do GRH da MicroDura ficou branco como a cal da parede... Por essa é que ele não estava à espera!... Um cidadão norte-americano sem e-mail, o que era uma aberração sociológica, bloguissimamente falando !... O que iria pensar o Mr. Bill Gaitas ?!... Por fim, recompôs-se e disse:

- Lamento muito, mas se eu o senhor não tem e-mail, isso quer dizer que virtualmente não existe; e, não existindo, não pode ter o privilégio de pertencer ao admirável mundo novo dos colaboradores da MicroDura.

O homem saiu, envergonhado e, pior ainda, mais desesperado e desempregado que nunca. Tinha apenas 10 dólares no bolso. Em vez de ir ao McSandocha’s matar a fome, resolveu entrar num Bigmercado e comprar uma caixa de 10 quilos de tomate para revenda. 

Em menos de duas horas vendeu a mercadoria, porta à porta, num dos bairros mais próximos (habitado por negros e porto-riquenhos), tendo assim conseguido duplicar o seu capital. Repetiu a operação mais três vezes e obteve um lucro de 60 dólares.

No fim do dia, concluiu que podia sobreviver dessa maneira, pelo menos por uns tempos. Passou a trabalhar mais horas por dia. Rapidamente aumentou o seu pecúlio, e em breve comprou a sua primeira carrinha, em segunda mão. Uns meses depois trocou-a por um camião.

O resto da história é fácil de adivinhar: ao fim de um ano e meio já era dono de uma pequena frota e ao fim de cinco estava milionário, ao tornar-se o principal accionista de uma das maiores cadeias de distribuição alimentar nos Estados Unidos... 

Como podes imaginar, caro leitor, esta história de sucesso só podia ter acontecido na Terra Prometida e já se tornou um casestudy nos mais famosos cursos de MBA.

Pensando no futuro da sua nova família, o nosso homem resolveu fazer um não menos milionário seguro de vida. Chamou um corretor ao seu escritório e acertou um plano. Quando a reunião estava praticamente concluída, o corretor de seguros pediu-lhe o e-mail para lhe poder enviar rapidamente a proposta de contrato. 

O homem-que-se-fez-a-si-próprio respondeu, com a maior naturalidade deste mundo, que simplesmente não tinha nem nunca tivera nem nunca provavelmente viria a ter um endereço de e-mail. O corretor não queria acreditar e comentou, em tom de brincadeira:

- Você não tem e-mail e construiu todo este império!... Imagine até onde poderia ter chegado, se tivesse e-mail!... Quem sabe se não poderia estat agira sentado na cadeira presidencial,na Casa Branca!

O homem ponderou as palavras do corretor e respondeu-lhe, com a mais fina das ironias:

- Olhe, se eu tivesse e-mail, ainda hoje andaria, feito cão, a lamber o chão do escritório do Bill Gaitas!!!

Moral da história:

1. Ter ou não ter e-mail, eis a questão.

2. Se queres ser empregado de limpeza da MicroDura ou doutra grande empresa, procura antes de mais ter um e-mail.

3. Se não tens e-mail e gostas de trabalhar, ainda podes vir a ser milionário (ou até bilionário).

4. Se por acaso recebeste esta mensagem por e-mail,  é por que estás mais perto de ser empregado de limpeza do que ser milionário (para não falar de bilionário)...

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segunda-feira, 22 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25422: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (27): Melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho...

Título das páginas centrais (4 e 5) do "Diário de Lisboa", de 18 de janeiro de 1934. São escassas as referências ao que se passou na Marinha Grande e noutros pontos do país, de Almada a Silves, de Lisboa a Coimbra... E nos dias seguintes a censura foi implacável: não há mais referências a estes acontecimentos, de resto ainda hoje ignorados ou mal conhecidos dos portugueses... Sobre o 18 de janeiro de 1934, ler por exemplo o artigo de Fátima Patriarca, publicado na "Análise Social", em 1993.

Contos com mural ao fundo: 
nada como ter um bom pai

por Luís Graça

− Há gajos que nascem com o cu virado para a lua. E que fazem gala disso… Como o teu cunhado, por exemplo…

 Quem, o Ulisses?

  Sim, Jorge, só tens um,  que eu saiba.

  Já agora retifica: ex-cunhado... E,  se queres que te diga, nunca fomos muito à bola um com o outro.

O Fernando (Nando, para os amigos) aproveitou  então para esclarecer o seu interlocutor, o Jorge, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril… 

Mal saiu a amnistia, da Junta de  Salvação Nacional, aos faltosos, refratários e desertores, o Ulisses voltou à sua terra para abraçar o "paizinho" e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.

Veio com pressa, o Nando mal conseguiu pôr-lhe a vista em cima. Mas ainda se lembrava dele na escola, ao ex-cunhado do Jorge, hoje o senhor embaixador, com nome de rua na terra, o doutor por extenso Ulisses  C...

Foi um puto mimado, pelo menos  na escola. O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. (Ou rica e importante, como queira o leitor.) O Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente nos ditados de português (à compita), no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.

 Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola  acrescentou o Jorge.

 Foi um sortudo, o Ulisses!... E era  competitivo!

 Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!"

 A dona Natércia?!...  exclamou o Nando.  A parteira que  nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o meu velho mestre, o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.

 Há,  sim. E a nossa terra não teria agora uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...atalhou o Jorge.

A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira da terra a salvara a ela e ao seu menino…

− O "menino de sua mãe"..., estou a ver!

− A minha ex e as suas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele  , confidenciou o Jorge, uns bons anos mais velho do que o Nando. 

Nascera prematuro, mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto,  um sortudo... 

− Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos − interrompeu o Fernando (que era médico).

Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Afredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital.  Estamos a falar dos finais da guerra, doze anos depois, em 1944, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa. Como o Jorge,o Nando e todos os demais da sua geração...

− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrou o Fernando.

Em amena  cavaqueira com o Jorge, o historiador da terra, o homem que mais sabia sobre as misérias e  as grandezas das famílias tradicionais da vila,  o Fernando veio  a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…

− Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que sempre achei uma ingratidão  comentava o Jorge.  No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado. 

− A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época, se bem me lembro − atalhou o Nando.

Claro, o paizinho, o sr. Anselmo,  visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade,  até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas  descobriram que o pai tinha arranjado uma amante... 20 e tal anos mais nova, com casa posta num concelho vizinho.

 Mas… exilado, dizes tu?!   − interroga-se o Fernando.

 É uma figura de estilo. Como sabes, ele fugiu à tropa.

  À tropa ou da tropa?... Não é a mesma coisa: legal e tecnicamente, ele não foi um "fujão", como se costuma dizer em relação aos desertores.  Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou  desertor era bem mais grave do que faltoso na época, até porque estávamos em guerra.

Aqui o Jorge gracejou com o Fernando,  dizendo:

− Eras ainda um puto, não te deves lembrar...  Mas em 1961, e eu já em Angola,  não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:

− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano,  vai ocupar e usurpar descaradamente...

− ... a nossa joia da coroa!...− apressou-se o Jorge a completar a  frase do seu  amigo.

E depois elucidou-o:

− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota de sangue contra as tropas do Pandita Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o maior dos desprezos… 

− Só soube isso muito mais tarde... Também não sei de semelhante humilhação aos nossos militares,  na nossa história. 

− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais do concelho,  que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos  pelos vizinhos. 

 Mas tu também te lixaste, Jorge, foste o primeiro ou dos primeiros da terra a marchar em 1961, para Angola, "rapidamente e em força"... 

− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela.  E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital de Belém.

Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o sr. Anselmo.  

Das suas origens do sr. Anselmo, sabia-se pouco. Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sucesso, em termos  pessoais, familiares e profissionais.  Aqui casou aqui, teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios. E ganhou muito dinheiro...

− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte...  − observou, com sarcasmo, o Jorge. 

Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos basbaques dos putos da escola)…  

− Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros e promissores, com países da Europa do Norte. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.

Começou no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias... 

− Ainda sou do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital... E a estrada ainda era macadamizada.− disse o Jorge.

Os negócios do sr. Anselmo foram crescendo no pós-guerra, em condições de mercado mais favoráveis, e sobretudo ao longo da década de 1950, com a crescente abertura da economia, a eletrificação e a industrialização do país, etc., ao ponto de se ter tornado, à escala regional, um médio industrial. 

− Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos em Jerusalém − acrescentou o Jorge sobre o currículo do seu ex-sogro.

Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores).

Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da  hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos,  portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. 

Passou a ter lugar na primeira fila na igreja, ao lado dos notáveis locais que tinham contribuído  com um "conto de réis ou mais" para o restauro da igreja matriz. (Eram "poucos mas bons", e sobretudo "almas piedosas", esses beneméritos, como dizia publicamente o pároco, a quem os dos "reviralho" chamavam, entre dentes, o "sabujo dos ricos"; mas convenhamentos, um conto de réis,  no início dos anos  50, não era um fortuna, seriam a preços de hoje qualquer coisa como pouco mais de  550 euros...).

Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. E até se dizia, as más línguas do costume, que era "maçon" (coisa terrível e misteriosa que ninguém sabia o que era).

− O sr. Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente,  acompanhar a esposa. Claro, nunca o viram comungar...

O Jorge achava que ele era mesmo "maçon" (a maçonaria estava proibida) e, claro, do "reviralho", do "contra"...Durante a II Guerra Mundial, dizia-se que era "anglófilo" (até pro ter uma bomba da Shell).

− Mas finório como ele sempre foi,  nunca falou de política  comigo. Nem nunca o ouvi falar de política com os filhos.

Também é verdade, declinou em 1958 o  convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando  a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe, embora fosse um autodidata e poliglota. Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca pelos quais nutria, de resto, um profundo mas secreto desprezo.  

Recusou igualmente um linsonjeiro convite para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra. 

Em boa verdade, a razão não era essa: ele já movimentava mais dinheiro que a câmara toda... A autarquia, pobretana, nessa época, dependia do "fundo para o desenvolvimento da mão-de-obra"  e das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público ou abrir um estradão ...

Com uma grande superioridade moral, elevação de espírito, e sobretudo talento para os negócios, deixou bem claro, à tacanha elite local, que não precisava da política para subir na vida... 

Comprou e restaurou o melhor palacete da vila, para inveja de muitos. Acabou,   todavia, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".

Em contrapartida, sabia-se pouco ou nada da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.

− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indagou o Fernando (que, como médico, conhecia a história  da Marinha Grande).

 Sim, mas ele não gostava de falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a  casa da família, depois de casado. 

O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que  parecia mais verosimil, aos olhos  do dr. Fernando ... 

A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de  Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Também nunca houve grande curiosidade em saber mais da vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados.

Das poucas vezes que o Anselmo, a mulher e os filhos foram a Veira de Leiria, em passeio, aproveitando para visitar uns primos, deu para perceber melhor a sua origem: esses parentes ainda viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.

− Apesar da distância, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, só para assistir ao espetáculo da  arte xávega  ( com "os bois a lavrar o mar") e passar lá  uns dias na terra da sua mãe... 

Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a mulher e os filhos detestavam,  preferindo São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as famílias burguesas da região...

Estamos, entretanto, a falar de uma época em que  o industrial, o empresário capitalista, era menos considerado socialmente do que o comerciante ou até o funcionário público.  O Salazar era um "rural".  O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.

Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se  as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos, mais conservadores,  reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional... 

A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil, barata e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada imparável, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.

Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamemnte as quintas) dessas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público ou  vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores... Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".

Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano ou tiraram um curso médio,  o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE, a  Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, e outra,  assistente social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório da empresa.

O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, antes que fossem ocupadas. 

Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Não foi "vira-casacas", como muitos outros, logo a seguir ao 25 de Abril. 

Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito  por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República.

 O Ulisses não era propriamente um amigo do peito do Fernando. Eram apenas conterrâneos, vizinhos e colegas de escola...

− Três anos nos separavam... além dos seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de "menino rico". 

Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila.  Na altura juntavam-se os putos das várias classes. Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que o Fernando nunca pôde frequentar (era filho de caseiro). 

Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro, com o pai,  por ocasião da  Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras. 

− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge. Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 14 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.

Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, antes que as coisas dessem para o torto (como deram). 

Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1944. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. Vinha munido de uma valente cunha e de um relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de  Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar.

O melhor que o Ulisses conseguiu foi uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos pais.

Podia ter acabado o curso de germânicas, nas calmas (desde que não chumbasse), antes de ser chamado para a tropa,  mas, logo em 1964 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos e negócios. 

−  Tudo combinado com o paizinho, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato.   adiantou o Jorge.   Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios. 

− Mas a vida (ou a guerra de África)  trocou-lhe as voltas − adiantou o Nando.

De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena patética que terá feito lá em casa, "preferia mil vezes ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de herejes, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores". 

− A mãe, a minha ex-sogra,  era uma boa senhora, conservadora,   beata e amiga dos pobres. 

E não autorizava que se falasse de política  à hora das refeições.  De resto, não era hábito falar-se da  "porca da política" (sic) naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes.

A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, em 1962. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras". A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo... E o sr. Anselmo aqui também não abriu os cordões à bolsa...Dez contos era muito dinheiro...

A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as novas oportunidades que lhe surgiram pela frente na sua nova terra... Formou-se em direito europeu em Maastricht, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.

− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. − Hoje tem uma reforma dourada, um vasto capital de relações sociais, é livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vive entre  o Algarve  e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não nos falamos, desde que eu me divorciei da sua irmã. Nem nunca mais apareceu por cá.

− Mas tem cá nome de rua, desde que passou a ser comendador...

− Em boa verdade, não sei o que é que ele fez pela nossa terra... O pai, sim,  mas esse nem um nome de beco tem...

− De qualquer modo, ele  é mais holandês do que português!  − arrematou o Fernando. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.  

− Teve um bom padrinho... o sogro holandês.

− Eu diria antes:  melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho − concluiu o  Fernando.

© Luís Graça (2023). Revisto em 20 de abril de 2024,
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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25394: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (26): um país de gente porreira - II (e última) parte

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Guiné 61/75 - P25412: 20.º aniversário do nosso blogue: (5): Vinte anos a construir memórias (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CCAÇ 2381 - Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70)



VINTE ANOS A CONSTRUIR MEMÓRIAS

por Zé Teixeira


Q
uando libertos da pressão da guerra que tínhamos sido forçados a praticar e sentir na pele, na Guiné… que nos mantinha em silêncio. Doentio silêncio que nos abafava o espírito e que a pouco e pouco se foi curando…

Quando libertos da pressão que a liberdade trazida pelo 25 de abril, nos empurrava para um outro tipo de silêncio, porque segundo os mais extremistas, (alguns deles vindos do exterior, onde se refugiaram para evitarem a mobilização), nós, os combatentes, tínhamos sido lacaios do Estado Novo, do fascismo, e até de assassinos fomos apelidados…

Pois! Quando estas pressões se foram dissipando, começou a bailar dentro da nossa cabeça um vazio. E agora?!...

Eu sentia uma nova pressão. Precisava de falar dos acontecimentos, que o Estado Velho me tinha forçado a viver: das dores, das lágrimas, do sangue que vi derramar, dos camaradas que ficaram estropiados do físico e do espírito, dos camaradas que vi partir ingloriamente, na flor da juventude, sem lhes poder valer, dos “caguefes” que senti tantas vezes, os quais desapareciam, como por encanto, quando as balas começavam a assobiar por cima das nossas cabeças, ou quando os estilhaços das granadas se espetavam na terra à nossa frente, ou “cantavam” ao traçar a ramagem das árvores, atrás das quais nos protegíamos, em que o pensamento dava uma volta sobre si mesmo e nos punha a pensar – como sair daqui? Desapareciam os “caguefes” e começava a luta pela sobrevivência.

Precisava de fazer uma limpeza à caixa dos pirolitos, de fazer a catarse, como está cientificamente comprovado e é moda dizer-se.

Por onde começar? Com quem falar? Ninguém me queria ouvir. Apenas os meus filhos queriam que lhes contasse, à laia de aventura, o que tinha feito na guerra, como agora, os meus netos – conta Avô a história daquela menina que andava sempre ao teu colinho, ao debruçarem-se sobre as fotografias a preto e branco queimadas pelo tempo, perdidas num álbum carregado com o pó da história.

Pois?! E agora?

O Luís Graça, em boa hora, e já lá vão vinte anos, resolveu tirar o “tapa chamas” do computador e começou a disparar em todas as direções que a Internet lhe permitia, não com balas assassinas, mas com o seu blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, mais propriamente o pomposo Blogueforanadaevaotres, falando de si, das suas vivências na guerra que não quis fazer, mas foi obrigado. Sim. Naquele tempo, ou se ia para a guerra, ou se escapulia a salto para França, confundindo-se ainda hoje o medo, com a dignidade da objeção de consciência, que poucos sabiam o que era e como se podia obter.
O nosso editor Luís Graça, sempre por detrás de uma máquina fotográfica, a sua imagem de marca

Então fugia-se, e, se fosse apanhado pela PIDE ou pela Guardia espanhola era devolvido à procedência e ganhava o direito de embarcar para a guerra, logo de seguida, antes que desse novamente corda às sapatilhas. Assim aconteceu com o meu amigo Fernando que foi “convidado” para ir passar umas férias a Gadamael em 1973 e andou desenfiado na bolanha, aquando do cerco ao quartel. Salvou-o o comandante da Corveta que andava por perto e à revelia das ordens emanadas de Bissau, recolheu umas centenas de jovens militares e civis que, para fugirem da morte que espreitava por todos os cantos de Gadamael, se refugiaram na perigosa bolanha, que rodeava o aquartelamento, ganhando um stress pós-traumático de guerra, que lhe destruiu o futuro.

Para espanto do Luís Graça, não tenho dúvidas, começaram a surgir de todos os cantos, companheiros da jornada que se prolongou por cerca de treze anos, sem armas, sem medos, mas com vontade de conversar, de partilhar as suas “guerras”, de contar as suas dores e suas angústias, as suas alegrias e tainas, o seu estado de alma, talvez o seu desespero. À data éramos um mundo de gente. Hoje, muitos já partiram, contrariados, para o aquartelamento eterno. Nós, os resistentes vamos aguentando a parada no BlogueForandaevãotrês, mais conhecido pelo blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, que surgiu na sequência do primeiro Blogue, que se esgotou no espaço.

Tudo começou em 23 de abril de 2004, quando o inspirado Luís Graça se lançou à aventura.


V. N. Gaia > Madalena > 26 de Dezembro de 2005 >  Na casa da irmã e do cunhado da Alice Carneiro, a Nita (1947-2023) e o Gusto > Uma minitertúlia de camaradas e amigos da Guiné... > Da esquerda para direita: o nosso editor LG (cunhado dos donos da casa),  o A. Marques Lopes, o Zé  Teixeira, o Albano Costa e o seu filho Hugo Costa, e ainda o saudoso Francisco Allen (mais conhecido pelo Xico de Empada, ou Xico Allen, 1950-2022).

Quem diria que estava aqui um dos embriões da  Tabanca Pequena de Matosinhos (pequena só de nome), que iria surgir três anos depois, em 19 de Novembro de 2008. O A. Marques Lopes e o José Teixeira são dois dos régulos iniciais: os outros  se seguiram,   o Álvaro Basto e o Jorge Teixeira (Portojo) (1945-2017), o João Rebola (1945-2018), e agora o Eduardo Moutinho  Santos, entre outros (corre-se sempre o risco de cometer a injustiça da omissão)

Foto (e legenda): © Hugo Costa / Albano Costa  (2005).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Logo sentiu uma “chuveirada”, não de estilhaços, mas de postes com testemunhos vivos, concretos, “disparados” por camaradas que à data não conhecia, como eu, por exemplo, que quando o descobri (fins de 2005) logo comecei a mandar bojardas e ainda vou dando uns “tiritos” de vez em quando, como este, que apenas pretende dar-lhe os parabéns pela iniciativa e agradecer-lhe, a ele, e a tantos camaradas a quem hoje me sinto ligado e preso por uma amizade solidificada neste “estar e sentir” de uma guerra em que participamos sem querer.

Obrigado, Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, por ser o meu intermediário na relação com tantos camaradas, muitos dos quais nunca tive a oportunidade de dar o meu abraço, mas a quem me sinto ligado por laços de profunda afetividade. Para todos vós, um abraço do tamanho do Geba.

Obrigado, mais uma vez, Luís Graça e Alice pela profunda amizade, meu mano querido, que nos une e que nasceu naquela véspera de Natal, na Madalena em 2005.

O meu profundo agradecimento, também, ao Carlos Vinhal, em especial, por me ter aturado tantas vezes, e a todos os co-editores que têm dado forma a este nosso grito de paz.

Agora, somos cada vez menos e estamos mais velhos. Muitos de nós já “esgotaram” as munições, ou perderam a vontade e a força de continuarem a escrever, mas continuam, pela calada, a visitar todos os dias o “nosso” Blogue, e de vez em quando, lá sai mais um comentário, ou num rebuscar de memória, mais um acontecimento que estava escondido num escaninho da massa cinzenta. Não desistam, por favor, porque se não formos nós a contruir a nossa história, outro virão, e a nossa verdade histórica corre o risco de ser deturpada.

Aos que deixaram a vida na Guiné e aos que já partiram ao encontro do Além, o meu profundo sentimento de que estejam, onde estiverem, se sintam em paz. Na certeza de que todos nós nos encontraremos por lá um dia.

Aos camaradas que, como eu, continuam a luta pela vida, que se sintam com a saúde possível e não desistam de viver.

Um Grande abraço do
Zé Teixeira

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Nota do editor

Último post da série de 6 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/75 - P25348: 20.º aniversário do nosso blogue (4): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (IV): Um roteiro poético-sentimental para um regresso àquela terra verde-rubra (Joaquim Mexia Alves / Luís Graça)

terça-feira, 16 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25394: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (26): um país de gente porreira - II (e última) parte

 Palácio Nacional de Mafra: uma visão romãntica, em litografia de 1853, da autoria de João MacPhail (que morreu em 1856). Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/12043

Imagem do domínio público, Cortesia de Wikimedia Common


Contos com mural ao fundo >  II (e última) Parte

por Luís Graça (*)


6B. Não te assustaste com o 25 de Abril.
Bem, não foi bem assim.
Não estavas a contar, deves dizê-lo.
O Ravasco também não,
e era bem mais imformado do que tu.
Tu tinhas algo a perder e, se calhar, algo mais a ganhar.
Claro, foi um desgosto para a tua mãezinha.
Para mais, o seu filho mais velho (esse é que era o "morgado",
e que também era professor  como ela),
apareceu-lhe um dia, em casa.
De barbas, cabelo comprido e cravo ao peito.
E com uma "flausina", uma namorada, de calças, e sem sutiã...
A pobre da tua mãezinha ia morrendo, de apoplexia.


A verdade se diga: ninguém a chateou por ser do Movimento Nacional Feminino, que acabou logo, dali a uns dias, por decreto da Junta de Salvação Nacional, onde estava o Spínola com quem tu, aliás,  até simpatizavas um bocado. Os outros não te diziam nada, com exceção talvez do Costa Gomes, que fora teu comandante-chefe em Angola (nunca o voste), e que também era nortenho como tu. Flaviense.

E, de resto, a tua mãezinha  já não dava aulas, tinha funções meramente burocráticas, na área da administração escolar. Logo que teve condições, isto é,  reuniu os requisitos legais, pediu a aposentação. Ainda bastante nova.  Percebeu que o seu tempo (e quiçá o seu mundo) havia acabado. 

Infelizmente ainda não tinha netos para cuidar. Mas dedicou-se ao seu jardim. Tinha uma cultura de camélias. E abriu a capela  da família, do séc. XVIII,  ao povo da freguesia. Sempre ornada de flores, camélias... Achaste um gesto bonito. E, afinal, inteligente. Democrático.  A capela até então estava vedada ao povo da aldeia, ali nos arredores de Ponte de Lima. O que era mal visto. Até para fazer um velório ou outro, as pessoas às vezes pediam-lhe e ela recusava.

Tinha muito orgulho, a tua mãezinha,  na capela onde repousavam os restos mortais de alguns dos seus queridos antepassados. Contrariando as leis de saúde dos Cabrais, ainda lá foram inumados, até tarde, até quase aos fins do séc. XIX, alguns dos teus avoengos.  

Claro que já nenhum padre lá ia  dizer missa. Os padres também aprenderam com a história passada, e, para o clero, sobretudo o mais jovem, era bom ser democrata (ou pelo menos aparentá-lo). Como o teu amigo de Mafra, mas esse já era democrata antes do 25 de Abril. Quer dizer, era do "contra".

A chatice maior que a família teve, no pós-25 de Abril,  foi com os rendeiros. "Poucos mas ingratos e velhacos", como já dizia o teu pai.  Recusaram-se a pagar a renda em géneros. Ainda se usava, e vinha desde há séculos,  o sistema da parceria agrícola (pagamento a meias ou ao terço, conforme os produtos eram da terra ou do ar). 

O teu irmão deu um jeito, resolveu o conflito. Chagou a cabeça a toda a gente da família.  Disse que "não, senhora,  minha mãe, que aquilo era senhorial, semi-feudal, pré-capitalista, que daqui a uns tempos  já se estava no ano 2000, e ainda  se lavrava a terra com os bois em Ponte de Lima!"... 

O teu mano era o "comuna" da família. Naquele tempo até dava jeito ter um "comuna" na família. Depois veio a lei do arrendamento rural e tudo se normalizou. Mas não foi preciso esperar muito para as terras ficaram sem rendeiros, nem bois, nem podadores, cobertas de mato. E a tua mãezinha voltou a ter que comprar batatas e cebolas no mercado. Mal dela se tivesse que viver das rendas dos rendeiros. E em anos ruins perdoava-lhes as rendas, depois da morte do marido. Nisso, era afinal um coração bondoso, e guerreiro, da estirpe da Maria da Fonte (que ela admirava).

O teu pai, um amanuense,  também dera a volta ao texto. Extintos os organismos corporativos, foi "reconvertido",  a nível profissional.  Os grémios da lavoura deram origem a cooperativas agrícolas. E tudo ficou como dantes. Ou quase. Não perdeu os seus hábitos, muito menos a sua tertúlia dos copos e dos petiscos. " E nunca quis mais saber da política!", confidenciou-te ele um dia. Mas morrerá cedo, coitado,  passados uns anos. 

Tu próprio também acabaste por "apanhar o barco" (ou, como se dizia na Ericeira, "surfar a onda"). Deixaste crescer o cabelo e passaste a usar uma boina basca.  Preta. Descobriste o teu lado (adormecido) de anarquista. E, confessavas, soube-te bem respirar o ar da liberdade que tu, em boa verdade, não tinhas tido quando nasceste no seio de uma família limiana tradicional.  Apesar de toda a gente ter um rótulo, tu recusaste-te  a revelar as tuas opções político-ideológicas, quer dizer, o partido em que votavas nas primeiras eleições. 

O Ravasco, muito mais à esquerda do que tu (acha que eras do PPM, o partido popular nonárquico), quis meter-te no sindicalismo, mas tu disseste-lhe  logo que "não senhor, muito obrigado, há coisas para as quais um limiano  de sangue azul como eu não tem jeito nem feitio nem vocação". Fizeras a tropa, já chegara esse tempo em que andaras "arregimentado".

A princípio, depois do 25 de Abril,  o Ravasco era o terror do "adjunto" e do "grupo das meninas", lá  na repartição  de finanças de Mafra.  Tens que o reconhecer, foi um gajo decente,  não houve saneamentos nem correu sangue, que era uma situação que tu detestarias, no caso de as coisas terem descambado para aí... Talvez por ter feito uma guerra, o Ravasco mostrou-se aos teus olhos surpreendentemente maduro e responsável.  

 A tua consideração por ele subiu mais uns pontos. Mas secretamente deu-te gozo ver aquele grupinho de sacanas baixar a bolinha. De um dia para o outro, a sorte mudara. Não vale a pena um gajo cantar de galo e montar as galinhas,  esquecendo-se que quem faz pintos também faz galuchos e garnizés. Mas não tiveste tratamento recíproco. A ti, continuaram a desprezar-te como "filho de Ansião"...

Ainda foste, com ele, no teu carro, a Peniche, ver a saída dos presos políticos, em 27 de abril. Não tinhas lá ninguém teu conhecido. Mas também não concordavas com as prisões políticas nem com a  censura à imprensa nem com os pides ... Nunca se discutia política lá em casa, mesmo que os teus pais fossem simpatisantes do Estado Novo (pelo menos votavam na União Naconal e depois na ANP, a tal Acção Nacional Popular, sem convicção, por dever de  ofício. ) 

Levaste também no teu Mini o Ravasco ao 1º de Maio, em Lisboa... Viste ao longe o Mário Soares e o Álvaro Cunhal.  Não sendo republicano, ficaste com um certo respeito por eles. Pelo menos, foram homens que lutaram pela liberdade dos outros, dando o corpo ao manifesto.  Mas nunca tinhas visto tanta gente junta, gritando palavras de ordem, de punho erguido.  Sempre tiveste a fobia das multidões. E daí nunca teres ido a desafios de futebol (nem a touradas e, muito menos, a comícios!).

Percebeste cedo que "aquela não era a tua praia", preferias a Ericeira e a Foz do Lisandro... Foi mais para fazer companhia ao Ravasco, um gajo de quem a pouco a pouco começaste, sem saber bem porquê,  a gostar como amigo, ou até talvez como o irmão que te fazia falta, a algumas centenas de quilómetros de casa... 

Foi ele que começou a tratar-te por tu, a seguir ao 25 de Abril. A princípio, custou-te, repugnava-te até, mas lá te foste habituando,  a pouco e pouco. Na família sempre houvera a norma do tratamento por você.  O respeitinho sempre fora muito bonito entre os teus. Chamava-te agora "pequeno-burguês", com hífen, qualificativo que tu nunca sabias muito bem o que queria dizer. Interpelavas o safado do Ravasco: "É por gostar das coisas boas da vida ? De gajas ? Ou ter um velho Mini com jantes especiais?"... 

Nunca to esclareceu... Sempre o achaste, nesse aspeto,  um bocado moralista. Rígido, em certas coisas. 

Em Braga irás conhecer o verão quente de 1975. Mas desse tempo não gostarias de   falar. Ficaste desgostoso com as posições radicais que alguns amigos e conhecidos teus, de um lado e do outro, tomaram, na altura do PREC.  A começar por católicos que se sentavam na missa, ao teu lado. Aí, sim, temeste que a coisa pudesse degenerar em guerra civil. 

A tua mãe, que sabia muito da História de Portugal,  falava-te dos horrores que haviam sido as guerras liberais, fratricidas. Na tua família parece que houve tanto "malhados" ou "jacobinos", partidários do Dom Pedro, como "corcundas", seguidores do Dom Miguel, estes talvez em maior número. E só se juntaram na "Patuleia", em 1847,  os "realistas" e os "setembristas" ou "progressistas", da Junta do Porto. Daí tu não te admirares de o teu mano ser "comuna do 26 de Abril". Houve muitos vira-casacas. Acontece em todas as mudanças de regime. E em todas as famílias. A tua, afinal, era como as outras.

Mais tarde voltaste a Ponte de Lima onde o teu mui amado tio-avô, materno, solteiro,  e que não tinha herdeiros diretos, te deixou em doação uma quinta. Uma pequena quinta, maneirinha, boa de se fazer. Tu eras o seu sobrinho-neto querido. Por causa da política, cortara relações com o teu mano, professor primário, esse, sim, o "senhor morgado", que ficou com as fracas terras da família, estoirando-as em pouco tempo...

Reformaste-te da função pública, no bom tempo. Fizeste uma formação em vitivinicultura. Descobriste os encantos da vida no campo.  E, para surpresa do Ravasco, não te casaste nem fizeste filhos (que tu soubesses), nem sequer escreveste um livro, mas plantaste árvores  e vinhas. E disso podes orgulhar-te.


7A. Uns tempos antes do 25 de Abril, ainda em Mafra,
o Bacelar havia-te apresentado ao padre, seu amigo,
de que espantosamente já não recordas o nome.
Simpatizaste, de imediato, com ele.
E depressa encontraste nele um homem
capaz de ouvir (e sobretudo de saber ouvir)
o relato dos teus “fantasmas” da guerra de África.



No fundo, ele acabou por ser o “confessor”, mais do que o simples confidente ou ouvinte passivo, de que tu estavas a precisar, ali, desterrado e amargurado. Na realidade, e até então, nunca falaras da guerra a ninguém, não tinhas sequer amigos íntimos com quem pudesse partilhar as tuas confusas e doridas memórias, da infância, do seminário, da guerra... A não ser, afinal, com o Bacelar.

Ao fim da tarde, antes do jantar, a meio da semana, tinhas por hábito juntarem-se, tu, o Bacelar e às vezes o padre, na tal "tasca dos jaquinzinhos" (na realidade era já um misto de tasca e  bar a virar para  modernaço)...  Tomavam a bica ou uma cerveja, davam dois dedos de conversa, comentavam as notícias dos jornais. Era uma espécie de tertúlia. Às vezes juntava-se à mesa um ou outro jovem estudante,  conhecido do grupo, ou das relações do padre. E noutras meses aparte, um ou outro cadete.

Talvez já em março de 1974, não sabes se antes ou depois do 16 de março, a revolta das Caldas, que  alvoraçou a malta do "reviralho" (incluindo o Bacelar que lá estivera uns anos antes como 1º cabo miliciano), a conversa foi parar, sem tu  dares conta, à Guiné e à guerra. Sabes que te perdeste e me abstraiste do que se passava à tua volta. Não te apercebeste sequer de quem estava na mesa do lado. 

O padre, mais velho do que tu uns anos, gostava de te ouvir e raramente te interrompia com um pedido para esclarecer este ou aquele ponto, e muito menos para manifestar a sua concordância ou discordância. Revelava, isso, sim, uma grande empatia, o que veio reforçar a confiança que ele te inspirava, logo desde o início. Em suma, sabia ouvir, o que era, quanto a ti, uma qualidade essencial num confessor. Os que tu tiveras, até perder a fé, eram mais inquisidores do que confessores….

Ficaste também com a ideia de que ele estava minimamente familiarizado com o meio castrense. Não te admiravas, estava  habituado  a lidar com a tropa numa terra como aquela. Talvez até ele tivesse sido capelão militar, antes de vir para aqui, conjeturavas tu.  Ou talvez ainda quisesse vir a sê-lo, a guerra do ultramar estava para dar e durar, pensava muito boa gente.  Estava, de resto, em idade para isso, para ser capelão. Teria cinco anos a mais do que tu, já a roçar os 30. Nunca lhe perguntaste a idade, por delicadeza. Vieste depois a saber que alguns dos seus paroquianos eram militares da EPI ou seus familiares.

Se bem recordas hoje, a quase meio século de distância, o teor da conversa (na realidade, um longo monólogo) girava à volta dos "prisioneiros" que a tropa fazia na Guiné. Ali não havia prisioneiros de guerra, garantias tu, ou se os havia não eram tratados como tal. Portugal não estava, técnica e legalmente, em guerra com nenhum país soberano, pelo que não podia haver prisioneiros de guerra. Mas tu nunca tinhas lido a Convenção de Genebra. Os guerrilheiros ou simpatisantes  do PAIGC quando aprisionados, no decurso da actividade operacional das nossas tropas, eram tratados como simples presos de delito comum. Ou seja, eram "turras". 

Sob tortura, davam informações relevantes sobre o dispositivo militar do PAIGC no setor ou região, bases ou “barracas” (acampamentos temporários), população, nome dos comandantes e dos comissários políticos, bigrupos, armamento, trilhos, depósitos de armamento, lojas do povo, locais de cambança, etc. Eram um "livro aberto"... E, claro, eram forçados a servir de guias para levarem a tropa até ao “objetivo”. 

Sempre fora assim, ainda antes do teu tempo,  e tu, como todos os outros graduados, quer do quadro, quer milicianos,  fechavam os olhos ou assobiavam para o lado. “Siga a marinha!", dizia o capitão. Nunca torturaste ninguém. Mas alguém tinha que fazer o trabalho sujo. Afinal, à guerra não era para meninos de coro.

Estavas a contar-lhes, ao padre e ao Bacelar (a tua atenta audiência),  as peripécias de uma operação em que tu comandavas a tua companhia, já com o teu capitão de baixa no hospital militar de Bissau. Havia outras forças envolvidas, e nomeadamente um pelotão de caçadores nativos e um pelotão de milícias que faziam parte do teu destacamento. 

A milícia seguia à frente a abrir caminho e  com o prisioneiro a servir de guia. Éram dois destacamentos, A e B, a avançar, numa manobra de envolvimento, “em tenaz”, para o “objetivo”, uma “barraca”, um acampamento onde estaria um bigrupo, ou menos (talvez cerca de 40 homens), situado a montante de um rio e na orla de uma mata espessa, de tipo floresta-galeria, ao longo da margem de um rio. Estavam bem armados, incluindo morteiro 81.

O prisioneiro era balanta, não falando uma única palavra de português. Era muito  jovem e bem constituído. O alferes de 2ª linha, que comandava o pelotão de milícias, mantinha com ele um difícil diálogo em crioulo. Tu seguias no seu encalce, dez metros atrás, com o teu guarda-costas, e o homem da bazuca. Percebest que o prisioneiro há mais de uma hora fazia tudo para despistar a tropa ou denunciar a sua presença, à medida que se aproximavam do objetivo.

Às tantas, foram detetados (o que era normal) por uma sentinela avançada, no alto de um bissilão,  que deu o sinal de alarme… O teu guarda-costas abateu-o, com um tiro certeiro, mas acabaram  por ser flagelados por fogo de armas pesadas.  De imediato, foram  vítimas de um brutal ataque de abelhas. 

Na confusão que logo ali se instalou, o prisioneiro ensaiou uma tentativa de fuga, mesmo algemado e preso a uma corda. O  milícia, que o conduzia foi suficientemente lesto para o impedir de se internar na mata, acabando por o alvejar no último segundo, já no fim de um dos  trilhos que levavam à “barraca”, e que ele devia conhecer, de olhos fechados.

Pelo PCV (Posto de Comando Volante), a avioneta onde estava o major de operações, receberam  ordens para abortar o assalto, uma vez gorado o efeito surpresa e o aparente desnorte das nossas tropas, dispersas pelo ataque de abelhas e a “morteirada” do inimigo. 

Reagruparam-se  na orla de uma bolanha, com o ferido a sangrar, enquanto os T-6 entraram em ação despejando bombas sobre o “objetivo”. E regressaram sob proteção do helicanhão.  

Foi nessa altura que o comandante da milícia, espumando de raiva, saltou sobre as costas do prisioneiro, como um verdadeiro felino, e rasgou-lhe a coluna vertebral de alto a baixo, com a sua faca de mato bem afiada. O prisioneiro caiu redondo no chão mas não teve morte fulminante. Ainda viste alguém, da milícia,  dar-lhe um tiro de misericórdia na nuca e cortar-lhe as orelhas, prática que, de resto, não era invulgar em circunstâncias com estas… Dizia-se que era um ritual guerreiro dos fulas, mas o Spínola deixou de achar graça, quando lhe meteram na cabeça que a guerra também se ganhava pelo charme, a "psico", o respeito pelo inimigo, blá-blá, blá-blá...


Ficaste sem pinga de sangue, nunca tinhas presenciado uma cena de guerra daquelas, nem nos filmes do faroeste onde era pressuposto os índios e os os cobóis tirarem o escalpe aos mortos. E não tiveste sequer tempo nem reflexos para impedir uma barbaridade daquelas. 

O mais grave é que, por cobardia ou para não arranjar chatices, omitiste esta cena no relatório que ajudaste a fazer com o comandante do outro destacamento, que era capitão.  Oficialmente, o prisioneiro-guia fora morto quando intentava fugir… E o alferes de 2ª linha  era um grande operacional, muito bem visto (e protegido) pelo comando do batalhão do setor. Falava-se já na sua próxima gradução em tenente, indo ao encontro da política de Spínola de "africanizar" cada vez mais a guerra. 

Estavas tu a acabar o relato deste triste episódio da tua guerra, quando da mesa ao lado salta um jovem que se dirige ao padre e diz com veemência:

 É tudo mentira, senhor padre!... Uma infâmia, uma calúnia!... Isso nunca poderia ter acontecido na nossa querida Guiné e muito menos por homens que envergam e honram a nossa farda. O senhor meu pai, oficial superior em Bissau [disse o nome, o posto , a unidade, etc.] , está lá, neste momento, rezo por ele todas s noites e  sei que ele nunca pactuaria com práticas indignas de um exército que defende a nossa pátria e os valores da nossa civilização cristã e ocidental!...

O padre, reconhecendo de imediato o jovem (ou talvez ainda adolescente)  e temendo pela tua integridade física, arrastou-o com força para um canto da sala e fez tudo para o acalmar… Não contaste os minutos, tu próprio estavas perplexo e chocado com toda aquela violência verbal, intempestiva e  gratuita… 

Passaram-se talvez uns bons vinte minutos,  foi longa (e áspera) a conversa do padre com o jovem… De copo de água na mão, o jovem parecia, no entanto,  estar a acatar a autoridade do padre, que o tentava acalmar… Por fim, lá saiu da sala, em passo estugado, mas não sem antes te voltar a fulminar com o olhar. Por certo que ficaste marcado, pensaste tu com os teus botões. Ficaste com a ideia de que, a partir daquele momento, tinhas ganho mais um inimigo naquela maldita terra.

O padre regressou à mesa, limpando o suor da testa, aliviando a pressão do cabeção no pescoço, ao mesmo tempo que pedia desculpa e tentava ensaiar uma explicação para aquele assomo de violência juvenil:


 É um paroquiano meu, excelente rapaz mas muito impulsivo. Conheço-o há uns boms anos. É filho de uma ilustre família de militares... Mas podemos considerá-lo “órfão de pai”, cresceu com o pai em África. Tem uma enorme admiração pela figura paterna e prepara-se para ingressar na Academia Militar, daqui a dois anos...

O Bacelar saiu contigo, mudo e calado. Mas incomado, tanto ou mais do que tu e o padre. Nunca mais os três falaram do  assunto.


8A. Epílogo


Infelizmente, o  Bacelar já não está cá, entre os vivos, para se poder continuar a manter esta espécie de monólogo a dois... 

 Como o tempo passou, meu Deus!

O Bacelar morreu num estúpido acidente de trator agrícola, há uns anos atrás, trinta e muitos anos depois de 1974. Numa vinha, nova, em socalco, que ele plantara e amanhara com uma paixão e um carinho que te comoveram, até às lágrimas, quando lá foste participar numa vindima, talvez por volta de 1997, se não erras, altura em que ele fez 50 anos. Tinha uma bela vinha com castas loureiro e alvarinho. "Era a menina bonita dos seus olhos"... Não tinha filhos, ficara solteiro...

“Contra todas as probabilidades”, como dizia ele, os dois ficaram  amigos para o resto da vida. E, no entanto, só conviveram em Mafra, menos de dois anos, separando-se já no final do verão de 1974, talvez em outubro.  Conseguiram a tão almejada transferência, tu para a Repartição Central do Imposto Complementar, em Lisboa, na Rua Braamcamp, e ele, para mais perto de casa, na cidade dos arcebispos e, mais tarde, para a sua terra.

Acabaste por tirar o curso de direito, em Lisboa, graças ao teu estatuto de trabalhador-estudante e beneficiando igualmente das regalias de antigo combatente. Cinco ou seis anos depois, no início dos anos 80, concorreste a um lugar de técnico superior de 2ª classe no Ministério do Trabalho e Segurança Social. Foste para uma área de que gostavas, e tinha a ver com as condições de trabalho, incluindo a higiene e segurança e matérias afins. Ajudaste  a elaborar diversos materiais de divulgação e sensibilização, fichas técnicas, brochuras, cartazes, etc. Interessaste-te, em especial, por sectores de elevada sinistralidade como as minas e pedreiras, a construção e obras pública, a agricultura e pescas, a metalomecânica.

Era um trabalho de algum modo pioneiro em Portugal, acabaste mais tarde por ir parar, com as sucessivas reestruturações do Ministério, sito na Praça de Londres, a um instituto que antecedeu a atual ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho.

Do sindicalismo das contribuições e impostos, já não tinhas saudades nenhumas. Ainda ajudaras a criar e a alimentar um boletim, "A Forja", que era tirado a "stencil". Aquilo acabou por descambar num sindicalismo corporativo, populista,  que é o que há hoje em Portugal, ainda com alguma força reivindicativa, dos professores aos magistrados, dos estivadores aos condutores de longo curso, maquinistas de comboios, pilotos da TAP, polícias e quejandos... São essas corporações, algo mafiosas (como os gajos da estiva),  que podem parar um país... Podem usar a bomba atómica, é certo, que é a greve e  a paralização de sectores-chave da economia, mas também têm que saber muito bem calcular e prevenir os seus efeitos de "boomerang"...

Com o tempo de tropa, e os 36 anos de função pública,  reformaste-te. E passste a  dedicar-te aos cães e aos netos. Tinhas um pequeno monte, não longe da terra onde foste parido, na freguesia de São João dos Caldeireiros, lá no cu de Judas, no "país profundo", com diziam os gajos politicamente corretos, e que tu não sabias o que queria dizer... Devia ser a forma eufemística ou cínica de chamar-lhe a periferia das periferias, onde só havia coutadas,  de meia dúzia de granjolas, e onde já chegara o pré-Saara, o deserto...que nos há de cobrir a todos.

Tens pena, hoje,  de nunca ter feito o estágio de advocacia, de modo a teres podido exercer a profissão a tempo inteiro. Entraste para a função pública, tramaste-te, não quiseste trocar o certo pelo incerto, tu que chamavas "pequeno-burguês" ao pobre diabo do Bacelar.  Mas, pelo que vês hoje, a profissão de advogado já não é o que era. São os grandes escritórios que fazem a lei... E o idealismo de outrora desvaneceu-se. Como tudo, de quando eu eras jovem e ainda sonhavas com um mundo totalmente diferente daquele em que nasceras, tu que eras filho de mineiro e neto de ganhão. 

Só esperas que não te dê tão cedo o badagaio. Querias morrer lúcido, em paz contigo e, se possível, com os outros, o que se calhar é pedir demais. Vais ter que negociar com o teu gestor de conta do além.

Não, não casaste com a rapariga de Beja, que estava à tua espera. Fartou-se de esperar e fez ela muito bem. Um dia encontrou na rua, ao virar da esquina, o primeiro namorado, do tempo de escola, e lá juntaram os trapinhos. Nada como a primeira grande paixão,  sempre ouviste dizer.  Só esperas que ela tenha sido mais feliz do que tu foste.

Já do Bacelar não sabias tantos pormenores do resto da  sua história de vida. Andou atrelado a uma francesa, no verão de 1974. Chegou a levá-la à sua terra, para escândalo da mãezinha. 

Aliás, andaram atrelados, os dois. Ela tinha uma amiga ou irmã,já não não te lembras bem. Despacharam os “copains”, que vinham com elas, e que foram atrás das portuguesinhas de Lisboa. Vieram, num “dois cavalos”, ver a “révolution des oeillets”, a revolução dos cravos, ao vivo e a cores. Portugal, país liliputiano,  que não cabia na geografia do mundo, passou a ser, nesse tempo,  uma espécie de jardim zoológico da Europa. Chegaram cá fotógrafos famosos, tiraram umas chapas e depois esqueceram Portugal e os portugueses por mais umas boas dezenas de anos.

O Bacelar, esse,  acabou por dar um salto até aos Alpes Franceses, já em setembro de 1974, na “rentrée”. As raparigas eram da região de Grenoble. Foi uma espécie de “summer school”, completa, mas sem direito a certificado em papel timbrado, com o “Capital” do Karl Marx, o “Kama Sutra”, os maços de cigarros “Gitanes”, e a garrafa de vinho do Porto Ferreirinha, enrolados nos lençóis encardidos. 

As tipas, finalistas de liceu, eram muito mais politizadas e "sabidas"  do que ambos. O Bacelar era obrigado a recitar o “livrinho vermelho”, a bíblia do maoísmo, antes de ir para a cama com a sua “copine”. A que te calhou na rifa era mais dada à poesia e à música de contestação, o Brel, Moustaki, o Leo Ferré… Nada de Dassin ou Bécaud, que eram pirosos, mas os únicos que o Bacelar e tu conheciam … 

Enfim, melhoraste substancialmente o teu francês de praia nesse tardio verão de 1974. Mas não acompanhaste o Bacelar nas aventuras em França, país de resto que tu já conhecias, do trabalho duro, de sol a sol nas vinhas de Bordéus… Trabalho de escravo branco, diga-se de passagem.

O argumento era o do costume, e fez-te recuar até à Guiné: 

− Bacelar, alguém tem de ter a cabeça fresca e  ir trabalhar… 

Na realidade, tu sentias-te mal por andarem os dois  com miúdas muito mais novas. Caiste na realidade. Aquilo não tinha nada a ver contigo. E lá foram os três no Mini! O "dom Juan" do Bacelar e as catraias... Não sabes como o Bacelar conseguiu a proeza, de ir e vir… num Mini já com muitos milhares de quilómetros no contador…

O “açoriano”, o chefe, levantou-lhe um processo disciplinar por faltas injustificadas. Nesse tempo ainda havia livro de ponto. Intercedeste pelo teu “amigo improvável”, usando (e talvez abusando de) as tuas funções, 
na altura, de delegado sindical, "eleito democraticamente", em lista única, de braço no ar (e com três ou quatro votos contra, como seria de esperar). E sobretudo fartaste-me de esgalhar para compensar o trabalho em falta do Bacelar. 

O tio-avô dele, já reformadíssimo, arranjou-lhe um atestado médico. E, com a “boa vontade de todos”, o caso foi abafado e a “ficha” do Bacelar voltou a ficar limpinha… 

O Portugal do pós-25 de Abril era  um país de gente porreira… Perguntas-te hoje por que razão é que o fizeste, por um tipo que afinal tinha poucas afinidades contigo… 

És capaz de responder que foi simplesmente por amizade (e quiçá por camaradagem), que veio na sequência da situação de “companheiros de infortúnio”,  quando colocados como "mangas da alpaca" na repartição de finanças de Mafra… Afinal, a política, a religião, a ideologia... não eram tudo na vida, foi a conclusão a que tu chegaste, da tua vivência desses tempos.

Nesse final de verão de 1974, ou já princícpio de outono,  descobriste de repente que, ao despedirem-se,  tinhas ganho um amigo, na realidade o primeiro amigo do peito que ganhavas em vida… Despediram-se com um valente  "quebra-costelas"  e uma indisfarçável lágrima ao canto do olho... Prometeram visitar-se um ao outro,  em próxima oportunidade. O que só viria a acontecer em 1977, três anos depois, por ocasião do seu (e dele) 30º aniversário natalício. Ele veio até Lisboa, dessa vez.

Entretanto, em 1974, depois do 25 de Abril, o  "grupinho do adjunto e das meninas" andava de crista murcha, mas não escondia a sua hostilidade crescente para com o “sindicalista”, que eras tu. O Bacelar apanhava por tabela, apenas por ser teu amigo...  

Disseram-te depois que, a partir do verão de 1975, voltaram a sentir-se de novo em casa, com a baiuca por sua conta. A paz voltou a reinar no convento, se bem que as alegres noitadas de da última sexta feira de cada mês já não se voltaram a repetir, tal como as "ceias de Natal do fisco"… A "madama" sumiu-se, os empresários tinham mais com que se preocupar...

Com o início da informatização das contribuições e impostos e da modernização administrativa, incluindo uma nova gestão de recursos  humanos, começou a imperar uma certa moralidade, rigor e transparência... 

Entretanto o “açoriano” fora promovido e regressara à sua ilha natal.   O jovem candidato  à Academia Militar  não sabes se chegou a concorrer e  a entrar, já com a "guerra de África" arrumada.  E do padre, teu amigo e do Bacelar,  também não nunca mais soubeste nada. E a história deste país, já quase com 900 anos,  lá seguiu o seu curso a caminho do novo milénio.

Em Mafra, não deixaste amigos, infelizmente, mas queres aqui reconhecer que era terra de boa gente, e sobretudo trabalhadora. Embora tu nunca te tenhas reconciliado com a "Máfrica", mas isso é outra história.

O mais triste de tudo  foi  a perda, afinal, de um grande amigo, morto estupidamente debaixo de um tractor que ele comprara, em segunda mão  e, por ironia, não obedecia às normas nacionais e europeias de segurança, faltando-lhe por exemplo as estruturas de segurança (nomeadamemte, o arco de segurança, rebatível)...

E tu que, da única vez que lá foste, à sua casa nos arredores de Ponte de Lima, a chamar-lhe a atenção: "Oh!, Bacelar, olha que um dia destes ainda cais de um socalco e ficas debaixo do trator!"... 

Meu dito, meu feito!... Tal como ao do teu pai, não foste ao seu funeral... Só soubeste da triste notícia uns largos tempos depois. Por um mero acaso. Quando passaste por Ponte de Lima e lembraste-te de perguntar a alguém por ele.


© Luís Graça (2021). Revisto em 15 de abril de 2024.


Nota do autor: Neste conto, os nomes (de pessoas e lugares) são fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

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Nota do editor:

(*) Poste anterior da série > 15 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25391: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (25): Um país de gente porreira - Parte I