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domingo, 17 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25280: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (9): "Maruja"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Maruja

Furioso, João entrou na livraria e só lá dentro se deu conta de que era uma livraria gay, de literatura erótica. Não tinha disposição para nada, muito menos para aquilo. Deu duas voltas à sala, cumprimentou e saiu. Madrid estava fria como o seu coração e sentia uma lagrimeta no canto dos olhos. Atirou-se para a cadeira de uma esplanada em frente e pediu uma fabada asturiana.

Maruja tinha dezoito anos e era linda como um cravo. João encontrara-a na Candeia, um conhecido cabaret do Porto. Ali cantava e dançava, sempre acompanhada pela mãe.

João prendeu-se de tal modo nos seus olhos negros e na luz do seu sorriso que, durante uma semana, ali passou as noites até de madrugada. Terminada a semana do contrato, mãe e filha passaram para o Casino de Espinho, onde iriam trabalhar mais uns dias. João contou e recontou os trocos, pediu algum emprestado, marimbou-se para a faculdade e não falhou uma noite em Espinho até que a Maruja lhe disse que ia embora para Madrid.

Não seria fácil João encontrá-la por lá, na grande cidade, mas que tentasse, se um dia se resolvesse a lá ir. Não tinha morada certa, mas vivia a maior parte do tempo no Monasterio de Las Descalzas e, por vezes, cantava e dançava no Pasapoga.

Desde Portugal, João viajou na mesma cabine do comboio com uma prostituta. Em Ciudad Rodrigo, já alta madrugada, um padre fez-lhes companhia. Quem eram, quem não eram, João era estudante de medicina no Porto e ia a Madrid à procura do amor, o padre ia a Salamanca colaborar nas exéquias de um velho professor, e a prostituta, de Coimbra, ia cumprir mais uma temporada numa casa de alterne junto à Plaza Mayor.

Depois de Salamanca, João adormeceu e acordou em Madrid ao romper de uma manhã seca e fria. Ficou um tanto atemorizado com o silêncio das ruas e com a presença de muitos soldados nos telhados das casas, armados de metralhadora. O cheiro a Guerra Civil ainda não se desvanecera por completo. As camionetas a gasogénio subiam ronceiramente a Gran Via e um ou outro transeunte perguntava se tinha café para vender.

João martelou com força por duas ou três vezes o grande batente de ferro do enorme portão do Monasterio e, quando a esperança já parecia esfumar-se, um pequeno postigo lateral encastoado no portão emoldurou uma cara do outro mundo: uma freira muito feia, com ar de demónio, boca torcida e olhos fulminantes.

- ¿Qué quiere, usted?
- Quiero hablar con Maruja, quedé con ella.
- Maruja no está ni podría estar. Maruja, ¿Que Maruja, señor?
- La bailarina.


A portinhola bateu com estrondo, quase lhe esmurrando o nariz. João ainda carregou por mais duas vezes no batente, com toda a fúria e revolta, mas um silêncio pesado cobriu como uma avalancha negra toda a fachada do enorme edifício.

A fabada não parecia estar má, mas, apesar de nada ter comido desde a véspera, a tristeza dificilmente permitia que ela passasse da boca para baixo.

Esperou pelo cair da noite, gelado por dentro e por fora, passou junto ao Pasapoga e perguntou ao porteiro a que horas atuava a Maruja.

- Maruja, ¿Qué Maruja, señor?

Ainda hoje, ao fim de tantos anos, quando João passa pelo Monasterio, levanta os olhos para a grande fachada e vê Maruja vestida de branco a voar de janela em janela.

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Nota do editor

Último post da série de 10 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25258: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (8): "Ele há coisas...!"

domingo, 10 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25258: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (8): "Ele há coisas...!"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


ELE HÁ COISAS...!

adão cruz

Quem se tenha dado ao trabalho de ir lendo as historietas que por aqui se escrevem, lembrar-se-á, porventura, da Geraldina, a moça roliça que morreu de amores pelo Isabelino.

Pouco tempo depois da sua morte, a mãe apareceu no café, o mesmo café da loura descaída dos anos e do corpo, o café em que a vida do Isabelino se fez tragédia, como foi relatado, chorando amargamente a perda da filha. Mas depois levou sumiço e nunca mais apareceu.

Apareceu ontem, sete semanas depois, com alguns quilos a menos. Meio a sorrir, meio a chorar, tinha os olhos mais papudos e pisados, sempre molhados, reflectindo amargura e tristeza.

Até a velha Torre dos Clérigos, espetada num céu de chumbo, parecia mais escura e mais cansada da sua erecta posição de séculos.

- Ela gostava muito de subir lá acima, quando fazia anos. Dizia que dali via o futuro. Que Deus a tenha em descanso.

A mãe da Geraldina falava com a Tininha da Cantareira, a quem contava que andava na modialse. A modialse é uma coisa triste, mas nem tudo é mau, pois já tinha perdido peso e estava muito melhor das barizas. Tinha as pernas mais lisinhas.

E em surdina, lá foi dizendo à Tininha que havia um bruxo que não era bem bruxo, ali para os lados de Campanhã, que era capaz de a pôr a falar com a sua filhinha. Falar… falar…, não era bem falar como as pessoas falam, era um falar assim a modos que por sinais, por meio de uns trupos numa mesa, que só ele entendia e depois dizia de maneira à gente perceber. Dizem que é spritismo.

A Tininha estava de boca aberta, mas disse que já ouvira falar nesse bruxo, e mais, disse que a Fatinha lhe contara que essas falas com o além só se podiam fazer com mortos que não foram atopsiados.

- Qual atopsa qual carapuça! A minha filhinha nunca foi atopsiada, pois o mal dela não era mal de corpo, era mal de amor, e os males que não são do corpo não são atopsiados.

- Isso é verdade.

- Só há uma coisa, Tininha, que me faz cá uma comichão dos diabos! É que a Lurdinhas, aquela que mora ali nos Caldeireiros, também já falou com a mãe, que morreu na Páscoa do ano passado, mas ficou chateada porque lhe pareceu tudo uma vigarice. Diz ela que não entendeu patavina daquela lengalenga e só gastou dinheiro. Houve, no entanto, uma coisa que a impressionou muito! Foi quando o spritista lhe disse que a mãe lhe pedira umas papas de sarrabulho. Ela agarrou-me os braços com toda a força e cravou-me os olhos arregalados:
- Porra!!! A minha mãe era louca por papas de sarrabulho, mulher…! Ele há coisas…!

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Nota do editor

Último post da série de 3 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25232: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (7): "Sarita, a bailarina"

sexta-feira, 8 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25251: Blogpoesia (798): No Dia Internacional da Mulher - "A Mulher que amanha o peixe", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)



A MULHER QUE AMANHA O PEIXE

Sempre que a vejo
no supermercado onde vou
reconheço que não é por acaso.
Muito bonita a mulher que amanha o peixe
(não sei se amanha se amanhece).
Rosto combatido
dorido
olhar sofrido e manso
não sei o que faz desta mulher um poema
se os olhos negros e fundos
se o desenho rasgado da face
se um gesto brusco da natureza
revoltada de cansaço.
Um vale profundo entre o cá e o lá
banca de peixe
mar imenso
mar morto
do outro lado um peixe vivo no céu
tocando o mar
estripando com mãos invisíveis
entre lágrimas e sangues
as entranhas da vida
nas elegâncias difíceis dos plásticos
cobertos de escamas.
Passos molhados
encharcados
pesados
cheirando a algas
ondas de tempestade
no lindo rosto marcadas
pela ânsia de voar.
Com tantos apetrechos de borracha
botas altas
luvas e avental
não sou capaz de adivinhar
o corpo que tem por baixo
nem quero que aconteça o tal.
A mulher é segredo
a mulher é sonho
sonho de si mesma
no olhar dos outros
sonho de ventre liso
crescente de imensidão
fonte de pão e de leite
eternidade e sorriso
dança de movimento
para além das formas
e da imaginação.
Trepadeira de vida e de morte
olhos que se abrem no céu
e repousam no mar
mãos de todas as direções
ainda que vestidas de plástico
amanhando o peixe.
Não sei se é casada ou mãe
se é tudo ou nada
no reduto escasso do dia-a-dia
nem me interessa.
Bastam-me os olhos infinitos
a boca seca de beijos
a dor-desenho dos lábios
a doçura-criança que não cresceu
por falta de uso
tempo e espaço.
O corpo desta mulher está na face
oculta e sedenta
na ânsia fervente do impulso
na mais íntima agitação do mundo
e da dimensão
que pode caber numa banca de peixe.
Difícil acertar ideias e olhares
quando só olhares fazem ideias...
Enfeita-se a beleza desta forma estranha
criando beleza no amanhar do peixe.
Cruel seria descobri-la a dançar
pesadamente etérea e volátil
nos salões de púrpura da mulher vulgar
entre rendas e espumas
que não são espuma do mar.
Como sempre, tenho de dizer até amanhã
sou forçado a serenar as ondas
a desnavegar meu barco.
Muito obrigado.
Não tem de quê.
Você é das mulheres mais lindas que já vi.
Muito amável, um exagero...
Faça o senhor o resto das compras
e depois passe por cá.
Buscar o peixe... ou voltar a vê-la?
Sei lá!


adão cruz

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Nota do editor

Último post da série de 11 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25158: Blogpoesia (797): "Mãos de hoje que foram de sempre", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 3 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25232: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (7): "Sarita, a bailarina"


Conoscere TV > "Contos do Ser e Não Ser" de Adão Cruz


Sarita, a bailarina

adão cruz

Acordei às seis da manhã, eram sete em Santander. Sem ponta de sono, fui à janela do pequeno Hotel Central na Rua General Mola, paralela ao passeio que ladeia o mar. Caía uma chuva miudinha e a rua estava escura e completamente deserta.

Preparei-me e saí. Pequeno-almoço só a partir das oito.

Ninguém na rua. A uns vinte metros do hotel, apenas uma mulher alta, elegante, espreitava os caixotes do lixo. De um deles, retirou um guarda-chuva vermelho, fechado, que utilizou como bengala. Debaixo do outro braço, trazia um guarda-chuva preto.

Apesar de sermos as únicas pessoas daquela rua deserta, silenciosa, estreita e comprida, a minha presença foi-lhe completamente indiferente quando me aproximei. A mulher parou frente a um painel de um pequeno centro comercial, tentando ler o que por lá estava escrito.

Longe de ser andrajosa, a sua indumentária denotava apenas o desgaste de alguns anos. Vestia um casaco castanho até meio da perna e uma saia verde que descia um palmo abaixo do casaco. Um pequeno chapéu preto luzia com a chuva. A tiracolo, uma grande carteira escura caía pelo flanco esquerdo. Os pés calçavam uns sapatos rasos, de cor baça, em desafio aos tacões da moda que conferem às mulheres metade da sua altura. Colada ao canto da boca, uma prisca queimada. A dois metros da sua esguia figura, cumprimentei:
- Buenos días!

A mulher olhou-me de relance, sem nada dizer, e estendeu-me o guarda-chuva vermelho que aceitei e agradeci.

- Não há nada aberto por aqui para tomar el desayuno?

Ela riu-se, mostrando algumas cáries que lhe sujavam o sorriso bonito, estendeu-me a mão e apresentou-se:
- Sara, la bailarina. Sarita.
- Encantado.

E sem deixar cair a prisca, respondeu com uma pequena gargalhada:
- A esta hora? Domingo? Ah!... Ah!... Ah!...

De repente, com ar sério, emendou:
- Verdad!... El hotel!

E apontou o meu hotel que se destacava na rua por três pequenas bandeiras e pela sua forte cor azul.

- Me pagas el desayuno?
- Sí, por que no?
- Graaaaacias!

Aguardámos alguns minutos, em silêncio, debaixo de um beiral, até que os lentos ponteiros marcassem as oito. Ela cuspiu a prisca e entrámos no hotel. O rapaz, ainda ensonado, mas simpático, um tanto surpreendido pela minha inesperada companhia, indicou-nos a escada para a primeira planta.

A sala pequena, mas confortável, toda decorada com velhos instrumentos musicais, estava vazia. Os clientes ainda faziam meia-noite. Comi um pão com manteiga e bebi dois copos de leite al tiempo. Sarita pediu café com leite, comeu com vontade, mas sem sofreguidão, um pão com manteiga, um pão barrado com compota, um croissant, pediu mais um pouco de café solo e foi buscar uma banana e uma maçã que meteu na mala.

Pela primeira vez, ergueu o rosto e olhou de frente para mim com um leve sorriso que me pareceu conter alguns laivos de felicidade. Era de facto bonita, tinha olhos verdes que me trouxeram à memória os peixes verdes de Eugénio de Andrade. Eram, no entanto, olhos vazios, sem transparências de vida, olhos que se perderam, há muito, para lá das órbitas. Algumas rugas vagueavam dispersas pelo seu rosto seco à procura de fazerem ninho.

-Vámonos?
- Quando quiseres.

Já na rua, abriu a grande saca que me parecia um poço sem fundo e vasculhou, vasculhou, retirando um isqueiro. Remexeu mais uma vez e, resignada, encolheu os ombros:
- No hay… no hay!

Percebi e disse-lhe que não fumava, mas lhe daria dinheiro para comprar cigarros. Retirei da carteira uma nota de vinte euros que ela segurou delicadamente na ponta dos dedos. Beijou-me na testa, levantou os braços, esboçou um passo de dança, deu meia-volta sobre si mesma e deixou-me com aquele adeus final da Liza Minnelli no Cabaret.

Só depois de ela ter desaparecido ao fundo da rua, eu me dei conta que tinha nas mãos o guarda-chuva vermelho. Calma e solenemente fui restituí-lo ao seu legítimo dono, o caixote do lixo.

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Nota do editor

Último post da série de 25 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25212: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (6): "A Laidinha"

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25219: As nossos geografias emocionais (23): O Hospital Militar Principal (HMP), à Estrela, e o Anexo, a Campolide, que eu conheci (Carlos Rios / Rogério Cardoso / Jorge Picado / Antóno Tavares / Armando Pires)

Guiné > Bissau > Hospital Militar 241 > O saudoso Carlos Filipe (Porto, 1950-Lisboa, 2017), radiomontador, CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1972/74): esteve internado 32 dias em Bissau, no HM 241, antes de ser evacuado, com hepatite, para o Hospital Militar da Estrela em Lisboa, onde iria permanecer 173 dias...

Foto (e legenda);  © Juvenal Amado (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Eis alguns comentários (que republicamos) de camaradas nossos que conheceram o Hospital Militar Principal (HMP), à Estrela, e o seu anexo, em Campolide, na Rua da Artilharia Um, vulgo "Texas".

Antes, porém, convém lembrar que o HMP era constituído nos anos 60/70 por várias áreas fisicamente separadas (*), incluindo o Anexo, a Campolide, na rua  Artilharia 1.



Figura 1 – Esquema do HMP, evidenciando as três áreas geograficamente separadas:  a área 1 (o "núcleo histórico"), na Calçada da Estrela, contíguo ao Jardim da Estrela; a área 2 (nas traseiras da Basília da Estrela); e a área 3, delimitada pelo início da Av Infante Santo (no sentido descendente) e a Rua de Santo António à Estrela (que inclui o edifício de 12 pisos, a Casa de Saúde da Família Militar, construído já 8 em 1973).  O Anexo, a Campolide, não consta aqui desta figura.

(Com a devida vénia... Fonte: Anuário do HMP de 2004, citado por major Rui Manuel Pereira Fialho, "Alterações na estrtutura do Hospital Militar Principal", Revista Militar n.º 2566 - Novembro de 2015, pp 909 - 918. (Disponível aqui em pdf: https://www.revistamilitar.pt/artigopdf/1064).


Carlos Rios, ex-furriel mil, CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67)

(…) Fui dos que passou pelas instalações e sofri as piores atribulações [n]aquelas miseráveis e desumanas instalações, principalmente o anexo (Texas), do Hospital Militar Principal (HMP).

Ali passei seis anos com imensas operações, vindo a ficar estropiado, de 1966 a 72. 

O director era um déspota bem como a maioria do pessoal ligado àquilo que deveria ser o lenitivo para as misérias que nos atingiam mas que afinal se vinha a transformar como que um castigo por termos sido feridos. De tal maneira que já no Depósito de Indisponíveis, onde se encontrava o pessoal em tratamentos ambulatórios, termos sido metidos nas escalas de serviço, como se os doentes em tratamento estivessem numa Unidade.

Imagina um Oficial de dia,  quase maneta,  e eu próprio, já coxo, a fazer o içar da bandeira na porta de armas, vindo ao exterior a comandar a guarda e dar ordens militares para o caso. Fui um espectáculo macabro, eu só consigo andar com uma bengala. Calcula o ridículo.

No decrépito anexo não havia um espaço onde pudessemos ter um bocadinho de lazer, havendo apenas uma horrorosa cantina pequena para largas centenas de todo o tipo de doentes, cegos, amputados, loucos, etc...tudo á mistura. 

Não podiamos estar nas camas depois das nove horas nem sair para o exterior antes das catorze, exceptuando os acamados. Era-nos sugerido, quase obrigado, que não andássemos fardados. 

Enfim atribulações e peripécias dos pobres que eram arrancados às familias para servir alguém. (...) (**)

Rogério Cardoso, ex-fur mil, Cart 643, Águias Negras (Bissorã, 1964/66)

(…) Também eu passei as passas do Algarve no chamado Texas [na Rua da Artilharia 1]. Estive lá de fevereiro de 1966 a meados de 1967.

De facto o Director era uma pessoa intragável, assim como muito do pessoal lá destacado. Voltando ao director, assisti uma vez, ele dar uma bofetada num 2º sarg enf por ele não ter chamado á atenção de um fur mil que estava deitado em cima da cama, pelo meio da manhã. O homem até chorou, pela humilhação sofrida. (…)

 (…) Estou lembrado de mais uma cena humilhante. Nós, sargentos, instalados no anexo Texas,  frequentemente tínhamos consultas no HMP, à Estrela, estou a falar no ano 1966. A deslocação era feita numa carrinha Mercedes, salvo erro de 18 lugares. 

Até aqui tudo bem, mas a nossa vestimenta era pior do que a de um recluso. Calças de cotim com dezenas de carimbos com uma estrela, com os dizeres HMP, camisa branca sem colarinho tipo moço de estrebaria, também com carimbos, casaco cinzento de golas largas (capote cortado a 3/4) e barrete branco de algodão, igual aos que os velhotes usavam para dormir no século XIX, além de sapatilhas brancas.

A nossa vestimenta era mais do que ridícula, os reclusos eram uns "pipis" comparando. Era o tratamento a que os combatentes que tiveram azar, eram sujeitos. (…)  (**)


Jorge Picado, ex-cap mil, CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, na CART 2732, Mansabá e no CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72


(...) No Hospital, Anexo (ou "Texas"),  existente na Rua de Artilharia 1, tive as primeiras visões horríveis, do que me poderia esperar, qualquer que fosse o TO que me saísse na rifa. 

Isto aconteceu talvez nos finais de setembro de 1969, quando estava a frequentar o CPC em Mafra. Aí funcionavam, não sei se outras, as consultas de Ortopedia, para onde fui encaminhado pelo Oficial Médico mil da EPI, face aos problemas da coluna lombar de que já padecia.

Para chegar à zona das consultas tinha de percorrer vários corredores (ou seria só um muito comprido, mas dividido por várias portas?), atulhados com macas ocupadas por estropiados brancos e negros, meio ao "Deus dará". 

Da primeira vez fiquei meio "zonzo" com aquelas cenas e nas seguintes procurava chegar rapidamente ao local olhando par o ar...

Quanto ao Cap Med do QP, chefe da Ortopedia, fiquei com as piores recordações, respondendo-lhe "torto" e chamando-lhe a atenção que não estava a falar para um analfabeto, mas sim para um licenciado como ele, mas isso são outros contos. (...)(**)


António Tavares, ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912 (Galomaro, 1970/72)


 (...) Em Janeiro de 1969 estive internado no anexo do Hospital Militar Principal, Rua Artilharia 1, onde vi e assisti a episódios sem classificação...

Impossível a sua descrição. (...) (**)

Armando Pires, ex-fur mil enf, CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70

(...) Conheci o Hospital Militar Principal, à Estrela, e o Anexo, na Rua de Artilharia Um, a Campolide, em dois momentos diferentes da minha carreira militar: primeiro como internado (Março a Maio de 67) e a seguir como enfermeiro (Junho/67 a Outubro/68).

 Em Outubro iniciei a formação do Batalhão  [BCAÇ 2861] e em Fevereiro parti para a Guiné. 

Vamos ao Hospital. 

(i) A Estrela [HMP], após o início da guerra, foi equipada  com o que de melhor havia e nela trabalhava obrigatoriamente a nata da classe médica portuguesa. 

(ii) O Anexo de Campolide [na Rua Artilharia Um] funcionava como centro de recuperação para os mutilados, para os necessitados de apoio psiquiátrico e psicológico, também como linha de apoio a várias especialidades médicas da chamada "medicina geral", e ainda como "depósito de feridos ou doentes de guerra" em regime ambulatório... porque era preciso criar vagas para os casos mais graces no Hospital Principal.  

Sim, têm razão quase todos os comentários que aqui foram produzidos sobre o Anexo. Decrépito, sem dignididade hospitalar, refeitório de miserável qualidade alimentar e roupas militares próximo da indigência humana. 

Mas, atenção, o chamado serviço 6, no topo norte do Anexo, onde eram recebidos para convalescênça os mutilados, era um lugar à parte. Digno! 

E já agora o pessoal. Por favor, não confundir os militares que ali eram colocados em serviço de linha com o pessoal médico e enfermeiros.

Sim, de acordo, o Director era uma besta! 

E já agora, nada de exageros. Ali não eram despejados cadávares e feridos. Os mortos tinham uma capela enorme para os manter em ambiente de dignidade antes dos funerais. 

Os feridos iam sempre, em primeiro lugar, ao Hospital Principal. 

Muito, mas muito, haveria para dizer. Mas este é apenas o espaço de comentário e pareceu-me haver aqui algum exagero e alguma injustiça. Só isso. As minhas desculpas e o meu abraço,  camarada. (...) (***)

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 26 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25215: As nossas geografias emocionais (22): O antigo Hospital Militar Principal (HMP), Lisboa, Estrela

(**) 1 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8455: Memória dos lugares (156): Texas, o anexo do Hospital Militar Principal, na Rua da Artilharia Um, em Lisboa (Carlos Rios / Rogério Cardoso / Jorge Picado / António Tavares)

(***) Vd. poste de 22 de junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8459: (Ex)citações (142): Em defesa do Hospital Militar Principal (Armando Pires, ex-Fur Mil Enf, CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70)

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25212: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (6): "A Laidinha"


A LAIDINHA

adão cruz


A Laidinha veio ao mundo nos arredores de Paris, filha de emigrantes portugueses. Nasceu sem vislumbre de futuro, como toda a gente. Mas, na sua cabecita, o futuro foi-se acoitando, calmo e decidido. Seria cabeleireira.

Por volta dos vinte anos, já os cabelos se enrolavam e desenrolavam habilmente nos seus dedos. Arranjou um namorico com guita, que tinha um Porsche. Não dava uma para a caixa, mas roncava de Porsche de manhã à noite. Só queria marmelada, mas a Laidinha virou a tigela e deu um pontapé na marmelada. Nunca mais se encostou a um homem. A mãe até dizia que ela parecia que nem tinha vontades de mulher.

Um dia… apaixonou-se por um velho. Um velho a quem cortava o cabelo e arranjava as unhas. Um senhor. Não era feio, era muito simpático, professor de astronomia, não tinha família e contava coisas muito bonitas! Falava-lhe de tudo aquilo que ela não sabia e nunca sonhara: poesia, arte, música, coisas do Universo.

Um dia, levada por um impulso das entranhas, espetou-lhe um beijo na testa. Outro dia, depôs-lhe docemente um beijo nos lábios. Viveram juntos durante dez anos. Dez anos de felicidade.

O velho morreu. A casa, o telescópio, a biblioteca e uma pequena fortuna ficaram para a Laidinha.

Um dia, a Laidinha resolveu vir a Portugal visitar a terra natal dos pais. Ela adorava o mar e ficou por cá. Comprou uma casa, mandou vir os livros e o telescópio. Escreveu um livro de poemas e pintou uma dezena de quadros.

Depois de uma penosa gravidez teve uma filha, ninguém sabe de quem. Um dia escarrou sangue. O cardiologista diagnosticou uma estenose mitral severa. Foi operada e depois reoperada.

Dois anos depois morreu com cancro da mama e sem ponta de cabelo onde enrolar a saudade dos seus dedos. Tinha quarenta e dois anos e chamava-se Adelaide.

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Nota do editor

Último post da série de 18 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25184: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (5): "A Maria nunca mais apareceu"

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25184: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (5): "A Maria nunca mais apareceu"


A MARIA NUNCA MAIS APARECEU

adão cruz

Os olhos, vindos do outro lado do mundo, fundos de ausência, casavam o branco e o negro para dizerem o que a boca não conseguia. O nariz afilava de um só traço o rosto magro, e os cabelos errantes fugiam da testa, cada pedaço para seu lado. A pele transluzia uma imagem por detrás dos vidros, imagem baça do avesso da vida. Uma dor subtil desenhava os lábios maduros, finamente trémulos, como se estivessem prestes a chorar. Nunca alguma lágrima por eles correu ou voou algum beijo. Apenas o cigarro acendia e consumia a sua virgindade. A Maria olhava-me sempre fixamente, olhos cravados nos meus como que a dizer: - Tu entendes-me, tu és capaz de me compreender. Ela percebia o sim do meu silêncio por baixo dos olhos vencidos.

Conheci duas mulheres iguais à Maria, fotocópias da Maria, ambas se chamavam Maria, uma brasileira e outra francesa, uma pisava o teatro, outra o anfiteatro. Inquilina de soleiras e vãos, a Maria pisava a grande cidade da noite. As mulheres da fama e da ciência derivavam a vida por entre a lanugem dos cardos e a tangência do sentimento. A mulher da vida era vertical e secante como folha de piteira. A Maria mijona não tinha idade nem tempo, nem antes nem depois, era apenas instante. Nunca se sentara na mesa do canto fugindo de si mesma. Escolhia sempre a mesa central, desafiando os olhares, vidrando o espaço em seu redor. Comia a sopa, o prato de sempre, como quem tocava violino. Apesar da mão trémula, nem um pingo deixava cair no desbotado regaço, sumido de cores pelo uso e abuso. Se moedas cresciam da sopa, não dispensava o brande, sua única bebida.

Por detrás do corpo sujo de Maria, mordiscava uma beleza intrigante. Tivesse ela banheira e emergiria da espuma, como sereia das águas. Penso que nunca vi a Maria fora deste retrato, para cá da sombra. Por outro lado, tenho a certeza de que já dormi com ela… ou terá sido um sonho? A Maria nunca mais apareceu. A última vez que a vi não tinha olhos nem boca nem cigarro. Não tinha sopa nem brande, apenas falta de ar. Engolira o violino e a música era uma dispneia sibilante, cântico fúnebre gemido pelas entranhas. Toquei-lhe no ombro e ela percebeu que eu queria levá-la. Levantou a ponta de um sorriso e esboçou um gesto negativo com a mão. Afastei-me com a sensação de que tinha profanado um sacrário. A Maria nunca mais apareceu.

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Nota do editor

Último post da série de 4 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25135: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (4): "Isabelino e Geraldina"

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25158: Blogpoesia (797): "Mãos de hoje que foram de sempre", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)


MÃOS DE HOJE QUE FORAM DE SEMPRE

Na noite que já não é mais noite de madrugadas perpassa em doce silêncio por entre os dedos dormentes uma brisa dolente esquecendo as mãos na paz adormecida.

Por entre os frágeis dedos de quietude e silêncio perpassa agora em suave melancolia o magro regato da secura da vida arrastando em seu leito rugoso a triste canção de um tempo sem cor nem movimento.

O lento gesto do abrir destas mãos de tantos anos vividas cai agora em pesado silêncio por entre as malhas da sombra no impiedoso vazio das mãos cheias de nada.

Foi-se embora a madrugada das manhãs perdidas no tempo em que o sol sorria por entre os sonhos e as mãos cantavam a força da vida como ondas do mar entre os dedos frementes.

No penoso abrir e fechar de mãos deste plangente gesto do fim do dia feito canção de tão gélido silêncio apenas a saudade se aninha no fundo escuro para morrer sozinha.

Adão Cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25116: Blogpoesia (796): "A Mensagem que deixaste", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25135: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (4): "Isabelino e Geraldina"



ISABELINO E GERALDINA

adão cruz

Quem se sentasse na mesa em frente, perto da janela, via sempre, não só a velha e esguia Torre dos Clérigos, mas também o Isabelino e a Geraldina a trocarem olhares ternurentos. A empregada do café, uma loura descaída nos anos e no corpo, disse um dia ao Isabelino:
- Isabelino, por que não se junta à menina Giraldina, e deixam de estar aqui, todos os dias, a lamberem-se com os olhos? Até o D. António já virou a cara para o outro lado. Qualquer dia cai da estátua.

O Isabelino, franzino, encolhido, sorriu por entre as falhas dos dentes, e a Geraldina, gorda, roliça e peituda, baixou os olhos meio envergonhada.

- Que Deus lhe dê melhor sorte, disse a mãe da Geraldina, com o dobro da idade e da gordura da filha, avançando a sua presença com um par de repolhudos seios.

- Melhor sorte a quem? Perguntou a loura, passando o pano na mesa.
- A ele, coitado! Ela é um paxá, uma calaceira, não sabe estrelar um ovo nem coser um botão, não faz nada, eu é que faço tudo.

A Geraldina torceu a boca com a maldade da mãe e o Isabelino abriu mais o sorriso e as falhas dos dentes, deixando que tais acusações entrassem por um ouvido e saíssem pelo outro. Ora, estas conversas aconteceram uma semana antes de a Geraldina ser internada. Ela caíra na rua junto à mercearia e, segundo a peixeira, os INEMs levaram-na para o hospital de Santo António, ali ao lado, onde ficou internada com um esgotamento. O Isabelino ficou muito triste, e quem estivesse perto podia enxergar-lhe umas gotitas de água ao canto dos olhos.

O Isabelino não tinha um emprego sólido, melhor dizendo, o Isabelino não tinha um emprego nem sólido nem frágil, e dizendo ainda melhor, o Isabelino não tinha emprego. Tinha um carro, um desses carrinhos de supermercado que ele abafara, um dia, no Continente. Com ele levava sacos de batatas, cebolas e hortaliças desde o mercado à casa dos clientes. Logo que a Geraldina fosse desinternada, seguiria o conselho da loura descaída. Estava decidido. Havia uns casozitos com a polícia, mas nada de maior. Juntava-se a Geraldina, iriam viver para casa da sua madrinha Porcina, que tinha um quartelho para alugar, ali ao lado da torre, quem desce a rua da Assunção, e passaria a trabalhar a dobrar, ora no mercado grande, ora no mercado pequeno.

Convém saber que todas estas coisas se deram uma semana antes de a Geraldina morrer. A Geraldina morreu, mas ninguém sabe de quê. Há quem diga que foi da pouca sorte, há quem diga que foi destino ou mau-olhado, mas também há quem diga que morreu de amor. O Isabelino como que se esvaziou. Sentiu-se desligado, desbobinado, descalibrado, despovoado, deserdado. Não era preciso estar muito perto para ver que as gotitas de água ao canto dos olhos se fizeram lágrimas. Vendeu o carro por cinco euros ao sobrinho da peixeira e levou sumiço.

Ora, tudo isto aconteceu uma semana antes de a mãe da Geraldina reaparecer no café, acomodar os cento e tal quilos em duas cadeiras da mesa do canto e começar a chorar:
- Coitadinha da minha menina, era uma jóia, era um anjo, tão minha amiga e tão amiga de toda a gente, faz-me tanta falta, trabalhava que nem uma moira, antes Deus me levasse a mim.

A loira descaída pousou a bandeja, enxugou-lhe as lágrimas com um guardanapo de papel e fez-lhe umas festas no cabelo. Do Isabelino ninguém falava. Do Isabelino ninguém sabia. Quem, por acaso, uma semana depois, se lembrasse de descer a Rua da Restauração e ir dar uma volta pelas margens do rio, poderia calhar de ver o Isabelino ali para os lados da Cantareira, carregando às costas uma rede de pesca. E poderia vê-lo, também, sentado junto ao rio, escrevendo com um pedaço de caliça na proa de um barco meio desfeito, o nome giraldina. E se a curiosidade se sentasse junto à margem, na mesa de pedra onde os pescadores jogam a sueca, ouviria certamente dizer que Isabelino andava meio tolinho e estava convencido, coitado, de que Geraldina tinha morrido com saudades dele.

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Nota do editor

Último post da série de 20 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25091: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (3): "Mulher 5 estrelas"

domingo, 28 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25116: Blogpoesia (796): "A Mensagem que deixaste", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)



A MENSAGEM QUE DEIXASTE

A mensagem que deixaste
como laço da prenda de todos
faz pensar.
Tão sublime que exalta
e tão vaga que oprime.
Leva-nos além do falar
que só não falando se entende.
Por mais serena que seja a luz
e mais suave o convite
não sabemos quem ordena e conduz
se a razão se o palpite
se a chaga ou a lança
se a sorte ou a desdita
ou o sonho que tudo reduz
àquilo que se acredita.
Trememos de frio em dia de sol
e somos ventre de cobiça
nas tardes cinzentas de chuva.
Ressumamos de inveja gotas de suor
na face dos que pensam
sermos nós o melhor.
Subimos o alto dos montes
descemos o fundo dos mares
onde tudo se fecha e se abre
na falsa harmonia dos contrastes
que fazem a ponte entre a noite e o dia.
Nascem algemas de ouro
nos pulsos abertos de sangue
e não sabemos quem seguir
se a alma se a razão
quando neste vaivém de cansaço
uma entra e outra sai
como sangue no coração.
Se o sonho cai desfeito
nas trevas de tudo ter feito
entre a razão e o deserto
não há razão que resista
a uma vida em aberto.
Todos olham e dizem
o que seria bom de sentir…
mas nós não queremos ouvir.
A farsa que a gente é
só dói mesmo de pé
antes de a gente cair.

adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25096: Blogpoesia (795): "Os sítios que são só recordações", por Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR da CCS / BCAÇ 3872

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25101: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (15): A vida é curta e a arte é longa: memórias de um médico que também passou pelo Hospital Militar de Bissau

 Guiné > Bissau >  O  antigo Pavilhão de Tisiologia, desenhado pelos arquitectos Licínio Cruz e Mário Oliveira, do Gabinete de Urbanização do Ultramar,  Projeto de 1951/53. Passará a Hospital Militar, o HM 241, com o início da guerra, em 1963.

Foto (e legenda): © Mário Beja Santos (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A vida é curta e a arte é longa: memórias de um médico que também passou pelo Hospital Militar de Bissau

por Luís Graça


Fizeram-te um almoço de despedida nessa semana em que passaste à reforma. Sempre detestaste as festas de despedida. E aquela tinha  qualquer coisa de amargo e ao mesmo tempo de inquietante. Era como partir, de barco, de um porto seguro para uma viagem desconhecida. Sabias o que tinhas, ou o que acabavas de perder, desconhecias o que te esperava o dia seguinte. Porque esse seria "o primeiro dia do resto da tua vida", citando a letra da canção  do Sérgio Godinho que costumavas ouvir no CD que punhas a tocar no carro logo pela manhã a caminho do hospital. (Maldita IC 19, foi o primeiro pensamento que te veio à cabeça no teu último dia de trabalho.) 

Aconteceu-te isso, a angústia da despedida, talvez pela primeira vez, quando foste mobilizado para a Guiné, em rendição individual, aos 28 anos, em março de 1968  (se a memória não te estiver a trair, o que já não podes garantir, cinquenta anos depois).

Amigos da faculdade e do hospital, colegas de curso e um ou outro "pilão" (antigo colega dos Pupilos do Exército), "poucos mas bons", fizeram-te uma festinha, discreta mas comovente, de despedida.

Foi num café-restaurante das Avenidas Novas, em Lisboa, que já não existe, hoje deve ser uma agência bancária ou imobiliária. 

Na altura, eras monitor de Anatomia na Faculdade de Medicina, um cadeirão que sempre foi o terror dos candidatos a médicos. E trabalhavas, para mais, no Hospital de Santa Maria, à borla, na equipa de um dos "barões" que eram os donos dos serviços… 
 
Não, não vale a pena recordar o nome. Não te deixou saudade, nem a ti nem aos outros "escravos". Era um professor que estava ligado a um dos grandes do futebol da cidade de Lisboa. Já ninguém se lembra dele. Arrumou as "chuteiras" com o 25 de Abril, foi coerente, não virou a casaca, como os "democratas do 26 de Abril"...

Carreira médica  ?  Não , também não havia ainda carreiras médicas, so foram criadas em 1971.... Os jovens licenciados em medicina tinham que "pagar para aprender", com um patrono, "um grande clínico ou um grande cirurgião"…

Como o local do almoço era público e a PIDE costumava ter "bufos" por aqueles sítios, não houve grande discursos, e muito menos efusivos, e muito menos ainda contestatários… Aquilo, o teu almoço de despedida, parecia mais um velório do que outra coisa... 

Bolas, tu eras médico, ias para a Guiné, haverias de voltar, com vida e saúde!.... A tropa protegia os médicos, não os mandava fazer operações, de G3 em punho,  "não iam para o mato" (como se dizia então) !... Era pelo menos a garantia que tu tinhas, de alguém importante do Hospital Principal na Estrela, com quem te aconselhaste.  E depois com a tua prática de "ajudante de  cirurgião" (sic) haverias de ficar em Bissau, nem seria preciso meter nenhuma cunha. 

Afinal, foste tu que tiveste de animar os teus amigos e colegas, todos mais acabrunhados do que tu, só de pensarem que, um dia destes, também veriam a tropa interromper-lhes  as "promissoras carreiras"  e despachá-los, com  "guia de marcha",  para a África dos tiros e dos mosquitos. Pelo sim pelo não adiavam-se casamentos e outras decisões importantes na vida de um homem como a de fazer um filho.

Só muito mais tarde, há uns anos atrás, é que tu foste à Torre do Tombo, movido por uma natural curiosidade,  legítima mas algo mórbida. Acabaste então  por saber que também tu tinhas  ficha nos arquivos da PIDE/DGS… (No teu íntimo, não foi nada que te revoltasse, até pelo contrário,  surpreendeu-te mas fez-te bem ao ego que de vez em quando também tem de ser massajado.) 

E verdade que o motivo era mesquinho, para não dizer anedótico: alguém te denunciara por seres amigo de um tipo da direção da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina, envolvido na crise estudantil de 1962… Uma pecha nacional, desde os tempos da Inquisição, comentaste tu para a malta da tua equipa: denunciava-se o primo ou o vizinho, às vezes por pura maldade ou inveja, como aconteceu com o grande Ribeiro Sanches, o nosso maior médico do séc. XVIII, que teve de sair do país e nunca cá mais  pôs os pés. Morreu em Paris, se  bem me lembro das aulas de história da medicina.

Fator aparentemente abonatório para a tua pessoa aos olhos da polícia política: eras filho de militar de carreira, com "boa folha de serviços no Ultramar" e tido como “adepto da situação”… E depois tinhas passado pelos Pupilos do Exército... Um "pilão" só podia ser um bom português! ...

Em boa verdade, tu nunca te tinhas metido em "encrenca" nenhuma até acabar o curso de medicina, não querias ver o teu pobre pai embrulhado em maus lençóis, e sobretudo perder a tua valiosa bolsa de estudo, paga por uma conhecida fundação.

Em suma, não tinhas liberdade económica para te poder armar em herói antifascista e anticolonialista, como alguns dos teus colegas (que tinham papás da classe média alta, gente bem relacionada ). Mas não escondias que, em 1968, eras "contra o regime" (como então se dizia) e achavas uma estupidez a continuação da guerra do Ultramar, sem fim à vista. (Para mais o "velho", o "botas", estava a "esticar o pernil"...)

Uma parte da juventude universitária daquele tempo começou a "ganhar consciência política" (como então se dizia) com a crise universitária de 62 e com o alargamento da guerra  do Ultramar aos territórios da Guiné e de Moçambique.

Não vais dizer "boa parte da juventude universitária",  porque isso era mentira: quem estudava naquela época eram filhos e filhas de gente da "situação", ou que tinha algum, para não dizer razoável, poder económico, empresários, proprietários, comerciantes, professores, advogados, médicos, médio e alto funcionalismo público… Conheceste inclusive vários estudantes que eram filhos de ministros e secretários de estado do Salazar... e que "degeneraram", cuspind0 na sopa ou mordendo a mão a quem lhes dera o ser e o ter...

A maior parte da juventude estudantil, liceal e universitária, acomodava-se e tratava da vidinha, como acontecia em todas as ditaduras até então conhecidas. Para mais a tua que até tinha a benção da Santa Madre Igreja... Bom, já não era bem assim, tiveste colegas, católicos, que já não liam a missa pelo mesmo missal do Cardeal Cerejeira, amigo íntimo de Salazar...

Entretanto, tu davas conta de que a guerra, de que pouco ou nada se falava em público, muito menos nos jornais, na rádio e na televisão (a não ser no programa do "Natal do Soldado"), 
começava a mexer com a malta. Havia mortos e feridos, havia faltosos, refratários e desertores, e alguns até eram da tua rede de relações ou conhecimentos… 

Guerra que, em todo o caso, era bem longe da nossa terra, da nossa casa, da nossa família, das nossas escolas e locais de trabalho, enfim, dos nossos cafés das Avenidas Novas... Portugal, naquele tempo, ainda era Lisboa e o resto era paisagem... 

Na altura, tu moravas por ali, perto do Campo Grande, num quarto alugado. E quando chegava a hora da verdade, poucos afinal davam o corpo ao manifesto. Participaste, em 1962, num ou noutra manifestação de estudantes, com cargas da polícia de choque, tinhas 22 anos, sangue na guelra e e começavas a ter asco ao autoritarismo (dos professores,  da policia,  das administracoes...) sem todavia nunca te teres metido em nenhuma organização clandestina, nem muito menos assinado papéis que te pudessem  comprometer. Nesse aspeto, sempre foste um "medricas", sabias que nunca aguentarias a tortura do sono por mais de 48 horas... (Se tivesses feito na altura um teste psicotécnico, terias chumbado de certeza para cirurgião!)

Também nunca tiveste conversas, nem grandes nem pequenas, com o teu pai, quando ele vinha de férias, ou regressava de mais um comissão de serviço, sobre a situação nos territórios ultramarinos, como então se dizia e escrevia. Sabias (ou melhor, suspeitavas) que ele "não morria de amores pelo regime" mas não podia dar-se ao luxo de morder a mão de quem lhe pagava o vencimento ao fim do mês. Além disso, era um militar de secretaria, oriundo da Escola Central de Sargentos que, se bem te recordas, funcionava em Águeda.


A tua mãe, embora apenas com a 4ª classe mal tirada, era mais politizada do que o teu pai. Ela era natural de Alcácer do Sal, emigrara, muito jovem, para Setúbal com a família. Trabalhara como empregada doméstica, logo acabada a escola, e depois como operária na indústria conserveira. Foi em Setúbal que os teus pais se conheceram. E foi aí que tu nasceste.  Tempos difíceis. Valeu-te uma bolsa de estudos que te permitiu ir fazer, em Lisboa, o curso de medicina, em 1958. És do curso de 1958/59.

Em solteira, quando operária conserveira, aos 17/18 anos, ainda menor, a   tua mãe terá chegado a distribuir o clandestino jornal "Avante", na fábrica e no bairro onde residia. Não sabes se alguma vez foi "antifascista", um palavrão que nunca lhe ouviste, da sua boca. 

De qualquer modo, depois de casada, acabou o seu eventual "antifascismo". Casada com o teu pai, subira um degrau na hierarquia social. E depois vieram os filhos. Julgas que ainda viveu, com alguma euforia e esperança, o fim da II Guerra Mundial. A ditadura manteve-se de pedra e cal,  e a tua mãe teve de continuar a ser pai e mãe durante o resto da vida. Quando muito lembras-te,  isso sim, de ela  barafustar, à mesa,  contra a carestia da vida na época em que andavas na escola primária. Nunca te faltou nada, isto é, o pão à mesa.

A tua mãe também não era beata, se bem que fosse à igreja, uma vez por outra, em cerimónias militares oficiais e em certas datas, por conveniência social: na festa de Natal, no dia do Regimento, no dia nacional da infantaria, etc. Afinal, era casada com um militar de carreira (e isso era, de facto,  uma pequena promoção social naquele tempo, para uma filha e neta de trabalhadores dos arrozais). A tropa, mal  ou bem,  era também um pouco a sua família alargada… E depois tinha orgulho no seu "menino que andava nos Pupilos do Exército". Fazia gala de o dizer às amigas, vizinhas e patroas.  Todavia, não havia nesse tempo grandes misturas, entre as famílias dos senhores oficiais e as dos sargentos… Eram oriundos de estratos sociais diferentes, estava tudo dito.


Em todo o caso, para completar o magro vencimento do teu pai, a tua mãe vira-se obrigada a trabalhar de costura, em casa, e fazer bolos para festinhas, nomeadamente para as famílias dos oficiais e sargentos do RI 11, em Setúbal.

Não,  também nunca acompanhou o teu pai nas quatro comissões de serviço no ultramar (Cabo Verde, Índia, Angola e Moçambique), ou nas mudanças de regimento (além do RI 11, em Setubal, esteve em Tomar e nas Caldas da Rainha). E ficaria viúva bastante cedo, aos quarenta e oito anos. 

Era mais nova  do que o teu pai. Nascera em 1920 e teve-te, a ti, aos 20 anos, já depois do teu pai regressar de Cabo Verde. (Depois nasceria a tua irmã, já falecida, que foi enfermeira, estava nos finais dos anos 60 no Alcoitão, quando o teu pai faleceu em maio de 1968, ia completar os 57 anos e passar à reserva, se bem te lembras.)

Nasceste num ano bissexto, em 1940, no dia 29 de fevereiro, uma quinta-feira, recordava a tua falecida mãe. Nasceste em casa, de um parto difícil, já quase de madrugada. Daí talvez tu teres sido sempre mais mocho do que cotovia.

Não chegou a ser preciso chamar o médico do regimento, o RI 11, onde o teu pai estava colocado, na altura. O médico era um bom homem,  alentejano de Évora. O teu pai era de Estremoz. E até se dizia que o médico era do reviralho, só por ser alentejano e republicano.

Tens uma vaga ideia de o ter ido esperar, ao teu pai, já criança com quatro anos, ou coisa assim, a Lisboa, ao Cais da Rocha Conde de Óbidos. Regressava de Cabo Verde, com a sua companhia ou batalhão, não sabes ao certo.

Terá sido a primeira vez que andaste de automóvel e, depois, de barco. Foste tu, e a tua mãe, de carro, à boleia. Não sabes de quem era o carro, pensas que era conduzido por um amigo da família, que tinha carros de aluguer na praça de Setúbal. Talvez também fosse de Estremoz, conterrâneo e colega de escola do teu pai. 

Foste até Cacilhas, ainda não havia a ponte sobre o Tejo, nem nada que se parecesse. Apanhaste um cacilheiro até ao cais do Sodré. Não reconheceste o teu pai, naturalmente, ele andara fora trinta e tal meses. E tu eras ainda muito novo.  Ele não terá vindo bem de saúde, segundo contava a tua mãe. Tinha estado na ilha do Sal e depois na ilha de São Vicente, já para o fim, antes do regresso.

Ou, se calhar, foi mais tarde. Tens as memórias de infância baralhadas. Se calhar foi quando ele voltou a partir para outra comissão, desta vez para a Índia, já como 1.º sargento, aí por volta de 1947 ou 1948, quando masceu a tua irmã. Tu devias ter 7 ou 8 anos. Já andavas na escola, deve ter sido, pois, em 1948. Lembras-te que ainda não havia o Cristo-Rei em Almada.

Ele acabou por fazer lá duas comissões, a segunda como voluntário, com direito a vir de férias de licença graciosa. Aproveitou para fazer o 7.º ano no liceu de Goa. Virá depois a frequentar a Escola Central de Sargentos. Ainda esteve em Angola, em 1961, aqui já com o posto de  tenente SGE. Acabou a sua carreira militar em Moçambique, em 1965… 


Regressou em 1967, para morrer um ano depois, já tu estavas na Guiné. Morreu cedo demais, o teu pai, ainda primeiro que o Salazar. Foi em maio de 1968. Estava o Schulz a ir-se embora. E tu no mato, na zona leste,  quando recebeste a triste notícia. Não foste ao funeral do teu pai, não te deram a devida autorização a tempo de apanhar o avião da TAP. Uma prepotência ou uma mesquinhez que nunca perdoaste ao teu comandante do batalhão. Talvez por esse motivo nunca morreste de amores por ele. (Soubeste, mais tarde, que, sendo
  hipocondríaco e egocêntrico,  não suportava a ideia de ficar sem médico, em pleno mato,  na tua ausência.)

Escassos meses depois de chegares à Guiné, foste colocado no Hospital Militar de Bissau, "onde fazias muito mais falta do que no mato", segundo a ordem pessoal que recebeste de Spínola, ainda brigadeiro,  o teu comandante-chefe que  tiveste a honra de conhecer na altura. 

Com o recrudescimento da guerra e o aumento dos efetivos militares, havia falta de cirurgiões, anestesistas, estomatologistas, intensivistas, etc., para além dos tipos da medicina tropical, que as doenças infectocontagiosas eram mais do que muitas. Com um diganóstico de hepatite, mandava-se um desgraçado tratar-se na metrópole, o que para muitos era a "sorte grande"... 

Estás a falar do Hospital Militar de Bissau,  o HM 241 (ainda te lembras do número). E, em boa verdade, foi um grande escola para ti e outros medicos e cirurgiões. Foi lá que fizeste verdadeiramente o teu internato em cirurgia geral e  ortopedia. Tiveste lá grandes mestres. O que não admira, também não faltava "matéria-prima". E depois, com o Spínola, o Hospital tornou-se um verdadeiro orgulho para todos. Dizia-se, sem exagero, que era o melhor hospital da África Subsariana, só tendo paralelo nos hospitais centrais da África do Sul… (Não sabes, nunca lá estiveste nessa altura.)

Ganhaste admiração pelo homem e pelo militar, que fazia visitas frequentes  ao pessoal do hospital, aos serviços e aos doentes internados.  Ele e a esposa, a simpatiquíssima dona Helena, uma senhora muito fina. E falaste com ele mais do que uma vez. Chegou-te a convidar para ficares na Guiné. Ele sabia que tinhas sido "pilão",  e julgava que tinhas as virtudes militares no teu ADN (coisa que verdadeiramente tu nunca pudeste confirmar).

Em suma, e voltando à tua infância e adolescênia, cresceste com um pai ausente, que tu mal conhecias, a não ser pelos retratos que a tua mãe e espalhava pela casa, com uma velinha acesa para que a santa da sua devoção o protegesse. Quando vinha a casa, recompensava-te com alguns brinquedos, baratos, de lata, e sobretudo muitas histórias. Era um bom contador de histórias, sabia as aventuras todos do Tigre da Malásia, dos livros do Emílio Salgari. Mas nunca falava da guerra,  da guerra do ultramar, que depois passou a chamar-se guerra colonial...


Era um homem meigo, contrariamente à tua mãe (que, coitada,  tinha de ser pai e mãe, que tinha de
 dar o pão, o amor e a educação, a ti e à tu mana; era uma mulher precocemente marcada pela dureza da vida e pelas agruras do casamento com um homem ausente do lar).

Por tudo isto, é difícil responder a perguntas estúpidas como aquela de saber se tiveste uma  infância feliz...  Também não sabes por que razão é  que foste agora desenterrar estas memórias, recalcadas,  do passado.
Na semana em que fizeste 70 anos, o dia 28 de fevereiro de 2010 calhava a um domingo e o dia 1 de março era segunda-feira. Alguém sugeriu fazer a tua "festinha de despedida" na sexta-feira à noite, mas tu opuseste-te terminantemente.

Durante os dias úteis da semana não dava jeito, porque afetava o normal funcionamento do serviço e muita gente não poderia vir. E depois nunca se devia comemorar o aniversário natalício, na véspera, porque dava azar. E tu nessas coisas, eras mesmo supersticioso. Ou não fosses cirurgião.

Ah, sim, as profissões de rilsco têm os seus mlecanismos de defesa contra o sofrimento psíquico. Já alguém te explicara isso, num congresso médico em França: dos toureiros aos pilotos de avião, dos mineiros aos tipos que trabalham nos arranha-céus, dos artistas de circo aos pescadores de alto mar, sem esquecer os polícias e os militares… Todos têm que saber racionalizar os riscos a que estão expostos. 

No caso dos médicos, eles lidam todos os dias com a doença e a morte, pelo que acabam por ter a perigosa ilusão de que são invulneráveis e imortais. Por outro lado, estão sujeitos ao erro, à incerteza... Mas o preço a pagar é, muitas vezes, a exaustão. 

Enfim, a "tua festa" (ou foi a festa dos outros ?)  acabou por ser marcada para um sábado, dia 6 de março de 2010.

Bolas, já lá vai uma boa dezena de anos!... Como o tempo passa. Há mais de meio século atrás andavas em Bissau a amputar pernas e braços, de homens, brancos e pretos, apanhados pelas malditas minas e armadilhas que o PAIGC punha nos trilhos e picadas. Mas também da população civil, nomeadamente fula, que era atacada com armas pesadas e balas incendiárias, nas suas tabancas, sem dó nem piada. 

Enfim, mesmo na retaguarda de um hospital viste o suficiente da guerra para não falar dela de ânimo leve e, muito menos, com saudade.

Com Spínola, há uma escalada da guerra. Mas não se discriminava ninguém... Propaganda? Não, no HM 241  chegava-se a a operar "turras" do PAIGC (e até um cubano, o capitão Peralta!),  feridos e aprisionados pela tropa e evacuados de helicóptero, que custava uma pipa de massa à hora. 

Recordas-te da péssima disposição com que te levantaste, nessa sexta-feira, dia 26 de fevereiro de 2010. Era o teu último dia de trabalho. Segunda feira era já o início de outro mês. Costumavas dizer que só fazias anos de quatro em quatro anos, nos anos bissextos. A partir de 2010, fizeste questão, talvez por pirraça, de deixar de fazer anos...

Nessa semana tu atingias o limite legal de idade para trabalhar na função pública, neste caso no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Já te poderias ter reformado alguns anos antes, acumulando os anos de serviço com o tempo da tropa. Mas não quiseste. Por altruísmo? Por amor ao serviço  público? Não  tens a certeza... Se calhar, foi antes por medo de ir para casa onde ninguém te esperava de braços abertos . Chamavam-te, por isso, o “dinossauro” do Hospital, o "velhadas", o "marreta", o "missionário"  e outros mimos. 


É uma imposição estúpida: sentias-te ainda, aos 70 anos, em boa forma, física e mental, com forças para continuar a dirigir o serviço de ortopedia, que era o teu mimo,a menina dos teus olhos. É certo que já não operavas há uns tempos. Ou melhor: ias fazendo uns “biscates” para não perder a firmeza da mão… Enfim, umas coisas mais leves: fraturas simples, joanetes, uma ou outra artroplastia do joelho, umas infiltrações... Por outro lado,  tinhas uma excelente equipa, de fazer inveja a qualquer hospital.

De qualquer modo reconhecias que um tipo, aos 70 anos,  já não tem o mesmo treino de mão, a mesma agilidade, a mesma paciência, a mesma resistência e os mesmos reflexos de quando era mais novo. E sobretudo a mesma pachorra para aturar os diretores clínicos e os administradores hospitalares e as suas folhas de excel, os gráficos de desempenho, qualidade e produtividade, enfim, para lidar com a burocracia e a numeracia da saúde. Um hospital, público ou privado, é uma fábrica, é cada vez mais gerido como uma fábrica. E infamante foi a imposição do controlo biométrico da assiduidade, da iniciativa de um ministro qualquer, de quem também já esqueceste o nome.

Uma parte dos teus colegas, nesse tempo,  reformava-se do público, logo que preenchia os requisitos legais, na expetativa de vir a poder trabalhar na privada. Alguns até aceitaram ser penalizados na contagem de tempo. Mas era uma ilusão. No privado eram esmifrados até ao tutano. E tinham que alimentar todos os setores da fábrica, da imagiologia ao bloco operatório, da hotelaria aos cuidados médicos e de enfermagem, do nascer ao morrer...


Nunca pensaste em vir a trabalhar na privada, querias tu dizer, numa clínica ou num hospital fora do SNS. E muito menos depois de acabar a carreira no público. Afinal estavas cansado de aturar doentes cada vez mais reivindicativos (e que sabiam tudo da sua doença através da Wikipedia!),  para além dos constrangimentos impostos pela direção clínica e o conselho de administração, da escassez de recursos humanos e materiais, das birras dos anestesistas, da ingratidão dos internos, dos narizes empinados das senhoras doutoras enfermeiras,  

Acho que fizeste bem em pôr um ponto final na tua aventura terrena no domínio da saúde… Na próxima encarnação, serias o que Deus ou o Diabo quisessem…

Estavas em regime de dedicação plena, o que era raro na tua especialidade, que até pode ter uma baiuca cá fora numa qualquer clínica com nome de santo. De qualquer modo, aos 70 anos, punha-se o dilema: o que irias fazer a partir de então, com todo o tempo do mundo à tua frente?!... 

Cedo te apercebeste, depois de reformado, que o tempo era, afinal, depois da saúde e da liberdade, o recurso mais precioso que um homem tinha, e que em geral era mal gerido... 

Afinal, deste conta de que desperdiçaras uma boa parte da tua vida. E, de ciência certa, só se vivia uma vez. Tiveste essa terrível certeza quando, logo aos sessenta, começaste a ver desaparecer alguns amigos e conhecidos.

Não eras escritor nem pintor como alguns dos teus colegas médicos, mais talentosos e famosos. Vivias na periferia de Lisboa e tinhas perdido as tuas raízes em Setúbal e no Alentejo. Perderas completamente o rasto aos teus parentes de Alcácer do Sal e de Estremoz. Também nunca tiveste o culto da família. E infelizmente também nunca tiveste um filho. A tua vida conjugal não fora feliz. Casaste-te, descasaste-te, e com o tempo, depois de alguns relacionamentos desastrosos, começaste a  ficar cada vez mais... misógino.

Mas, voltando ao teu almoço de despedida e à tua retirada de cena…Desde o início do ano de 2010, tinhas o sacana do teu adjunto à perna, a contar os dias do calendário, sempre  à espera do "grande dia" em que o "o filho da puta do velho" (sic) arrumasse de vez o bisturi e despisse a bata… Se ele não o dizia, bem o pensava: “O filho da puta do velho!”…

Reconhecias que tu eras o último obstáculo para ele subir até ao topo da hierarquia do serviço… Para isso, era preciso "matar o pai"…

Mas tu não o condenavas… No lugar dele, tu farias o mesmo, confidenciaste a alguém. De certo modo, acontecera-te o mesmo com o teu "patrão" no hospital anterior, onde começaste a tua carreira. Desististe de esperar que ele arrumasse as botas, tinhas mais três ou quatro rivais à frente… O que fizeste foi concorrer para outro hospital, que ia abrir e que tinha vagas para ortopedistas, e logo a chefiar. Aliás, foste tu  que, aos quarenta e tal anos, foste montar o serviço… E essa foi a tua coroa de glória, abrir um serviço de raiz.


Em suma, já estavas ali, no último hospital em que trabalhaste, há uma eternidade… Enfim, chegara a vez do render da guarda, por muito que isso te custasse. 

Mas voltando ao teu sucessor: e se tu foste um pai para ele!... E que pai!... Recebeste-o de braços abertos, ajudaste-o a fazer o internato da especialidade e, se ele hoje é um grande ortopedista, muito melhor do que tu (és tu próprio a reconhecê-lo), a ti também o deve. Pelo menos em parte. O resto é mérito dele e da estrelinha da sorte que o levou até ao estrangeiro onde aprendeu novas técnicas que tu não dominavas... É verdade?!

Em contrapartida, ele foi o filho que tu nunca tiveste.

Reconheces igualmente que tu foste uma espécie de pai tirano. Foste muito mais exigente e menos condescendente com ele do que com qualquer outro dos internos que por lá passaram pelo serviço. Porque ele era melhor do que os outros, ou tinha que ser o melhor. Provavelmente ficou-te a odiar… Mas nunca o deixou transparecer. É apenas o teu “feeling”…

Em suma, tu e ele tinham, então, na véspera da tua jubilação (odeias a palavra!), uma relação de amor-ódio, latente.

No almoço, nesse tal sábado, foi ele que fez o discurso da praxe… E que discurso! Deixou-me sensibilizado, quase até às lágrimas (a ti, que não tens lágrima fácil)… É difícil, se não impossível, saber se foi sincero, ele era um homem, ainda jovem, brilhante, eloquente, de grande inteligência e um sedutor nato, um "charmoso", bendito entre as mulheres.

Foi ele e a tua secretária clínica que organizaram tudo… Apareceu quase toda a gente, médicos, enfermeiras, assistentes técnicas e administrativas… O mulherio em peso, não tanto por ti mas mais provavelmente por ele, que era o teu sucessor. O poder é afrodisíaco, alguém o disse.

Veio também o teu colega de Ortopedia B, que nunca foi teu amigo íntimo, mas era um colega, bom e leal (também passara pela Guiné)... E  mais alguns médicos, esses, sim, amigos, dos poucos que tu tinhas no Hospital. Nunca foste um homem muito sociável nem de trato fácil, mas sempre foram vinte e tal anos passados naquele hospital, a que chamavas a tua casa. Achavas que era respeitado e, no mínimo,  estimado. Hoje não tens tanta certeza.

O hospital, ou seja, o conselho de administração, ofereceu-te uma salva de prata com o teu nome gravado, e duas linhas de blá-blá de cujo teor já não te lembras. O Ministério da Saúde também te deu uma medalha de mérito (era o mínimo!). E o pessoal do serviço, incluindo os participantes no almoço, tiveram a gentileza de te presentear com um “voucher” para tu fazeres um cruzeiro à Grécia, com visita ao sul da Itália (Vesúvio, Nápoles, Pompeia...), e uma excursão ao templo de Asclépio, em Epidauro, no Peloponeso, na Grécia, onde começou a grande aventura da medicina ocidental de que tu, embora insignificante ator (modéstia tua), também fazias parte.


Não sabes porque é que estás agora a recordar o teu passado. E, depois, a conversa é como as cerejas. Tem piada, reconheces que há séculos que não falavas da tropa, do teu passado como alferes miliciano médico, entre 1968 e 1970, na Guiné de má memória. Em boa verdade, desde que regressaste em 1970... (Também nunca ninguém tivera curiosidade em saber, nunca te perguntaram, nem tu falavas sequer sobre esse período da tua vida. )


Guiné de má memória?!... Confessas que não tens saudades desse tempo, a não ser pelo que aprendeste como médico e como ser humano. Da guerra não tens saudades, as guerras nunca são populares, e aquela muito menos o era. E tens pena de então não teres conhecido melhor os Bijagós onde fizeste uma pequena visita,  num fim de semana prolongado, 

Com os primeiros tempos de Spínola, logo em meados de 1968, tens a ideia de que a guerra se agravara, de um lado e do outro. Chegavam feridos muito graves ao Hospital de Bissau, politraumatizados, que era preciso tratar de imediato. O teu maior orgulho foram as vidas que conseguiste salvar, embora alguns dos rapazes que tu (e a tua equipa) operaste, tenham ficado deficientes para o resto da vida. Nunca, como naquele lugar distante da tua terra, tu tiveste a perceção da justeza do velho aforismo hipocrático: "A vida é curta e a arte é longa"... A arte, a  medicina, a cirurgia, as ciências da saúde. Quantas vezes não te sentiste impotente, inseguro, frustado com as limitações do teu conhecimento e do teu treino, com a escassez de recursos, técnicos e humanos....

A Guiné era pequena, aí do tamanho do Alentejo, e ainda mais pequena na maré-alta, a Força Aérea chegava a todo o lado, nomeadamente os helicópteros, os Alouettes III, que faziam as evacuações Ypsilon (se bem te recordas). Eram as ambulâncias do céu,  estavam equipadas com bom material de suporte de vida, e enfermeiras paraquedistas que prestavam logo, "in loco", no mato ou em pleno, os primeiros socorros, essenciais para manter o fio da vida até Bissau.

Elas eram poucas, mas desdobravam-se em múltiplas missões e foram uma mais-valia (como se diza agora...) para os serviços de saúde militares. Eram muito jovens mas corajosas e competentes. Já não te lembras do nome de nenhuma delas, nem sequer da cara. 

Sabes, isso sim, que, às vezes, ao domingo, chegavam a almoçar juntos, os médicos do HM 241 e elas. Se bem te recordas, os oficiais paraquedistas e os pilotos de Bissalanca guardavam-nas com algum ciúme e e sentido de posse, como "fêmeas do seu harém" (dizia um despeitado de um colega teu)... Uma coisa patológica? Nada, era mais uma manifestação do corporativismo castrense... Na realidade, elas eram poucas e valiosas e pertenciam à Força Aérea, se bem que não dormissem na base de Bissalanca.

Do mato, propriamente dito, tens poucas recordações. Fotos, algumas, mas não te lembras  onde param. Uma das situações que te marcou, talvez pela positiva (o que até pode parecer estranho!), foi a receção que te fizeram no quartel que te calhou na rifa (já não te recordas do número do batalhão).  

Tu já estavas avisado que os gajos mais velhos gostavam de pregar partidas aos "periquitos"… Mas nunca mais te lembraste desse precioso "lembrete", que já trazias de Mafra…  

Recordas-te de ter chegado ao sítio onde foste colocado, em 1968, não longe de Bafatá (não interesse agora o nome), 
nos finais da época seca,  a de maior atividade operacional, de parte a parte. Ao que parece, o quartel nunca tinha sido atacado, nem nas proximidades havia atividade inimiga recente, a não ser a norte do rio Geba e ao longo da margem direita do rio Corubal donde o PAIGC nunca fora desalojado...

Foste de avioneta, viste aquela enormidade de terras pantanosas e alagadas, e aqueles rios em ziguezague que eram a estreita porta de entrada na zona leste.

Mal acabaras de arrumar os teus pertences, num quarto partilhado com mais dois alferes, no edifício do comando, ouves alguns rebentamentos e rajadas de armas automáticas. E depois um profundo silêncio… Nem tiveste tempo de ficar acagaçado, veio logo um militar de transmissões chamar-te à pressa, porque tinha havido uma emboscada com mina anticarro, ao fundo da pista, ali a menos de um quilómetro e tal… Havia “manga de mortos e feridos”!… Manga? Não percebeste...

Logo as Daimlers e o piquete que estavam de serviço, partiram a toda a velocidade, ao longo da pista, do lado de fora do arame farpado…

Um dos majores, talvez o segundo comandante, já não podes precisar, eufórico, quase histérico, apareceu, equipado a rigor (o que te surpreendeu, já que tinhas estado com ele, há menos de um hora!), a conduzir um jipe, mais o furriel enfermeiro, com a bolsa dos primeiros socorros… Os maqueiros já tinham seguido com o piquete, garantia-te o furriel. Havia uma grande excitação no ar, com gente a correr pelo corredor que ia dar à messe, atropelando-se uns aos outros...

O major deu-te ordens, com voz grossa (mas que te pareceu... algo teatral), para tu subires para o jipe. (Tratava-te, com alguma deferência, por doutor e não pelo teu posto.) … Tu nem sequer estavas de camuflado, nem tinhas nenhuma arma de defesa distribuída… Ficaste sem pinga de sangue, confessarás mais tarde, mas veio ao de cima o teu sentido do dever hipocrátrico, mais forte do que o medo do cagarolas do militar "periquito"… Pegaste na tua malota, ali à mão, e lá seguiste com o major a todo o gás…

Até apareceu uma "enfermeira paraquedista", vinda não sabes
 donde, de calça de camuflado, cabelo bem apanhado, e uma T-shirt branca, e  que, para vergonha tua, era bem  bem mais expedita e desembaraçada do que tu, no socorro aos "feridos"… Eles eram tantos que tu não sabias para onde te virar… E cada um gemia mais do que o vizinho... Mas, estranhamente, não havia fraturas expostas...

Ainda levou uns bons minutos até tu te aperceberes que tinhas caído… na esparrela!... Foras praxado, que nem um pato, para gáudio daquela cambada de malandros que estavam a escassos semanas de acabar a comissão!... Disseram-te depois que os oficiais "periquitos", de rendição individual, eram todos praxados à chegada... Mas nem todos gostavam da brincadeira!...

A encenação estava tão bem feita que até o sangue era sangue mesmo, embora de galinha ou de vaca, não era mercurocromo, como nos filmes de cobóis.

Soubeste mais tarde que a "enfermeira paraquedista" era a esposa de um dos furriéis ou alferes da CCS, e o que o furriel enfermeiro tinha sido o "cérebro" da brincadeira, com a cumplicidade sacana do major… 

Não levaste nada a mal, mostraste o teu "fair play", convidaste a malta  para o bar de sargentos, pagaste logo uma rodada de uísque a toda a malta, atores e figurantes… Em boa verdade, duas rodadas, que te custaram o equivalente a duas ou três garrafas!... Os gajos eram umas esponjas...

Pronto, são estas as histórias de que tu ainda  te lembras do teu passado, da infância, da juventude, e da guerra, ou das guerras, a da Guiné e dos hospitais onde, num caso como noutro, procuraste sempre fazer (e dar) o teu melhor… Tens a consciència do dever cumprido como médico, quer civil quer militar.

E aqui fica o resumo  da entrevista que aceitaste dar, com alguma relutância, para um projeto de investigação  sobre os médicos na guerra colonial...  Não tens a certeza da tua história valer grande coisa, mas esperas, ao menos, que os jovens historiadores façam bom uso dela. 

© Luís Graça (2019). 

Revisão: 21/1/2024
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Nota do editor: