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segunda-feira, 1 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25324: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (24): O tio Ortiz (1906-1944), um herói trágico

Sem título. Ilustração: Luís Graça (1999)


Contos com mural ao fundo:  O tio Ortiz (1906-1944), um herói trágico

por Luís Graça (*)


Partiram de Lisboa para Berlim no mesmo avião. Tu e a Manuela, em 1997. E, com a boa vontade de um passageiro (que aceitou trocar contigo  de lugar, um lugar à janela sempre é mais apetecível do que o do meio), conseguiram fazer a viagem juntos, pondo a conversa em dia.

Já não se viam há bastante tempo. E iam estar juntos em Berlim numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho. A Manuela, por sua vez, viera do Porto, tinha lá estado uns dias na festa de aniversário do seu pai e aproveitara para rever o irmão mais novo (que dirigia a empresa da família) e demais parentes e amigos.

Inevitavelmente a história da família veio à baila. A Manuela já te falara em tempos da sua “costela francesa e basca”. E na época, a ETA, a Euskadi Ta Askatasuna (em português, “Pátria Basca e Liberdade”) ainda estava ativa, sendo notícia, de quando em vez, em títulos de caixa alta, nos jornais, na sequência dos seus atentados ou da prisão de alguns dos seus operacionais e/ou dirigentes.

Em 1981 tu tinhas andado no  coração do país basco, do lado cá  dos Pirinéus. Foste de férias, tendo feito campismo  e passado por sítios icónicos mas ainda “sitiados”, e de algum modo "desaconselhados" pelas polícias e agências de turismo, na transição do franquismo para a democracia espanhola. 

Alguns desses sítios “tocaram-te” muito, de forma ambivalente, por uma razão ou outra, como foi o caso de  Guernica e Amorebieta-Echano. As placas toponímicas  estavam todas grafitadas, a vermelho, com os nomes das localidades,  então ainda  em castelhano, a serem  sobrepostos pelos nomes em basco: Gernika, Amorebieta-Etxano...

Era uma época em que ainda poucos turistas, espanhóis, franceses ou portuguesas, se atreviam a andar de carro, por aquelas bandas. Os de Madrid eram tratados por "perros", os "perros castellanos" (sic).  Os franceses também eram hostilizados, a menos que fossem bascos do outro lado dos Pirinéus. Os portugueses, apesar de tudo, eram melhor acolhidos. O teu amigo V... (que infelizmente  já morreu há uns anos) andava de boina basca e ainda tinha uma visão romântica sobre os "etarras" e todos os demais antifranquistas radicais, a FRAP, o GRAPO...  E fez  questão de fotografar todos os restos de murais que ia encontrando pelo “país basco” com referência aos fuzilamentos de 27 de setembro de  1975 (de 3 membros da FRAP e dois da ETA político-militar).

Parece que é preciso a gente ir  lá fora, ou lá para fora, para o "estrangeiro", para ganhar a suficiente distância, perder-se no  "labirinto da saudade" de que fala o Eduardo Lourenço... Como tu e o teu amigo V..., mais as respetivas caras-metade, que numa noite de verão e de tempestade, já em finais de agosto ou talvez princípios de setembro desse ano de 1981, chegaram a um parque de campismo perto de Guernica / Gernika… Justamente quando estavam a montar a tenda, começaram a ouvir, no altifalante, a voz da Amália em  "Estranha Forma de Vida"... E, depois a seguir, o "Grândola, vila morena", na voz de Zeca Afonso...

− Há emoções sentidas fora da nossa terra, que são indescritíveis,  e que nos marcam para sempre... – escreverás tu, mais tarde.

Tu, pessoalmente,  que toleravas a Amália, passarás a ouvi-la com outro respeito e  emoção, desde que ela morreu, em 1999...  Para o V..., em contrapartida , a Amália em vida não passava de uma "reaça". E o fado uma "desgraça", um dos três FFF que “o regime” (referia-se ao Estado Novo) “explorava até à exaustão para a adormecer o povo”...

Morrera na Flandres, na I Grande Guerra, o avô materno da Manuela. Teria 33 anos, a idade de Jesus Cristo quando foi crucificado.

− Ah!, a Flandres, o grande matadouro da Europa – comentaste tu.

O avô Ortiz era origem basca e francesa, pelo lado da  mãe. Dois dos seus três filhos acabaram por vir parar a Portugal como refugiados de guerra… Fugidos da guerra civil espanhola…

− Em 1936 ?!...

− Não, já em meados de 1937, depois do bombardeamento de Gernika (com K).

E esclareceu a tua interlocutora:

− Claro, eu ainda não era nascida, nem os meus irmãos. A minha mãe teria então 20 e poucos anos…

 Era  uma história comprida, dramaticamente cumprida, a da família Ortiz.

− E trágica, pode acrescentar. Pelo caminho ficaram alguns dos meus familiares, do lado materno, os Ortiz. Todos vítimas da guerra.

E depois de um curto silêncio, enquanto bebia o seu sumo, a Manuel repetiu enfaticamente:

− Vítimas da guerra, da violência, da intolerância, da estupidez humana…

Uma tia, mais velha que a mãe da Manuela, morrera no antigo Congo Belga, por altura da independência, em 1960 ou 1961.  Barbaramente assassinada, à catanada.   Era enfermeira numa missão católica.

Adiantou depois, a Manuela, que a última vez que vira essa tia fora quando ela veio de férias a Portugal. Teria então  os seus cinquenta anos. Lembrava-se do ano, 1958, porque fora na altura da “campanha do Humberto Delgado para a presidência da República”.

Mas a tragédia da família , que começara na Flandres, em 1918, não acabava aqui. O tio Ortiz  y Ortiz (conhecido só por Ortiz), o mais velho dos filhos do avô,  já antes, em 1944, tinha sido morto num campo de concentração nazi. Aos 38 anos anos.

E depois confidenciou-te:

− Vou conhecer Berlim, é a minha primeira vez, e vou tirar uns dias de licença para poder viajar até à fronteira da Alemanha com a Polónia. Pode ser que eu descubra o sítio onde o meu tio Ortiz foi assassinado. Pelo menos quero conhecer Auschwitz. Vou ver se arranjo coragem para ir, pelo menos, até Auschwitz.

Uma colega alemã, de origem polaca, já tinha dado à Manuela umas dicas sobre a região e a localização de alguns dos antigos campos de concentração nazis, na Alemanha e na Polónia.

− O alemão não é o meu forte. Só sei uns rudimentos. Formei-me em línguas românicas. E, na realidade, nem  sei para onde foi enviado o meu tio. Como vocês dizem em Lisboa, não fiz o meu TPC, não tive tempo,  com a ida ao Porto.

A Manuela Ortiz Fernandes era, pois, neta do “soldado desconhecido”. Uma barragem de artilharia alemã – é fácil de imaginar − tê-lo-á apanhado a conduzir a sua ambulância quando evacuava feridos graves, perto da  linha da frente.

A família nunca soube pormenores. Difícil de imaginar é o horror desta cena da morte do avô. Os seus restos mortais  nunca foram encontrados, o que de algum modo adensa o mistério das circunstâncias da sua morte.

− Não repousam por isso – esclareceste tu – em nenhum dos cemitérios militares da Flandres, com direito a lápide de pedra, placa com identificação (nome, posto e data da morte)… Nem à cruz dos cristãos.

O avô da Manuela, infelizmente, teria  ficado numa pilha de restos humanos, numa vala comum, no próprio campo de batalha… Pulverizado. Mas, a pior de todas ainda era a vala comum do esquecimento,  como é costume dizer-se a propósito dos  milhões de combatentes de todas as guerras da História.

A Manuela pegou nesta tua observação, trivial, para ir buscar um exemplo ao seu passado em Portugal:

− Ah!, sim, infelizmente, no colégio de freiras, no Porto, onde eu andei, só se falava dos heróis, dos reis e dos generais, sobretudo como vencedores das guerras da história de Portugal. Fazia-me sempre confusão. Muito menos se falava da guerra do ultramar. Eu tinha 15 anos, ia fazer 16, quando rebentou a guerra de Angola. O ‘terrorismo’, como dizia o meu pai. Ainda andava no 5º ano, e ainda estávamos chocados, lá em casa, com a morte da tia no Congo.

Em boa verdade, não se falava das guerras, não fossem as pobres criancinhas, suscetíveis, indefesas, ficaram para sempre traumatizadas… Os rapazes, esses, sim, teriam a oportunidade, única, de conhecer uma guerra a cores e ao vivo, dentro de alguns anos, pensaste tu... Em Angola, Guiné ou Moçambique..

− Não se esqueça – recordou-te ela – que eu ainda apanhei a ‘escolinha’ do Estado Novo e a mocidade portuguesa feminina.

E que lembranças tinha a Manuela desse avô Ortiz?

− Vi,  uma vez, uma foto dele, no dia em que terá sido promovido a sargento, presumo eu. Era um garboso militar do serviço de saúde. Bonitão, de bigode farfalhudo, como se usava na época. Era basco, do sul de França. Depois da tropa,  seguira a carreira militar.

E acrescentou:

− Havia uma outra foto, com os três filhos e a mulher. A minha mãe, que devia ter dois anos, estava sentada ao seu colo. Ao lado, dos pais, cada um dos outros filhos, a irmã e o irmão da minha mãe, que eram mais velhos.  Deve ter sido tirada em 1913 ou 1914, pouco antes do início daquela maldita guerra.

− Esses filhos, a sua mãe e os seus irmãos,  o que lhes terá acontecido depois?

Delicadamente, mas algo a  contragosto,  a Manuela procurou  satisfazer a tua curiosidade  intrusiva,  sobre os acontecimentos subsequentes que levaram à dispersão da família. Ela, Manuela,  só sabia, por alto, o que se tinha passado, no pós-guerra. Aos três irmãos,  tendo ficado órfãos, pôs-se  a hipótese de serem “institucionalizados”: como filhos de militar falecido (ou desaparecido)  em combate, poderiam ser internados num orfanato. O mais velho teria então 12 ou 13 anos. A viúva, essa, já estava internada num hospício.

Mas em vez de irem parar a um orfanato, foram acolhidos por uma outra família basca, do outro lado da fronteira, que tinha sido poupada aos horrores da guerra. As duas famílias ainda eram aparentadas, com um bisavô em comum. Daí tratarem-se por primos…

E aproveitou para te dizer que dava muita importância aos “laços de sangue” e que esse seria um traço forte da cultura basca… O que não te convenceu, mesmo sabendo pouco ou nada da cultura basca:

− Mais do que aos laços de sangue, eu dou importância à língua, à partilha de afetos, às memórias, às vivências comuns… A sua mãe falava basco?

− Infelizmente, não. A minha mãe e os seus irmãos, o meu tio e a minha tia,  só falavam o francês e depois o espanhol. A minha avó materna não era basca, são as mães, no país basco (e em toda a parte, julgo eu) que transmitem a língua (materna) aos filhos.

− E depois o português, claro?!

− Ah!, sim, mas só mais tarde. Todos aprenderam o português, exceto o meu tio Ortiz  que, esse, havia regressado a França, em 1936,  já homem feito, na altura do ‘Front Populaire’, a Frente Popular .  Em Bilbau, já era  um bom cozinheiro. Tirou depois um curso de ‘chef de cuisine’.

Sobrevoavam já a França, quando ela te começou a falar, surpreendentemente com grande ternura, desse tio que ela nunca conhecera, a não ser de fotografia e das conversas, esparsas, com a mãe.

Cozinheiro de profissão,  “partisan”, membro da Resistência Francesa, o tio Ortiz terá sido preso,  em 1941 ou 1942,   a seguir ao armistício, numa cidade da Côte Azur,  pela milícia do Governo de Vichy, e mais tarde “miseravelmente” entregue à Gestapo. O facto de ter sido capturado com uma arma em casa, contribuiu para agravar a sua situação.

Terá passado primeiro pelo campo de Gurs, nos Pirinéus Atlânticos, originalmente criado pelos franceses para acolher os refugiados republicanos, espanhóis e internacionalistas, fugidos do terror franquista, e que, depois, com o governo de Vichy, fora transformado em campo de detenção para os membros da resistência francesa, os judeus e outros…

Uns meses a seguir, o tio Ortiz terá sido transferido, com outros detidos considerados perigosos (com destaque para os comunistas) para o campo de Royallieu, na comuna de Compiègne, a nordeste de Paris. E aqui perdeu-se o seu rastro. Sabe-se que mais de cinquenta mil presos  desse campo (incluindo judeus) foram depois deportados para campos de concentração e de extermínio fora da França: Auschwitz, Ravensbrück, Buchenwald, Dachau, Sachsenhausen, Mauthausen, Neuengamme…

Qual deles terá sido a  "última morada" do tio Ortiz ?

A Manuela infelizmente ainda não sabia. Quando quis voltar a falar com a mãe sobre o passado da família e o destino trágico dos seus dos dois seus  irmãos, já ela estava mal, com idas frequentes ao IPO, no Porto.  

−E em 1975, também não tínhamos cabeça para nada, muito menos  para recordar o passado da família. Eu ia fazer 30 anos, já estava a dar aulas como professora de  francês, e o verão quente de 75 também mexeu muito comigo. Houve saneamentos de pessoas, a política estava ao rubro, havia conflitualidade por todo o lado, nos quartéis, nas ruas, nas empresas, nos campos, nas escolas...

A mãe, ainda lúcida, foi assaltada pelos fantasmas da guerra civil espanhol. Mas a família procurou poupá-la, ocultando-lhe a situação social, politica e militar que se estava a viver, incluindo os problemas da empresa do pai… Morreu em paz, na véspera de Natal. E ficou “sepultada na terra onde, apesar de tudo,  fora muito feliz”, o Porto.

Sobre a avó materna, a Manuela sabia ainda menos. Pouco ou nada lhe contaram  sobre ela em criança. Era um assunto tabu na família. A Manuela viria, mais tarde, a descobrir, pelo álbum da família e da pouca correspondência que se salvara, das andanças de terra em terra, que a avó francesa  enlouquecera na sequência do trágico desaparecimento do marido na Flandres.

– Vestira-se de luto, como as mulheres dos pescadores da nossa costa, mas não acreditava  na morte do marido. Tinha a secreta esperança que ele tivesse sido feito prisioneiro pelos alemães.  Morreria cedo, a avó, num manicómio. Mas, como disse,  não era de origem basca… A minha mãe também morreria cedo, como já lhe contei. Em 1975, aos 63 anos, no Porto. De cancro da mama, doença que na altura era quase incurável. O meu pai ainda a quis mandar para Londres, mas os médicos desencorajaram-no. E ele, já com 78 anos,  também estava com pouca força anímica.

Explicou-te por que é que nunca falou basco. Nem ela nem a mãe. Só o avô materno é que era basco. Em Bilbau, onde vivia e trabalhava em 1997, a Manuela ainda começara  a aprender o “euskara”…

– Já sou capaz de ler e compreender alguma coisa. Mas é uma língua tramada para os nossos ouvidos, indo-europeus. E, depois, verdadeiramente não me sinto basca. Sou muito mais portuguesa, e tripeira, se quiser... embora também goste de Lisboa, onde fiz o meu curso. A minha mãe, essa, sim, tinha as melhores recordações do país basco, da sua adolescência e juventude passadas na província de Biscaia, perto de Bilbau… O basco falava-se sobretudo nas zonas rurais e havia (e ainda há) vários dialetos.

– Mas tem material genético basco no seu ADN...

– Apenas uma pequena parte, nem sequer metade... E mesmo que fosse metade basca e metade portuguesa, o que é que isso queria significar?

– Nada!... Mas há a lotaria genética... Qual a metade boa, qual a metade má?

– Só me preocupo com os 'defeitos de fabrico'.. Olhe, por exemplo, o cancro da mama... Quanto ao resto, é puro racismo... Será que os bascos são mais 'violentos' ou 'truculentos' que os portugueses?

– Oh!, Manuela, não quis dizer isso nem sequer  insinuar...

– A ‘violência revolucionária’ da ETA não é um  fenómeno exclusivamente basco, nem eu me identifico com a ETA ou qualquer outra organização nacionalista radical...

– Outros dirão 'terrorismo'...

– Como o meu pai… Mas eu não entro por essas diferenças semânticas e conceptuais. Poupem-me! Violência é violência. Mas quem quis destruir a identidade, a cultura, a língua bascas ? Mais recentemente o Franco... que proibiu os bascos de falarem o basco, o ‘euskara’  e transmiti-lo aos seus filhos... Mas no passado, os bascos também  foram discriminados em Espanha, tal como outras minorias, os judeus, os catalães, os galegos...

– Desculpe, Manuela, se  involuntariamente  a ofendi ou melindrei. Também temos, na nossa história comum, como portugueses, períodos de grande violência, física e simbólica.

– Pelo que sei de História (e sei pouco, confesso), Portugal está longe de ser o tal país de brandos costumes que a propaganda de Salazar contrapunha ao resto da Europa do seu tempo...  Embora a minha mãezinha estivesse grata ao Portugal de Salazar, diga-se de passagem…

A família que acolhera (e depois adotara, legalmente) a mãe da Manuela e os irmãos, no início dos anos 20,  teve meios de se refugiar mais tarde, em Portugal,  em 1937. Eram nacionalistas e republicanos, mas católicos, como muitos bascos. Beneficiaram das boas relações comerciais e até de  amizade que mantinham no Porto. Era gente com tradição no negócio do vinho, com filial no Porto (que prosperou). Gente de “classe média alta”, segundo a Manuela.

− Foram os nossos ‘avós’,  adotivos. Infelizmente já morreram. Regressaram, no final dos anos 50,  aos arredores de  Bilbau onde sempre tiveram a casa e a quinta, a 'baserri', que entretanto fora transmitida ao filho varão, o mais velho, o equivalente à figura do nosso morgado.  E que cuidou do património. Nunca saíra de Bilbau, apesar das grandes dificuldades do pós-guerra. Também nunca mais o vi, a esse meu ‘primo’, que fomos visitar uma vez, teria eu os meus 10 anos.

Portugal  tornou-se assim  a terceira pátria da família, depois da França e da Espanha.

− Neste caso, da minha tia (que foi para freira), e da minha mãe… que conheceu aqui o meu pai, também ele negociante de vinhos, amigo dos meus ‘avós’,  adotivos… Na Praia da Granja, que era frequentada por uma certa elite, no início dos anos 40… Era quinze anos mais velho que a minha mãe. E daí a razão de eu ter nascido, em 1945, no Porto, já depois do fim da guerra. Sou filha do pós-guerra, faço sempre questão de o dizer. Mas, em contrapartida, o meu nascimento foi saudado com a bomba atómica de  Hiroshima e Nagasaqui, nasci  poucos dias depois, em agosto de 45.

O senhor Fernandes era um conceituado "comerciante de vinhos e espirituosas", grossista, importador e exportador, da praça do Porto, com armazéns em Vila Nova de Gaia, na margem esquerda do rio Douro, e negócios prósperos em África (nomeadamente em Angola).

Sabia-se (alguns amigos mais íntimos e a família) que tinha “uma ascendência cristã-nova”, com raízes provavelmente na medieva comunidade judaica sefardita da cidade do Porto. A família deve ter tido, em finais do séc. XVII, problemas com a Inquisição,  razão por que se mudou, na totalidade ou em parte, para o Brasil onde prosperou. Alguns terão regressado com a corte de Dom João VI, em 1821. E estiveram no cerco do Porto, ao lado de Dom Pedro IV.

O patriarca da família não tinha pretensões a títulos nobiliárquicos como o futuro apoiante da causa de D. Pedro IV e da sua filha Dona Maria II, o José Ferreira, que num dia será sido feito cavaleiro, no outro barão, e depois visconde, e por fim, conde... O conde Ferreira, o grande benemérito do nosso liberalismo.

Apesar de ter conhecido e até convivido, ao que parece,  com o capitão Barros Basto, o senhor Fernandes nunca se aproximou da comunidade judaica do Porto. Punha os seus negócios acima de outros interesses. Mas sempre foi um homem do seu tempo, “laico, republicano, liberal… e tolerante” (sic), mas com boas relações com o poder, ou pelo menos com o poder económico,  a burguesia financeira, industrial e comercial do Norte.  Foi o retrato que te fez a sua filha, já depois de terem chegado a Berlim.

Mas quem era afinal a Manuela Ortiz Fernandes?

Tu já a conhecias de Lisboa, das “lides profissionais”. Desde o ano da adesão de Portugal e da Espanha à CEE, a Comunidade Económica Europeia,  em 1986. Ainda não havia a União Europeia nem o euro.  

O meio profissional ligado à saúde e segurança no trabalho (ainda se dizia por cá “higiene e segurança no trabalho”, por um lado, e “medicina do trabalho”, por outro…) era então pequeno e toda a gente se conhecia, daqui ou de acolá (o ministério do trabalho, que tutelava a área, a inspeção do trabalho, as grandes empresas, os médicos do trabalho, os técnicos de higiene e segurança, a Escola Nacional de Saúde Pública, etc.).

Deves ter conhecido a Manuela nalgum encontro ou fórum internacional. Sabias que ela na altura trabalhava em Barcelona, e estava cá com uma representação catalã. E ficaram em contacto. Reencontravam-se agora, em 1997, no aeroporto a caminho de Berlim, uns anos depois da queda do muro e da reunificação da Alemanha. Continuavam a tratar-se por você. Sentias que ela gostava de guardar alguma distância e, como toda a gente, tinha as suas defesas. Mas era uma pessoa agradável, uma boa companhia sobretudo quando se está no estrangeiro, por uns dias, em trabalho.

Estavam  os dois a participar numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho (“health and safety at work”). Tu, como académico, ela como tradutora-intérprete da Agência Europeia de Segurança e Saúde no Trabalho, com sede em Bilbao, criada em 1994, responsável pelo evento em parceria com a autoridade alemã para as condições de trabalho.

Por sorte, estavam alojados no mesmo hotel, de três estrelas, confortável, barato, e com bons acessos, perto da estação de metro que os levava ao centro de conferências onde se realizava o encontro.

O edifício, embora totalmente remodelado, ainda tinha traços da arquitetura “estalinista” do pós-guerra. A zona oriental de Berlim ainda era um mundo à parte, embora já sem o muro (ou com apenas alguns restos dele, todos grafitados). Era muito procurada pelos turistas, até porque os preços da hotelaria e restauração eram mais baixos do que do “outro lado”, ocidental… E, depois, ainda era um “museu vivo” da antiga RDA – República Democrática Alemã…

Para a Manuela e para ti,  era uma sensação estranha: o muro estivera de pé entre 1961 e 1989, dividindo não só os berlinenses e os alemães, como os próprios europeus. Era o “muro da vergonha” de todos os europeus, e não só dos alemães...

Se é verdade que a reunificação da Alemanha, há sete anos atrás, em 1990, marcara o fim da chamada guerra fria (opondo a União Soviética aos seus antigos aliados ocidentais da II Guerra Mundial), ambos se davam  conta, em 1997, que infelizmente outros muros, invisíveis (ou menos visíveis a olho nu), se estavam a erguer na “nossa velha e adorada Europa”. E que a Rússia afinal era um urso ferido e humilhado, o que não era bom para ninguém, a começar pelos europeus, tanto do leste como do oeste.

A decadência urbanística ainda era evidente. Mas Berlim já era então um estaleiro de obras públicas, estava em marcha a segunda reconstrução da cidade, depois da terrível destruição da II Guerra Mundial. (Quem não se lembra do filme "Alemanha, Ano Zero", de Roberto Rosselini, de 1948?)

Ainda era verão, mas as noites de Berlim não convidavam a grandes passeatas. Depois do jantar, ficavam à conversa sempre que não havia “programa social”.  Já tinham feito um “city tour” pela Berlim leste, e "canibalizado" um bocadinho do muro como "recuerdo", como toda a gente fazia.

Havia mais alguns portugueses, participantes no encontro, representando a administração do trabalho e os parceiros sociais, mais um ou outro médico do trabalho. Mas estavam alojados noutro hotel, dos selecionados pela organização, e que ficava no mesmo quarteirão, não longe dali.

Na época a Manuela ainda fumava muito, e queixava-se que o tabaco prejudicava o seu desempenho profissional como tradutora-intérprete: às vezes ficava rouca, ou com tosse, e até sem voz.

− Queria muito poder deixar de fumar – confidenciou-te ela, a ti, ex-fumador, mas tolerante.

Na época havia uma “cruzada fundamentalista” contra o tabaco e os tabagistas. A Manuela ficava “piursa” (sic) quando tinha que ouvir o discurso dos nórdicos (a que os latinos ainda faziam orelhas moucas)… O "fascismo sanitário", dizia ela, começara nos EUA e nos países nórdicos...

Mas foi a propósito da história da família que tu retomaste a  já longa conversa sobre o tio Ortiz y Ortiz (ou só Ortiz), interrompida, quando o avião aterrara.

Ela própria reconhecia que era “muito conversadeira”, saindo nisso à mãe. Por outro lado, aos seus olhos, tu terias a qualidade de ser uma boa companhia, senão mesmo um discreto confidente. Além disso, “sabias ouvir”, sem estar sempre a interromper, com perguntas ou apartes. Muito menos fazias críticas ou juízos de valor. E sobretudo inspiravas-lhe confiança. E nada como o “hall” de um hotel estrangeiro, convidativo ao “dolce far niente”, à conversa mole e também à má língua… sobre colegas, organizações e países.

−Auschwitz?... Poucos alemães lá devem ter ido. Havia o muro da vergonha, mas também antes os campos da vergonha – atalhaste tu.

− É como o Vale de los Caídos, em Espanha, onde tiveram a lata de sepultar o Franco. Recuso-me terminantemente a lá ir.

Da sua vida privada, nunca te falou ou só muito por alto. Tinha mais dois irmãos, sendo ela a mais velha. Do do meio, disse-te que não lhe apetecia sequer falar. Saíra do país antes de fazer os 18 anos, para escapar à tropa. Radicara-se em Andorra onde tinha um “hotel de charme”. Empresário, diretor turístico, pouco ou nada queria saber da família e de Portugal. Antes do 25 de Abril não podia sequer lá pôr os pés, sendo considerado faltoso ou refratário. O mais novo, esse, ficara à frente dos negócios do clã, para descanso e tranquilidade do velho pai que não queria ver morrer a empresa da família, que sofrera um abalo com o 25 de Abril e depois com a descolonização.

Ela, por sua vez, saíra de Portugal em 1976, no final do ano letivo.

− Não gostei do rumo político que tomou a revolução dos cravos… Também achei que fora um sonho lindo que acabara como todas as utopias… E cada um queria ver realizada a sua!... E muito menos gostei da minha curta e frustrante experiência de professora de francês. Na minha escola havia quase tantos grupúsculos políticos quantos os professores...

Foi para Barcelona onde fez um curso de pós-gradução de tradutora-intérprete. E arranjou a seguir trabalho como tradutora. Poliglota, além do inglês,  falava fluentemente ou lia quase todas as principais línguas latinas ou românicas (o castelhano, o catalão, o francês, o português, exceto o romeno). Não desgostava do que fazia, embora não morresse de amores pela área da saúde e segurança no trabalho. E viajava, que era uma coisa que lhe agradava. E sobretudo não ganhava mal (“ganhava muito mais do que em Portugal”).

Nunca soubeste se tinha filhos, relacionamentos, etc. Nem ela alguma vez te perguntou pela tua família. Era uma mulher atraente, mas de forte personalidade, “muita senhora do seu nariz”.

Só uns dois ou três anos mais tarde, já no virar do século, é que a Manuela te contou o desfecho da história (trágica) do tio Ortiz. Desta vez, fora em Bilbau, quando se voltaram a encontrar. Já existia o Museu Guggenheim e a cidade já nada tinha a ver com a decadência urbana e industrial  que tu conheceras em 1981, quando a visitaras pela primeira vez.

 Afinal,  não fora na Polónia  nem na fronteira da Alemanha com a Polónia, como ela imaginara, que o tio Ortiz morrera:

− O meu tio Ortiz morreu em Dachau.

− Em Dachau?!

− Sim, em Dachau, na Baviera, no sul da Alemanha, a escassos quilómetros de Munique...

Acabou por saber, mais tarde, de fonte francesa, que o tio Ortiz fora levado de Royallieu para Dachau. Por incrível que possa parecer, os SS (Schutzstaffel) que administravam o campo, construído pelos nazis para internar presos políticos e inaugurado pelo próprio Heinrich Himmler, em 1933, aproveitaram as competências profissionais do tio Ortiz. 

Por sorte ou por azar dele, puseram-no a cozinhar para os carrascos. Por sorte, porque foi poupado aos duros e infames trabalhos que eram reservados aos prisioneiros; por azar, porque não podia cometer erros. (Nunca lhe poderia, por exemplo, passar pela cabeça envenenar a comida: ele era o primeiro a ter que a provar.)

Ganhara as boas graças dos carrascos, que até o tratavam, à francesa, por "chef", em tom de chalaça, com um toque do humor, alarve, bávaro. Mas a “cuisine française” (tal como os vinhos, o "cognac" e o "champagne") não deixava de ter  prestígio aos olhos dos nazis…

− No inferno, a cozinha é inglesa, a gestão italiana e o humor alemão... Nunca ouviu dizer? – perguntaste tu à Manuela. − É uma variante da anedota  que os idiotas dos europeus contam uns sobre os outros...

Havia várias células, clandestinas, da resistência francesa em Dachau. 

− O tio Ortiz fazia parte  de uma. E, depois de ganha a confiança dos SS, começou a guardar as sobras das refeições  e reparti-las pelos seus camaradas que por sua vez também as faziam chegar aos mais fracos e doentes... 

É o testemunho posterior de um dos sobreviventes, disse-te a Manuela.

− A imaginação, a capacidade de resistência e a abnegação do ser humano, mesmo em situações-limite como a guerra, a prisão, o campo de concentração, o terminal da morte, levam-me a pensar que às vezes nós, homens, também somos capazes de  transcender a nossa condição animal e atingir, mesmo que por breves instantes, o estatuto do herói, do semi-deus, do herói grego como o Ulisses...

E concluíste o teu pensamento:

  Manuela, o seu tio Ortiz foi um herói. Um herói trágico.

O esquema funcionou até meados de 1944. Quando foi descoberto (ou denunciado?), o tio Ortiz foi sentenciada com a pena capital, sem apelo nem agravo, pelo comandante do campo, que adorava os seus cozinhados. Foi executado no dia seguinte para exemplo dos outros presos. Deram-lhe apenas a escolher (!)... entre a forca e o fuzilamento. Escolheu o pelotão de fuzilamento, honrando a sua condição de “maquisard”, de antigo combatente no “maquis”…

− Resistiu até ao fim, no limite das suas forças, da sua lucidez, da sua coragem. E, apesar da tortura, não terá denunciado ninguém... Morreu com grande dignidade, como poucos, gritando perante os seus carrascos: ‘Vive la liberté, l'égalité et la fraternité!... Vive... la France!’ [Viva a liberdade, a igualdade e a fraternidade!... Viva a... França!]

E, um pouco emocionada, a Manuela concluiu:

− Tenho orgulho no meu tio Ortiz!

[Por razões óbvias,  Manuela, que ainda deve estar  viva,  é um nome fictício. LG]

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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25176: Notas de leitura (1667): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (12) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Os autores procedem a um balanço final dos quatro anos da governação Schulz, chamando a atenção para a preocupação deste comandante-chefe em querer decidir a sorte da guerra de guerrilhas predominantemente pela força, não tendo levado a efeito um programa mais incisivo de captação das populações. Embora sejamos levados a dar-lhes razão (outros autores também apontam esta deficiência no comando estratégico de Schulz), causa uma certa surpresa não ter em consideração o estado de desarrumação demográfico que Schulz encontrou em abril de 1964, não era só a polvorosa no Sul, tudo se desarticulara na região Corubal, no Morés, os corredores de infiltração sentiam-se imunes. Houve que estabelecer ocupação do território, sem dúvida que não houve um plano de reformas como Spínola veio a pôr em prática, Schulz efetivamente teve meios militares mas jamais lhe foi concedido um orçamento generoso para tais reformas. E Spínola desencadeou a sua governação primeiro pela estratégia militar, visando seguramente mais longe, e com meios financeiros muitíssimo generosos.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (12)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Capítulo 3: “Eram eles ou nós”


Em 1968, a guerra na Guiné tinha-se transformado num impasse estratégico. As forças comandadas pelo General Schulz revelavam-se incapazes de tirar a guerrilha do PAIGC dos seus redutos, as forças portuguesas espalhavam-se por destacamentos, quartéis (desde sede de batalhão a aquartelamentos a uma ou duas dezenas de quilómetros), aldeamentos fortificados, o que, obviamente, permitia aos guerrilheiros diferentes formas de gerar instabilidade, quer minando os itinerários, montando emboscadas, ou praticando toda a espécie de flagelações. Somente o poder aéreo na sua multiplicidade de funções evitava formas graves de deterioração do moral das tropas e das populações. A Força Aérea era o fator militar decisivo. Os esforços da Zona Aérea impediam a consolidação dos guerrilheiros e de ganhos territoriais; de acordo com uma avaliação norte-americana, enquanto os portugueses mantivessem o “domínio absoluto do ar”, o PAIGC não conseguiria demover as tropas portuguesas das suas bases ou das principais povoações. Qualquer discussão sobre a independência para a Guiné Portuguesa não passava de um exercício teórico.

O Comandante-chefe Schulz usou esta sua “carta do poder aéreo” com grande efeito, mas a eficácia não podia ser duradoura. E embora uma guerra prolongada pudesse ter agradado aos insurgentes, tornara-se um problema sério para os recursos portugueses. Gil Fernandes, funcionário do PAIGC, resumiu mais tarde a situação nos seguintes termos: “Seguimos uma estratégia destinada a assediar as forças portuguesas e também a fazer esvair a sua economia. Combinámos a pressão militar eficaz na colónia e a pressão económica em Portugal.”

Em termos orçamentais, a estratégia parecia estar a funcionar: em 1968, os custos diretos associados à guerra na Guiné aproximavam-se dos 350 mil dólares norte-americanos por dia ou mais de mil milhões por ano em dólares norte-americanos de 2023. Era um valor que representava 44% do orçamento de Defesa em 1968 – e o orçamento da Defesa representava mais de 1/3 de todos os encargos do Estado naquele ano. No total, os encargos portugueses com a Defesa triplicaram entre 1959 e 1968 para apoiar o contingente militar que duplicou durante o mesmo período, de 79.000 para 182.500 militares. Um outro desafio crescente tinha a ver com o recrutamento. Em 1961, a incidência da fuga ao recrutamento em Portugal era de 12%; em 1967, ultrapassou os 19%.

A explicação para esta evasão pode ser dada por uma combinação entre a onda migratória e uma certa oposição por razões ideológicas. A deserção entre militares aumentou para 1402 em 1967, no ano seguinte o número praticamente manteve-se. As candidaturas e adesões à Academia Militar iam diminuindo. Em 1968, apenas 149 candidatos “concorreram” para preencher 430 vagas e apenas 58 foram admitidos; em comparação, quase 90% das vagas na Academia, de 1960 a 1963, tiveram preenchimento.

Apesar de todas estas restrições, Schulz conseguiu um impressionante aumento das forças portuguesas na Guiné. O número de militares enviados para a província aumentou 50% durante o seu mandato, de 15 mil para mais de 22 mil, enquanto o acervo de aeronaves da Zona Aérea aumentou mais de 1/3. O defeito que se pode atribuir à estratégia de Schulz era a sua confiança numa solução militar para o problema da Guiné Portuguesa. Schulz pode ser visto como “um general clássico de Clausewitz” (Schulz era um oficial do Estado-Maior); como ele mais tarde confessou, caiu na clássica armadilha de tentar derrotar uma insurgência acima de tudo através da força. Embora ele entendesse muitos dos aspetos militares da contraguerrilha, preferia o poder de fogo à persuasão, um pouco à semelhança do comportamento do general norte-americano William Westmoreland no Vietname. Como observou Manuel “Manecas” dos Santos, comandante do PAIGC, “Schulz não conduziu uma guerra de guerrilha moderna, não trabalhou com a população. Pelo contrário, o trabalho que empreendeu baseou-se na repressão e esta aumentou a resistência, tornando-se quase objetivamente um nosso aliado.”

Frustrado com os seus objetivos iniciais, Schulz recorreu a uma abordagem predominantemente estratégica defensiva estática, pontuada por episódicas ofensivas, principalmente de domínio aéreo. A sua estratégia ficou cada vez mais dependente dos meios aéreos disponíveis, e em meados de 1968, os aviões e as unidades helitransportadas constituíam a maior da capacidade ofensiva das forças portuguesas na Guiné. Revelou-se insuficiente, apesar do número crescente de missões realizadas, das bombas lançadas e dos alvos destruídos, a influência do PAIGC não abrandou, espalhou-se por toda a Guiné. Schulz admitiu mais tarde que este tipo de ações não se enquadrava com o que ele pretendia.

A situação exigia um comandante que pudesse recuperar a iniciativa e que encontrasse uma saída satisfatória para o “atoleiro” da Guiné. O escolhido por Salazar, António de Spínola, alterou não só o curso de guerra, mas também o destino político do Estado português e o destino do seu Império.


Capítulo 4: “A pedra angular”

“A Força Aérea, devido ao seu elevado potencial de fogo e potencial de reação rápida, é efetivamente a pedra angular da atividade operacional no teatro de operações da Guiné.” – Spínola, 10 de dezembro de 1968

O Brigadeiro António de Spínola assumiu as suas funções de Governador e Comandante-chefe em 20 de maio de 1968, trazendo consigo uma reputação de dinamismo, imaginação e determinação. O novo comandante era uma figura extravagante com um certo “modo fanfarrão”, ostentando monóculo e trazendo sempre um chicote nas suas frequentes visitas (não anunciadas) por toda a Guiné, algumas vezes dentro das alegadas zonas libertadas do PAIGC.

Austero, renunciando ao conforto pessoal e até mesmo ao ar condicionado, um jornalista estrangeiro descreveu que entrou no seu gabinete de trabalho vindo da antessala climatizada “como se tivesse entrado num ambiente de forno morno”. Intempestivo e caustico até com os seus colaboradores, era direto no confronto com os seus próprios superiores, e no campo de batalha deixou projetada deliberadamente uma aura de bravura, muitas vezes aparecendo desarmado à frente das tropas para pasmo dos soldados da linha da frente. Spínola já contava com quatro décadas de experiência militar na Arma de Cavalaria quando chegou a Bissau. No final da década de 1930, então tenente, teve a sua primeira exposição no combate enquanto organizava ajuda às forças franquistas durante a Guerra Civil espanhola. Durante a Segunda Guerra Mundial, participou numa missão de observação na Alemanha de Hitler, que incluiu visitas às posições da linha da frente em Leningrado. De 1961 a 1964, comandou um Batalhão de Cavalaria em Angola, foi elogiado pela sua bravura e eficácia, conquistou a admiração nos meios militares e chamou à atenção de Salazar. Agora, Spínola defendia uma abordagem inteiramente nova, adequada ao dilema político-militar suscitado pela luta de libertação. Como Spínola procurou explicar a Salazar antes de aceitar o posto para o qual estava a ser convidado, a única forma de evitar a expulsão da Guiné era através de uma campanha de desenvolvimento económico, de reforma política e “revolução social”. Só assim se poderia reforçar a confiança daquela população, preparando-a ao mesmo tempo “para assumirem as suas responsabilidades na administração local em pé de igualdade com a metrópole.”
Spínola numa das suas deslocações diárias (United Press Europix)
Quando Spínola chegou à Guiné, em 1968, a iniciativa militar estava francamente do lado da guerrilha (s. (Reg Lancaster/Express Hulton Archive/Getty Images)
Spínola lançou um programa socioeconómico por reformas (a Guiné melhor), era o seu objetivo ganhar confiança das populações descrentes ou pouco crentes na soberania portuguesa (Coleção António de Spínola)

(continua)

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Notas do editor:

Vd. post de 9 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25153: Notas de leitura (1665): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (11) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 12 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25163: Notas de leitura (1666): "Nas Três Frentes Durante Três Meses, Toda a Verdade da Guerra Contra o Terrorismo no Ultramar", por Martinho Simões; Empresa Nacional de Publicidade, 1966 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25141: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (18): Três amigos, três destinos - II (e última) parte


Figueira da Foz >  "Placa da Rua Heróis do Ultramar na esquina com a Rua 10 de Agosto, em frente dos Bombeiros Voluntários"...  Foto de Joehawkins, datada de 24 outubro de 2016. Com a devida vénia... Fonte: Wikimedia Commons (2018)

 [Placas como esta abundam por esse país fora, são do início dos anos 60, quando começou a guerra colonial / guerra do ultramar em Angola, e era preciso homenagear os bravos que por lá se batiam, em condições adversas...  E espicaçar os vivos que estavam na linha da frente...  para matar e morrer
 
A guerra depois banalizou-se, estendendo-se à Guiné e a Moçambique... E os heróis foram ficando para trás... Exaustos. Esquecidos. Abandonados.   Como em todas as guerras...  E até a próxima  guerra... em que dá  jeito ter heróis de reserva. LG]


Contos com mural ao fundo > Três amigos, três destinos - II (e última) Parte 

por Luís Graça


 Belmiro Mateus, advogado, e António Mota, professor de história,  reformado, do ensino secundário, ex-seminarista, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures na região do Médio Tejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, entre 1973 e 1974... Há longos anos que não se viam e aproveitaram para "matar saudades dos bons velhos tempos", além de homenagear o amigo. (*)

 (Continuação) 

***
 
O sítio, a tasca com esplanada coberta com folhas secas de eucalipto, não podia ser mais inspirador,  com larga vista sobre o casario, a farta lezíria, e o rio, sereno, preguiçoso,  agora com muito menos água do que no tempo da infância dos nossos dois interlocutores... "Carpe diem", dizia a tabuleta, em latinório, aproveita o dia, goza a vida, o dia-a-dia…

Pediram duas taças de branco, enquanto o Belmiro foi relembrando a história de vida do Zé Nuno…

− Além das touradas, o Zé tinha uma paixão, que era a guitarra… 
− explicou o Belmiro.

E continuou, depois de humedecer os lábios: 

− Aqui seguia as peugadas de um tio materno cuja coroa de glória terá sido, dizia-se,  ter acompanhado a Amália num já longínquo programa da Emissora Nacional ou do Rádio Clube Português, numa substituição de última hora. Tocou nas primeiras casas de fado, que floresceram com a guerra, em Lisboa, entre 1941 e 1943, na altura em que fazia o serviço militar obrigatório. Ainda chegou a estar mobilizado para os Açores, o que não aconteceu, talvez devido à guitarra e, ao que parece,  "à cunha certa metida à pessoa certa no momento certo"…

− Cunhas, nesse tempo, Belmiro ?!... Não me faças rir... −interrompeu o Tony.

− ... O Zé Nuno, por sua vez, animava algumas noites de fado no célebre "Solar do Marquês de Marialva", ainda te lembras ?... Era o clube da terra, no tempo dos nossos avós e dos nossos pais. 

Fora em tempos o clube seleto da vila ribatejana. Havia entrado em decadência, talvez no início dos anos cinquenta, depois de algumas senhoras da elite local terem tido a ousadia de denunciar ao Salazar, em pessoa, o sítio como "um antro de jogo ilegal, casa de passe, escola de vício e templo de perdição" (sic)... Uma delas, mulher de um médico com consultório na terra, era amiga, do tempo de Coimbra, da comissária nacional da Mocidade Portuguesa Feminina, a célebre Guardiola…

− E creio que também amiga ou conhecida da Van Zeller, que era a n.º 2 da Mocidade Portuguesa Feminina, e que há-de ser, nos anos 60, a diretora-geral de saúde, a primeira mulher a desempenhar esse cargo – acrescenta o Belmiro.

− Ah!, sim, a médica e deputada Maria Luísa Van Zeller… Sabes que sou barra nesse período do Estado Novo, os anos 30 e 40, fiz um mestrado sobre a ascensão e o  apogeu do Salazar.

− Eram as duas mulheres mais poderosas do regime.

− Depois da Dona Maria..., não te esqueças, Belmiro… E acrescenta a Supico Pinto, a famosa Cilinha, mais tarde, com o início da guerra. Ouviste ainda falar dela, por certo ?!...

− Ah!, sim, o nome não me é estranho... Mas tu sabes que eu não fiz   tropa...

Até então o Solar era frequentado pelas senhoras da terra, mas apenas durante o dia: tomava-se o chá das cinco, fazia-se tricô, jogava-se à canasta, bisbilhotava-se, cortava-se na casaca dos vizinhos… Uma vez por outra, aos fins-de-semana, havia récitas, espetáculos musicais, verbenas, chás de caridade e, no verão, sessões de cinema, no pátio,  ao ar livre... 

A noite era reservada aos cavalheiros... Faziam-se aqui negócios, fumava-se um bom charuto,  perdia-se e ganhava-se uns "trocos da cortiça", arranjavam-se casamentos, emprestavam-se cavalos e  amantes... 

Apesar das tradições republicanas, a segregação de género agravara-se com a Ditadura Militar e o Estado Novo. Fumar e sair à noite, sozinha, nem pensar, para uma senhora de boas famílias. De tempos a tempos, também aparecia por lá gente da boémia da capital, com destaque para as coristas do Parque Mayer, em digressão pela província…  

O Belmiro e o António eram putos nesse tempo, não se lembravam de nada, mas mais tarde irão conhecer o ambiente já decrépito do clube onde, aos sábados, na época marcelista, depois do “fado boémio e reaça” (sic), ainda havia uma ala juvenil que gostava de cantarolar e tocar uns fados e baladas de Coimbra, a meia voz, e onde se revelavam novos talentos da terra, acarinhados pelo Zé Nuno e pelo seu tio materno…

Curiosamente, já ninguém se lembrava, trinta e três anos antes, em 1936, das exortações, aos microfones da Emissora Nacional, de musicólogos, política e ideologicamente próximos do regime, como o Luís Moita, para que a mocidade portuguesa deixasse de cantar o fado, essa “canção de vencidos" (**)...

O tio, materno,  do Zé Nuno era um bocado a "ovelha ranhosa" da família, por ser considerado do "reviralho" (depois das eleições do Norton de Matos)… Em 1958, apoiara publicamente a candidatura do general Humberto Delgado à presidência da república, o que lhe trouxe alguns dissabores em casa e no emprego.

Com o novo presidente da Câmara Municipal, e dirigente local da Ação Nacional Popular (que sucedera à União Nacional), o pai do Belmiro, católico, marcelista, mais liberal que o anterior, que era um ferrenho salazarista, o ambiente na vila ribatejana desanuviara-se um pouco no final dos anos 60, princípios de 70.

− Continuando a nossa conversa…, vejo que estás com bom ar, Belmiro… Mas, quem vê caras, não vê corações.

− Bem, parafraseando o provérbio, "muita saúde", vou tendo ainda, mas não sei se "pouca vida"…, porque afinal "Deus não dá tudo"… Acho que era esse o provérbio que dizia o meu avô materno, que morreu cedo, segundo a minha mãe. Vendia saúde às carradas, mas tinha o pressentimento que iria morrer ainda jovem. Costumava também dizer: "Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba"… A verdade é que não chegou a conhecer os netos… Morreu com a pneumónica...

− Em suma, morria-se cedo, cheio de saúde…

− São provérbios ao teu gosto hipocrático, Tony… Tu é que publicaste em tempos uma antologia de provérbios populares ligados à saúde, não foi ?!... Pelo menos , mandaste-te uma separata, autografada, ainda qundo eu estava nos Açores.

− Sim, uma separata  de uma revista de história da medicina… O povo lá sabe, ou sabia, tenho um certo respeito pela sabedoria popular.

− Tretas…, desculpa lá, Tony… De popular têm muito pouco os nossos provérbios. Fisqusei vacinado com o maoismo...

E, subindo o tom de voz, o Belmiro sentenciou:

− E, se queres um conselho, da minha experiência de vida, que já é alguma, não te fies no povo, na populaça… O povo é vilão, é mouro, é saloio, é conservador, se não mesmo reacionário, manhoso, interesseiro, desleal, ingrato… O povo é um caçador oportunístico, tanto come na gamela do pobre como apanha as sobras da mesa do rei… Eu vi pelo meu pai, que passou de bestial a besta, com o 25 de Abril... Não faltaram os vira-casacas que lhe infernalizaram a vida, e aguns deviam-lhe favores... Sabes que o populismo tanto é de esquerda como de direita... 
Cuida mas é da tua vida, cuida de ti, cuida dos teus!

− “Ao vilão dá-lhe o dedo, toma-te a mão” – ironizou o António Mota. – Seja, mas poupa-me os teus sarcasmos, o teu humor à laia do Bordalo Pinheiro. Estás a sugerir que o nosso Zé Povinho é gentalha, feia, porca e má... Como os ciganos, os pretos, os imigras, os sem-abrigo, os proletas... Vocês, juristas, são tramados… Mas também quero dizer-te que gostei da nossa conversa.

− Dantes ainda nos encontrávamos nos casamentos e batizados… Agora é só nos funerais – lamentou-se o Belmiro.


− Sim, uma conversa à porta do cemitério, não direi mórbida, talvez mais nostálgica do que filosófica.

− Então, à nossa, Tony!... Aos bons velhos tempos!... Tchim, tchim!

E ergueram as taças de vinho branco.

− Vejo que estás mais cético, Belmiro, mais crente em Deus, menos confiante nos homens, ou seja, no povo de Deus. Afinal, quem o diria, um ex-maoista, como tu, quando jovem, para quem a Bíblia, na faculdade de direito, era o famigerado "livrinho vermelho"…

− Sem dúvida, um "best seller", como a Bíblia. Foi um dos primeiros negócios que a China fez no Portugal continental… Em pequema escala, é verdade, mas abria simbolicamente uma porta para um  mercado, muito mais vasto... Mas, eh!, nada de ressentimentos nem de remoques políticos…

− De modo nenhum, nessa altura, já não convivíamos, ou muito pouco, estava cada um para seu lado.

− Assumo esse passado, embora hoje me ria de mim próprio. Sabes como era: jovens imberbes, chegados à capital, más companhias, paixões juvenis, a descoberta do sexo (fácil), a revolta contra o pai, a incultura geral, leituras apressadas, na diagonal, dos gurus do marxismo-leninismo, o " pensamento de grupo" (que é o de todos os partidos), o exotismo da revolução cultural chinesa, a cabeça na ponta do polegar direito (!), a vontade (irresistível) de mudar o mundo e a vida num ato de magia vermelha!...

E ganhando fôlego:

− Fomos como o frango de aviário assado no espeto: em mês e meio ficávamos doutores em ciência política, dominando as famosas RGA, as reuniões gerais de alunos, no caso dos estudantes, mas procurando também chegar às fábricas e aos quartéis... 

- Demagogia, a nossa doença infantil ?


-  Não escondo que éramos demagogos, intolerantes e terroristas (no sentido de usar a palavra como uma arma: "Fogo contra a burguesia!... Abaixo o social-fascismo!"...). Era a orgia e a magia das palavras de ordem que podiam mudar o mundo e a história... Pobres de nós.

− Sei do que falas: as hormonas em convulsão aos 18/20 anos… Não é por acaso que é a idade em que te mandam para a tropa e para a guerra!... A idade perfeita para se matar e para se morrer!

− Mas fica sabendo que foi uma grande escola, a nossa, a maoista…

− Sim, pelo que vejo por aí com os teus ex-correligionários… Um caso de sucesso de promoção da literacia política e, nalguns casos, públicos e notórios, de meteórica ascensão na hierarquia dos partidos do poder, no aparelho de Estado, nas grandes empresas, nos bancos,  nas instituições europeias, etc.

Os dois amigos davam agora conta de que há muitos anos não bebiam um copo juntos… Mas que este tchim, tchim, este tilintar de copos, também tinha algo de premonitório. Como eram os dois supersticiosos, tiveram um estranho pressentimento...,  o de que não voltariam mais a encontrar-se.

− Cruzes, canhoto, afasta de mim esse cálice, irmão! – galhofou o Belmiro, para disfarçar o calafrio que sentiu pela espinha acima.

E, prosseguindo a sua linha de pensamento sobre o seu passado, quando estudante de direito, justificou-se o Belmiro:

− Aos vinte anos, somos todos revolucionários quando há que fazer revoluções… No passado, à direita e à esquerda, os revolucionários chamavam-se fascistas, comunistas, anarquistas, cada um com a sua bandeira e a sua ideologia (meia dúzia de chavões!) 
e era preciso destruir a burguesia e o Estado capitalista, na Europa nos anos 20 e 30 do séc. XX. 

− Sim, os extremos tocam-se, muitas vezes...

− Hoje, em 2018,  não temos a mesma urgência em mudar as coisas, tal como acontecia em Portugal em 1973, o ano em que nada podia continuar a ser como dantes: tínhamos a escalada da guerra colonial, a ditadura em banho maria, a crise petrolífera, o esgotamento do nosso modelo de desenvolvimento, a emigração em massa, a títímida  (mas inevitável) mida  democratização do ensino e da saúde,   os bairros de lata a crescer como cogumelos nas cidades industriais, a EFTA - Associação Europeia do Comèrcio Livre...  Andávamos em agitação permanente, pelo menos na universidade, em Lisboa, Porto e Coimbra, achávamos que tínhamos que começar a mudar as coisas pela veemência e a urgência da palavra…

− Ou pela violência das armas ?! O poder está na ponta das espingardas!, era a vossa palavra de ordem maoista… Pobres diabos, putos imberbes, que ainda não tínham dado um tiro nem sabiam manusear uma arma nem podiam imaginar o horror que é uma guerra, dentro ou ou fora de fronteiras...

− Eu, felizmente, não fiz a guerra como tu. Nem sequer fiz o serviço militar, por um bambúrrio da sorte. A guerra acabou antes.

− Tiveste mais sorte do que eu… e do que o nosso pobre Zé Nuno. Mas, tu, Belmiro, terias dado um grande herói do 10 de junho. Infelizmente, hoje serias um herói morto, com direito a nome gravado na pedra, no monumento aos mortos da guerra do ultramar... Como aquele mamarracho que foi erguido no jardim central da nossa vila... Ainda bem que estás vivo...

− E quem te disse, Tony, que eu não poderia ser hoje um herói vivo ?! Um Torre e Espada, que muito honraria a nossa terra ?!

− Os heróis também se fabricam, por mero oportunismo político,  em função dos interesses dos regimes... Vê o caso do soldado Milhões, que salvou a honra da República e do CEP, o Corpo Expedicionário Português, na I Grande Guerra... Ou, no caso da Guiné, o Marcelino da Mata... que cheguei a conhecer pessoalmente.

O António aproveitou então para enfatizar as qualidades de liderança do amigo que tinha tudo para ser um bravo soldado, um grande comndante militar,  digno dos nossos maiores:

− Belmiro, a mim que não tinha jeito nenhum para a tropa, fizeram-me alferes miliciano, comandante operacional... Tu, sim, sempre foste um líder, mais do que um chefe, desde os tempos do escutismo. Não tenho dúvidas que terias chegado a general, se tivesses ido para a Academia Militar, como chegaste a sonhar. Estou grato ao teu pai por te cortado a crista de galo…

− Meu sacana!... Tinha alinhado no 25 de Abril, disso podes estar ciente. Mas nos meus 15, 16 anos ainda cheguei a sonhar com a carreira das armas…

− Em contraciclo!... A Academia Militar estava às moscas, homem!… Depois, o militarismo era, para mim, o lado mau do escutismo. Deixaste-te seduzir pelo espírito de corpo, a unidade comando-controlo, a disciplina, o garbo, a ordem, a farda, os galões, os estandartes, a parada, a música marcial, o baile das debutantes,  a valsa, a  bellle-époque

− Não, estás redondamente enganado. O que me seduzia, na tropa, era a arte e a ciência de mandar, ou comandar!... Para servir os outros, a comunidade, o país, a pátria... O escutismo foi também uma das minhas grandes escolas, estou grato ao Baden-Powell e, já agora, à Mocidade Portuguesa… E, tu, não te esqueças que também lá andaste… Se eu fosse para a tropa, não tenhas dúvidas que queria ser o primeiro, o melhor, do pelotão… e por aí fora!

Fez-se um silêncio, algo embaraçoso. O Tony nunca contava a ninguém que também andara na "bufa"… e depois no seminário. Desviou a conversa:


− Então, o nosso querido Zé também foi parar ao ultramar, estás-me a dar uma novidade.

− Falávamos pouco da tropa… Só sei que andou pelo Índico, a patrulhar a costa moçambicana. Deve ter comido muito camarão moçambicano que era (e é) o melhor do mundo…

− Nada mau, viver numa corveta ou coisa parecida, sempre era melhor do que andar no mato, como a "tropa-macaca".


− O que é isso de "tropa-macaca" ?

− A que andava a penantes, no mato... Os "infantes", os atiradores...

Na realidade, o Zé Nuno tivera mais sorte do que o António Mota. O Belmiro ainda se lembrava dele, aos fins de semana, fardado de branco, impecável, oficial e cavalheiro, um "príncipe encantado" para as garotas da terra.

− O melhor da Marinha era a farda e o bar dos navios − acrescentava, irónico, o Tony.

− O Zé falava muito pouco ou nada desses tempos da guerra do ultramar. Andou por lá, nunca deu um tiro, a não ser nos exercícios navais. Mas falou-me, uma vez, maravilhado, da viagem do navio-escola "Sagres" ao Rio de Janeiro,  recebido em delírio po mulherio...


E mais acrescentou o Belmiro:

− Sei que, quando cá veio de férias, ainda em finais de 1973, por altura do Natal, trouxe uma cassete com as famosas canções do Niassa, que estavam proibidas…

− Nessa altura, como sabes, estava eu na Guiné, só ouvi as canções do Niassa uns anos depois. Mas também havia uma espécie de cancioneiro da Guiné...

− Eh!, pá, da nossa geração poucos escaparam, tirando a malta que andava na universidade e foi adiando o serviço militar, como eu… De exame em exame, lá fomos dobrando o cabo da Boa Esperança…

Naquele tempo, poucos foram os condiscípulos do Belmiro que continuaram a estudar para além da 4ª classe ou do 5.º ano do liceu.

− Ah!, e não te esqueças da malta que deu o salto – disse o Belmiro, que se lembrava ainda de uma leva de jovens do concelho que fora numa carrinha de um passador e que tivera um acidente grave já a caminho de Bordéus…

− Não estava cá quando isso foi… França, Alemanha, Suécia, Canadá, América, Brasil (antes da ditadura militar de 1964)… eu sei lá para onde a rapaziada foi parar!... Muitos à procura de melhor vida, não tinham qualquer consciência política, mas a verdade é que mandaram o  país à merda, o país e os gajos que cá mandavam...

− Desertor, que me lembre, não conheci nenhum na nossa terra. Mas faltosos e refratários foram bastantes. E olha que não eram filhos de agrários. O tipo do stand de tratores e máquinas agrícolas, um comerciante que veio de fora e que enriqueceu depressa, esse, tratou logo, na devida altura, de pôr o filho mais velho a bom recato na Suécia ou na Alemanha. Lembras-te dele? Ficou por lá, casou com uma loura, da Europa  do Norte... Não tenho mais notícias dele...

− Tu é que nunca pensaste em dar o salto!... Eu, também não, porque estava no seminário…

− Acredita que não, foi coisa que nunca me passou pela cabeça!... Se a Pátria precisasse de mim, como soldado, eu lá estaria na primeira fila... Não sou menos patriota do que tu, lá por não ter feito a tropa e a guerra do ultramar. O meu querido paizinho, esse, sim, ainda pôs a hipótese de me pôr na fronteira se as coisas corressem para o torto. Era o plano B, mais para tranquilizar a minha mamã do que para valer… 


Felizmente, para o Belmiro (e a família), funcionou o plano A: ele foi um menino bem comportado, pelo menos o q.b., não se deixou apanhar pela ramona, muito menos pela PIDE/DGS,  nunca chumbou, e depois… veio o plano C, que não estava previsto pelo pai dele nem pelos  seus amigos da situação: o 25 de Abril…

− Grande sortudo!− exclamou o Tony − A sorte protege os escuteiros… E é caso para dizer, uma vez escuteiro, escuteiro para sempre…


E aqui convém esclarecer o leitor que o pai do Belmiro não era um tipo qualquer. Era um conceituado advogado, mais tarde autarca e dirigente da ANP, a Ação Nacional Popular, a nível local. Tinha sido o próprio Marcelo Caetano, seu antigo professor, a integrá-lo nas hostes da União Nacional nos anos 40, quando era ministro das colónias.  

− Não tinhas alternativa: ou te integravas ou eras marginalizado...

Como o pai do Belmiro não era ribatejano, mas lisboeta, só passou a dirigir os destinos da autarquia local em 1969. O presidente da câmara municipal até então tinha sido um médico veterinário, da linha dura do regime. Pertencera, dizia-se,  à Legião Portuguesa e havia combatido, quando jovem, na guerra civil de Espanha, ao lado dos franquistas.

− O meu pai era o típico advogado de província, que vem de fora, como os médicos, que precisa de todos, não se quer incompatibilizar com ninguém, a começar pelos senhores da terra… Mas chegou, viu e... venceu!... Ou convenceu!... Casou cá, com uma menina prendada, herdeira de um belo patrimónioi, que não fez mais nada na vida do que ser boa esposa e melhor mãe... Eu fiquei com o escritório do meu pai e com alguns clientes (se queres que te diga, os piores, os pobretanas, os caloteiros)...

− Belmiro, não levas a mal se eu te disser que foste, apesar de tudo,  um privilegiado!

− Não tenho culpa de ter nascido numa família de classe média alta, politicamente de direita, se bem que republicana e liberal (também sei pouco sobre os meus antepassados, quer alfacinhas, quer ribatejanos)… Mas, atenção, o meu pai era, em termos de peso político, um segunda ou terceira linha…

− Sem querer ofender a memória do teu pai, que Deus já lá tem, dizia-se no meu tempo que havia quem lhe metesse cunhas… E ele gostava de mostrar que tinha prestígio e poder, ou pelo menos que se movia com relativa facilidade nos círculos de poder: os governadores civis, os deputados da Nação, a Praça do Comércio, o Palácio de São Bento...

− Sim, sei que lhe fazia bem ao ego. Mas ele não mandava nada ou muito pouco.  Era um homem bom, afável, tolerante, prestável, generoso, mais depressa capaz de ajudar os de fora do que os da casa… Cunhas para livrar alguém do ultramar, isso, não, posso garantir-te, juro mesmo pela alma dele… Agora que as havia, havia, as cunhas... É uma instituição, é coisa que existe em todas as guerras e em todos os regimes...

− Fiz três anos de tropa e de guerra, por isso sei do que falas. Não direi que me impressionou ou intrigou, já estava à espera…mas nos sítios por onde passei, a começar por Mafra (ou Máfrica, a fábrica de oficiais para a guerra de África, como a gente lhe chamava) nunca encontrei nomes sonantes, filhos-família... 
Nem sequer afilhados. Não sei se os filhos da elite da época foram à guerra, mas se foram não foi como "tropa-macaca", como eu. Teriam eventualmente boas especialidades, tinham a força aérea e a marinha, a reserva naval, como alternativa ao exército… De facto, não éramos todos iguais, Belmiro, se é isso que querias saber.

− Tony, repara, o que já lá vai, lá vai... Éramos todos putos quando rebentou a guerra em Angola… Tu e eu cantámos, em muitos acampamentos, o hino "Angola é nossa!", para além do "Lá vamos cantando e rindo"... Ainda te lembras da letra?

− Lá vamos, cantando e rindo, / Levados, levados, sim, /  Pela voz de som tremendo /  Das tubas, clamor sem fim... (Julgo que a letra era do Mário Beirão, um poeta menor.)

−  Bravo!...

− Mas a guerra, com as suas tubas e turbas, não sobrou para ti, por exemplo, sobrou para a mim, para o Zé… e outros, da nossa terra, da nossa geração, que não tiveram a tua sorte. E muitos por lá ficaram… Só do nosso concelho foram para uns vinte e tal.

− Reconheço, Tony, que o país tem uma dívida de gratidão, muito grande, para com vocês, os ex-combatentes.

− Dívida de gratidão? É uma figura de retórica, desculpa lá. Em todas as épocas, em todas as guerras, essa dívida fica por saldar. Revolta-me o cinismo com que hoje se fala dos coitadinhos dos ex-combatentes… Vamos todos parar à vala comum do esquecimento, mais dia menos dia… O resto é o folclore do 10 de junho onde nem sequer há desfiles de ex-combatentes, porque são todos uns velhadas, que já não podem, coitados, com o rabo entre as pernas!


− Desculpa lá, tens razão, embora estejas a ser cruel, muito cruel, para com os teus ex-camaradas… E, para mais, foram vocês os coveiros do Império. Foi um ciclo de quinhentos anos que se fechou… A história vai lembrar os heróis, os marinheiros aventureiros que foram os primeiros na terra e no mar, os descobridores, os fundadores do Império, os vice-reis das Índias, os Gamas, os Albuquerques, não os coveiros... É sempre assim, mano!

− Sem honra nem glória, Belmiro! Pelo menos é o que dizem os revisionistas da história, bem como os saudosistas do Império…


− Tony, se for preciso, eu assino por baixo… Mas já que estás aqui, deixa-me confessar-te a minha, nossa, estupidez juvenil… Eu fui dos que, logo a seguir ao 25 de Abril, ainda gritei, no cais da Rocha Conde Óbidos, a palavra de ordem do meu movimento: “Nem mais um soldado para as colónias!”… Mas acho que era preciso alguém gritar contra a guerra, a favor da paz!... E pôr fim, sobretudo, àquela merda!

− Eu regressei só em setembro de 1974 e sei o mal que isso nos fez, ao moral da tropa que lá ficou a aguentar as pontas... Mesmo assim as coisas correram, aparentemente, melhor do que em Angola e em Moçambique. Não havia colonos na Guiné, o único problema eram os homens de lá que combateram ao nosso lado, os nossos camaradas guineenses. Os meus fulas, por exemplo, de que o Amílcar Cabral não gostava nada. Infelizmente, eles escolheram o cavalo errado… Chamavam-lhe os "cães do colonialismo"... Como se fossem mercenários!...

− Tony, era inevitável… Há sempre excessos, contradições, efeitos perversos... É próprio da ação humana, é uma lição da história… Vê as perversões do cristianismo, que era uma ideologia libertadora…

− Era ou é ?

− Passo em frente, não discuto religião contigo... Mas, historicamente, tu sabes bem que foi.

− OK, são as nossas regras, não falemos de religião... Mas, já que estamos em maré de confidências, deixa-me dizer-te das mágoas que trouxe da guerra... Uma delas nunca  a contarei aos meus filhos, conto-a a ti que és meu mano...

O António pediu então mais uma taça de branco, que bebeu de um trago, e contou:

− Numa das nossas incursões a sul do Morés, que era uma região que a propaganda do PAIGC considerava como "área libertada", fizemos um "golpe de mão" a uma tabanca, de população predominantemente balanta... Como sabes, os balantas eram os homens do mato, e foram a "carne para canhão" da guerrilha do Amílcar Cabral... O meu grupo de combate foi o primeiro a entrar na povoação, onde o alvoroço já era grande, com porcos, galinhas, cães, crianças, mulheres e velhos a fugir em debandada... Por detrás de um bagabaga (um morro de terra, feito pelas formigas), vejo um atirador isolado, com uma Simonov, uma espingarda russa, semiautomática, que em geral equipava as milícias do PAIGC... A arma encravou-se-lhe ou então o atirador entrara em pânico, desiquilibra-se, o corpo fica parcialmente a descoberto, justamente na altura em que lhe acerto com curta rajada  no peito e no ombro. 

Aqui o Tony fez uma pausa, para retomar o fôlego:

 Continuei a correr com os meus homens... Fizemos de imediato um balanço dos "estragos" provocados: para além dos mortos e prisioneiros, tudo população civil, capturámos armas, arroz, documentos; não tivemos uma única baixa...Deparei-me então, junto do bagabaga, com o puto da Simonov, caído por terra: era um "blufo", balanta, adolescente, que não teria mais do que 17 anos, a idade do meu irmão mais novo que, infelizmente, já faleceu, com uma neoplasia, penso que não o terás chegado a conhecer, estvas nos Açores quando ele morreu... Esvaía-se em sangue, sem um ai nem um ui... Eu tinha acabado de matar um homem, o primeiro pelo menos a quem via a cara... Senti-me terrivelmente angustiado. Não tive coragem de lhe dar o tiro de misericórdia. Pedi ao meu guarda-costas, o Sori Jau... 

E o António concluiu, quase em surdina:

− Às vezes ainda hoje tenho pesadelos, e a cara do puto da Simonov, impassível, entra pelo ecrã dentro da minha televisão... E, por detrás dele, a espreitar por cima do ombro, o fantasma do meu irmão, cadavérico....

***

O Belmiro deu um abraço emocionado ao Tony depois do seu relato da cena da morte do puto da tal Simonov.

− Tony, é a primeira vez, nestes anos todos, que ouço alguém contar-me uma cena de guerra na primeira pessoa do singular!... Mas guerra é guerra, como é costume dizer-se. E, numa situação de combate, reage-se por reflexos, por instinto de sobrevivência. Foste também treinado para isso. E eu não faria melhor do que tu, se estivesse no teu lugar. Atirava a matar, sem apelo nem agravo.

− Mas era um puto, Belmiro!


− Afinal, com a idade de alguns dos teus soldados que também foram mortos em combate. E alguns, pelo que me contaste, também foram fuzilados, fria e barbaramente, a seguir à independência.

− É verdade... mas sabes o que ainda hoje, ao fim destes anos todos, me perturba, e às vezes me tira o sono?

− Sim?!...

− É que 
aquele (o golpe de mão sobre a aldeia, ou tabanca em crioulo,) não era o objetivo da operação... A missão era localizar e destruir uma "barraca" (um acampamento temporário) da guerrilha, a sul de uma base no Morés, Sara Sarauol, no centro do país, se a memória não me atraiçoa... Não sei se estás a ver o mapa da Guiné...

− Para mim, é chinês, mas continua...

− A operação foi mal planeada e pior conduzida, pelo major de operações, a partir de uma avioneta (que funcionava como PCV, quer dizer Posto de Comando Volante, isto ainda antes da entrada em cena  dos mísseis Strela, de que te já te falei...) Houve uma falha (e já não era a primeira vez) nas comunicações terra-ar. Ficámos por nossa conta, com um guia que conhecia mal o terreno... Por azar, e já no regresso, deparámos com aquele pequeno núcleo populacional, desarmado ou mal armado...

− Mas houve resistência!?...

− Fraca, a população deu conta da presença tropa e começou logo a debandar ainda antes dos primeiros tiros... 'Tuga, tuga!'... O puto da Simonov deve ter ficado para trás... com mais alguns homens válidos... que deviam ser milícias (eles também tinham milícias). Depois, como deves imaginar, não tive mãos nos meus homens, fizeram o que tinham a fazer... Nós, e mais outro grupo de combate que fizemos o golpe de mão, com o resto da nossa companhia a cercar parte do objetivo, retirámos rapidamente... deixando atrás alguns mortos da população e as palhotas a arder... Apanhámos o que pudemos: algumas mulheres, crianças e velhos, e armas ligeiras que deviam estar entregues ao chefe da tabanca para a autodefesa... O regresso foi um sufoco, com apoio de helicanhão... e  de uma pachorrento caça-bombardeiro T-6...

Os dois amigos desciam agora, em silêncio, a rua do Colete Encarnado que ia desembocar ao centro da vila. O António tinha o carro no parque de estacionamento fora do centro histórico, no sentido contrário do cemitério (que ficava a norte). Ainda ia jantar com o filho, mais novo, que estudava em Lisboa.

Passaram pela antiga casa, solarenga, da família do Zé Nuno, agora transformada em biblioteca municipal e centro cultural. Mas já tinham passado, na parte alta, pela antiga casa dos avós e dos pais do António, uma casa modesta, de piso térreo, agora restaurada. Tinha sido comprada há uns anos por um casal de emigrantes que vivia no Luxemburgo. 

− Gente da terra, trabalhadora... − esclareceu o Belmiro.

O Tony já não tinha mais raízes, na vila, a não ser memórias, depois da venda, há largos anos,  da casa onde nascera, e que fora erguida pelo avô, campino de uma casa agrícola da região. A avó era avieira, nascida na Praia da Vieira, tendo vindo com os pais para a faina da pesca no Tejo, no tempo da miséria. Por seu turno, o seu irmão mais novo também tinha morrido cedo. Em suma, já não tinha família por aqueles lados, e os seus filhos nunca chegaram a fazer por lá grandes amizades, eram os dois nados e criados no Alentejo.

− Belmiro, és aqui o meu último amigo e irmão... Quero ver se,  no Dia de Todos os Santos, daqui a seis meses, volto cá para pôr uma flor na campa dos meus pais e avós e do meu mano. Combinamos uma almoçarada no "Afonso", se tiveres disponível...


− Ainda é aquele que faz a melhor sopa de bacalhau dos campinos, de todos os restaurantes da vila... Mas também pode ser um peixinho do rio... Infelizmente sável não há nessa época...

A antiga rua do Colete Encarnado tinha sido rebatizada, depois do 25 de Abril... Era agora a rua das Forças Armadas...

− Que raio de nome! É homenagem a quê ou a quem ? Foram as Forças Armadas que fizeram o 25 de Abril?

− Mas também fizeram o 28 de Maio... e o 10 de Outubro... − ironizou o Belmiro.

O Tony também concordava com a opinião do amigo, que vivia na terra e que conhecia melhor do que ninguém as misérias e grandezas  da vida local. De facto, parecia que, aqui como em todo o lado, as comissões de toponímica municipais eram uma cambada de burocratas que iam atrás das agendas partidárias, eram ignorantes da história local e nacional e sobretudo revelavam  uma miserável insensibilidade sociocultural…

− Limparam as ruas todos, becos, travessas, praças, pracetas… Ficámos amnésicos, Tony. Perdemos a memória da nossa história local. Até o Beco do Quebra-Costas  tem agora o nome de um professor qualquer de Lisboa que era antifascista, e que nunca cá pôs os pés nesta terra...

− Santa incultura geral, Belmiro… Uma tristeza!...


O antigo Solar do Marquês de Marialva, um belo edifício do início do séc. XX, exemplar interessantíssimo da arquitetura regional, e de que o Zé Nuno tanto gostava, acabaria, há uns dez anos atrás, por ser vítima do impiedoso e cego camartelo camarário.

− Sem dó nem piedade! − lamentou o Belmiro. − Nem sequer classificaram o edifício. Hoje é um complexo de apartamentos de luxo, propriedade de gente que nem sequer é da terra. Estão a gentrificar a nossa terra, Tony!

Ainda pararam para beber uma bica, no café que o Zé Nuno gostava de frequentar, e onde costumava parar a malta do grupo de forcados, agora em decadência. E a conversa voltou de novo à tropa e à guerra:

− Costumo dizer, Belmiro, que a Guiné foi a rifa que me saiu em sorte... Só não ganho o raio do Euromilhões!... Mas, pensando bem, não me posso queixar. Pelo menos estou vivo. Podia ter dito que não... Mas será que tinha condições para decidir em consciência ? Para mais, face a um Estado autoritário e repressivo como o nosso, na altura?

− Não, não tinhas alternativa. A deserção era, e é, um crime grave. Ponho-me no teu lugar, eras o indivíduo, só, desamparado, contra o Estado, todo poderoso.

− Foi a rifa que me saiu na história. Como sabes, na história não há "ses"!... Ah!, se eu tivesse nascido dez anos antes, ou dez anos depois!... Não me posso queixar, ou não me adianta, não posso alterar agora o curso da história, da minha e a dos outros…

− Tony, há muitas formas de heroísmo, não é só na frente de batalha... Mas os desertores, em geral, nunca são tratados como heróis...

− Temos sempre dificuldade em abordar o problema dos refractários e dos desertores... Sobretudo destes últimos, que afinal foram em número ínfimo, tanto quanto sei. Já os faltosos e refractários podemos falar em um quinto dos homens em idade militar. Quer dizer, da malta da nossa escola, um em cada cinco cavou para o estrangeiro antes da sua convocação entre os 18 e os 20 anos.

− Refratários... ou faltosos ? Tenho ideia, como jurista, que há uma diferença semântica e concetual... Mas não tinha  ideia desses números... 

− Não faço distinção: foram todos os que faltaram à tropa...

− Sim, Tony, a guerra era impopular... Apercebi-me disso quando entrei na universidade...

− Olha, eu acho que foi o salve-se quem puder − concluiu o Tony. − À boa maneira portuguesa. Somos uns safados... O Salazar deixou-nos uma batata quente que rebentou na boca do delfim mal amado, o Marcelo Caetano. Para lá do impasse militar e do desastre político, tínhamos um problema demográfico bicudo. Já não tens braços para segurar a G3 e ir fazer a guerra. Daí o crescente recurso à tropa de 2ª linha, se quiseres, os guineenses do recrutamento local (e nos outros territórios,os angolanos, os moçambicanos...).  Eram bons combatentes, e sobretudo mais baratos, mas não falavam português, ou falavam muito mal, pelo menos os guineenses… Como se poderiam sentir portugueses ? Nem sabiam onde ficava Portugal no mapa!... E a verdade,  nua e crua,  é que só muito tardiamente, com Spínola,  passaram a ser tratados como portugueses...

− Sim, muito me contas, nunca tinha pensado nisso.

− O PAIGC tinha o mesmo problema… Estava exangue, conheci guerrilheiros em 1974 que só falavam francês, nascidos ou criados no Senegal... A guerra foi um modo de vida, para alguns, de um lado e do outro... Foi um modo de vida para alguns milicianos que se tornaram capitães... De aviário, como a gente dizia... Provetas...

− Confesso, Tony, que na altura, a seguir ao 25 de Abril, queríamos era apressar o fim da guerra. A todo o custo, doesse a quem doesse, incluindo a tropa e os civis espalhados por Angola, Guiné e Moçambique. Era militar, política, diplomática, demográfica  e economicamente impossível prosseguir a guerra a partir de 1974. Ninguém estava mais disposto a perder três anos da sua vida, e muito menos a vida, por uma causa historicamente perdida… Há limites para o patriotismo...

− Sim, tu foste dos que gritaste "Nem mais um soldado para as colónias"... Estavas a ser coerente, embora eu não pudesse de maneira nenhum estar de acordo contigo nessa altura. Em agosto de 1974 eu passei momentos terríveis a tentar tranquilizar os meus soldados, antes de dissolver a companhia. Vi-me embora em setembro e eles, coitados, lá ficaram entregues à sua sorte... Com os ordenados pagos até ao fim do ano... Para serem fuzilados, alguns, sobretudo os graduados, mal os novos senhores da guerra nos apanharam pelas costas...


− Se calhar eu estava a ser também inconscientemente egoísta. Eu não queria apanhar com as sobras do Império, com os estilhaços do desmoronamento do império... A merda do império!... A conhecê-lo, a ir para a guerra, gostava de ter sido no seu apogeu, mas aí eu ainda não tinha nascido. Nem sei se o império chegou a ter algum momento de apogeu... Em boa verdade estava-me nas tintas para a sorte de quem ainda lá estava, como tu e o Zé Nuno, e mais milhares e milhares de soldados, metropolitanos e do recrutamento local, a par de centenas e centenas de milhares de civis, brancos, mestiços e negros, que temiam pelo seu futuro quando fosse arreada a bandeira portuguesa.

- Acredita, Belmiro, nem nós nem o PAIGC estávamos dispostos a voltar a combater... Ouvi eu da boca de alguns comissários políticos... Seria uma tragédia se as negociações entre os políticos tivessem falhado, em Londres e depois em Argel... Agora, não me perguntes se não teria havido outras soluções... Hoje é fácil brincarmos aos jogos de guerra... E não falta aí gente, nas redes sociais,  veteranos de guerra e outros, a destilar veneno contra o 25 de Abril e a descolonização. 

− Eu não teria moral nem muito menos imaginação para impor um outro fim ao nosso fim da história colonial... Mesmo que esse fim não me agradasse, como não me agradou... vistas hoje as coisas a esta distância.

− Todos ou quase todos concordam que, idealmente, as coisas poderiam ter tomado outro rumo. Sabemos como começa uma guerra, nunca saberemos como ela acaba... No caso de Angola, por exemplo, ela só acabou 40 anos depois e o balanço é aterrador, quase apocalíptico. Na Guiné, tirando os meus soldados fulas, toda a gente festejou o fim da guerra... 

- Tony, fomos todos joguetes nas mãos dos russos e americanos, da Nato e do Pacto de Varsóvia. Estávamos no auge da guerra fria e, cá dentro, à beira de uma guerra civil, no verão quente de 75.

− Eu não tenho a mesma perceção… Seria impossível ter uma Cuba às portas da Eur opa, ou melhor, em plena Europa. Para mais, num país da NATO… O Salazar tinha isto bem armadilhado. E a Espanha do Franco ainda ponderou intervir, ao que parece, para evitar o risco de contágio.  Os nossos revolucionários eram de opereta. As nossas revoluções foram sempre de opereta, desde a restauração, em 1640.

− "Revolução dos cravos"?!... − exclamou, em tom de ironia, o Belmiro.− Mas, olha, também eu, maoista,  fui na onda do papão do social-fascismo... Como eu gostava então do palavrão!... Mas no 25 de Novembro eu estava ao lado do Eanes...

 − ... Fomos todos ingénuos, mas bem ou mal escrevemos o nosso capítulo da história. Eu, por mim, procuro tranquilizar a minha consciência do seguinte modo: fui para a guerra, não desertei, queria continuar ter o direito de viver no meu país, fiz a guerra, na esperança de que os políticos do meu país encontrassem, a tempo,  uma solução (política) para ela...

− Daqui a meia dúzia, anos, em 2026, estamos a debater o 1.º centenário da Ditadura Militar e do Estado Novo. E, se calhar, os portugueses vão confirmar o Salazar como o estadista português mais importante do séc. XX.

− Espero bem que não... Mas a verdade é que ainda hoje o seu fantasma paira pelas nossas cabeças, tal como o do Marquês de Pombal, mesmo quando os mais novos já não sabem sequer quem foram esses homens... O Salazar esteve em cena quase 50 anos, atravessando terríveis períodos do nosso tempo, da crise de 1929 à Guerra Civil de Espanha, da II Guerra Mundial à guerra colonial…

− Foi o "pai da Pátria", o que nos livrou da II Guerra Mundial, como dizia o meu pai lá em casa. E, na verdade, foi, quer gostes ou não.

−... Eu, acho, Belmiro, que ainda não o matámos nem o enterrámos de vez.

E foi com esta conversa melancólica que os dois amigos se despediram. Pela última vez… Passados uns meses, o Tony morreria num brutal acidente de automóvel na A2, quando regressava de Lisboa, a caminho do seu monte no Baixo Alentejo. Nunca se soube a causa de morte, por vontade da viúva e dos dois filhos... 


Ao Belmiro, que ainda tentou, em vão, obter uma cópia do relatório da autópsia, chegaram versões contraditórias: sono, AVC, morte súbita, suicídio?!... Parece que o veículo, que circulava na faixa direita, foi bater de lado nos rails de proteção, e andou dezenas e dezenas de metros descontrolado, a varrer as faixas de um lado ao outro... Felizmente não havia mais carros a essa hora, da noite... O Tony terá tido morte imediata.

O Belmiro inclina-se mais para a hipótese de acidente por despiste, devido a cansaço e  a sono... O Tony amava demais a vida e a família e o Alentejo, nunca lhe falara em suicídio...

O corpo, depois de libertado, foi cremado. As cinzas repousam agora junto à "oliveira da paz", que o Tony replantara no seu monte, vinda do Alqueva... Era centenária. Os filhos e a viúva cumpriram assim a sua última vontade, mas só em parte: ele deixara escrito que as suas cinzas deveriam ser espalhadas por três sítios que ele amou: a sua terra natal, o monte no Alentejo e "o rio Geba, cuja água ele bebera"... 

Em alternativa, lançaram parte das cinzas no Cais da Rocha Conde Óbidos numa cerimónia restrita, apenas com a família mais próxima e alguns amigos íntimos, entre eles o Belmiro. Dali tinham partido, de barco, centenas e centenas de milhares de soldados para as guerras coloniais (Índia, Angola, Guiné, Moçambique)... O gesto era simbólico: o Tony  ainda fora  de barco e regressa já de avião,  nos TAM - Transportes Aéreos Militares.

O Belmiro ainda chegou a abordar um elemento influente Comissão de Toponímia Municipal, um jovem arquiteto, vereador da câmara municipal, membro influente de um dos partidos do arco do poder quanto à hipótese de ser dado o nome do dr. António Mota a um novo arruamento a abrir em breve (ou equipamento escolar a inaugurar no futuro), nos arredores da vila, já na zona extra-muros. A resposta não podia ser mais desencorajante , para não dizer desconcertante:

− Caro doutor, como sabe tão bem como eu, a comissão é meramente consultiva, dá pareceres, quem atribui os nomes é a Assembleia Municipal... Faça-me uma proposta, fundamentada, por escrito, mas vai ser difícil...

− Difícil ?...− interrompeu o dr. Belmiro Mateus.

− O dr. António Mota era nosso conterrâneo, e depois ?... Fez a guerra do ultramar, mas não foi reconhecido como herói. Tem uma cruz de guerra, a Torre e Espada, ou coisa parecida ? Não tem. Tem alguma comenda ? Não tem... Como sabe, temos muitos candidatos e poucos novos arruamentos ou equipamentos para homenagear os nossos conterrâneos ilustres... E depois a guerra do ultramar, felizmente,  já está esquecida, é uma coisa do século passado... Já temos, por outro lado, uma praceta dos Heróis do Ultramar, numa sede de freguesia concelho,  construímos há dois ou três anos um monumento aos combatentes do ultramar, e no nosso cemitério há um talhão da Liga dos Combatentes... Acho que a nossa terra já fez o que tinha a fazer pelos nossos bravos antepassados que andaram, e alguns morreram, na I Grande Guerra e na Guerra do Ultramar...E, olhe, eu nem sequer sou desse tempo!... E depois, se quer que lhe diga, os meus avós e os meus pais são retornados, deixaram lá tudo em Angola,  as economias de uma vida... Eu já nasci cá, mas pelo que eles me contaram houve "heróis do ultramar" que nem um tiro deram... Doutor, desculpe a minha franqueza!...

O dr. Belmiro Mateus estava quase a explodir de raiva, mas conteve-se... Percebeu onde é que o jotinha queria chegar: o António Mota era um "outsider", um desalinhado, não fazia parte do sistema, "não comia na mesma gamela", nunca tinha sido autarca, presidente de junta de freguesia, presidente da câmara, presidente da Assembleia Municipal, vereador, dirigente partidário, cge de gabinete, deputado, não chegara sequer a general, nem muito menos era um herói... nem se deixara matar!

Sim, por que raio é que deveria ter um nome de rua na sua terra ?! Ele, o Zé Nuno e tantos outros conterrâneos, centenas, anónimos, que afinal foram os coveiros do Império ?!...


Luís Graça (2018), Revisto em 5/2/2024 
 
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 5 de fevereiro de 2024 > Guiné 6174 - P25137: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (17): Três amigos, três destinos - Parte I

(**)  No ano da graça de 1936, o germanófilo  Luís Moita apelava aos microfones da Emissora Nacional: "Rapazes, não cantem o fado!". Os rapazes eram a "Mocidade Portuguesa" (MP) que acabava de ser criada, no âmbito das reformas da "educação nacional", decretadas pelo poderoso ministro A. F. Carneiro Pacheco (1887-1957).

Organização de tipo miliciano, a MP visava o enquadramento político-ideológico da juventude, era de inscrição obrigatória para todos os estudantes do ensino primário e secundário, e potencialmente mobilizava todas as actividades circum-escolares: a educação cívica, o lazer, os cuidados de saúde, a preparação física, a formação política e militar, etc.

"Canção de vencidos", "cocaína de Portugal", o fado era então visto por certas personalidades da direita integralista e nacionalista (incluindo escritores e musicólogos) como um "herança maldita vinda do ultramar" (referência ao lundum, "avô do fado", que nos terá chegado do Brasil, com o regresso da corte de D. João VI), subproduto de uma "raça abastardada" e que entre nós se havia expandido justamente "nos bairros onde, há trinta anos ainda,nos finais da monarquia, e princípios da república,  albergavam o vício, o crime e a vadiagem" (sic!), em contraste com as "canções alemãs, fulgurantes e alegres" das cervejarias de Munique e dos Wandervogel (Moita, 1936, pp. 217-218) 

PS - Os Wandervogel integravam-se naquilo a que se poderia chmar os Grupos de Juventude do Nacionalismo Alemão, surgidos no princípio do séc. XX. Não comfundir com a Juventude Alemã hitleriana.