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segunda-feira, 22 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25422: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (27): Melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho...

Título das páginas centrais (4 e 5) do "Diário de Lisboa", de 18 de janeiro de 1934. São escassas as referências ao que se passou na Marinha Grande e noutros pontos do país, de Almada a Silves, de Lisboa a Coimbra... E nos dias seguintes a censura foi implacável: não há mais referências a estes acontecimentos, de resto ainda hoje ignorados ou mal conhecidos dos portugueses... Sobre o 18 de janeiro de 1934, ler por exemplo o artigo de Fátima Patriarca, publicado na "Análise Social", em 1993.

Contos com mural ao fundo: 
nada como ter um bom pai

por Luís Graça

− Há gajos que nascem com o cu virado para a lua. E que fazem gala disso… Como o teu cunhado, por exemplo…

 Quem, o Ulisses?

  Sim, Jorge, só tens um,  que eu saiba.

  Já agora retifica: ex-cunhado... E,  se queres que te diga, nunca fomos muito à bola um com o outro.

O Fernando (Nando, para os amigos) aproveitou  então para esclarecer o seu interlocutor, o Jorge, que já não via o Ulisses desde 1974, a seguir ao 25 de Abril… 

Mal saiu a amnistia, da Junta de  Salvação Nacional, aos faltosos, refratários e desertores, o Ulisses voltou à sua terra para abraçar o "paizinho" e as manas e, claro, para limpar a caderneta militar.

Veio com pressa, o Nando mal conseguiu pôr-lhe a vista em cima. Mas ainda se lembrava dele na escola, ao ex-cunhado do Jorge, hoje o senhor embaixador, com nome de rua na terra, o doutor por extenso Ulisses  C...

Foi um puto mimado, pelo menos  na escola. O pai, o senhor Anselmo, já era uma pessoa importante e rica. (Ou rica e importante, como queira o leitor.) O Ulisses gostava de se armar em vítima quando as coisas não lhe corriam de feição, nomeadamente nos ditados de português (à compita), no recreio, nas jogatanas de futebol ou nas partidas do pião.

 Sou mais velho que vocês, já não vos apanhei na escola  acrescentou o Jorge.

 Foi um sortudo, o Ulisses!... E era  competitivo!

 Se ele estivesse aqui responder-te-ia logo: “Sortudo, eu?!... A minha mãezinha ia morrendo de parto. A dona Natércia é que nos salvou. A mim e a ela, à força de braço!"

 A dona Natércia?!...  exclamou o Nando.  A parteira que  nos aparou a todos. Era tão ou mais popular que o meu velho mestre, o nosso João Semana… Mas eu não sabia dessa história do parto que podia ter corrido mal.

 Há,  sim. E a nossa terra não teria agora uma figura tão grada como o senhor embaixador Ulisses C...atalhou o Jorge.

A mãe do Ulisses adorava contar essa história, aos netos e às visitas lá de casa, de como a velha parteira da terra a salvara a ela e ao seu menino…

− O "menino de sua mãe"..., estou a ver!

− A minha ex e as suas irmãs não escondiam a ciumeira que tinham dele  , confidenciou o Jorge, uns bons anos mais velho do que o Nando. 

Nascera prematuro, mas safou-se. Naquele tempo foi, de facto,  um sortudo... 

− Morriam 125 crianças com menos de um ano de idade por cada mil nascimentos − interrompeu o Fernando (que era médico).

Naquele tempo, não havia cuidados neonatais, com exceção da Maternidade Afredo da Costa, inaugurada em 1932, na capital.  Estamos a falar dos finais da guerra, doze anos depois, em 1944, quando o Ulisses veio ao mundo, em casa. Como o Jorge,o Nando e todos os demais da sua geração...

− Nem as senhoras iam ter os filhos aos hospitais, que horror!− lembrou o Fernando.

Em amena  cavaqueira com o Jorge, o historiador da terra, o homem que mais sabia sobre as misérias e  as grandezas das famílias tradicionais da vila,  o Fernando veio  a descobrir que o Ulisses nunca mais voltara à "parvónia" depois da amnistia de 1974…

− Nem no funeral do pai… Ou do paizinho, como ele o tratava. O que sempre achei uma ingratidão  comentava o Jorge.  No funeral da mãe, da querida mãezinha, entendia-se, ele estava fora do país, ilegal, exilado. 

− A mãe morreu cedo com cancro da mama, incurável na época, se bem me lembro − atalhou o Nando.

Claro, o paizinho, o sr. Anselmo,  visitava-o no estrangeiro, com alguma regularidade,  até ao dia em que as relações entre eles se azedaram quando o Ulisses e as manas  descobriram que o pai tinha arranjado uma amante... 20 e tal anos mais nova, com casa posta num concelho vizinho.

 Mas… exilado, dizes tu?!   − interroga-se o Fernando.

 É uma figura de estilo. Como sabes, ele fugiu à tropa.

  À tropa ou da tropa?... Não é a mesma coisa: legal e tecnicamente, ele não foi um "fujão", como se costuma dizer em relação aos desertores.  Foi refratário, com muitos outros… Refratário ou  desertor era bem mais grave do que faltoso na época, até porque estávamos em guerra.

Aqui o Jorge gracejou com o Fernando,  dizendo:

− Eras ainda um puto, não te deves lembrar...  Mas em 1961, e eu já em Angola,  não tenho ideia de Portugal ter declarado guerra contra nenhum Estado estrangeiro soberano:

− A não ser talvez a Índia que, no final desse ano,  vai ocupar e usurpar descaradamente...

− ... a nossa joia da coroa!...− apressou-se o Jorge a completar a  frase do seu  amigo.

E depois elucidou-o:

− Afinal, lembras-te!... E, como os nossos homens capitularam, e não se bateram até a última gota de sangue contra as tropas do Pandita Nehru, Salazar tratou os nossos prisioneiros de guerra, no seu regresso à Pátria, com o maior dos desprezos… 

− Só soube isso muito mais tarde... Também não sei de semelhante humilhação aos nossos militares,  na nossa história. 

− Sou dessa geração, tenho dois ou três colegas do tempo de escola e da tropa, naturais do concelho,  que ficaram prisioneiros de guerra na Índia e que, quando regressaram, coitados, estiveram semanas e semanas sem sair à rua com vergonha... Vergonha de serem gozados ou escarnecidos  pelos vizinhos. 

 Mas tu também te lixaste, Jorge, foste o primeiro ou dos primeiros da terra a marchar em 1961, para Angola, "rapidamente e em força"... 

− De pistola-metralhadora em punho, capacete de aço e farda amarela.  E as praças equipadas com mauser, estás a imaginar?!… A desfilar na marginal de Luanda. Mas tive uma sorte danada, uma hepatite recambiou-me cedo para o hospital de Belém.

Foi então a ocasião para conhecer melhor a história do Ulisses, o Ulysses com y grego, como ele gostava de escrever, e do seu pai, o sr. Anselmo.  

Das suas origens do sr. Anselmo, sabia-se pouco. Sabia-se que tinha vindo de fora. E, tal como outros que vieram de fora, tinha sido bem recebido na terra e tivera sucesso, em termos  pessoais, familiares e profissionais.  Aqui casou aqui, teve filhos e aqui criou e desenvolveu os seus negócios. E ganhou muito dinheiro...

− Os "saloios" sempre trataram bem os "galegos", os que vinham de fora, do Norte...  − observou, com sarcasmo, o Jorge. 

Muito antes de Portugal ter aderido à EFTA, a Associação Europeia de Comércio Livre, já o Anselmo tinha um negócio de import-export (como gostava o filho de dizer aos basbaques dos putos da escola)…  

− Digamos, tinha alguns contactos, embora ainda tímidos, mas pioneiros e promissores, com países da Europa do Norte. Com uma ou outra representação de empresas escandinavas (e depois italianas), na área das alfaias e máquinas agrícolas.

Começou no tempo da Segunda Guerra Mundial, com uma pequena oficina metalúrgica, aventurando-se depois na reparação automóvel. Passou, entretanto, a ter uma bomba de gasolina da Shell. Uma novidade, já que ainda havia poucos carros. Havia poucos automóveis particulares, um ou outro carro de aluguer, uma meia dúzia de camionetas de transporte de mercadorias... 

− Ainda sou do tempo em que só havia uma camioneta de passageiros por dia com destino à capital... E a estrada ainda era macadamizada.− disse o Jorge.

Os negócios do sr. Anselmo foram crescendo no pós-guerra, em condições de mercado mais favoráveis, e sobretudo ao longo da década de 1950, com a crescente abertura da economia, a eletrificação e a industrialização do país, etc., ao ponto de se ter tornado, à escala regional, um médio industrial. 

− Era dos poucos que tinha carro e, mais importante, era o único que já tinha ido a Roma ver o Papa e visitado os lugares santos em Jerusalém − acrescentou o Jorge sobre o currículo do seu ex-sogro.

Viajava com alguma frequência para a Europa do Norte, com destaque para a Holanda (hoje Países Baixos) e também para a Itália (onde tinha a representação de uma conhecida marca de motocultivadores e tratores).

Quando se soube, por um dos diários da capital, o "Novidades" (jornal oficioso da  hierarquia da Igreja Católica portuguesa), que tinha sido recebido pelo Papa Pio XII, integrando um grupo de peregrinos católicos,  portugueses e brasileiros, o seu estatuto social na terra subiu mais uns dois ou três pontos. 

Passou a ter lugar na primeira fila na igreja, ao lado dos notáveis locais que tinham contribuído  com um "conto de réis ou mais" para o restauro da igreja matriz. (Eram "poucos mas bons", e sobretudo "almas piedosas", esses beneméritos, como dizia publicamente o pároco, a quem os dos "reviralho" chamavam, entre dentes, o "sabujo dos ricos"; mas convenhamentos, um conto de réis,  no início dos anos  50, não era um fortuna, seriam a preços de hoje qualquer coisa como pouco mais de  550 euros...).

Nunca foi, ao que se saiba, um católico praticante. E até se dizia, as más línguas do costume, que era "maçon" (coisa terrível e misteriosa que ninguém sabia o que era).

− O sr. Anselmo ia à missa ao domingo, mais para "ver e ser visto" e, naturalmente,  acompanhar a esposa. Claro, nunca o viram comungar...

O Jorge achava que ele era mesmo "maçon" (a maçonaria estava proibida) e, claro, do "reviralho", do "contra"...Durante a II Guerra Mundial, dizia-se que era "anglófilo" (até pro ter uma bomba da Shell).

− Mas finório como ele sempre foi,  nunca falou de política  comigo. Nem nunca o ouvi falar de política com os filhos.

Também é verdade, declinou em 1958 o  convite para integrar a União Nacional (o partido do Estado Novo), alegando  a sua origem social modesta: era filho de operário, vinha de um sítio mal afamado (a Marinha Grande), tinha a 4.ª classe, embora fosse um autodidata e poliglota. Ironicamente, insinuava que não podia competir com os doutores, médicos, advogados e magistrados da comarca pelos quais nutria, de resto, um profundo mas secreto desprezo.  

Recusou igualmente um linsonjeiro convite para integrar o executivo camarário, mas aí tinha um argumento de peso, os seus múltiplos afazeres como empresário de quem já dependiam algumas dezenas de famílias da terra. 

Em boa verdade, a razão não era essa: ele já movimentava mais dinheiro que a câmara toda... A autarquia, pobretana, nessa época, dependia do "fundo para o desenvolvimento da mão-de-obra"  e das "esmolas" do senhor governador civil do distrito para poder construir um simples lavadouro público ou abrir um estradão ...

Com uma grande superioridade moral, elevação de espírito, e sobretudo talento para os negócios, deixou bem claro, à tacanha elite local, que não precisava da política para subir na vida... 

Comprou e restaurou o melhor palacete da vila, para inveja de muitos. Acabou,   todavia, por se aproximar de alguns círculos da elite financeira e política do Estado Novo, quando encabeçou um grupo representativo das "forças vivas" locais que se "mexeram para trazer para a terra a primeira agência bancária".

Em contrapartida, sabia-se pouco ou nada da sua história de vida passada. Sabia-se, isso sim, que tinha vindo "de fora"... Insinuavam alguns dos seus poucos inimigos que tinha vindo "foragido" da Marinha Grande logo a seguir à revolta de 1934.

− O 18 de Janeiro de 1934 ?... − indagou o Fernando (que, como médico, conhecia a história  da Marinha Grande).

 Sim, mas ele não gostava de falar desses tempos, pelo menos quando eu frequentava a  casa da família, depois de casado. 

O pai era operário vidreiro, desde miúdo, e terá morrido misteriosamente uns meses depois da revolta de 1934. Havia versões contraditórias, para uns o pai tinha morrido, de infeção, depois de baleado, num perna, pela tropa de Leiria; para outros, teria morrido, muito simplesmente de silicose, o que  parecia mais verosimil, aos olhos  do dr. Fernando ... 

A mãe, a avó paterna do Ulisses, era operária na Tomé Feteira. Era natural de  Vieira de Leiria. Terá morrido ainda mais cedo, de tuberculose. Lá em casa do Anselmo, só havia uma velha foto da família, dos anos de 1910, com os pais e os irmãos, pequenos. Também nunca houve grande curiosidade em saber mais da vida desses obscuros (e, de algum modo, incómodos) antepassados.

Das poucas vezes que o Anselmo, a mulher e os filhos foram a Veira de Leiria, em passeio, aproveitando para visitar uns primos, deu para perceber melhor a sua origem: esses parentes ainda viviam, como os pescadores, em "palheiros", casas de madeira, sob estacaria, construídas na duna e que na época balnear alugavam aos forasteiros.

− Apesar da distância, naquela época, o meu ex-sogro gostava de ir à Praia da Vieira, só para assistir ao espetáculo da  arte xávega  ( com "os bois a lavrar o mar") e passar lá  uns dias na terra da sua mãe... 

Chegou a alugar um "palheiro" nos anos cinquenta... Mas a mulher e os filhos detestavam,  preferindo São Pedro de Moel, que já era chique nesse tempo, atraindo as famílias burguesas da região...

Estamos, entretanto, a falar de uma época em que  o industrial, o empresário capitalista, era menos considerado socialmente do que o comerciante ou até o funcionário público.  O Salazar era um "rural".  O proprietário agrícola, de média ou grande dimensão, esse, sim, tinha mais estatuto. E o Estado Novo estava bem representado por algumas famílias tradicionais agrárias. Umas eram de tradição republicana, e outras não escondiam a seu amor à bandeira azul e branca da monarquia.

Com o 28 de Maio de 1926, e sobretudo com o salazarismo, clarificaram-se  as águas… Os agrários da região, absentistas nalguns casos, deram-se bem com o Deus, Pátria e Família, monárquicos e republicanos, mais conservadores,  reconciliaram-se, sentindo-se representados, mal ou bem, na União Nacional... 

A "praça da jorna" continuou a funcionar ao longo dos anos, fornecendo mão de obra dócil, barata e abundante, os "cavadores de enxada", às principais casas agrícolas. Até que veio, como uma enxurrada imparável, o êxodo rural, a emigração para as cidades e para França, além da guerra colonial... e depois o 25 de Abril.

Mas, também, ao fim de três ou quatro gerações, o património fundiário (e nomeadamemnte as quintas) dessas famílias já andava pelas ruas da amargura: nuns casos, hipotecado aos bancos, noutros expropriado por interesse público ou  vendido ao desbarato para a especulação imobiliária, ou, noutros casos ainda, mal entregue a caseiros ou a feitores... Poucos se modernizaram, inviabilizando as explorações agrícolas. Os netos ou os bisnetos já tiveram que mendigar um emprego "à mesa do Estado".

Foi, além disso, o Anselmo, um homem de visão, como então se dizia… Pôs os quatro filhos a estudar. As raparigas tinham o quinto ano ou tiraram um curso médio,  o rapaz foi mais longe, chegando a embaixador na então CEE, a  Comunidade Económica Europeia. Uma das raparigas foi professora primária, e outra,  assistente social. A mais velha, a ex-mulher do Jorge, ficou a trabalhar com o pai, no escritório da empresa.

O Anselmo nunca foi íntimo das famílias mais tradicionais da terra, mas acabou por ser um dos homens mais endinheirados da região. Investiu no bom tempo também no imobiliário, fez um bairro de casas "à Raul Lino", com o nome da esposa. E acabou por vender as moradias a seguir ao 25 de Abril, antes que fossem ocupadas. 

Não se adaptou bem aos novos tempos, mas também não se colou aos partidos que, entretanto, nasceram com a liberdade. Não foi "vira-casacas", como muitos outros, logo a seguir ao 25 de Abril. 

Os negócios tiveram altos e baixos, com a descolonização, depois a crise económica e financeira dos anos 70 e 80. A integração na CEE já chegou tarde para ele. A fábrica teve de ser intervencionada. Antes da declaração de falência, e muito  por desgosto com a vida, e com o rumo que tomou o país, para além de problemas de saúde (era diabético), morreu nos princípios dos anos 90, com oitenta e tal anos. Tinha nascido com a República.

 O Ulisses não era propriamente um amigo do peito do Fernando. Eram apenas conterrâneos, vizinhos e colegas de escola...

− Três anos nos separavam... além dos seus "tiques de classe", quero eu dizer os seus trejeitos de "menino rico". 

Ele já na 4.ª classe e sempre na primeira fila.  Na altura juntavam-se os putos das várias classes. Ele tirou o 2.º ano (hoje o 6.º ano) no colégio da terra, que o Fernando nunca pôde frequentar (era filho de caseiro). 

Depois o pai mandou-o para Lisboa para seguir o liceu. Ficou na casa de uma tia materna, cujo marido trabalhava nas finanças. Tinha explicações particulares de francês e de inglês. E fez a sua primeira viagem ao estrangeiro, com o pai,  por ocasião da  Expo 58, em Bruxelas. Ganhou o gosto pelas viagens e pelas línguas estrangeiras. 

− É capaz vir desse tempo o sonho de enveredar pela carreira diplomática − interrompeu o Jorge. Estou a vê-lo, no regresso da Expo 58... Imagina, um luxo que não era para todos, ir de Lisboa a Bruxelas, de comboio… Um puto com 14 anos!... Eu já namorava com a irmã mais velha… Ofereceu-me um cartaz a cores com o ícone da Expo 58, o Atomium, se bem recordo.

Uns anos depois, estava a frequentar, na faculdade de letras de Lisboa, o curso de germânicas... Ainda apanhou a crise académica de 1962 mas o pai tratou de o ir buscar rapidamente, antes que as coisas dessem para o torto (como deram). 

Entretanto foi à inspeção com a malta do ano dele, a de 1944. O pai estava convencido que ele nunca seria apurado para o serviço militar. Tinha um problema no ouvido esquerdo devido a uma otite, mal curada, que apanhara em criança, na época balnear. Vinha munido de uma valente cunha e de um relatório médico, passado por um conceituado otorrino, professor da faculdade de medicina de  Coimbra. O pai fez questão de entregar pessoalmente o documento ao presidente da junta médica militar.

O melhor que o Ulisses conseguiu foi uma ida ao Hospital Militar Principal, na Estrela, para uma consulta da especialidade. A gravidade do diagnóstico não foi confirmada. E o Ulisses viu-se apurado para todo o serviço militar, para grande desgosto dos pais.

Podia ter acabado o curso de germânicas, nas calmas (desde que não chumbasse), antes de ser chamado para a tropa,  mas, logo em 1964 numa viagem à Alemanha, numa "summer school" organizada pelo Instituto Goethe, ele arranjou maneira de ficar por lá, tendo-se fixado na Holanda, onde o pai tinha contactos e negócios. 

−  Tudo combinado com o paizinho, que mexeu todos os pauzinhos para o pôr a bom recato.   adiantou o Jorge.   Não foi uma decisão fácil para o meu ex-sogro: o Ulisses era o único rapaz da família, e era esperado que fosse o seu sucessor à frente dos negócios. 

− Mas a vida (ou a guerra de África)  trocou-lhe as voltas − adiantou o Nando.

De facto, aqui contava muito a opinião da mãe que, segundo uma cena patética que terá feito lá em casa, "preferia mil vezes ir ver o seu filho a Amsterdão, terra de herejes, do que ir ao cemitério depositar-lhe uma coroa de flores". 

− A mãe, a minha ex-sogra,  era uma boa senhora, conservadora,   beata e amiga dos pobres. 

E não autorizava que se falasse de política  à hora das refeições.  De resto, não era hábito falar-se da  "porca da política" (sic) naquela época, muito menos nas casas das pessoas decentes.

A senhora tinha ficado muito impressionada com a morte do Licas, o filho mais velho da empregada doméstica (na altura, dizia-se "criada"), que morrera em Angola, em 1962. Fora o primeiro soldado da terra a morrer na "guerra do ultramar". E o caixão nunca veio, "nem cheio de pedras". A família era pobre de mais para pagar a urna de chumbo e o transporte marítimo... E o sr. Anselmo aqui também não abriu os cordões à bolsa...Dez contos era muito dinheiro...

A verdade seja dita: o Ulisses não desperdiçou as novas oportunidades que lhe surgiram pela frente na sua nova terra... Formou-se em direito europeu em Maastricht, trabalhou no Parlamento Europeu e, talvez ainda mais importante, casou com uma holandesa, filha de um importante dirigente político, de um partido na área da social-democracia, filiado na Internacional Socialista. Abriram-se-lhe depois as portas da diplomacia europeia.

− Foi o Euromilhões do Ulisses, diríamos hoje! − comentou o seu ex-cunhado. − Hoje tem uma reforma dourada, um vasto capital de relações sociais, é livre de fazer os seus negócios na área do imobiliário, vive entre  o Algarve  e a Holanda, a terra dos seus filhos e netos... Não nos falamos, desde que eu me divorciei da sua irmã. Nem nunca mais apareceu por cá.

− Mas tem cá nome de rua, desde que passou a ser comendador...

− Em boa verdade, não sei o que é que ele fez pela nossa terra... O pai, sim,  mas esse nem um nome de beco tem...

− De qualquer modo, ele  é mais holandês do que português!  − arrematou o Fernando. − Que é como quem diz, tem o melhor de dois mundos.  

− Teve um bom padrinho... o sogro holandês.

− Eu diria antes:  melhor ainda do que um bom padrinho, é ter um paizinho − concluiu o  Fernando.

© Luís Graça (2023). Revisto em 20 de abril de 2024,
__________

Nota do editor:

Último poste da série > 16 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25394: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (26): um país de gente porreira - II (e última) parte

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20178: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte I: aurado para todo o serviço militar

O Domingo Robalo, no BAC1, 
Bissau, 1969
RECORDAÇÕES E DESABAFOS DE UM ARTILHEIRO > Parte I: apurado para todo o serviço militar

por Domingos Robalo (*)




Durante o mês de junho de 1967, á beira de fazer 20 anos de idade, estou a viver na cidade de Almada.

Estou na inspeção médica para ingressar no serviço militar obrigatório. (A ida às sortes, como se dizia na época.)

Muitos dos meus colegas de escola e de trabalho, já tinham seguido “a salto” rumo a França ou à Alemanha.

A inspeção médica decorria no antigo quartel da GNR de Almada. Pergunta o médico, ladeado de dois enfermeiros mal-encarados e embigodados com “torcidinho”:


- Então rapazola, vês bem? És saudável?

- Sim, Sr. Doutor,  está tudo bem  
respondi eu com as pernas ligeiramente trémulas e com ar enfezado.



Domingos Robalo (2019). 
Foto de Manuel Resende
- Bem!.... vamos lá ver isso.

- Que letras vês ali ao fundo naquele painel?

- A, B, X, V…..

- Agora as de baixo...

Rapa de um carimbo e estampa num papel: “Aprovado para todo o serviço militar”.

Esta cena foi comum a milhares de jovens, meus compatriotas,  que vieram, nesta ambiência, a ter o seu primeiro contacto com a tropa.

Para mim já não era assim tão estranho. Por força da profissão do meu pai, já sabia, desde tenra idade, o que era um soldado, um sargento ou um oficial.

E esta hierarquização levou-me desde muito cedo a saber responder à pergunta que se faz a todos os jovens: "O que queres ser quando fores grande?"... Quero ser capitão!" 
- respondia,  garboso.

Não era tolo,  não senhor; é que eu via o capitão ser obedecido pelos soldados, cabos e sargentos a quem todos tinham respeito e alguns até subserviência.

Se os havia absolutistas e disciplinadores ou sem condescendência, também havia capitães corretos e respeitadores da dignidade dos seus comandados. Por isso uns eram “amados” pelos seus subordinados e outros odiados,  como de fossem filhos do diabo. 

Domingos Robalo: foto do BI militar (1969)
Esta diferença comportamental marcou toda a minha vida e mais ainda o período em que fui militar como tantos jovens do meu tempo.

Num amanhã dos primeiros dias do mês de janeiro do ano de 1968, saio de casa pela primeira vez,  deixando em pranto a minha mãe e com o peito esmagado pelo abraço do meu pai. Do meu irmão já me tinha despedido na véspera, já que, por se encontrar a trabalhar,  tinha saído mais cedo de casa.



Apanho o comboio em direção às Caldas [, linha do Oeste], onde vou fazer a recruta para o CSM (Curso de Sargentos Milicianos). Era o primeiro recrutamento de CSM, em que todos os mancebos possuíam, como habilitação académica, o 5º ano. (Entenda-se como equivalência ao atual 9º ano.)  

(Continua)
_________

Nota do editor:

(*) Vd.. poste de 25 de setembro de  2019 > Guiné 61/74 - P20175: Tabanca Grande (484): Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; senta-se à sombra do nosso poilão sob o nº 795

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15639: Inquérito 'on line' (31): "A tropa fez de mim um homem" ?... Lembrando o caso dos meus conterrâneos que, tendo emigrado antes, vieram do estrangeiro propositadamente para fazer a tropa (Francisco Baptista, Brunhoso, Mogadouro)

Vista geral de Brunhoso.
Cortesia da página Brunhoso, Mogadouro


1. Comentário de Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72):

Brunhoso, a minha aldeia distava cinco quilómetros de Mogadouro, sede do concelho, por esse motivo os mancebos da terra chamados à inspecção, deslocavam-se a pé, pois estavam habituados a calcorrear muitos quilómetros no dia a dia de trabalhadores agrícolas. Arranjar transportes também não seria fácil. Bicicletas ninguém tinha, muito menos motorizadas. Os burros ou mulas, já que cavalos praticamente não havia, ninguém se atrevia a pedir aos pais, que iam considerar pouco másculo, para um rapaz de 20 anos fazer uma distância tão pequena.

No meu ano, fomos quatro, porque outros quatro do mesmo ano, já tinham emigrado para longes terras, Brasil e Angola.

Nesse tempo, em que os praças do meu ano e outros de anos anteriores, se dispersavam já pelo mundo europeu, americano ou africano à procura de melhores condições de sobrevivência, a velha máxima " de que a tropa vai fazer de ti um homem" estava a perder actualidade, já que eles,  pelas andanças pelo mundo, iam adquirindo os mesmos conhecimentos e experiências que a tropa lhes poderia dar. Experiência da vida e do mundo, que de certeza terá dado, a alguns dos seus antepassados, que na vida inteira só por essa causa, saíram para lá dos limites onde os levavam as pernas deles ou as dos animais de carga.

Por outro lado a tropa não os iria fazer homens mais obedientes e disciplinados do que já eram, a eles filhos de uma sociedade rural antiga e afastada de tudo, onde não tinham entrado ideias libertárias da revolução liberal do século dezanove, nem da revolução republicana dos inícios do século vinte e continuavam debaixo do poder absoluto das várias autoridades, a começar na Igreja e a acabar nos pais, que Salazar abençoou quando tomou o poder. 

O livro "Das Trincheiras com Saudade" sobre a participação do Corpo Expedicionário Português,
numa passagem fala sobre a coragem e disciplina do batalhão dos transmontanos. As duras condições de trabalho que tinham de suportar e as imposições seculares que lhes condicionavam a personalidade terão provavelmente contribuído para isso. 

Não quero deixar de salientar a atitude, destes meus "praças" que na nossa velha escola primária tinham aprendido a História de Portugal, à custa de muitos gritos, reguadas e vergastadas da professora, que patriotas, como poucos, vieram de França, para "dar a tropa" na linguagem deles. Seria patriotismo ou medo da Pátria, essa avó rabujenta´, que nunca lhes tinha dado algum amor, mas que se podia vingar deles e condená-los ao ostracismo?

Há dias ouvi,  na apresentação de um livro sobre a guerra, que mais do que desertores houve muitos que vieram do estrangeiro propositadamente para fazer a tropa. Estes meus conterrâneos devem fazer parte dessa contabilidade desse nosso camarada.

O ilustre intelectual e camarada que fez essas afirmações parece-me que não conhecia muito bem as motivações e a realidade dos nossos jovens emigrantes, na sua maioria futuros soldados, que durante três anos, para começo de vida e estando já alguns casados, iriam receber um vencimento miserável. Os futuros oficiais e sargentos milicianos, apesar da interrupção das suas carreiras profissionais ou escolares, iriam receber um vencimento bastante compensatório, o que não era o caso dos enumeros batalhões formados sobretudo por soldados. Concluindo os três camaradas que vieram de França, para ir às sortes comigo, e dar a tropa, vieram por amor à sua sua terra, terra dos seus pais e antepassados, porque sabiam que se não viessem ficavam condenados, não sabiam até quando, a não poder regressar.

A mim pessoalmente a vida militar, depois da crise mais ontológica da adolescência , relacionada com as razões, causas e justificações das nossas origens e destinos, provocou-me uma crise de consciência política sobre as razões ou sem razões dessa guerra. Um combatente com dúvidas não pode ser um bom combatente, embora um dia tenha sentido subir muito por mim a adrenalina e o desejo de vingança por causa da morte de um camarada.

Francisco Baptista
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Nota do editor:

Vd. postes de 16 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15622: Inquérito 'on line' (28): "A tropa fez de mim um homem"?... Nem sim nem não, metade da malta (12 em 24) responde "nim", "nem verdadeiro nem falso"... Inquérito em curso até 5ª feira...

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15635: Inquérito 'on line' (30): "Sim, a Tropa fez de mim um Homem"... (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de hoje, 18 de Janeiro de 2016, com a sua opinião sobre o tema "A Tropa vai fazer de ti um homem":

Caros Camaradas

A tropa, na minha modesta opinião, também polémica e contestável, foi um desastre na minha vida, isto era já o que pensava quando a PIDE através das Câmaras Municipais de Sintra (onde nasci) e Vila Franca de Xira, devido a habitar em Alhandra. Existe um pedido desta última Câmara à Junta de Freguesia de Alhandra.

Este pedido é formulado devido ir frequentar o Curso de Sargentos Milicianos (CSM).

Isto devia suceder com os Camaradas todos que viessem a frequentar os Cursos de Oficiais e Sargentos Milicianos. Obtive essa informação quando fui à Torre do Tombo consultar o meu Processo. Isto por termos muitos de nós esses Processos. Infelizmente que no meu Processo Civil e Militar, nada consta sobre a carnificina em Ganturé, morreram 10 civis e mais de 20 feridos. Era o primeiro visado.

Abriram um Processo Civil (a cargo da PIDE, isto já em Gadamael) e o Militar sobre a responsabilidade do Comandante da Companhia de Caçadores 1620, o Capitão Miliciano de Infantaria Fernando António de Magalhães Oliveira, Sangonhá e Cacoca. A CCAÇ 1620 foi para Sangonhá a 01AGO67 e foi rendida pela CCAÇ 1621 a 20MAR68.

À partida ir para a tropa prejudicava a minha vida e meus sonhos e ambições.


Velha Vila de Sintra. Ao virar à direita, fundo prédio amarelo estavam os Bombeiros 

© Foto do meu filho Alexandre Miguel Marques Gaspar


A Inspecção na Vila de Sintra a 27 de Julho de 1963 (nos Bombeiros Municipais da terra), onde veio a ser mais tarde o Museu do Brinquedo – parece não ser o local onde se situa este – mas não tenho a certeza e pouco importa.

A Inspecção unanimemente era para quase toda a rapaziada um dia de festa. “Não era homem não era nada se não fosse apurado para o Serviço Militar”.

O meu pai tentou que fosse trabalhar para as Oficinas Gerais do Material Aeronáutico (OGMA). Quem trabalhasse nestas Oficinas fazia  julgo que só a Recruta. Mas não quis por não ser diferente de todos os outros. Reconheço não ter o direito de julgar todos aqueles que ficaram livres de embarcarem para a Guerra quando eram trabalhadores das OGMA. Existiam outros abrangidos – trabalhadores por exemplo da Fábrica de Braço de Pátria (FBP – onde nasceu a nossa Pistola Metralhadora “FBP”) – que também, entre outros ficado livres – ao fim e ao cabo – de partirem para a Guerra. Fui à Inspecção e logo que o “nosso Sargento” gritou “Todos nus”, despi-me e coloquei-me na varanda nu, turistas que passavam riam.

Verifiquei terem ficado satisfeitos e radiantes ao tomarem conhecimento “terem ficado apurados para todo o serviço…”. Combinavam festas, almoços e adquiriram umas fitas que traziam escrito o apuramento para a tropa.

Trata-se de dar a minha opinião quando os meus filhos Carlos Pedro e Alexandre Miguel, também meus netos Raquel e Pedro, me perguntaram ou venham a fazê-lo: "Pai, avô, a tropa fez de ti um homem?".

Nem todos os camaradas possuem esta relíquia. Sempre pendurado no pescoço. 
Denomino Chapas dos Mortos

Pois contrariado e sempre, fui cumprindo. Quanto a “fazer de mim um homem”, não. A primeira resposta: “Não, a tropa não fez de mim um homem”, mas ajudou-me a evoluir noutros aspectos, andei num Curso Superior da Vida – Tropa/Serviço-Militar, antes uma “Pós-Graduação”, principalmente por ser de Especialista de Minas e Armadilhas. Aprendi e muito por vontade própria e defesa pessoal e defesa dos outros, a olhar para o meu interior, tendo adquirido o domínio, e alarguei os “meus sentidos”, conseguindo preencher as lacunas que permitiram tornar-me um perito no controlo de emoções, aumentando a minha biblioteca mental. Aprendi a controlar o tempo e dar uma resposta logo que solicitada.

Também assumo que a “tropa ajudou muito jovens a libertarem-se da enxada ao tomarem conhecimento que o mundo não era a sua aldeia, a sua terra e que existia um outro mundo por descobrir”. Fico imensamente radiante e orgulhoso quando fui professor de analfabetos e levei a passarem no Exame da 3.ª ou 4.ª Classes estes camaradas, mesmo aqueles que nem sequer fizeram esses Exames. Existiam aqueles que sabiam o suficiente para passarem no Exame e outros que não reuniam condições para passarem no Exame. Aqueles que reuniam as condições – segundo a minha opinião, e aqui era somente eu o responsável, só eu – foram a Exame, os outros foram por mim substituídos por camaradas já com a 4.ª Classe feita. Tudo feito unicamente com a minha responsabilidade. O Capitão só viu quando estavam todos sentados a fazerem as Provas, e eram 1.º Cabos os substitutos. Os Alferes Milicianos oriundos de Bissau acompanhavam os Exames. Depois de Aprovados, tiveram os substituídos de saberem assinar os seus nomes. Fiz mal? Se fiz, condenem-me. Fiquei feliz quando encontrei um camarada desses a conduzir um táxi. Tomei conhecimento ter feito depois a 4.ª Classe. Respeito todos aqueles que se libertaram, nesse aspecto a “tropa ajudou”, não a “serem homens” – homens já eram – ajudou a que dessem uma volta na vida. Alguns são proprietários de Empresas, a satisfação para mim.

Eu fui ajudado no dia 24 de Janeiro de 1969 na Entrevista com o Engenheiro Sucena, Administrador da DIAMANG e DIALAP que depois de confessar ser “um estudioso do ser humano e que nada tirara de mim, mas que se respondesse à questão que colocou «que razões tinha eu Mário Vitorino Gaspar para convencer o Engenheiro que veria ser um bom Lapidador de Diamantes, já que o diamante era matéria cara, podia ser muito valiosa e valer milhões”?
Respondi que tinha terminado o Serviço Militar e tinha feito uma Comissão e ter lidado com a morte, especialmente por ser de Minas e Armadilhas, e ter comandado homens. Terminando por dizer que lapidar diamantes seria tarefa mais fácil e com certeza viria a ser um bom Lapidador de Diamantes”. Respondeu o Engenheiro Sucena: “Venha trabalhar no dia 27 de Janeiro para a DIALAP – Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, SA”. E acabei mesmo por ser um bom Lapidador de Diamantes.

Tivera a oportunidade de ver o Mancebo chegar ao RI 14, em Viseu – fui Monitor de Instrução desde 3 de Abril de 1966 a Agosto do mesmo ano e vi chegarem esses jovens (cada Pelotão da Recruta com 77 jovens) e tive na minha presença o Soldado Português com características que faziam com que o nosso papel de Instrutores e Monitores fosse facilitado. A crueldade da vida ao viverem em terras remotas, longe dos grandes centros urbanos e terem como utensílio a enxada e viverem longe e terem de caminhar muitos quilómetros e também viverem isolados. Reunidas estavam as condições para serem os meus Heróis. Ao ministrar a Especialidade, neste caso já à Companhia a que pertencia, a CART 1659 e chamada ZORBA e com o lema “Os Homens não Morrem”, fiquei consciente que teria de partir com eles. Afastei a ideia de desertar e assumi conscientemente esse compromisso, mesmo sendo sempre contrário à Guerra. Defensor acérrimo que o Amor é a solução. E a 100% parti para a Guiné. Nunca na Guerra – para mim foi uma Guerra Colonial – me baldei. Cumpri.

Aceito que a tropa, neste caso a Guerra foi uma oportunidade de mudar de vida. Foi um virar de página para uma grande maioria. Para mim foi um travão e só me libertei com quase 26 anos. Mudei realmente, mas era também essa a minha intenção – MUDAR DE VIDA…

Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor

 Último poste da série > 18 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15633: Inquérito 'on line' (29): "A tropa fez de mim um homem"... Em 100 respostas, 34 dizem Sim, 21 dizem Não, 42 dizem Nim... Comentários de A. Sousa de Castro, António Carvalho [de Mampatá], Leão Varela, Alcides Silva, Juvenal Amado e Hélder Sousa...

sábado, 16 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15622: Inquérito 'on line' (28): "A tropa fez de mim um homem"?... Nem sim nem não, metade da malta (12 em 24) responde "nim", "nem verdadeiro nem falso"... Inquérito em curso até 5ª feira...



Alcobaça > Motoqueiros > 1965

Foto: © Juvenal Amado (2016). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


Sabugal > "Briosos mancebos inspeccionados em 1968, com saudosismo do passado. Foto tirada no dia da inspecção, no Sabugal, junto ao antigo edifício camarário onde teve lugar a inspecção. É também visível o edifício da antiga prisão"... É um texto de antologia, o que o José Corceiro, natural do Sabugal, aqui escreveu  em 2011 sobre o dia, tão especial, de ir às sortes (*).

Foto (e legenda): © José Corceiro  (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


A. INQUÉRITO DE OPINIÃO: "SIM, A TROPA FEZ DE MIM UM HOMEM"

1. Totalmente verdadeiro > 1 (4%)

2. Verdadeiro  > 6 (25%)

3. Nem verdadeiro nem falso  > 12 (50%)

4. Falso  > 2 (8%)

5. Totalmente falso  > 3 (12%)

6. Não sei responder  > 0 (0%)

Votos apurados >  24  (100,0%)


Dias que restam para votar: 5 | Termina a 21 de janeiro de 2016, 5ª feira, às 10h06


B. Camaradas: o que é que vamos responder aos nossos filhos e netos, se eles nos fizerem a pergunta: "Pai, avô, a tropa fez de ti um  homem?"...  O pretexto é o título do livro do Juvenal Amado ("A tropa vai fazer de ti um homem", Lisboa, Chiado Editora, 2015)  que vai ser lançado em Lisboa (dia 23, sábado) e em Monte Real, na Tabanca do Centro (dia 29, sexta-feira)...

Claro que eles, os nossos filhos e netos,  não vão fazer a pergunta porque uma grande parte deles não sabe o que é isso da tropa... E, muito menos, felizmente, o que é a guerra, a não ser a dos jogos eletrónicos... Hoje já ninguém vai às sortes, nem há  serviço militar obrigatório.

Antes de 1961, antes da guerra do ultramar/guerra colonial, ir às sortes e ficar apurada, era uma honra para qualquer mancebo deste país, a avaliar pelo testemunho de alguns camaradas nossos que já escreveram sobre este assunto, com destaque para o José Corceiro (*).

Não vamos discutir aqui se havia ou não nesse tempo uma "ideologia do marialvismo"... A verdade é que em todas sociedades há "ritos de passagem", ligados ao ciclo de vida... É evidente que tinha um enorme significado no passado, para um "mancebo" (**), a ida à inspeção militar, o apuramento, a recruta, o juramento de bandeira e, em caso de guerra, a partida para a guerra... Havia o mito de que a tropa era uma "fábrica de homens"... Mas este acontecimento (um mancebo ficar apurado para a tropa) também queria significar "emancipar-se", "atingir a maioridade", "libertar-se" do pai-patrão, sair de casa...

O que pensamos, hoje, sobre isso? A pergunta é complexa, pode até provocar algum  incómodo e desconforto, não sendo portanto de resposta fácil (sim ou não)... No inquérito "on line" desta semana,  sobre este tema, já temos 24 respostas... E metade dos respondentes (n=12) optou por responder "Nim", nem sim  nem não, "nem verdadeiro nem falso"...

A resposta, em direto, "on line", deve ser feita no blogue, no canto superior esquerdo, até 5.ª feira, dia 21, às 10h00...
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Notas do editor:


(...) Para muitos dos jovens, o dia da inspecção seria também a primeira vez que iriam estrear um fato novo, composto por calças, casaco e colete (terno), pois até ao presente não tinham tido a possibilidades de comprar o tecido e mandá-lo confeccionar no alfaiate da terra, visto ser escasso o suporte económico da família. Era também provável que a partir dessa data, o jovem pudesse começar a amealhar um pezinho de meia, fruto de algum trabalho que executasse com direito a remuneração, jornal ou a passar contrabando, pois até esta altura tudo o que tinha ganho reverteu a favor do agregado familiar. (...)

(...) O cavalo, adereçado com os seus melhores arreios estava pronto e à espera. Ricamente aparelhado. A sela, a cinta, o cabresto, as rédeas e o freio foram diligentemente limpos e engraxados, as fivelas e os estribos foram polidos até ficarem a brilhar, sem esquecer as patas do equídeo que foram aparadas, limadas e convenientemente ferradas, pois há mais de 30 quilómetros para calcorrear, ida e regresso, com o mancebo sempre montado e a espicaçar, e quiçá poderá surgir algum amigo mais íntimo que o queira apadrinhar e arrisque a boleia no lugar da garupa, e o ritmo tem que ser constantemente a trotear. (...)

(**) Do Dicionário Houaiss  da Língua Portuguesa:

"Mancebo", adj./subs., "que ou aquele que está na juventude; jovem, moço"... Etimologia, do latim manceps, mancipis, termo técnico do direito, "o que toma em mão (alguma coisa para dela se tornar o adquirente ou reivindicar-lhe a posse); relacionado com manu, mão.  O mancebo, de mancipiu(m) era aquele que, no tempo da antiguidade clássica,  era agarrado à mão, feito escravo, na guerra, e levado para casa, para os trabalhos agrícolas... Ou ainda manus + cibus, homem que é cevado à mão, escravo,,,  

Mas há outros significados... Veja-se aqui Língua Portuguesa, o blog de Aldo Bizzochi > Mancebo, mancebia, amancebar-se

(...) O que ocorreu de fato é que mancebo derivou de amancebar, e não o contrário. Esse verbo amancebar (...), na verdade, provém por evolução fonética regular do latim emancipare, "emancipar, libertar, deixar de tutelar", que significava, dentre outras coisas, "conceder a um filho poderes civis quando este completasse a maioridade". Portanto, manceps e emancipatus queriam dizer "maior de idade". (No direito civil brasileiro temos o mesmo termo emancipado para designar o indivíduo que atingiu a maioridade ou a quem, sendo menor, a justiça concedeu as prerrogativas de cidadão adulto.) (...)

(***) Último poste da série > 11 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15606: Inquérito 'on line' (27): "Em 2016 prometo enviar mais fotos e/ou textos para o blogue"... Sim, respondem cerca de 20 a 25 num total (magro) de 57 respondentes...

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12388: Estórias avulsas (73): O Dia das Sortes na aldeia de Brunhoso (Francisco Baptista)

Vista parcial de Brunhoso


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 30 de Novembro de 2013:

Éramos homens, tínhamos força, confiança, tínhamos sonhos, queríamos conquistar as mulheres, queríamos conquistar o mundo, queríamos ser nós a governar a nossa vida.
Éramos capazes de transportar sacos de trigo de 80 quilos ou mais, de ceifar três sucos de trigo como os mais velhos, de varejar as oliveiras e cavar tanto as oliveiras como as vinhas.
Sabíamos lavrar com vacas como com bestas, sabíamos semear o trigo e o centeio, plantar as batatas, as abóboras e as hortaliças.

Estávamos confiantes e preparados para entrar na sociedade dos adultos, era o nosso dia e toda a aldeia de Brunhoso iria ter orgulho nos seus filhos que tinham atingido a maioridade.
Tínhamos 20 anos e tinha chegado o dia das sortes.

Pela manhã fomos todos, a pé, até à vila, eram só cinco quilómetros e nós estávamos habituados a calcorrear os carreiros e caminhos do termo da aldeia. No dia anterior tínhamos ido todos, como a tradição mandava, tomar banho ao ribeiro da Lagariça.

Vestimos as nossas melhores roupas porque o dia era solene e de festa. Éramos quatro nascidos em 1947, o Amílcar, o José Luís, o Ernesto e o Chico (sou eu, pronuncia-se quase tchico por lá).
Outros quatro já tinham emigrado, eram eles, o António Borges e o Adelino para o Brasil, o José Maria e o Manuel da Glória para Angola.

Os meninos mortos de 1947, pois morriam tantos nesse tempo, não eram nomeados, nem chorados, pois eram anjos que tinham ido diretamente para o céu. Importa falar dos vivos e de todos, presentes ou ausentes, porque a tradição estabelecia uma irmandade entre todos os nascidos no mesmo ano.

Os da mesma idade eram os praças. A razão deste tratamento teria a ver com o facto de todos assentarem praça no mesmo ano. O dia das sortes significava naquelas terras o dia da passagem à idade adulta, o dia da emancipação.

A inspeção não foi muito demorada. Numas instalações que a Câmara Municipal punha à disposição das Forças Armadas despíamo-nos e íamos passando pelos médicos militares que avaliavam a nossa masculinidade e a nossa saúde.

Ficamos os quatro aptos para o serviço militar o que era sempre motivo de contentamento para o grupo, pois ninguém gostava de ser excluído. Era sinal de saúde e de que passávamos a ser cidadãos capazes de defender a nossa terra.
Ficar excluído era um anátema terrível que marcava um homem pela vida fora.

Ainda recordo tal como ele contava, a história da inspeção do "tio João Passarinho" que ouvi várias vezes, pois ele trabalhou muitos anos à jeira na casa do meu pai e já tinha trabalhado antes na casa dos meus avós paternos.
O tio João Passarinho era um homem valente e trabalhador, que sabia fazer todos os trabalhos do campo melhor do que ninguém. Desde cortar a erva nos lameiros à gadanha para feno, a tirar a cortiça dos sobreiros ele sabia fazer tudo com destreza. Era todavia um homem franzino e baixo, com um metro e cinquenta de altura ou pouco mais. Viveu até aos oitenta ou mais anos e trabalhou sempre enquanto pôde.
Nunca teve férias nem reforma, como a maioria dos trabalhadores do campo desse tempo. Hoje se fosse vivo já teria mais do que 110 anos pois conheço um filho dele, o Joaquim, muito parecido com ele que apesar da idade avançada continua a trabalhar, já com 85 anos.

O tio João talvez nunca conformado por ter ficado isento do serviço militar, nos anos 20 ou 30 do século passado e porque gostava de efabular, contava que quando foi visto pelo médico militar no dia da inspeção ele lhe disse:
- Aqui está um homem bem constituído, alto, forte, espadaúdo. Temos um marinheiro!

Nunca eu o contrariei quando ele fazia estas afirmações e ouvi-as várias vezes. Tinha muito respeito por ele, desde menino fui criado na companhia assídua dele, era um homem respeitável, bondoso e trabalhador.
Sempre soube que dizia uma grande mentira, bastava olhar para ele, mas ele tinha direito a ter os seus defeitos e essa mentira, como outras em que era pródigo, não prejudicava ninguém.

Comprámos quatro foguetes e muitos rebuçados e regressámos à aldeia. Quando estávamos a um quilómetro, numa colina sobranceira, lançámos o primeiro foguete, os outros foram lançados já na aldeia. Demos a volta a todas as ruas a distribuir os rebuçados pelas raparigas, sendo naturalmente mais saudados pelas da nossa idade. Éramos amigos, tínhamos crescido perto uns dos outros, tínhamos entrado na escola ao mesmo tempo, tínhamos sobrevivido aos desejos próprios da adolescência com estoicismo e às restrições que uma moral rígida imposta, através da mãe, do pai, do padre, da professora e do falar do povo nos era imposta.

Por elas, vá lá e pelas outras, tínhamo-nos batido, em dias de festa ou de baile, com os rapazes duma terra vizinha. Muitas vezes os escorraçámos à pedrada, porque elas eram nossas e eles não se podiam atrever a conquistá-las ou a dançar com elas se algum dos nossos não gostasse. Toda a aldeia nos saudava com agrado, éramos os heróis do ano.

Fomos todos almoçar a casa dos meus pais, pois a minha santa mãe quis convidar-nos e fez-nos um almoço melhorado, um almoço de dias de festa.
Há dois anos o José Luís falou-me nesse almoço que eu já não recordava. Dos quatro que fomos à inspeção, o Amílcar e o Ernesto foram mobilizados para Angola, eu pra Guiné, o José Luís como foi sempre um bocado despistado, deve ter perdido o barco que o levaria para algum lado e fez a tropa por cá.

Quando acabou a tropa eu emigrei para o Porto os outros três para França. Dos outros, o António Borges, que nunca mais vi desde a adolescência continua no Brasil, o Adelino continua por lá também tendo-o visto nas duas vezes que ele visitou a aldeia. O José Maria e o Manuel da Glória regressaram de Angola com a descolonização, tendo o primeiro infelizmente morrido o ano passado de doença em Lisboa onde se tinha estabelecido com um negócio de padaria-confeitaria.
Ao Manuel da Glória nunca mais o voltei a ver, disseram-me que morará na Beira Alta ou Beira Baixa.

As "raparigas" da nossa idade, que eram dez, somente uma mora na aldeia depois de ter vivido cerca de 30 anos em França. Só uma delas foi além da quarta classe tal como eu. Pertencia a uma família numerosa, com poucos recursos, mas era uma pessoa muito inteligente e sendo sobrinha bastarda da professora, que pertencia a uma das três casas grandes da terra, terá sido provavelmente ela que a encaminhou para um convento de freiras. Na maioridade deixou o convento, constituiu família e passou a dar aulas no ensino secundário.

Desloco-me com alguma frequência à aldeia para relaxar no contacto com a natureza e sentir o ar mais puro, quente ou frio, conforme a estação, mas sempre agradável. No inverno chego a sentir saudades do ar frio e seco da minha terra. Da varanda da casa, agora quase sempre vazia, avista-se grande parte do casario da aldeia bem como pinheiros, sobreiros e alguns freixos que fazem parte da área agrícola e florestal da terra, e ao longe a paisagem típica dos montes e vales de Trás-Os-Montes que se estende por muitos quilómetros.

Ouço o silêncio duma terra que foi morrendo, que eu por vezes procuro preencher com memórias de há quarenta ou cinquenta anos, e então ouço o barulho próprio de uma casa onde viviam nove pessoas, o palrar das vizinhas, os gritos das brincadeiras dos garotos, o chiar dos carros de bois, os sons dos diferentes animais domésticos e o pregão da minha vizinha, a tia Clementina, a anunciar a sardinha.

Um caudal de memórias como o do Rio Sabor na primavera, que corre num dos limites da área agrícola da freguesia. Recordo estes rapazes e raparigas, conterrâneos da minha idade, e as vidas duras e difíceis que tiveram na aldeia e depois nos caminhos da diáspora.

Dizer que seriam pobres seria uma ofensa para eles, pois por lá os pobres eram os miseráveis que tal como os ciganos andavam a pedir de porta em porta. Os pais deles teriam uma pequena horta, algum campo para semear trigo e talvez algumas oliveiras. O sustento para a família vinha sobretudo das jeiras diárias, em tempo de colheitas para os lavradores. Sei que muitas vezes só comiam pão, batatas e caldo, mas nunca os ouvi queixar-se a mim que pertencia a uma família que sem ser rica era mais abastada.

Mas falar sobre esse mundo antigo e quase feudal é um assunto que dá pano para mangas.
Fica para outra oportunidade.

Bom Natal para todos e um grande abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12347: Estórias avulsas (72): Aníbal: um inadaptado, um marginal ou um anarquista? (Francisco Baptista)

domingo, 15 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12040: Manuscrito(s) (Luís Graça) (10): O dever de servir a Pátria... Éramos todos iguais, mas uns mais do que outros

1. Estimado alfero Cabral:

A octogésima estória cabraliana (*) merece ser saudada, de maneira "discreta", como o alfero gosta, mas também com regozijo da parte dos inúmeros fãs da série, onde se inclui este seu "discreto"  leitor (. O senhor alfero sabe quanto discretamente o admiro e anseio o lançamento do seu livro para poder ser um dos 10 primeiros, pelo menos, a ter o privilégio de uma dedicatória autografada).

Levanta o meu alfero (que eu tive a honra de conhecer em Bambadinca, nos idos tempos de 1969/71), duas questões interessantes para a história do nosso tempo, em geral, e da guerra colonial (ou do ultramar, como preferir), em particular:

(i) era possível motivar alguns militares da tropa, como o 1º sargento Candeias ou até alguns cadetes de Mafra, com o simples slogan propagandístico "há mulatas em Luanda";

(ii) naquele tempo, de impoluto patriotismo (, coisa que os jovens de hoje não sabem muito bem o que é), também funcionava a "valente cunha de última hora", a avaliar pelo inesperado desfecho da situação do cadete Cabral: em vez do almejado tacho no SAM - Secretariado de Administração Militar, com direito a ar condicionado ou, no mínimo, de ventoínho de muitas rotações e garrafeira de uísque velho, puseram-no como apontador de artilharia em pleno coração da Guiné; em vez da ilha de Luanda e das mulatas angolanas, enfim mandaram-no para Fá e para as mandingas da Guiné...

Este último tema (o do "factor C") interessa-me particularmente, já que não tem sido devidamente abordado no nosso blogue, como deveria e eu desejaria.. Afinal, a lei era igual para todos ou havia, como hoje, uns mais iguais do que outros ?... Em Alcácer Quibir parece que morreu (ou ficou prisioneira dos moiros) a fina flor na Nação... Mas na Guiné a sociodemografia da guerra e da morte foi muito mais nivelada por baixo... Houve muito boa gente que se safou  de ir parar ao chamado Vietname português...

Ainda ontem um amigo e conterrâneo meu, mais novo, me contava como um  primo seu, mais velho, da minha geração, ficou livre da tropa (e portanto de ir parar à Guiné ou a outros sítios indesejáveis do vasto império onde havia guerra) mediante "cunha valente de última hora"...

A avó (de ambos) pagou 200 contos (, o que na época dava para comprar um apartamento) para livrar o querido netinho da servidão militar... O patriota impoluto que conseguiu livrar o mancebo era nem mais nem menos do que uma das figuras gradas do regime de então, médico, militar,  de muitos galões, poderoso e influente... que esteve à frente de respeitáveis instituições como o Hospital Militar Principal... A senhora era vizinha da tal figura grada da Nação, morava ali para os lados da Estrela, e adorava aquele netinho (filho único da sua querida filha, viúva) e tinha bagalhoça. (Pessoa de resto que eu bem conheci e a quem fiquei a dever favores, diga-se de passagem).

 O menino pôde fazer a sua carreira, académica e depois profissional,  tranquilamente, tendo-se em licenciado em economia e arranjado um bom emprego numa instituição bancária, enquanto os jovens da sua geração andaram a matar e a morrer em Angola, Guiné, Moçambique...

Claro que, também aqui, nesta história nem todos os netos são ou eram iguais...Um deles, meu amigo, e irmão do meu informante, foi parar com os costados à Guiné, tal como eu... Enfim, já naquele tempo havia netos ricos e netos pobres... E, claro, médicos militares, figuras da mais fina flor da Nação, com diferentes leituras do valor do "patriotismo impoluto"...

Ouvindo histórias aqui e acolá, vamos juntando as pontas e reconstituíndo o "puzzle": (i)  o sistema estava longe de tratar todos por igual (na escola, na tropa, na vida civil...); (ii) a classe social também contava (e se contava!); (iii) o "capital de relações sociais" também contava muito (o pessoal do "downstairs" que servia o pessoal do "upstairs", também tiravam partido dessa condião e, muitas das v vezes, eram as pessoas certas a quem o pobre necessitado devia meter um cunha); (iv) os resultados dos testes psicotécnicos, por mais válidos e fiáveis que fossem (segundo as garantias dos psicólogos militares) podiam ser, nalguns casos,  desvirtuados na secretaria...

Por outro lado, a sociedade portuguesa é marcada por séculos de relações clientelares... E o poder manifestava-se, também,  através do favor (e da sua simbologia): "com favor não te conhecerás, sem ele não te conhecerão"... Por outro lado, essas relações de poder eram assimétricas: como se diz na nossa terra, "dou um presunto a quem me der um porco"... E, em boa verdade, quem é que não estaria disposto, no nosso tempo, a dar 200 notas de conto, se as tivesse, só para se safar do alegado inferno da Guiné ? (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 13 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12035: Estórias cabralianas (80): As mulatas de Luanda (Jorge Cabral)

(**) Último poste da série > 19 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11955: Manuscrito(s) (Luís Graça) (9): Em honra da Lourinhã e da(s) sua(s) banda(s) filarmónica(s)

sábado, 21 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10177: Do Ninho D'Águia até África (1): Mobilização e partida para um Comando de Agrupamento (Tony Borié, ex-1º cabo cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

1. O Tony Borié*, que entrou há tempo para a Tabanca Grande, ofereceu-se para para publicar, no todo ou em parte, um livro em formato eletrónico (o chamdo e-book) que ele elaborou com as suas memórias de há quase meio século. Chamou-lhe Do Ninho de d´'Aguia até à África... É um caminho, coletivo, que todos nós também conhecemos. Mas é também um caminho, único, individual, singular... O caminho que nos levou, das nossas terras, até a um país, em África, na África Ocidental, a alguns milhares de quilómetros de casa... Combinámos com ele editar, no nosso blogue, todas as semanas, o livro eletrónico (que nunca foi publicado em papel, é portanto um inédito).

Há tempos eles explicou-nos a génese deste livro:

(...)"Eu relacionava-me bem com os meus camaradas, em especial do batalhão de artilharia 645, e de um pelotão de morteirosde que não me recorda o número, mas dormia na mesma camarata deles, e vivia todas as suas peripécias. Esse pelotão teve três mortos,  se não me engano, e eu chorei-os como se fossem meus irmãos. Eu tinha acesso a todos os reportes de toda a movimentação de tropas que se fazia na região do Oio e é com esses elementos de que me vou lembrando, que escrevi o livro. Não menciono nomes verídicos nem lugares, mas toda a história se passou na região do Oio e é verídica. Houve esses ataques e houve essas minas que rebentaram, e houve esses camaradas que desapareceram para sempre, embrulhados num camuflado todo roto e ensanguentado, e alguns, com um ar de crianças no rosto"- (...)

Ele vai-nos mandando um número de páginas que pode ser variável (4 a 8), é preciso é que cada poste (ou parte) corresponda a um "episódio", "situação", "cena" ou "pequena história"... para não se perder o fio à meada... Como ele estás nos EUA há quatro décadas (vive hoje na Florida), é normal aparecer um ou outro erro de português, ortográfico (ou até de simples processamento de texto) que vamos procurar detectar e corrigir, com a plena anuência e bom vontade do autor,  a quem agradecemos desde já o seu companheirismo e generosidade.  O título da série é dele: os substítulos serão, em princípio, da responsabilidade do editor de serviço. (CV)

2. Do Ninho D'Águia até África (1): Mobilização e partida
por Tony Borié (EUA, Florida)


O comboio das dez e meia da manhã levou o Tó d’Agar, da vila até à cidade. No quartel da cidade, vai  “às Sortes”. Os doutores ordenam-lhe que tire a roupa, e inspeccionam o seu corpo nu, de diversos ângulos. Mandam abrir a boca, mostrar os dentes, dar saltos, baixar-se, abrir e fechar as pernas, ler algumas letras, curvar-se e metem-lhe o dedo no ânus, que bastante lhe dói, verificam as mãos e os pés, se tem cinco dedos, tudo isto entre outras coisas. Falam entre si, numa linguagem, talvez técnica, mas incompreensível. No final, o que tem cara de mais velho, dos ditos doutores, ordena-lhe que se vista, e entrega-lhe um papel com o seu nome, que tem um carimbo a letras vermelhas, onde se lê “Apurado para todo o serviço militar”.

Algum tempo depois, recebe uma carta registada, na casa de seus pais, a notificá-lo para se apresentar num quartel militar da província, a fim de ser incorporado no exército de Portugal.

O Tó d’Agar, depois de passar por esse quartel militar da província, onde recebe uma instrução básica, que era concentrada em saber defender-se, e como deve matar. Matar de diferentes maneiras, usando diferente partes do corpo, onde pode produzir uma morte rápida, ou prolongada. A instrução foi baseada em saber matar. O militar que proporcionava a instrução, tinha regressado, há pouco tempo,  de uma comissão numa província do ultramar, contava histórias de combate, exemplificava, em cada instruendo, o local do corpo, em que devíamos acertar com uma bala, ou com uma faca. Fazia isso, com tal precisão, e com os olhos vidrados de raiva, que até assustava os instruendos.

Terminada essa instrução básica, é transferido para os arredores da capital, onde recebe um pequeno treino de especialização. Durante este treino, dizem-lhe constantemente que é um filho da Pátria, que deve dar a vida por ela, que a partir do final, quando receber todo este treino de especialização é um militar fora do normal, que não pode dormir na mesma caserna, com outros militares, pois pode ter insónias, e revelar segredos de Estado a que vai ter acesso no futuro, e fazer perder uma guerra, e mais um blá, blá, blá, que,  quando acaba o treino, vem com um peso no corpo, como se carregasse com dez milhões de portugueses às costas!

Entretanto, rebenta outra rebelião de independência, noutra província do então ultramar português. É mobilizado. O chefe do governo de Portugal dizia na rádio e na televisão, também do governo, para que o povo português, visse e ouvisse:

- VAMOS PARA A GUERRA, E EM FORÇA!

Não teve tempo, nem para se despedir da família na sua aldeia do vale do Ninho d’Águia.

Sem dar por nada, tem umas botas novas calçadas, e está vestido de amarelo, com um saco às costas e uma mala de cartão, no cais da alfândega de Lisboa, esperando a sua vez de entrar para o navio que havia de o levar para a província da Guiné, onde começava uma guerra traiçoeira e imprevista. Chora sem lágrimas, para dentro, pensando que já é um homem. O navio apita três vezes, chamando todos para bordo. O apito  é rude e de aflição, não é um apito bonito, como era o comboio das seis e meia, na sua aldeia do vale do Ninho d’Águia.

O primeiro dia no alto mar é de surpresa e admiração. Tanta água, de um lado e do outro, não dá para compreender, não há terra à vista, de vez em quando, passa um barco, lá ao longe, e apita. Ao terceiro, ou quarto dia, viam-se peixes voadores, saíam da onda, e voavam uns segundos, desaparecendo noutra onda, alguns iam de encontro ao barco. O convívio com futuros colegas de companhia começa a fazer-se. Alguns perguntam:
- De onde és? Como te chamas?

Se o nome é difícil de pronunciar, passa a chamar-se pelo nome da terra ou região onde nasceu. Assim, aparece em cenário de guerra, o primeiro cabo Bolinhas, o Açoriano, o Lisboa, o Matateu, o Setúbal, o Corcunda, o Morteiro. O Tó d’Agar passou a chamar-se “o Cifra”, talvez por causa da especialidade.

Passados uns tantos dias, chegam ao porto de destino. Era manhã cedo, um nevoeiro fraco, mas quente, muito quente e húmido, não corria nenhuma aragem, era abafado. Lá ao longe, algumas casas, um intenso arvoredo, verde e de outras cores, rente à água, com árvores gigantes aqui e ali. O cais de desembarque, via-se a umas tantas centenas de metros do barco. Não se podia atracar, apesar de o barco ser pequeno. Os militares iam sendo desembarcados, em lanchas, que os transportavam, assim como todo o equipamento militar, ao cais.

Esta operação, demorou um dia. Já em terra, e deslocados para uma área, onde se via a tal vegetação verde e de outras cores, rente à água, com árvores gigantes, aqui e ali, começou a organização, dentro da desorganização. É distribuída uma ordem, num papel, género da “ordem do dia”, onde era comunicado: O Agrupamento número tal vai juntar-se à Companhia de Infantaria número tal, que está estacionada no espaço número tal, e o Pelotão de Morteiros, número tal, fica agregado à Companhia de Infantaria número tal, que se deve encontrar na zona tal, e por aí adiante. Tudo em campo aberto. Com a movimentação de militares e viaturas, passado uns tantos dias, o local do acampamento estava coberto de lama, e com ela, milhares de mosquitos. Neste cenário, viveram quase três semanas, até serem enviados para o interior da província, e possível cenário de guerra.

Neste espaço de tempo, não havia água potável, nem para beber, ou lavar simplesmente a cara. Era em bidões vazios de gasóleo ou óleo, que se lavavam, e enchiam com água turva dos rios e pântanos próximos, esperava-se umas horas para que algumas impurezas assentassem no fundo, e depois essa água, era utilizada. Viviam à base de ração de combate. Pela manhã, em determinada área, ferviam água, e faziam café, muito forte, que distribuíam com um naco de pão, ou um biscoito. Um pouco retirado do acampamento, abriam-se valas no chão, que serviam de latrinas. Aqui começava a lei da sobrevivência. Tudo era motivo para discussão entre militares, e às vezes havia mesmo confrontos físicos. Neste maldito acampamento, com algumas centenas de militares, houve um suicídio, e vários casos de febre constante, que, diziam, era a doença do paludismo.

O Cifra, que é como o Tó d’Agar passa a ser conhecido em cenário de guerra, ao fim de aproximadamente três semanas, sai do acampamento, e vai para o interior da província, onde se começava a desenrolar o conflito. O Comando do Agrupamento a que pertence, instalou-se numa vila do interior, nas instalações do que diziam ser um antigo convento de padres de uma ordem religiosa francesa, quase em ruínas, onde já se encontrava alguns militares, que iniciaram a construção de um aquartelamento, que mais tarde, viria a ser o principal e mais importante posto avançado para o interior da província. (,,,)

(Continua)
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10150: Camaradas da diáspora (11): Tony Borié, ex-1º cabo cripto, Comando de Agrupamento nº 16 (Mansoa, 1964/66), a viver na Flórida, EUA