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domingo, 21 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19705: A galeria dos meus heróis (28): Alfa Baldé, apontador de dilagrama, morto por "fogo amigo"... (Luís Graça)

A Galeria dos Meus Heróis > Alfa Baldé, apontador de dilagrama, morto por "fogo amigo"


por Luís Graça 




1. A guerra. Essa coisa tão primordial que é a guerra. Que estaria inscrita no teu ADN, a acreditar nos sociobiólogos para quem o  comportamento humano seria geneticamente determinado.

A guerra é a continuação da evolução por outros meios, dirão os entomólogos, especialistas em insetos sociais,  para quem a morte de um ou de um milhão de formigas ou de seres humanos, é-lhes totalmente indiferente. Desde que triunfe o ADN, um projecto de ADN musculado,uma "raça" nova e superior...

Para ti, a guerra é a aprendizagem da morte. Aos vinte e dois anos. É a inocência que se perde para sempre, ao ver morrer pela primeira vez um homem. Como o teu camarada, Alfa Baldé, que morreu a teu lado. A guerra... é o impossível luto. É a descoberta do mal absoluto.

Fight or flight. Luta ou foge. Não precisaste de fugir nem de lutar. Recusaste o egoísmo genético. Recusaste a lógica absurda de matar ou morrer. Recusaste o cinismo. Recusaste a G3 em posição automática. Recusaste a fria e calculista resignação com que se juntavam e amortalhavam os cadáveres seguintes. E se contavam nas paredes da caserna os dias que faltavam para a peluda.

Cinquenta anos depois, meio século, dois terços da esperança média de vida de um homem do hemisfério norte, vens dizer as palavras que ninguém disse ao Alfa Baldé, no  grotesco enterro que lhe fizeram em Sinchã qualquer-coisa, a sua terra natal.

2. Descansa em paz, Alfa Baldé, meu herói, soldado do 2º pelotão da minha companhia, de tropa-macaca, a minha companhia, os meus camaradas, o meu bando de primatas sociais, territoriais, predadores, filhos das mais desvairadas gentes.

Fazíamos parte da nova força africana, de Herr Spínola, o prussiano, como eu gostava de chamar-lhe, ao nosso Comandante-Chefe. Lembras-te ainda do "Caco Baldé" e da sua voz de ventríloquo ? Tinha o teu apelido, e usava um monóculo, ridículo...

Não, não tens que te lembrar, não ligues a esta minha provocação, são outros contos, outras estórias, outras lendas e narrativas, outros ajustes de contas com as nossas doridas memórias.

Descansa em paz, Alfa Baldé, debaixo do poilão secular, na tua tabanca, no chão fula, belíssimo poilão de uma triste tabanca fula, cercada de arame farpado, trincheiras e valas de abrigo, por causa do Mamadu Indjai, o Terrível, que jurou pôr o teu "chão" a ferro e fogo.


Julgo que eras do regulado de Badora. Ou seria Cossé, lá para os lados de Galomaro? Desculpa-me ter esquecido o nome da tua tabanca. E a cara dos teus filhos. E o rosto das tuas mulheres, agora órfãos e viúvas, sozinhos neste mundo. Ou talvez não: ficaram a cargo do teu mano mais novo, seguindo os usos e costumes do teu povo.


Apercebi-me que os teus campos estavam tristes e inférteis. Já não davam o milho painço nem o fundo, nem a mancarra, nem a noz de cola, nem o arroz de sequeiro. Os homens partiram para guerra. E os mais velhos eram milícias, na tua tabanca organizada em autodefesa. A guerra era agora a principal ocupação de todos. Compravam o arroz ao Rendeiro com o "patacão" da guerra. Nem os "djubis" guardavam já os campos de mancarra, das investidas dos macacos-cães. De Mauser em punho, que a milícia agora usava a G3.

Alguns dos jovens guerreiros, como tu, voltavam agora numa caixão de pinho. Restavam os macabros "jagudis" poisados no alto da morança dos mortos, cheirando a morte, pressagiando a desgraça.

Setembro de 1969. Operação Pato Marreco. Ou era a Ganso Pimpão ? Ou a Pavão Real ? Que importa, agora, o nome de código da operação!... Morreste em linha. Aprumado como o teu poilão. No assalto a um aquartelamento temporário do IN ("barraca", diziam eles), próximo do Poindom / Ponta do Inglês, o "matadouro" do Xime.

IN ? Que estranho termo ou expressão… Uso-o por força do hábito, por comodidade, por lassidão, por economia de análise. IN, abreviatura de inimigo. Para ti, era o "turra". Para muitos de nós, "tugas", era o "turra".

Curioso, nunca soube a tua idade, mas eras dos mais velhinhos, dos que não tinham idade bem definida. Não tinhas bilhete de identidade de cidadão português. Eras um fula preto, um fula forro, não creio que fosses futa-fula. Mas eu levei-te a enterrar na tua aldeia, mais os nossos camaradas do 2º pelotão, fomos dizer-te o último adeus. Com honras militares, tiros de salva, e a bandeira verde-rubra dos "tugas" por cima do teu caixão. De pinho. Do verde pinho de Portugal. Talvez do pinhal de Leiria, que ardeu no verão passado.

Nem isto te deixaram fazer à maneira dos teus. Afinal, eras um soldado, regular, do exército português. Colonialista, dizia a "Maria Turra", na rádio lá de Conacri... Cumprias o teu serviço militar obrigatório, como qualquer cidadão português. Eras do recrutamento local. 


Todos os exércitos têm normas, regulamentos, protocolos... O teu enterro fez-se segundo a NEP não sei quantas... Mas tenho uma dúvida: não chegaram a chumbar o teu caixão, não houve de esperar pelo "coveiro" de Bissau, fomos no "gosse gosse", a caminho da tua aldeia, em dois ou três Unimog, com medo que o teu cadáver começasse a cheirar mal. E o "pavão real" do teu "alfero", ia à frente, de peito feito ao vento, pela estrada fora... Na brincadeira, chamávamos-lhe também o "Pimpão"... E ele até nem desgostava do epíteto...Fez um discurso patriótico, que ninguém terá entendido, crianças, mulheres e velhos da tua aldeia: "Honra e Glória ao bravo soldado Alfa Baldé, que deu a vida pela Pátria!"...

Portugal ? Ainda te lembras ? Os senhores que vieram do Norte e do lado mar ? Não, não vieram pelo deserto. Esses, foram outros, árabes, bérberes, tuaregues, mandingas do reino do Mali, abrindo as rotas subsarianas do ouro e da escravatura. Depois é que vieram os "tugas" e os outros europeus... Os teus antepassados foram escravizados, muitos foram parar ao Novo Mundo, aos engenhos de açúcar e às plantações de algodão. Outros, quiçá, trabalharam nos arrozais do rio Sado. Ou eram escravos domésticos em Lisboa.

Não, não tens que saber de geografia. Nem de história. Nem de geopolítica. Nem de antropologia. No sítio onde tu agoras moras, debaixo do teu poilão, já não te servem para nada os conhecimentos de geografia, história, geopolítica ou antropologia. Só espero que algum senhor da guerra, do teu país, não venha um dia destes autorizar o abate do teu poilão, a troco de um punhado de iuanes, o patacão chinês.  Sabes, dizem que estão a dar cabo das florestas da tua terra, da tua África. O deserto do Saara já espreita às portas do "chão" felupe, mais a Norte. Os "madeireiros" não têm pátria nem ideologia.

Bolas!, mas eu, mesmo ao fim destes anos todos, eu deveria recordar-me do nome da tua aldeia, no "chão" fula. Passámos lá uma semana ou duas, com a nossa secção, um mês antes de morreres. Já não te lembras ? Creio que a tua tabanca, pelas notas,amarelecidas,  do meu diário, ficava no limite do regulado de Badora, a sul, já a confinar com o regulado do Corubal.

O teu nome, esse não esqueci, Alfa Baldé, apontador de dilagrama, o melhor da companhia. Esqueci foi o lugar onde nasceste, talvez Sinchã ou Saré qualquer-coisa, mas não faz mal.

Passei lá uns belos dias, contigo e a nossa secção. Felizmente que o Mamadu Indjai não nos importunou nessa altura, mas andou a pôr o regulado do Corubal a ferro e fogo, como ele jurou, cumpriu e fez cumprir. Mamadu Indjai, um senhor da guerra do PAIGC, que acabará também miseravelmente fuzilado nas matas do Boé, depois de atentar contra a vida do seu chefe, o "pai da Pátria"... Mas era um "cabra" valente, "herói da luta de libertação"...É assim, querido Alfa, todas as revoluções devoram os seus filhos: Cabral, Indjai, Mané, 'Nino'... Ontem, como hoje. Na tua terra ou na minha.

Lembro-me que o chefe da tua tabanca deu-me uma morança e arranjou-me uma espécie de "impedida", que tu me apresentaste como sendo tua "irmãzinha". Vinha-me acender o lume à ao fim da tarde. (À noite apagágavmos todas as fogueiras, por causa dos "snippers" do Mamadu Indjai. Estava em vigor o "black out" total. Até o cigarro era proibido.)


Não falava uma única palavra de português, a minha "impedida". Não cheguei a perceber qual o seu papel naquele filme. Creio que era uma das quatro mulheres do chefe das milícias. Já devia ter sido mãe, já não tinha a "mama firme" das bajudas. Mas foi amorosa e gentil comigo. Tratei-a sempre, delicadamente, como uma "irmãzinha", tua, e minha. Nunca esquecerei a massagem que me fez à coluna, com mezinhas tradicionais, depois de uma estúpida queda que eu dei na cambança de um riacho que corria ali perto, quando fomos os dois à caça, tu e eu.

Pude também, na ocasião, aperceber-me como eras um exímio caçador, e um terrível "snipper"... Das lebres às galinhas do mato, dos javalis às gazelas, não falhavas um tiro, emboscado na orla da bolanha, ao lusco-fusco. Eu, que sempre detestei a caça, acompanhei-te pelo menos uma vez, ao fim da tarde.

Mas o que agora queria dizer-te, e é isso que importa, é que chorei por ti, confesso que chorei por ti, que morreste a meu lado,e que levavas um prisioneiro, teu irmão, pela mão. E tu que nem sequer eras meu irmão, nem grande nem pequeno. Eras apenas meu camarada de armas. Nem tinhas a mesma cor de pele. Nem a mesma religião. Nem a mesma língua. Nem talvez a mesma pátria. Nem o mesmo continente. Não comias carne de porco. Nem bebias "água de Lisboa". Eras apenas um guinéu, soldado de 2ª classe, exímio caçador e o melhor apontador de dilagrama da companhia. E o primeiro a morrer em combate, "vítima de fogo amigo", que estranha ironia!

Ganhavas 600 pesos de pré, o equivalente a um saco de arroz por mês para alimentar a tua família, mais 24$50 por dia, por seres desarranchado. 

Não eras homem de grandes falas, e o teu léxico em português era bem escasso para a gente poder manter um diálogo aprofundado sobre a tua vida e a do teu povo. Eu fazia muitas perguntas, às quais nem sempre sabias responder.

Para mim, eras apenas um homem, da subespécie Homo Sapiens Sapiens. A única que chegou até aos nossos dias. E que, convém recordá-lo, nasceu na Mãe África. Somos todos descendentes de africanos que acabaram por colonizar e povoar o planeta.

Tu foste o primeiro homem, género Homo, espécie Homo Sapiens,  subespécie Homo Sapiens Sapiens, que eu vi morrer a meu lado. Nunca mais chorei por ninguém, por mais nenhum morto, acredita. Chorei por ti, Alfa Baldé. Chorei de raiva, de impotência e de dor.

Nascemos meninos, tu e eu, mas fizeram-nos soldados. Azar o meu e o teu, por termos nascido no sítio errado, no tempo errado.
Imagino-te "djubi", à volta da fogueira, na morança do marabu ou do "cherno" da tua tabanca, decorando o Corão. Uma das cenas mais lindas que eu trouxe da tua tabanca, e que eu guardo na minha memória, os "djubis" à volta da fogueira, ao fim da tarde, soletrando as letras das tabuínhas em árabe. 

E tu, seguramente, nunca me viste "menino de coro", a cantar, de sobrepeliz branca, nas cerimónias da Semana Santa na igreja matriz  da minha terra, "reconquistada aos mouros", em 1147, que eram tão seguidores de Alá como tu e os teus.

Lembro-me de ainda teres querido aprender as letras dos "tugas", o alfabeto latino, para poderes ser soldado arvorado e um dia chegares a 1º cabo como o Suleimane Baldé, fula-fula, ou o Vitor, que era mancanha de Bissau, o Lopes, que era cabo-verdiano da ilha da Brava. Mas a nossa atividade operacional era intensa e muito pouco tempo sobrava para poderes frequentar a escola, o posto escolar militar, do furriel Veloso. Além disso, tinhas uma família, duas mulheres, dois filhos... Chegavas cansado e esfomeado à tua morança, fora do quartel onde estávamos sediados.

3. E de repente, o capim. O capim alto. O sangue. O capim pisado e empapado de sangue. Pobre Alfa, morto por um dilagrama dos nossos. Alguém branqueou a tua morte no relatório da operação. Alguém salvou a honra da companhia. Alguém safou o teu/meu comandante de uma porrada do Spínola. Um dilagrama rebentou no ar, na tua cara, nas nossas caras. Um dilagrama dos nossos. O teu dilagrama, empunhado pelo nosso "alfero"... 


Não, não sei o que lhe deu, ao "alfero", para à última hora ter decidido tirar-te o dilagrama e ter-te confiado o prisioneiro, que estava à guarda do Mamadu Camará.

Não posso julgá-lo, era um meu superior hierárquico, meu e teu, nosso comandante de pelotão. Mas só sei que vai morrer na cama, ele (e o nosso capitão...), sem qualquer remorso na consciência "por te ter morto", e ter provocado vários feridos graves, quando estávamos em linha no assalto a uma "barraca" dos "turras"... 

"Homicídio involuntário" ? Não, "acidente com arma de fogo", é mais indolor... Muito provavelmente vai morrer em paz e contar aos netos que foi um "herói de guerra"...

"Acidente com arma de fogo" (segundo o relatório elaborado pelo capitão...) no auge da batalha, quando avançávamos em linha, no assalto ao acampamento do IN, levando tu pela corda o teu turra, o teu guia, o teu prisioneiro, que te fora confiado à última hora. Porque o teu posto era o de soldado apontador de dilagrama. E eras o melhor da companhia. O que se passou na cabeça do "alfero" que empunhou indevidamente o teu dilagrama e largou-o no ar quando, inadvertidamente,  saltou a cavilha de segurança ?... Podia ter-nos morto a todos!...

Ainda mais jovem do que tu, o teu "turra" era um jovem mandinga, que apanháramos a norte do Enxalé, tão crente como tu, tão observador dos preceitos corânicos como tu, meu querido "nharro". (Desculpa tratar-te assim, sei que o termo tem hoje uma conotação racista, mas era coloquial entre nós, "tuga" e "nharro" eram usados sem sentido de ofensa...)

Rebentou, de imediato, a fuzilaria quando o dilagrama explodiu nas nossas caras. A nossa secção já não pôde avançar mais. Tu tiveste morte quase instantânea, ainda balbuciaste umas palavras em fula, que eu mal consegui ouvir e muito menos fixar. Quando chegou o 1º cabo auxiliar de enfermagem, para te estancar o sangue e pôr o soro nas veias, já era tarde demais... Um estilhaço varara-te o coração. O "turra" mandinga, esse, ainda sobreviveu e foi depois evacuado de helicóptero com mais alguns feridos nossos...

E agora, Alfa Baldé, que foste poupado à humilhação da "derrota" e não viste o teu país sentar-se de pleno direito à mesa do mundo... Que farias tu com esta independência e com esta bandeira, a da Guiné-Bissau, contra a qual lutaste sem querer, sem saber, sem poder ?

Onde estarão os teus filhos, e as tuas mulheres ? E os teus netos ? E os homens grandes da tua tabanca de Badora ? E os líderes do teu povo que te obrigaram a combater ao lado dos "tugas" ?

Herr Spínola, o homem grande de Bissau, esse já morreu há uns largos anos atrás, ainda no século passado. Há vinte e tal anos.

Não lês os jornais, não chegaste a aprender o alfabeto latino e a juntar as letrinhas e a poder ler o livro da 3ª classe, com a torre de Belém ao fundo: "Esta é a minha pátria amada"…

Pois é, o homem grande de Bissau morreu, não de morte matada, como a tua, ou a do Amílcar Cabral ou a do 'Nino' Vieira, mas de acordo com a lei natural das coisas, com 86 anos. Soubeste, com certeza, da morte do Cabral e do 'Nino'. Ou talvez não.

Quanto ao teu régulo, sei que foi miseravelmente fuzilado na parada de Bambadinca, o poderoso régulo de Badora, tenente de milícias, Mamadu Bonco Sanhá, que havia trocado o cavalo branco da gesta heróica do Futa Djalon, por uma prosaica motorizada japonesa de 50 centímetros cúbicos... 

Não sei se foi oferta do Schulz ou do Spínola (que chegou à tua terra em meados de 1968). Pois o Mamadu Bonco Sanhá, dizia-se, era dono de centenas de cabeças de gado e de um harém, mas era mentira, de cinquenta mulheres, uma em cada aldeia de Badora… Fantasias dos "tugas" que pouco ou nada sabiam da história e da cultura do teu povo.

Também se dizia, mas era mentira, que o puto Demba era filho dele,o Demba e mais outros "djubis" da nossa companhia. O Demba já morreu, também, o puto Demba, não sei se sabias. Era de Taibatá e andou fugido pelo Senegal e por todo o Norte de África até chegar a Portugal. Acabou por morrer cá, na minha terra, no hospital, o terminal da morte.

Hoje os heróis do passado sucumbem sob o peso das cruzes de guerra. Ou pedem esmola nas ruas de Bissau, tal como os teus filhos e netos. Ou morrem de desespero e insolação às portas do templo da deusa Europa, em Ceuta, em Melilha, em Lampedusa...

Que voltas o mundo deu, meu soldado, desde esse dia já distante em que a tecnologia da guerra ou a lotaria do ADN ou a insensatez de um oficial "tuga" te ceifou a vida.

Porquê tu, meu herói, três meses depois de jurares bandeira, em Bissau, na presença do general Spínola, e te comprometeres, por tua honra, a defender uma pátria que, afinal,  não era a tua, até à última gota do teu sangue ?

E do "turra" mandinga não tenho notícias, se é isso que queres saber, mas a princípio duvidava que ele tivesse podido sobreviver, aos graves ferimentos do teu dilagrama, mal manejado pelo "alfero", comandante do nosso pelotão. Mas parece que sim, safou-se pelo menos daquela vez: alguém o viu no hospital, em Bissau, ainda no 4º trimestre de 1969. Foi tratado no hospital como um dos nossos, e o Spínola deve ter mandado libertá-lo, depois de jurar arrependimento e prometer nunca mais pegar numa Kalash ou num RPG 2.

Afinal, a avaliar pela idade dele, mais novo do que tu, devia ter sido arrebanhado pelo Mamadu Indjai, o Terrível.

E agora deixa-me dizer-te, amigo,à laia de despedida: não sei se um dia ainda terei forças para voltar à tua terra, ao teu chão. Já estou a ficar velho demais para poder viajar para esses sítios de África. Mas se porventura o fizer, gostaria de perguntar pela tua aldeia, e de procurar-te e de ter tempo para conversar contigo, só tu e eu, debaixo do teu poilão. Nunca mais lá voltei, à Guiné, à tua terra.  Ando a ver se ainda arranjo uns restos de coragem e de dignidade. Tenho uma dívida para contigo.
 
© Luís Graça (2019).

Última vetrsão: 12/6/2023

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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19683: A galeria dos meus heróis (27): Éramos todos bons rapazes!...(Luís Graça)