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sábado, 14 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14249: Homenagem da Tabanca Grande à nossa decana: a "mindjer grande" faz hoje 100 anos... Clara Schwarz da Silva, mãe do Pepito (1): 100 anos não é apenas uma vida, são muitas vidas, que atravessam dois séculos e muitos lugares do mundo (Luís Graça)







Guiné > s/d > "Durante a  estadia na Guiné [, 1948-1966], Artur [Augusto Silva] viveu feliz tanto em Bissau onde trabalhava como em Varela onde ia em geral passar as férias do Natal. Aqui vão  fotografias desses tempos".

[As fotos são da página do filho do casal, João Schwarz da Silva, que vive em Paris: Des Gens Interessants. Temos a sua amável autorização para utilizar a documentação inserida na sua página sobre pessoas que tiveram vidas "interessantes", basicamente amigos e família, a começar pelos seus pais, Artur Augusto Silva e Clara Schwarz da Silva, nascidos respetivamente em 1912 e 1915]

Fotos (e legendas):  © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG, com a devida vénia]



Portugal > Alcobaça > São Martinho do Porto > Estrada do Facho > Casa do Cruzeiro  > c. 1957 > O pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), com os filhos, da esquerda para a direita, João, Iko [Henrique] e Carlos (1949-2014).

Cortesia de João Schwarz da Silva, que nos diz que a data deve ser "provavelmente 1957"... Teria então o Pepito (, nascido em Bissau, em 1949) os seus oito anitos... Que matulão, para a idade!  Nessa altura, a família vivia em Bissau e vinha passar férias à metrópole, mais concretamente na "Casa do Cruzeiro"...

Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: LG, com a devida vénia]



Da esquerda para a direita, Clara Schwarz, Maria Helena  e Amílcar Cabral, na estrada de regresso de Dakar para Bissau em 1954.

Foto do arquivo pessoal de Clara Schwarz. O seu marido, o escritor e jurista Artur Augusto Silva, é que conviveu mais com Amílcar  Cabral. Clara, que foi professora no Liceu de Bissau, traduziu textos (técnicos, não políticos) de Cabral para francês.  Pepito, o filho mais novo, nasceu em Bissau, em 1949.

 Foi o nosso saudoso amigo Pepito (Bissau, 1949-Lisboa, 2014) quem nos cedeu esta foto, na altura em que aqui publicámos um notável texto seu sobre "Amílca Cabral, um agrónomo antes do seu tempo"...

Amílcar Cabral, casado com Maria Helena, regressou a Bissau, em setembro de 1952, tinha então 28 anos. Em entrevista dada, em Bissau, ao Diário de Lisboa, em 27/5/1980, três anos antes de morrer, Artur confidenciou que "privou bastante" com  Amílcar Cabral.  Ambos eram membros do Centro de Estudos da Guiné. A última vez que o viu,  foi em setembro de 1956, dias antes de fundar o PAI [mais tarde, PAIGC]. Uns meses antes, tinham-se encontrado em Angola e combinado um jantar em Bissau. Amílcar passou à clandestinidade, e o jantar nunca mais se realizou.

Foto; © Carlos Schwarz (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: LG, com a devida vénia].


 Guiné > Bissau > 1953 > Vista aérea da cidade, tirada na direcção sul-norte. Ao centro, a avenida principal, a Av República (hoje Av Amílcar Cabral) onde já se erguia, à direita, a sé catedral (arquiteto João Simões / Gabinete de Urbanização Colonial, 1945).  Ao fundo da avenida, do lado esquerdo já se erguia o cinema UDIB, o melhor edifício da cidade (arquiteto Jorge Chaves, 1949-52), de iniciativa privada. Em Bissau, com cerca de 5 mil habitantes, era lá que se reunia a elite local...

Ao fundo, à direita, o bairro de Santa Luzia  (1948), com uma estrutura reticulada: foi a primeira experiência de alojamento para populações nativas. Em primeiro plano o cais do Pidjiguiti, e parte da zona portuária ainda em obras...

Quando Artur e Clara chegaram a Bissau, no final dos anos 40, a cidade estava em plena fase de densolvimento, graças ao dinamismo e *a visão do governador Sarmento Rodrigues. Vários edifícios públicos estavam a construir-se,  havia ruas por asfaltar, espaços para ajardinar e alindar...


Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: LG, com a devida vénia]


1. Mensagem do nosso editor LG:

Camaradas, amigos/as: hoje, sábado, 14, a nossa amiga Clara Schwarz faz 100 anos. Nasceu em Lisboa em 1915. De origem judia (pai polaco e mãe russa), casou com o escritor e advogado Artur Augusto Silva (, nascido na Ilha da Brava, Cabo Verde, em 1912).  Teve 3 filhos, o mais novo dos quais o nosso saudoso Pepito (1949-2014). Clara viveu na Guiné em dois períodos: 1949-1966 e depois da independência, até ao ano da morte do marido, em 1983.

Licenciou-se em letras pela Universidade de Lisboa e frequentou o Conservatório Nacional de Música (onde tirou o curso de violino). Foi professora no liceu Honório Barreto, em Bissau. Tem gente, no nosso blogue, que foram seus alunos: estou-me a lembrar do António Estácio, do Manuel Amante da Rosa... (Ambos escreveram um pequeno depoimento para esta ocasião, que publicaremos a seguir.) Foi amiga ou pelo menos privou com o casal Cabral, Helena e Amílcar. No início dos anos 50, fez inclusive traduções, para francês, de trabalhos técnicos do engº agrº Amílcar Cabral.

O  pai de Artur Augusto Silva  havia falecido 1925 em Lisboa,  onde se encontrava para tratamentos. Deixava a esposa de 50 anos de idade e dois filhos ainda menores, João e Artur, que foram viver para casa da irmã Cristina, em Lisboa. Esta irmã mais velha (n. 1904)  tinha casado com o médico Augusto Pereira Brandão que na altura trabalhava em Farim, na Guiné.



S/d > S/d/ > "Da esquerda para a direita,  Cristina (nasceu em 1904), Artur (nasceu em 1912), Henrique e Margarida (os pais) e João (nasceu em 1910)."

Foto (e legenda):  © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG, com a devida vénia]

Por sua vez, já aqui falámos do seu irmão, e tio do Pepito, o João Augusto Silva. Sobre ele escreveu Mário Beja  Santos:

(...) João Augusto Silva (1910-1990) foi funcionário da Administração Colonial na Guiné, em Angola e Moçambique. Desenhador, naturalista, decorador e escritor, foi galardoado em 1936 com o Prémio de Literatura Colonial da Agência Geral das Colónias. Foi também caçador, tendo abandonado a espingarda em troca da máquina fotográfica, com a qual se dedicou a capturar imagens de uma
das suas paixões: os animais. Nasceu em Cabo Verde, passou parte da infância na Guiné, terra a que regressará entre 1928 e 1936. As suas obras maiores são: “África: Da Vida e Amor da Selva” e “Animais Selvagens: Contribuição para o Estudo da Fauna de Moçambique”. Administrador do Parque da Gorongosa, será mais tarde Curador do Jardim Zoológico de Lisboa. Sobre a Gorongosa deixou um livro da maior importância “Gorongosa: Experiências de um Caçador de Imagens”. Foi recentemente homenageado pela Sociedade de Geografia de Lisboa. Foi irmão de Artur Augusto Silva, um investigador e poeta luso-guineense, aqui já várias vezes auferido, e tio do nosso confrade Pepito." (...)




Belíssima xilogravura de João Augusto Silva, publicada na revista "Momento", de fevereiro de 1936.


Foto (e legenda):  © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG, com a devida vénia]


Desiludido com a vida do pós-guerra em Portugal, Artur decide partir, em finais de 1948, para a Guiné. Chega ao território em 6/11/1948. A família (Clara, João e Henrique) ir-se-á juntar-lhe no ano seguinte. Carlos ("Pepito") nasce em 1949.

Artur, até 1966, exerce naquele território a sua profissão de advogado, mas também fez de notário e até substituto do Delegado do Procurador da República. [Sobre Artur Augusto Silva temos duas dezenas e meia e meia de referências no blogue]

Escreve o seu filho João: "Em 1948, partiu para a Guiné (Bissau) para ali continuar a advocacia, com um sentimento pesado de frustração pela derrota politica, deixando para trás o Movimento de Unidade Democrática [MUD,] , desfeito, Leiria e Alcobaça, a mulher e dois filhos que em 1949 se juntaram a ele". (...). Depois da guerra, em 1945, o dr. Artur Augusto, como era conhecido, tinham esperanças na mudança democrática e pacífica do regime de Salazar.  Em 1947, o MUD foi ilegalizado e o o seu nome continuou debaixo do olho da política política... até ao 25 de abril.

Na Guiné, "foi um dos fundadores do Colégio Liceu de Bissau (Liceu Honório Barreto) que no inicio a partir de 1949 ocupava umas salas do Museu da Guiné que tinha sido criado em 1947 num edifício junto do Palácio do Governador". Em julho de 1952 era  governador Raimundo Serrão... "De 1949 a 1956, o liceu ocupou algumas salas do Museu. Só a partir do inicio do ano lectivo 1956 é que o Instituto Liceal Honório Barreto passou a poder contar com instalações próprias." 

Foi também membro do Centro de Estudos da Guiné. Licenciado em Direito, Artur havia estado, de 1939 a 1941, em Angola, como secretário particular do Governador Geral, dr. Manuel Marques Mano; de regresso a Portugal exerceu advocacia em Lisboa, Alcobaça e Porto de Mós. O casal viveu em Alcobaça e tinha casa de praia em São Martinho do Porto. Diz o filho João: "Depois de se casar, Artur Augusto exerceu a advocacia em Lisboa, mas a convite de Luciano Santos, um amigo pintor, decidiu mudar-se para Alcobaça onde havia falta de advogados".


Lisboa > s/d > c. 1930/40 > Artur Augusto Silva, numa festa,  com a Clara (à direita) e uma amiga.



Lisboa > 1935  > "Foi como director da revista Momento que Artur Augusto acompanhou o funeral de Fernando Pessoa em 1935, Possivelmente a única fotografia tirada nessa altura, mostra Artur à direita da fotografia ligeiramente encoberto por outro participante"

Fotos (e legendas):  © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG, com a devida vénia]

Ainda como estudante (, passou pelo Liceu Camões, foi colega de faculdade de Álvaro Cunhal), e depois como recém-licencidado, Artur  Augusto participou intensamente da vida cultural e literária de Lisboa dos anos 30. Foi director da revista "Momento" e, nessa qualidade, acompanhou o funeral de Fernando Pessoa,  em 1935.

"Publicou vários livros, fez reportagens, dirigiu saraus literários, organizou exposições de arte moderna, promoveu conferências culturais na Casa da Imprensa, na Sociedade Nacional de Belas Artes e em vários outros locais de Portugal nomeadamente no Grémio Alentejano e no Porto", escreve o seu filho João Schwarz da Silva, que vive em Paris, numa sentida e bela homenagem que faz ao seu pai, na sua página "Des Gens Intéressants" [, Pessoas Interessantews].

Em 1953, morre o pai de Clara, Samuel Schwarz (, nascido em Zgierz, Polónia, Rússia, em 1880). Havia-se formado, em 1904, aos 24 anos, como engenheiro civil de minas, na École National Supérieure de Mines de Paris.




Bilhete de identidade de cidadão português de Samuel Schwarz, emitido em 25 de janeiro de 1941.



Autorização de residência, emitida em 19/2/11927, para a mãe de Clara, Agata Schwarz


Fotos (e legendas):  © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG, com a devida vénia]


Samuel trabalhou em diversos países na indústria petrolífera (Baku, Cáucaso Russo) e na indústria mineira (Polónia, Inglaterra, Espanha, Itália e, por fim, Portugal). Em 1914, casa em Odessa com  Agatha Barbash,  filha de um banqueiro. (Nascida em 1884, em Tulczyn, Ucrânia, virá a morrer em 1950, em Lisboa)

Na altura em que eclodiu a I Guerra Mundial, em  1914, com 34 anos de idade, Samuel estava em viagem de núpcias em Portugal. Decidiu cá ficar. Começa a trabalhar em 1915 numa mina de volfrâmio, em Vilar Formoso, e noutra de estanho, em Belomonte, Na época vivia em Lisboa. Em 14 de fevereiro de 1915 nasce a sua filha, Clara.

Os cristãos-novos em Portugal no século XX
Autor: Samuel Schwarz
Editora: Livros Cotovia
Local: Lisboa
Colecção: Judaica
Ano de Edição: 2010
N.º de Páginas: 200
ISBN: 978-972-795-309-7

Sobre a vida fascinante deste homem Samuel Schwarz (1880-1953), vd. aqui o artigo escrito pelo seu neto João Schwarz da Silva:  judeu asquenaze,  era fluente em nove línguas,incluindo o hebreu. Foi um conceituado estudioso do judaísmo em Portugal, arqueólogo, historiador, autor da descoberta e da revelação pública, em 1925, da comunidade cripto-judaica de Belmonte, e .  bem como da antiga sinagoga de Tomar que comprou e efereceu ao Estado Português. Em 2010,  os Livros Cotiva reeditaram, em livro, o seu trabalho, de 1925, sobre os cristãos-.novos da Beira Baixa e, em especial,  de Belmonte, os rituais do Babatm do Kiopur e da Páscoa, orações ditas em português arcaico misturadas com palavras hebraicas, e que foram transmidas, sempre pelas mulheres, ao longo de quatro séculos e meio, pro sucessivas gerações.

Fotografia e assinatura no passporte do marido, emitido em
23 de agosto de 1946. Cortesia de João Schwarz da Silva 
Clara Schwarz da Silva é  nossa grã-tabanqueira desde 2010... Entrou para a Tabanca Grande, mais precisamente,  em, 14 de fevereiro de 2010, aos 95 anos.  Passou então a ser a Mulher Grande da nossa Tabanca Grande, com o nº de entrada 397. Hoje temos mais de 675 membros. É a nossa decana, e também a "mulher grande" da Tabanca de São Martinho do Porto (que se reuniu todos os todos os anos em agosto, quando o Pepito vinha de férias, de 2008 a 2012). Alguns de nós têm o privilégio de a conhecer e de ter privado com ela e a sua família, na famosa "casa do Cruzeiro", em São Martinho do Porto.

Foi sempre um mulher independente e cosmopolita. Até há bem pouco tempo era muito autónoma, usando com desenvoltura o telefone, o skype, o mail, a internet, e visitando o nosso  blogue… Ainda ontem telefonou à Maria Alice Carneiro, mamtendo com ela uma conversa perfeitamente normnal... Conduziu até tarde, com mais de 90 anos. Tem uma memória prodigiosa, é culta, é poliglota, e tem um grande  orgulho de seu pai, engenheiro de minas, de origem polaca,

Se outras não fossem válidas, bastaria invocar aqui o seu papel como co-fundadora, juntamenete com o marido e outros,  do Liceu Honório Barreto, hoje Liceu Nacional Kwame N' Krumah. Mais: foi professora de francês (e creio que também de português) de inúmeros guineenses, incluindo  dirigentes do PAIGC... (É capaz ainda de os citar de cor, e avaliar um a um!)...

Fala, sempre e ainda hoje, com muita ternura do seu marido, Artur, como um homem que "conhecia e amava a África" como poucos... Recordo-me de ela ter.me oferecido com dedicatória um pequena brochura dele, "Pequena Viagem Através de África"... Foi uma conferência que ele pronunciou na Associação Comercial da Guiné, em 1963, no 46.º aniversário da sua fundação. É uma admirável lição de sapiência e de sabedoria.

Três anos depois, em 1966, a PIDE prendia-o no aeroporto de Lisboa. O seu único crime era o de ser defensor de presos políticos... Libertado graças à intervenção pessoal, ao que se soube,  de Marcelo Caetano, seu professor de direito, após quatro ou cinco meses de Caxias, sem culpa formada, seria impedido de voltar à sua querida Guiné, agora a ferro e fogo... Sabe-se que o governador Schulz considerou-o "persona non grata" no território.




"Foi preso no aeroporto de Lisboa à chegada de Bissau [, em 26 de agosto de 1966,]  já em plena luta de libertação da Guiné, e foi detido na prisão de Caxias durante 4 meses sem julgamento. Foi libertado a 23 de Dezembro de 1966, por influência de alguns amigos que lhe conheciam e admiravam o carácter, mas foi-lhe fixada residência na capital . Escassos dias antes da libertação de Artur da prisão de Caxias, o Governador da Guiné (Arnaldo Schulz) mostra-se preocupado com a sua eventual libertação. [Sua Excelência o Governador é de opinião que aquele senhor não deve voltar à Guiné, pelo menos enquanto se mantiver o terrorismo".]

Foto (e legenda):  © João Schwarz da Silva  (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG, com a devida vénia]


Clara falou-me uma vez deste episódio triste e do cinismo do governador, Schulz, que era visita da casa dos Silva, em Bissau, e que inclusive acompanhou o Artur, até ao aeroporto, nessa triste viagem sem regresso... Só depois da independência é que Artur (e a Clara) voltaria, a convite de Luís Cabral, para desempenhar o lugar de juiz do Supremo Tribunal de Justiça... E lá morreria, em Bissau, em 1983. Era especialista em direito consuetudinário. Publicou livros sobre os usos e costumes jurídicos dos felupes, mandingas e fulas.

É também com a mesma frontalidade e coragem que a Clara vem protestar, em 2005, junto do Presidente da Câmara de Belmonte pela imperdoável omissão do nome do seu pai, Samuel, no recém-inaugurado Museu Judaico de Belmonte. Embora tarde, a injustiça foi reparada em 2007.

(...) "S. Schwarz está na origem da descoberta dos cristãos novos de Belmonte. Graças à sua enorme sabedoria ele revelou os ritos e costumes destes cristãos novos, em numerosos livros dos quais o principal, publicado em 1925, 'Os cristãos novos em Portugal no Século XX' , livros esses que são uma referência incontestável tanto para historiadores portugueses como estrangeiros." (...)

Hoje, sábado, 14 de fevereiro de 2015, os filhos, netos e bisnetos vão fazer-lhe uma festinha íntima. Ela fez questão de dizer "não queria nada", porque ainda não ultrapassou a profunda dor causada pela morte, inesperada, do seu querido Carlos... E não era seguramente esta a festa dos 100 anos que a gente tinha imaginado para ela...

À distância (, ela mora em Paço de Arcos, Oeiras), e respeitando a sua intimidade, queremos apenas levar-lhe uma palavra de afeto, apreço, conforto, amizade e homenagem... 100 anos não é apenas uma vida, são muitas vidas, que atravessam dois séculos e muitos lugares do mundo... Mais de metade da sua família, da Europa de leste, desapareceu com a II Guerra Mundial. E ela conheceu uma boa parte dela quando visitou a Polónia em 1938 (*)...

Clara Schwarz é uma mãe coragem. E um exemplo de vida, inspirador, para todos nós. Alguns/algumas de nós fizeram questão de  escrever duas linhas sobre esta mulher e nossa amiga, que sempre manifestou um grande interesse e carinho pelo nosso blogue. São esses testemunhos que publicamos a seguir, a par deste pequena resenha biográfica, que só possível graças à amável e afetuosa cumplicidade do João (que veio ontem de Paris se juntar à festa de família). Também sei que, pelo menos os filhos do Pepito, Ivan e Catarina, vai estar hoje a cantar os parabéns à avó, a "mindjer grande" que nos orgulha a todos/as. (**)

O editor Luís Graça (em nome pessoal e da Tabanca Grande)
____________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4863: Agenda cultural (24): A História de Cristina, por Mikael Levin, no CCB, de 31/8 a 8/11 (Carlos Schwarz, 'Pepito' / Luís Graça)

(**) Vd. poste anterior de 14 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14248: Parabéns a você (860): Senhora Dona Clara Schwarz, Amiga Centenária, Grã-Tabanqueira

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9232: O meu Natal no mato (36): Conversas com um homem de Deus (Artur Augusto Silva, Quebo, 1962)


Guiné-Bissau > Bissau > Capa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos. (Bissau, 2006; edição de autor).



1. Há seis anos atrás, em finais de 2005, o Pepito (nickname do Eng Agr Carlos Schwarz da Silva, que vive e trabalha em Bissau desde 1975, sendo um dos fundadores da AD - Acção para o Desenvolvimento, hoje com 20 anos de existência) entrou  para a nossa "tertúlia" (agora conhecida como "Tabanca Grande", a comunidade virtual dos "camaradas e amigos da Guiné"). Vim a conhecê-lo pessoalmente em Lisboa,  em fevereiro de 2006. Mas antes disso, em meados de dezembro de 2005, ele tivera a gentileza de me enviar um conto, inédito, da autoria do seu pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), a que chamou "um conto de Natal", acompanhado da seguinte mensagem:


Caro Luís,

Envio-te um conto de Natal, escrito por meu pai, Artur Augusto Silva que nasceu na Ilha da Brava, em Cabo Verde, e que foi advogado na Guiné-Bissau desde 1948, tendo defendido os presos políticos do PAIGC, em 61 julgamentos, um dos quais com 23 réus tendo tido apenas duas condenações.



Em 1966, a mando do governador Arnaldo Schulz, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, quando vinha de férias tendo ficado cinco meses na prisão de Caxias. Quando foi libertado, proibiram-no de regressar à Guiné e fixaram-lhe residência em Lisboa.

Em 1976, quando me veio visitar a Bissau, o então Presidente Luís Cabral convidou-o a trabalhar como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo também leccionado Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau desde que ela foi criada e até a 1983, quando faleceu.

Trata-se de um conto de que gosto muito (nós, os 3 filhos, pensamos editar em Fevereiro de 2006 um livro com os contos dele) e por isso te envio como postal de Feliz Natal.

abraços

pepito



2.  Publicámos este conto, escrito em 1962, na I Série do nosso blogue, em poste de 16 de Dezembro de 2005 (*), ainda antes portanto de sair, em fevereiro de 2006, o livro O Cativeiro dos Bichos (onde vem inserido o conto de Natal), em edição dos três filhos do autor (Henrique, João e Carlos Schwarz). Porque grande parte dos atuais leitores do nosso blogue não o conhece, voltamos a publicá-lo, agora na II Série, e com pequenas revisões.  Na antologia de contos de Artur Augusto Silva (ao todo, 25), este ficou com o título, possivelmente original, "Noite luarenta de Dezembro"...


Recorde-se, por outro lado, que o autor, jurista de formação, era também especialista em direito consuetudinário, tendo publicado vários livros sobre os "costumes e usos jurídicos" dos fulas (1958), dos felupes (1960) e dos mandingas (1969).  A amizade com o Cherno Rachide e a sua família já vi vinha de muito longe, e tem sido mantida e cultivada pelo Pepito (que é amigo do actual Califa de Quebo-Forreá, o Cherno Aliu Djaló).


3. Noite luarenta de Dezembro (**)
por Artur Augusto Silva [, foto à direita]


Na povoação de Quebo, perdida no sertão da terra dos Fulas, o tubabo conversa com seu velho amigo, Tcherno Rachid, enquanto as pessoas graves da morança, sentadas em volta, ouvem as sábias palavras do Homem de Deus.

Esse Homem de Deus é um Fula, nascido na região, mas cujos antepassados remotos vieram, há talvez três mil anos, das margens do Nilo.


Mestre da Lei Corânica e filósofo, Tcherno Rachid ligou-se de amizade profunda com o tubabo - o branco - vai para quinze anos, quando este chegou à sua povoação e se lhe dirigiu em fula.


O tubabo é também um filósofo que veio procurar em África aquela paz de consciência que o mundo europeu lhe não podia dar. Fora, noutros tempos, um crítico de Arte e um poeta, um paladino das ideias novas, e porque proclamara em concorrida assembleia de jovens que um automóvel lançado a cem quilómetros à hora era mais belo do que a Victória de Samotrácia, firmara seus créditos de «pensador profundo».


Se alguém perguntasse ao branco porque razão se encontrava ali, no coração de África, naquela noite de Natal, talvez obtivesse como resposta um simples encolher de ombros ou, talvez, ouvisse que o seu espírito necessitava daquelas palavras simples que consolam a alma dos justos e acendem uma luz no peito dos homens.

Tcherno Rachid acabara, nesse momento, de repetir as palavras do Profeta: «Nenhum homem é superior a outro senão pela sua piedade».
- Irmão - retorquiu o tubabo - então o crente não é superior ao infiel?
- São ambos filhos de Deus - respondeu o Tcherno - e aos homens não compete julgar a obra do seu Criador.
Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio. Só quem ama os que pensam diversamente, venera Deus, que é pai comum de todos. Assim como tu podes adorar Deus em diversas línguas, assim podes entrar numa igreja, numa mesquita, ou numa sinagoga. Quando vais pelo mato e admiras o grande porte de uma árvore, as penas vistosas de um pássaro, a força do elefante ou a destreza da gazela, tu murmuras uma oração que agrada a Deus, Criador de tudo o que existe, mais do que agradam as orações que só os lábios pronunciam e o coração não sente.
- Irmão Tcherno, e aquele que não acredita em Deus, esse merece a tua estima ?


Rachid semi-cerrou os olhos, alongou a mão descarnada para a lua cheia, então nascente, e disse:
- Ouvirás a muitos que esse não merece o olhar dos homens. Mas eu penso que o descrente merece mais o nosso amor do que o crente. É um companheiro de caminho que se perdeu. Devemos procurá-lo, ajudá-lo, e até levá-lo para nossa casa, a fim de repousar. É um filho de Deus como tu, como eu … como todos nós.
A lua, antes de ter em si tanta luz como a que tem hoje, esteve sete dias obscura, sem ser vista de ninguém, se não de Deus. Ouve, irmão: quem julga que não crê em Deus, é porque acredita em si próprio e, crendo em si, já crê em Deus, porque o homem foi iluminado com o sopro Divino e é, assim, uma sua imagem.

A lua ia subindo nos céus, lenta, majestosa, iluminando a povoação e a floresta, os rios e os mares… Os homens graves, de autoridade e conselho, aprovavam as palavras do Tcherno, e o branco, oprimido pela ideia de que lá longe, a muitos milhares de quilómetros, reunidos em volta de uma mesa de consoada, seus avós, pais e irmãos, celebravam uma festa antiquíssima e lembravam, por certo, o «filho pródigo», deixou nascer uma lágrima que se avolumou e correu pela face tisnada pelo ardente sol dos trópicos.

[Artur Augusto Silva, 1962]


In: SILVA, Artur Augusto - O cativeiro dos bichos. Bissau: 2006. pp. 187-189. [
Ed. lit Henrique Schwarz, João Schwarz e Carlos Schwarz; prefácio de Henrique Schwarz; impressão e acabamento, Novagráfica, Bissau, Fevereiro de 2006]
__________


Notas do editor:


(*) Vd. I Série > 16 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

(**) Ultimo poste da série > 16 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9214: O meu Natal no mato (35): Um Santa Claus na forma de um barquinho (José da Câmara)

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9691: Notas de leitura (347): Arte Nalú, por Artur Augusto da Siva (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 23 de Fevereiro de 2012:

Queridos amigos,
O pretexto foi uma brochura sobre a arte Nalú, a autoria é de Artur Augusto da Silva. A escultura dos Nalús e dos Bijagós é disputada pelos grande colecionadores de arte africana, consideram-na como uma das mais criativas e originais formulações da encarnação dos deuses nos homens, animais e coisas. É uma escultura que pode ombrear com o sonho dos artistas plásticos inspirados pelo cubismo e abstracionismo, a partir dos anos 10 do século XX, simultaneamente austera e rude, luxuriante e barroca, talhada para se ver a madeira sem enfeites ou fácil de policromar, ao gosto do artesão.
Falando por mim, tenho lá à entrada de casa um Ninte-camalchole, peço-lhe sempre que me afaste dos maus espíritos.

Um abraço do
Mário


Arte Nalú, uma lembrança de Artur Augusto da Silva

Beja Santos Artur

Augusto da Silva dispensa apresentações, é um luso-guineense dos quatro costados e com uma larguíssima intervenção cultural. Aquando da 6.ª Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, que se realizou em Bissau, o estudioso Artur Augusto da Silva apresentou um trabalho sobre a arte Nalú cujo preâmbulo é de irresistível transcrição:

“Costumam aqueles que se dedicam ao estudo e interpretação dos fenómenos artísticos e mais designadamente aqueles que estudam as chamadas artes plásticas prender-se unicamente ao aspeto estático da Arte, isto é: aos conteúdos estético e técnico das obras, negligenciando ou esquecendo totalmente que qualquer obra de arte é, sempre, fruto daquilo que preenche a vida espiritual do seu criador e que essa vida espiritual é condicionada, em primeiro lugar, pelas condições económicas do artista e da sua época. 

Assim, à análise estática da Arte, preferimos sempre o estudo dinâmico dela, isto é: a apreciação do seu conteúdo ou, como modernamente se diz, da sua mensagem. No estudo da arte Nalú procuramos surpreender as suas determinantes, as relações da sua arte com a necessidade de exprimir as preocupações dominantes do agregado social e ainda demonstrar que o meio ambiente condicionou o modo de vida, a sua organização económica e, como resultado desta organização, todas as superestruturas daí derivadas”.

Como é por todos sabido, a escultura é a manifestação artística em que se distinguem os Bijagós e os Nalús, são indiscutivelmente os artistas mais originais, pegam na figura humana ou animal ou em diferentes objetos e reproduzem-nos com uma criatividade sem rival. São igualmente dotados para o fabrico de instrumentos musicais e panos bordados, por exemplo, mas aqui já são domínios que encontram forte concorrência, pois os Mandingas e os Fulas intervêm com muito esmero no fabrico dos instrumentos musicais e a panaria Manjaca, na simplicidade geométrica do bordado, continua a fascinar pelo talento imaginativo.

Ao tempo desta comunicação, os Nalús mantinham-se praticamente insensíveis à catequese islâmica, viviam tranquilamente o animismo, eram as florestas do Sul que enquadravam a sua visão do mundo e o seu fascínio religioso, o seu panteão espelhava o que ele via na floresta, daí a imagem sagrada de certas árvores, o seu gosto apurado em reproduzi-las e o prazer estético que encontram no papel das máscaras e das aves, por exemplo.

Voltemos aos argumentos de Artur Augusto da Silva na referida comunicação. Apresenta os Nalús referindo que eram pouco mais de 3 mil de acordo com o senso populacional de 1950. São tipicamente continentais, terão sido empurrados para a orla conjuntamente com os Bagas, pelos Sossos vindos do Futa Djalon, sob a pressão dos Fulas. Habitam regiões da circunscrição de Catió, em Cacine, Bedanda e Cubisseco, na região de Fulacunda. Os Nalús não possuíam escrita mas dominavam a literatura oral (contos, poesias éticas, provérbios, canções que se transmitiam de geração em geração). O verosímil e o inverosímil andam de mãos dadas nessa literatura, que é também dado assente para a sua escultura, são prolongamentos da mesma realidade. Posicionados como um dos povos mais atrasados de África, dentro da sua conceção animista, é possível ver as suas esculturas com um significado misto de religioso e de entretenimento, o melhor exemplo poderá ser o da máscara que representa um chefe que será recordado e homenageado pelo artista, é a máscara que conserva essa energia, essas máscaras representam seres humanos que também podem ter sido mortos por cobras e é importante saber que a serpente é em toda a zoolatria Nalú o animal de maior prestígio, detém todos os poderes sobrenaturais.

A seguir Artur Augusto da Silva discreteia sobre a importância da figura totémica e o cruzamento que se pode encontrar com as diversas espécies zoológicas tão caras ao Nalú: o homem, a ave, a serpente, o crocodilo e o peixe. Estas são as máscaras que também servem para danças e folguedos. Um elevado número de objetos da escultura Nalú aparece associado ao rito da circuncisão, caso dos tambores que podem ser tocados nas festas do fanado e nos choros, o Ninte-camalchole, um pássaro apaziguador e que afasta os nossos espíritos e que é também um protetor daqueles que foram circuncisados. Todas estas esculturas são moradas para as forças que animam o mundo sobrenatural do Nalú.

Artur Augusto Silva conclui dizendo que esta escultura nasceu da necessidade de representar as forças a que nós chamamos religiosas e que esta arte muito provavelmente entrará em extinção caso os Nalús entrem na órbita do islamismo.

Como é também sabido, os Nalús, mais de 50 anos depois da comunicação de Artur Augusto Silva, continuam a ter pouca expressão populacional mas mantêm um domínio artístico que merece a reprodução dos artesãos das outras etnias. É admirável como 50 anos depois estes artesãos, sem quaisquer complexos, mesmo aqueles que praticam convictamente o islamismo, reproduzem as esculturas funerárias, as máscaras polícromas, as deusas da fecundidade e o Ninte-camalchote continua a ser a figura escultórica mais procurada e mais disputada pelos colecionadores. Eu próprio não resisti, quando estive na Guiné em Novembro de 2010 a encomendar uma ave que pudesse ser transportada num saco de mão. Gostei tanto dela que a propus ao Círculo de Leitores como o elemento gráfico da capa do meu livro Mulher Grande, sugestão que foi aceite, para minha satisfação.

Este trabalho de Artur Augusto da Silva é acompanhado de ilustrações dentro as quais reproduzimos um espantoso Ninte-camalchote de que conheci uma réplica de grande beleza no então Museu da Guiné Portuguesa e que desapareceu nos saques do conflito político-militar 1998-1999.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9679: Notas de leitura (346): A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné, Gandembel/Ponte Balana, de Idálio Reis (Mário Beja Santos)

domingo, 21 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18236: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) -Parte XI: Mulheres e bajudas (3): homenagem à felupe (poema de Artur Augusto Silva)


Foto nº 376 > Mulher e ronco felupes, São Domingos, 1969.


Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69).

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69), e que vive atualmente em  Vila do Conde [, foto atual à esquerda].



Comentário do nosso editor LG (*):

Virgílio, falta explicar, aos nossos leitores, porque é que vocês chamavam, à "ilha dos felupes", em frente a S. Domingos, a "ilha maldita"...

Como te expliquei a Isabel Levy Ribeiro é mãe das nossas grã-tabanqueiras Cristina e Catarina Schwarz da Silva, filhas do nosso saudoso Pepito (1949-2014) e netas da nossa insigne senhora don Clara Schwarz (1915-2014), professor do Liceu de Bissau, desde a origem até 1966,  e do escritor e advogado Artur Augusto Silva (1912-1983). A família Schwarz da Silva tinha casa de praia em Varela e mantinha uma "relação especial" com o chão felupe... 

O Artur Augusto Silva tem um belíssimo poema sobre a mulher que vou reproduzir  a seguir... Segue este link para saberes mais

Nas muitas conversas que tive com o Pepito, ao vivo e por email, entre 2006 (quando o conheci) e o mês e ano  da sua morte (em 18/2/2014), verifiquei que ele tinha, tal como o pai uma enorme admiração pelos felupes, o seu "chão" e  a sua cultura. O pai era autor dum livro, etnográfico, sobre os felupes: Usos e costumes jurídicos dos felupes da Guiné / Artur Augusto da Silva.

Para o Pepito, os felupes eram  a melhor etnia da Guiné, os mais puros, os mais autênticos, os mais valentes, os mais leais... E é bom lembrar que foram, historicamente,  as grandes vítimas do esclavagismo. Povo ribeirinho,  era caçado pelos temíveis mandingas e vendidos aos negreiros europeus... O memorial da escravatura, no Cacheu, muito deve ao Pepito, que infelizmente já nºao viveu o suficente para assistir à sua inauguração, em 2016.

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Ela

(Poesia à maneira felupe)

por Artur Augusto da Silva


Tu que tens o andar gracioso das gazelas
e a quem nenhuma companheira se iguala,
tu que tens a força do touro branco
e a elasticidade da onça:
tu que crescestes como o arroz  em ano de chuva
e és uma espiga alta e farta,
quando entras no terreiro para dançar
pareces uma estrela brilhante em noite de nuvens.

Tu és a que tem as ancas largas
e os seios grandes e firmados
e com quem todos os homens querem casar.

A tua pele é luzidia
como a lama das bolanhas depois das lavras,
e o teu sorriso é igual ao primeiro arroz que germina
e os teus dentes são brancos...

Não preciso  de dizer o teu nome
porque todos sabem quem tu és.


In: Artur Augusto da Silva - E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu poemas. Bissau: Instituto Camões, Centro Cultural Português, 1997, p. 27.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15747: Manuscrito(s) (Luís Graça) (77): "Nesta terra querida, / Tive mundo, e tive amor, / Não me posso queixar da vida, / Tive tudo, e também dor"... Viva a nossa decana, a dona Clara Schwarz da Silva


Algures na Polónia, antes da II Guerra Mundial, c. 1938... Julgo que tenha sido o último encontro da
família Schwarz... Do lado esquerdo,  Clara, o pai Samuel e a mãe Agata... Clara deveria ter cerca de 23 anos... Depois desta data, o mundo não haveria de ser mais o mesmo...  Clara Schwarz atravessou todo o século XX, e chegou até hoje,  ao dia de hoje,  com uma memória prodigiosa... Acabei de falar com ela esta manhã, pelo telefone,  e desejar-lhe os nossos melhores votos de saúde, em nome de toda a Tabanca Grande!...



Lisboa, c. 1920 > Clara, com os pais, Samuel e Ágata





Samuel Schwarz (1880-1953)... Bilhete de cidadão nacional... 25/1/1941 > Assinatura




Requerimento de Samuel Schwarz dirigido ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros  [António de Oliveira Salazar], com data de 16 de novembro de 1939.  O pedido de visto para o cidadão polaco Aleksander Schwarz, irmão de Samuel,  foi indeferido. Ver despacho a vermelho, no canto superior esquerdo, que diz o seguinte: "Não. Ver ofício da da Polícia de Vigilância e Defesa de Estado, nº 16080, de 7-12-39" (Assinatura ilegível). 



Aleksander (Oles) Schwarz, sua esposa Sonia, os seus dois filhos Violusia e Georges com Clara  Schwarz, aquando da sua estadia  em Lisboa, em 1940.  O engº químico Aleksander Schwarz , diretor de uma conhecida fábrica de produtos químicos, tinha conseguido refugiar-se na Suécia, passando pela Lituânia.


Em 1939 Samuel Schwarz naturalizou-se português. E em novembro desse ano  pediu a Salazar un visto para o seu irmão Aleksander que tinha conseguido fugir, depois de ter sido feito prisioneiro pelos soviéticos, refugiando-se em Estocolmo, Suécia. Esse visto foi recusado, face a uma informação da Polícia de Vigilância e Defesa de Estado (PVDE), antecessora da PIDE/DGS, o que não impediu Aleksander e sua  família de chegar a Portugal em maio de 1940, na vaga de refugiados a quem Aristides de Sousa Mendes, o cônsul português de Bordéus, concedeu um visto, contrariando ordens de Salazar.

Durante a II Guerra Mundial, Samuel Schwarz foi incansável na ajuda solidária ao gueto de Varsóvia, enviando nomeadamente géneros alimentícios (café, sardinhas, etc.).


Fotos acima: Cortesia de João Schwarz da Silva  > Des gents intéressants > Samuel Schwarz 



Clara Schwarz, c. anos 40 do séc. XX >  Pintura de Luciao Santos (com ateliê em Alcobaça). Clara casou em 14 de outubro de 1940 com o advogado Artur Augusto Silva. O casl foi viver em Alcobaça-

Cortesia de João Schwarz da Silva  > Des gents intéressants > Artur Augusto da Silva



Clara Schwarz da Silva, aos 31 anos, 1946... Fotografia no passaporte do marido, Artur Augusto da Silva.

Fotos acima: Cortesia de João Schwarz da Silva  > Des gents intéressants > Artur Augusto da Silva



Em Martinho d Porto, os avós Ágata e Samuel com os netos, por volta dos  finais dos anos 40, Henrique à esquerda,  João à direita.... Carlos (Pepito), o mais novo, nasceria, em 1949, em Bissau, para onde o pai foi em 1948, e a quem se juntaria depois a famílía.  Samuel viria a falecer em 1953. Em Lisboa a família vivia na  Av António Augusto de Aguiar, 118-1º.

Foto: Cortesia de João Schwarz da Silva  > Des gents intéressants > Samuel Schwarz 



Mapa (francês) da Guiné, de 1760


Foto: Cortesia de João Schwarz da Silva  > Des gents intéressants > Artur Augusto da Silva



1. Mandei, em meu nome e da minha fmília, uns versinhos de parabéns à dona Clara que faz hoje 101 anos:

Uma "gracinha" do Luís Graça para a nossa amiga, 
muito querida, 
Clara Schwarz da Silva,
neste dia muito especial em que celebra 101 aninhos!

Já não são anos, são aninos!...
Dona Clara, nossa "mindjer grandi",
temos muito orgulho e ternura por si,
e estamos muito honrados por ser 
e continuar a ser por muitos anos
a decana da nossa Tabanca Grande!... 

Um xicoração muito fofo do Luís Graça, da Alice, da Joana e do João (em viagem).


Fazer anos, que maçada,
Já não tenho,  p’ra isso,  idade,
Mas estou-vos muito obrigada,
P'los votos… de eternidade!

Decana, eu ? Ah, pois sou,
Com muita honra e prazer!
E ao blogue ainda vou,
Mesmo sem poder escrever.

Nesta terra querida,
Tive mundo, e tive amor,
Não me posso queixar da vida,
Tive tudo, e também dor.

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quarta-feira, 3 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21963: Antologia (76): Os Homens Lobos, um conto por Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912 - Bissau, 1983), da coletânea "O Cativeiro dos Bichos" (cortesia de João Scharz da Silva)



Guiné-Bissau > Bissau > Capa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, "O Cativeiro dos Bichos", Bissau, 2006 (Edição de autor).


Trata-se de uma  colectânea de 25 contos, seleccionados pelos seus filhos (Henrique, João e Carlos Schwarz), alguns dos quais escritos na prisão de Caxias, em 1966, outros em Lisboa, entre essa data e 1973.

Preso em 26 de agosto de 1966, à chegada ao aeroporto de Lisboa, por motivos políticos ["actividades contra a segurança do Estado"], libertado quatro meses depois, sem culpa formada, foi-lhe fixada residência em Lisboa, ficando assim impedido de voltar à Guiné onde residia e exercia a advocacia desde 1948 e onde a esposa era professora do ensino liceal. A decisão só foi revogada em 1970, por ordem de Marcelo Caetano, seu antigo professor. Montou escritório de advogado na baixa lisboeta, e só voltou à Guiné-Bissau em 1977. 

Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983) foi um homem de leis e de cultura, amante da justiça e da liberdade. Falava as línguas fulas e mandinga. Era casado com Clara Schwarz da Silva (1915-2016). descendente de judeus polacos, e durante largos anos a decana da  nossaTabanca Grande. De entre os seus filhos, Pepito e João são membros da nossa Tabanca Grande. O Pepito, infelizmente, também já falecido, em 18 de fevereiro de 2014. Teria hoje 72 anos, se fosse vivo.

A esta colectânea de contos pertence este, "Os Homenns Lobos", que vamos  agora reproduzir,  por cortesia do filho João Schwarz da Silva. Outros dois já aqui foram divulgados em tempos no nosso blogue (*)

1. Mensagem, com data de ontem, 2 de março, 10:58,  de João Schwarz da Silva, membro da nossa Tabanca Grande, desde 2018, irmão do nosso querido e saudoso amigo Pepito, que nos deixou no dia 18 de fevereiro de 2014, prematuramente aos 63 anos:
Olá, Luís:

Espero que esteja tudo bem consigo e que tenha conseguido superar a Covid. Junto envio um pequeno conto que o meu pai escreveu em Maio de 1973 e que relata as desventuras de um homem num tribunal de Bissau. Pode publicá-lo se achar que ele se enquadra no seu site.

Um grande abraço

Joao Schwarz da silva

Os Homens Lobos, 

por Artur Augusto silva

(Maio 1973)

PRIMEIRO QUADRO

O juiz ordenou:

— Senhor oficial, recolha as testemunhas !

E o oficial de diligências começou encaminhando-as para a sala contígua à dos julgamentos, com certa dificuldade.

As testemunhas, incluindo o réu e o ofendido, eram da raça balanta e no seu ar bisonho e desconfiado denotavam logo pouco convívio com o branco.

— Levante-se o réu — disse o juiz — e o intérprete traduziu, o que provocou por parte do arguido um salto brusco, não fosse o branco pensar que não queria obedecer.

— Nome?

— Uaná Nhante.

— Casado ou solteiro?

— Tem mulher.

— Em que se emprega? Em que trabalha?

— Lavrador.

— Nome dos pais?

— Bidjane e Najá.

— Já alguma vez respondeu ou esteve preso?

— Esteve preso na Administração de Mansoa, por ter morto um homem.

— Há quantos anos?

— Não sabe.

—Então não sabe há quantos anos esteve preso?

Aqui o homem embaraçou-se, começou contando pelos dedos, repartia três de uma das mãos e três da outra e ia falando para o intérprete que, a espaços, aprovava com um aceno de cabeça.
Por fim traduziu:

— Ele diz que há mais de seis chuvas.

O juiz, voltando-se para o delegado, observou:

— Não consta do certificado...

O agente do Ministério Público depois de uma leve hesitação, explicou :

— Dantes, as administrações não mandavam os boletins. A justiça lá feita lá morria.

Dirigindo-se ao intérprete. o juiz informou:

— Diga-lhe que até aqui ele era obrigado a responder sob pena de desobediência. Daqui por diante só responde se quiser. Pode delegar a defesa no seu advogado oficioso. Quer responder?

— Quer.

— É verdade que ele quis matar o irmão com uma catana?

— É verdade.

— É porque estava bêbado?

— Não, não estava bêbado.

— Então, porquê?

Repetida a pergunta ao réu, este falou, fazendo gestos estranhos, avançando com os braços estendidos e as mãos encurvadas, agachando-se e abrindo os olhos desmedidamente, emitindonsons guturais, como se estivesse representando uma pantomima.

No final da cena, o intérprete explicou:

— Ele diz que o irmão, ao anoitecer, se vira em lobo e vem perseguir as pessoas da tabanca que se atrasam nos trabalhos do campo.

O juiz deu um salto na cadeira e, com ar severo, de quem não admite graças, disse:

— Advirta o réu de que neste tribunal não se brinca.

Nessa altura o advogado oficioso, mais filósofo do que advogado e que a filosofia levara a exilar-se em Africa havia mais de vinte anos, pediu a palavra para explicar que não havia, por parte do réu a mais pequena intenção de falta de respeito ao tribunal. Era assim: ele acreditava e todos os nativos acreditavam. Desconhecia S. Exa que nas aldeias, lá na Metrópole, o povo também acreditava em lobisomens?

O juiz, mais sereno, só comentava:

—É estranho! É estranho ! E isto em pleno século vinte! !...

— E tem V. Exa, Sr. Dr. Juiz, a certeza de que um homem não se pode transformar em lobo?!

— Mas há quaisquer dúvidas a esse respeito? — inquiriu o juiz, pasmado.

— Tenho-as eu, e grandes mas são contos largos que não vêm ao caso... Se V. Exa perguntar lá no seu íntimo o que é a realidade, talvez encontre um princípio de resposta para esta questão.

— Então o Sr. Dr. acredita...?

— Eu não disse que acreditava; eu conjecturei, quando muito.

— É o mesmo!

— Talvez...

E o advogado filósofo sorria, com um sorriso miudinho que mal lhe aflorava ao canto dos lábios, e parecia conferir-lhe um ar de superioridade e desdém.

O juiz suspendeu a audiência por um quarto de hora e, já no seu gabinete, mandou chamar o advogado. Este apareceu, ainda de toga, uma toga velha, a tornar-se ruça, atestando idade e má qualidade da fazenda. Sem mais preâmbulos, abertamente, o magistrado disse-lhe,

— Sou novato nestes casos de África. Estive quatro anos, como delegado, em Luanda, e lá, mal contactamos com os indígenas. Nunca vi nem ouvi falar destas superstições. O que mais me espanta é que o doutor, com a sólida cultura que me dizem ter, acredite nestas balelas populares...

Ia a continuar, mas o filósofo interrompeu-o:

—Perdão, Sr. Dr. Juiz. Eu não disse que acreditava. Pois, se nunca sei em que hei-de acreditar; se não consegui uma revelação que me afirme «isto é», como posso acreditar? Aceito as coisas, procuro encontrar a sua razão profunda e, até hoje, não a encontrei. O que existe é tudo o que vemos, sentimos e cheiramos, e só isso, ou antes: o que vemos, sentimos e cheiramos, não será uma ilusão dos nossos sentidos? A ciência com «c» pequeno. Bom arrimo para os que só gostam de trilhar os caminhos já percorridos...

E voltando-se de frente para o juiz:

— O que interessa neste caso é sabermos se o réu acreditava ou não que seu irmão se transformava em lobo e vinha comer as pessoas da tabanca. Se isso era uma realidade para ele,
tão real como a sua presença neste julgamento. Se, psicologicamente, ele agiu nessa convicção,
agiu em legitima defesa própria e colectiva ou então é juridicamente um inimputável: um caso de psicopatia a definir pelos médicos.

E acrescentou:

— Sr. Dr. Juiz: para mim, neste caso interessa a certeza da verdade do réu, desde que ela coincida com a certeza da verdade das testemunhas.

— Mas, então, vamos comtemporizar com a barbária?

—Dois mundos paralelos que, por mais que se prolonguem, não se encontram. — comentou o filósofo.

A audiência reiniciou-se passados momentos, com a audição do ofendido. Este explicou que
havia muitos anos, já, seu irmão o via com maus olhos, que o mataria porque era feiticeiro. Que o homem que o irmão matara fora grande amigo e companheiro dele, ofendido. Que não existia qualquer razão de inimizade entre ambos.

As testemunhas afinaram pelo mesmo diapasão, acrescentando que o réu era pacato, bom pai
de família e trabalhador. Matara um homem há anos, mas esse homem transformava-se em lobo e fazia mal à tabanca.

A instâncias do advogado declararam, ainda, que não havia dúvida de que o homem que ele
matara se transformava em lobo. Quanto ao irmão, não podiam afirmar, mas era voz corrente que também se transformava em lobo. Um pouco mais apertadas, vieram a confessar que toda a gente sabia que o homem se transformava em lobo e era um elemento perigoso na povoação.

Perguntados como é que um homem se podia transformar em lobo, foram unânimes em dizer
que bastava que ele fosse inteligente e tivesse nascido no primeiro tornado depois da primeira
chuva do ano.

O delegado e o advogado limitaram-se a pedir justiça. Um porque “crime era evidente”, outro,
porque era impossível refazer as consciências. O réu foi condenado em três anos de prisão maior.


SEGUNDO QUADRO

Na tabanca, à hora em que o Sol se esconde no horizonte e as pessoas velhas, de autoridade e
conselho, se reúnem para comentar os acontecimentos do dia. E nesse dia havia acontecimentos graves a comentar, porque tinham regressado as testemunhas do julgamento do Uaná. Mesmo aqueles mais velhos, que pela sua extrema idade já mal andavam, tinham vindo para se inteirarem de como tudo correra e saber da justiça do branco.

Taná, que fora como testemunha e, no consenso geral, era o mais avisado dos presentes, encarregou-se de contar o feito. Taná preparou o ambiente, mandando que os circunstantes se sentassem em círculo, por forma a que, no meio, pudesse falar para todos. Acenderam-se uns molhos de palha sobre os quais puseram uns troncos de árvores e Taná começou:

— Casa onde branco faz justiça é grande e bonita. Tem muitos bancos mas ninguém se senta neles. Numa mesa veio sentar-se um branco velho, de boa cara, mas vestia um fato com saias, como as mulheres deles, e pôs-se a escrever. Depois entraram dois brancos — com uma capa preta e logo a seguir outros dois brancos novos, também com saias de mulher. Todos se
levantaram : um deles era o dono da justiça dos brancos. O dono da justiça falou e nós fomos
levados para outra casa. Eu fui o primeiro a sair dessa casa e a voltar para onde estava Uaná. O
dono da justiça falava para um balanta que eles lá tinham e este perguntava-nos o que ele queria. Nós respondíamos. O dono da justiça não acreditava que um homem se pudesse transformar em lobo e perguntou-me multas vezes se era verdade. O tal branco que entrou primeiro, esse acreditava. Perguntou-me como era e eu dei uma resposta qualquer. Depois vi que o branco falava balanta — falava mal, mas eu percebi-o. O diabo até conhecia a nossa tabanca. Disse-me que já caçara um cavalo marinho na bolanha das palmeiras. Vocês lembram-se?

Houve uma pausa e um velho recordou que há muito tempo estivera ali um branco a caçar. Assim alto e forte, com uns vidros no nariz, até lhes tinha dado a carne do cavalo marinho...

— Já me lembro, já me lembro! — comentaram diversas vozes.

— Pois devia ser esse — aquiesceu Taná, que continuou contando as diversas cenas do julgamento, procurando imitar a voz e os gestos das pessoas.

Por fim, contou que Uaná, iria ficar preso durante três anos. Fez-se um silêncio geral em que se poderia ouvir um zumbido de um mosquito. Então o mais velho dos presentes comentou:

— Estes brancos são pessoas crescidas, mas têm coisas de meninos... Então o dono da justiça dos brancos não sabia que Uaná tinha razão?

E a pergunta ficou em suspenso porque ninguém podia imaginar o que o dono da justiça dos
brancos pensava.

Artur Augusto Silva (***)

[Originalmente publicado na separata Artes e Letras do "Diário de Noticias", de 24 de Maio de 1973: Sobre o autor, ver aqui a belíssima e exaustiva evocação feita pelo seu filho, João Schwarz da Silva, no seu sítio, Des Gens Intéressants]

2. Relembrando o Pepito (Bissau, 1949 - Lisboa, 2012)

Lisboa, campus da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa > 7 de setembro de 2007 > 

Neste rosto luminoso e fraterno, havia carisma, afabilidade, determinação, coragem física e moral, visão estratégica e capacidade de liderança, seis qualidades pessoais que eu identificava e admirava no engº agrº Carlos Schwarz da Silva (1949-2014), mais conhecido por Pepito ("nickname" que vem dos tempos da meninice: segundo o irmão João, o Carlos tinha um herói, uma das figuras de banda desenhada do "Cavaleiro Andante", o Agapito, um nome com 4 sílabas, difíceis de pronunciar por uma criança, e que ele abreviava, chamando-lhe "Pepito"). A foto foi tirada em 2006, sob uma pequena palmeira, que foi crescendo junto à fachada do edifício da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa, na Av Padre Cruz, onde então trabalhava.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lisboa > Campus da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa > 18 de fevereiro de 2016 > 

A palmeira cresceu, cresceu até gaklgar o segundo piso, estava vigorosa, contrariamente a muitas que na zona foram atacadas pelo escaravelho da palmeira (Rhynchophorus ferrugineus Olivier) e morreram... 

Sempre que passava por ela, lembrava-me do Pepito e da sua face luminosa, e continuava a sentir o vazio da sua ausência. Há uns meses atrás, em plena pandemia de  Coiviod-19, voltei lá e, para grande desgosto meu, tinham cortado a palmeira, possivelmente com o argumento de que, quando foi desenhado o edifício (pelo arquiteto Pardal Monteiro), ele não quis lá pôr nenhuma palmeira. 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

O Edifício da Escola Nacional de Saúde Pública, integrado no conjunto das instalações do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. 

O projecto do edifício inicial foi desenvolvido pelo Arq António Pardal Monteiro e ficou concluído em 1972. Teve uma ampliação em 1985. Como se vê não há nemhuma palmeira. Foto s/d.

Foto: cortesia do sítio Pardal Monteiro Arquitectos



Portugal > Alcobaça > São Martinho do Porto > Estrada do Facho > Casa do Cruzeiro > c. 1957 > O pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), com os filhos, da esquerda para a direita, João, Iko (já falecido)  e Carlos (1949-2014). Cortesia de João Schwarz da Silva, que nos diz que a data deve ser "provavelmente 1957"... Teria então o Pepito (, nascido em Bissau, em 1949) os seus oito anos...

Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:



(***) Último poste da série > 5 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9000: Antologia (75): Tarrafo, crónica de guerra, de Armor Pires Mota, 1ª ed, 1965 (8): Ilha do Como, 15 de Março de 1964: E Deus desceu à guerra para a paz (Último episódio)...