segunda-feira, 25 de abril de 2005

Guiné 63/74 - P7: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)

1. Extractos da História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II, pp. 41 a 43 (Vd. abreviaturas em anexo).

Trata-se de um documento que eu escrevi, no final da minha comissão, ainda em Bambadinca, tendo acesso a todos os arquivos classificados da companhia, o que só foi possível com a cumplicidade de vários camaradas meus, de um dos sargentos e até do meu capitão que, embora assustado com o resultado final do trabalho que me encomendara, fechou os olhos à minha ousadia e até me deu um louvor... Eu compreendo a sua delicada posição: devia estar já com os seus 37 ou 38 anos, com 4 comissões no ultramar (se não me engano) e à beira de ser promovido a major.

Trinta anos depois fui encontrá-lo no posto de coronel e confessei-lhe, candidamente, que tinha tomado a liberdade de distribuir, na época, uns tantos exemplares, clandestinos, aos tugas da companhia... De facto, ainda em Bambadinca, foram tiradas a stencil umas escassas dezenas de exemplares da história não autorizada da CCAÇ 12, antes de embarcarmos para a metrópole, em rendição individual (os nossos soldados africanos, esses, continuaram a servir a CCAÇ 12, muitos deles até ao final da guerra, aquartelados no Xime, desde 1973). Tenho para com estes últimos um sentimento de gratidão e de reconhecimento, mesmo sabendo que estavam do lado errado da guerra e da história.

2. Em homenagem ao furriel miliciano Cunha, ao soldado Soares e aos outros camaradas da CART 2715 (aquartelada no Xime) que morreram na Operação Abencerragem Candente, na madrugada de 26 de Novembro de 1970 (dias depois da invasão de Conacri, a 22, por uma força comandada por Alpoim Galvão e na qual participaram os meus vizinhos da 1ª Companhia de Comandos Africanos, estacionados em Fá Mandinga).

Tenho mais dificuldade em me curvar perante a memória do Seco Camará, mandinga do Xime, embora reconheça que ele foi um valoroso e competente guia e picador das nossas tropas, durante anos. Mas também foi um homem para os "trabalhos sujos da guerra": ele próprio me confessou um dia, com aquela autoridade e candura africanas de homem grande, que nos anos da "política de terra queimada", da repressão brutal às populações do Xime que simpatizavam com (ou apoiavam) a guerrilha, ao tempo do Governador e Comandante-Chefe, General Arnaldo Schultz, entre 1964 e 1967, ele próprio era encarregue pelo "capitão tuga do Xime" para matar, à paulada, em pleno mato, os elementos suspeitos, capturados... No regresso ao quartel, o capitão, "manga de bom pessoal", pagava-lhe um sumol (sic)...

O coitado do Seco Camarà, peça insignificante da máquina de guerra colonial, foi ao mesmo tempo um tenebroso carrasco e uma pobre vítima, como muitos outros guinéus, e nomeadamente dos pertencentes aos grupos étnicos islamizados... Morreu ingloriamente em Novembro de 1970, nesta operação que eu aqui evoco e em que participei. Recordo-o, ainda hoje, com o seu inseparável cachimbo e o seu ar de cão rafeiro... Nunca saberei se algum se sentiu português. Sei apenas que foi um bravo soldado, e eu não posso julgá-lo com bases nos meus valores ou princípios éticos. Alguém, da população do Xime, nos traiu nessa noite fatídica. A nós e ao Seco Camarà. Onde quer que ele esteja, no céu ou no inferno dos mandingas, paz à sua alma!

3. Pertencente na altura ao 4º Grupo de Combate da CCAÇ 12, fui um dos que resgatei o corpo do furriel miliciano Cunha (que era de Braga). Gostava muito dele, éramos amigos. Tinha passado a noite de 25 para 26 na conversa com ele entre dois copos, no Xime, a fazer horas para a trágica saída na madrugada seguinte.

O segundo comandante do BART 2917 (não vale a pena citar o seu nome, já que ainda pertence ao número dos vivos) obrigara-nos a seguir o mesmo trilho da véspera: escassas horas depois, o Cunha estava morto mais quatro tugas e o guia e picador Seco Camará.

O Cunha, o pequeno e valoroso Cunha, ainda com o seu ar de criança tímida, era o único dos seis que não estava desfeito pelos rockets. Tinha apenas um fiozinho de sangue na testa: o primeiro tiro fora, seguramente, para ele que ia à frente da secção, juntamente com o Seco Camarà. A imagem que tenho dele, era que estava a dormir, exausto, no capim, quando cheguei à sua beira. Ainda lhe dei uma bofetada: “Acorda, meu sacana!”…

Como garante o Guimarães (da CART 2716, do Xitole), o Cunha que fez a recruta com ele e foi mobilizado para a Guiné no mesmo Batalhão (BART 2917), "deve estar no céu porque era um homem bom".

4. Nunca mais consegui esquecer essa maldita operação, em que até mesmo os meus soldados fulas, que eram bravos soldados, tiveram medo… Foi a maior emboscada que eu sofri, e também a mais mortífera que apanhámos na região do Xime. Mas não dei um tiro. Nunca dei um tiro, na Guiné, a não ser a um desgraçado de um jagudi (abutre) a quem nem sequer felizmente acertei…

Recordo esta estória, em homenagem também aos que morreram e aos que sobreviveram, em Portugal, na Guiné e noutros teatros de guerra, aos homens e mulheres que contribuiram, de mil e uma maneiras, para que hoje, 25 de Abril de 2005, nós possamos estar aqui a falar de liberdade, a recordar a guerra e a fazera paz connosco próprios, a praticar a liberdade com a mesma naturalidade com que respiramos...

5. Na elaboração da história da minha companhia (ex-CCAÇ 2590 e, depois, CCAÇ 12) que é também a história militar do Sector L1 / Zona Leste da Guiné entre meados de 1969 e o 1º trimestre de 1971, segui, em muitos casos, o teor dos relatórios de operações que eram feitos pelos alferes milicianos ou pelo capitão, passado pelo crivo da minha própria experiência como operacional ou do relato dos meus camaradas, furriéis milicianos... Dentro dos condicionalismos da época, procurei ser objectivo, procurando obretudo não fazer a hagiografia que era corrente na história de outras companhias independentes ou de companhais integradas em batalhões: "Fomos os melhores, chegámos, vimos e vencemos!"...

Nesta como noutras operações, há passagens muito discutíveis como aquela em que se sugere que o IN sofrera baixas prováveis... Há aqui um branqueamento da situação, o que era frequente entre nós: depois da violentíssima emboscada de que fomos vítimas, ninguém estava em condições, físicas e psicológicas, de fazer o reconhecimento do local e, muito menos, de ir em perseguição dos guerrilheiros... Seis mortos e nove feridos exigem, no mínimo, a afectação de dois grupos e combate (60 homens) para o eu transporte...

Esta falsificação da realidade ou, no mínimo, o seu branqueamento era frequente entre oficiais milicianos e do quadro: enganavam-se uns aos outros, enganavam Bafatá (onde estava o comando da zona leste, o COP 7, se não me engano), enganavam Bissau (o quartel-general) e enganavam Lisboa (sede do Governo, não democrático, do país, que por sua vez enganava o Zé Portuga!)... Tudo isso acabava por ter consequências pesadas, para o pessoal no terreno, que era obrigado a executar operações mal planeadas... De facto, não se pode ganhar uma guerra, escamoteando ou ignorando informação! Pessoalmente, eu já sabia isso, desde os meus quinze ou dezasseis anos...

A verdade, trágica, terrível e humilhante, é que o IN destroçou ou neutralizou seis grupos de combate (2 agrupamentos), matou seis elementos das NT, feriu outros nove e ainda por cima levou-lhes as armas!... E só não levou os corpos porque houve ainda um resto de coragem física, de solidariedade e de determinação (outros chamam-lhe heroísmo!). No relatório da operação ninguém quis dizer o que era óbvio: os erros de planeamento da operação, as imprevidências, a imprepração da nossa tropa fandanga, a total incompetência e a arrogância militarista do major (periquito) que comandou a operação (de avioneta!)...
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(17) Novembro/70: Violenta reacção do IN à penetração das NT em Ponta do Inglês durante a Op Abencerragem Candente

Embora se admitisse que o seu dispositivo no Sector L1 [correspondente ao triângulo Xime-Bambadinca-Xitole] tivesse sofrido importantes alterações, uma vez que se havia manifestado fracamente nos últimos meses, em especial no sub-sector do Xime, o IN não deixaria, no entanto, de reagir violentamente à penetração das NT em Ponta do Inglês no decurso da Op Abencerragem Candente, causando 6 mortos e 9 feridos [Se a memória me não falha, o aquartelemento da Ponta do Inglês, controlando a entrada no Rio Corubal, tinha sido abandonada por decisão do brigadeiro Spínola, logo no início do seu consulado, ainda em 1968].

Participaram nesta operação as seguintes forças, constituindo 3 Agrupamentos [num total estimado em cerca de 250 homens]:

(i) a CCAÇ 12 (sedeada em Bambadinca, ao serviço do BART 2917), a 3 Gr Comb (2° e 4º);
(ii) a CART 2715 (aquartelada no Xime), também a 3 Gr Comb;

e (iii) a CART 2714 (aquartelada em Mansambo), a 2 Gr Comb.

A missão era patrulhar a área definida pelo RGeba-Corubal-Buruntoni-Canhala a fim de:

(i) explorar eventuais vestígios IN;
(ii) deixar vestígios da passagem das NT e panfletos de acção psicológica;
e ainda (iii) contactar com a população desarmada, convidando-a a apresentar-se.

Os 3 Agrupamentos actuariam independentemente e por itinerários diferentes mas de modo a apoiar-se em caso de necessidade: Agr A (CART 2714), Agr B (CCAÇ 12) e Agr C (CART 2715).

No planeamento da operação, o Agr B faria a nomadização da região compreendida entre o RGundagué e a estrada (interdita) Xime-Ponta do Inglês, montando emboscadas durante a noite na área de Darsalame Baio e reunindo-se ao Agr C no nosso antigo aquartelamento da Ponta do Inglês, enquanto este bateria a região compreendida entre a referida estrada e o RCorubal, emboscando-se na área do Poindon.

Notícias de elevada classificação admitiam que o IN tivesse retirado do Sector 2 [também conhecido por região do Xitole e já na altura integrado na Frente Xitole / Bafatá ] dois bigrupos (Poindon e Baio) e um grupo de artilharia (Mangai).

De qualquer modo, depois da Op Boinas Destemidas [levada a efeito em Outubro de 1970 pela CCAÇPARAS 123 na região de Ponta Varela, e da qual resultara a morte de sete guerrilheiros e a captura do respectivo armamento], O IN revelara-se apenas uma única vez (um grupo de 5 elementos tinha flagelado o Xime com armas ligeiras no mês anterior).

Desenrolar da acção:

A 25 [de Novembro de 1970], pelas 7h, os Agr B e C saíram do Xime, no momento em que Mansambo era atacado com mort 82, LRockets e armas ligeiras por um grupo IN não estimado, atrasando a saída do Agr A. Em Madina Colhido experimentaram-se os rádios, verificando-se que o do Agr B só ligava com Bambadinca e o do Agr C com o Xime, não havendo ligação entre eles.

Por outro lado, tentando-se também entrar em ligação com o PCV [posto de comando volante], esta não foi conseguida, uma vez que a frequência terra-ar que fora atribuída à operação não estava dentro das gamas de frequência da FA.

Em virtude disso, os 2 Agr foram obrigados a seguir juntos [grave erro!, direi hoje, pensando no comprimento de centenas de metros da coluna, em marcha, qual cobra sulcando o alto capim da savana arbustiva da região]. Depois de atingirem a Ponta Varela, contornaram a bolanha em direcção da antiga tabanca de Poindon, não tendo detectado entretanto vestígios recentes de presença IN nem de população.

Ao escurecer, e quando as NT se preparavam para montar emboscadas, verificar-se-iam porém dois casos de intoxicação devido às conservas da ração de combate, pelo que tiveram de regressar ao Xime, aonde chegaram pelas 21h.

Entrando-se em contacto rádio com o comando de Bambadinca, a comunicar-se o sucedido e a pedir-se instruções, foram dadas ordens para os Agr B e C seguirem para a Ponta do Inglês pela respectiva estrada, ao raiar da madrugada do doutro dia [26 de Novembro], e aonde deveriam aguardar novas instruções [segundo erro, e este o mais grave!].

A 26, pelas 5.45 h da madrugada, iniciou-se de novo a marcha, tendo a progressão decorrido normalmente, e sem se notarem sinais de recente passagem nos trilhos do Baio e nas imediações do acampamento destruído durante a Op Boinas Destemidas em Xime 3C1-29.

Três horas depois, pelas 8.50h, já perto da Ponta do Inglês, o IN desencadearia uma violenta emboscada em L sobre a direita, precedida por um tiro isolado que foi confundido com um sinal de aviso duma eventual sentinela avançada, e que apanhou na zona de morte os 3 Gr Comb do Agr C [ CART 2715] e 1 Gr Comb (4º) do Agr B [CCAÇ 12].

Os primeiros tiros do IN, especialmente de LRockets, atingiram mortalmente o picador e guia do Agr B, Seco Camará, que ia na frente, e os quatro homens que o seguiam, incluindo um graduado [furriel miliciano Cunha], tendo ferido gravemente outro. Com rajadas sucessivas de LRockets e armas automáticas o IN, fixando as NT, lançou-se ao assalto sobre os primeiros homens, mortos ou gravemente feridos, conseguindo apanhar-lhes as armas, e só não os levando devido a pronta reacção das NT.

É de destacar aqui a acção heróica dos soldados Soares (CART 2715), que veio a ser mortalmente ferido, Sajuma (apontador de bazooka do 4º GR Comb/CCAÇ 12) que ficou ferido numa perna, e Ansumane (apontador de dilagrama, também do 4º Gr Comb/CCAÇ 12, ferido ligeiramente nas costas), que se lançaram ao contra-ataque, juntamente com outros camaradas e alguns graduados, a fim de quebrar o ímpeto do IN e de recolher os mortos e feridos.

0 ataque durou cerca de 20 minutos, sendo a retirada do IN apoiada com tiros de mort 82 e canhão s/r que incidiram sobre a estrada, e especialmente sobre os 2 últimos Gr Comb (l° e 2º) da CCAÇ 12, assim como rajadas enervantes de pistola metralhadora, de posições que ainda não se haviam revelado, nomeadamente de cima das árvores.

Pelos elementos da frente foram ouvidos gritos de dor entre as fileiras do IN, tendo o rápido reconhecimento da zona confirmado que este deveria ter tido vários feridos e mortos prováveis [Esta parte do relatório era música, para não desmoralizar ainda mais as NT e sobretudo enganar o comando].

Em consequência da emboscada IN, uma das mais violentas de que há memória na região do Xime, pelo seu impacto sobre as NT, a CART 2715 [Xime] sofreu 5 mortos (l Furriel Mil) e 7 feridos, e a CCAÇ 12 teve 2 feridos (dos quais 1 grave, o Sold Sajuma Jaló), e 1 morto (o picador e guia permanente das NT Seco Camará, na altura ao serviço da CCS do BART 2917, e que do antecedente já tinha dado provas excepcionais de coragem e competência, tendo participado com a CCAC 12 em quase todas as operações a nível de Batalhão no Sector Ll).

Sob a protecçãodo helicanhão (que seguia para Mansambá no momento em que foi pedido o apoio aéreo), os 2 Agr regressaram ao Xime, com 2 Gr Comb do Agr B [1º e 2º da CCAÇ 12] a abrir caminho por entre a mata densa, 1 Gr Comb do Agr C [ 2715] a manter segurança à rectaguarda e os restantes empenhados no transporte dos feridos e mortos, tendo as heli-evacuações sido feitas numa clareira já perto de Madina Colhido e depois de percorridos mais de 5 Km, em condições extremamente penosas [No helicóptero vinha uma ou mais enfermeiras-paraquedistas].

Notícias posteriores admitiam que nesta emboscada o IN tivesse sofrido 6 mortos. Entretanto, desta reacção do IN contra a penetração das NT num dos seus redutos, concluiu-se que aquele foi excepcionalmente bem comandado porque:

(i) escolheu um local que por ser muito fechado dificultava a manobra;

(ii) utilizou pessoal em cima de árvores para ter uma melhor visão e comandamento sobre as NT;

(iii) tinha a retirada preparada com armas colectivas (morteiro, canhão s/r) que só se revelaram na quebra de contacto;

(iv) fez fogo de barragem, especialmente de LRockets, sobre o Gr Comb que seguia na vanguarda, permitindo lançar-se ao assalto.

Durante este mês [de Novembro de 1970] a CCAÇ 12 continuou empenhada na segurança aos trabalhos de construção da estrada Bambadinca-Xime [a cargo da empresa TECNIL].

De 1 a 10 [de Novembro de 1970], o 2º Gr Comb esteve de reforço a Missirá juntamente com o Pel Caç 54, patrulhando e montando emboscadas na região de Sancorlã/Salà e margem do RCuio/RGambiel, com a missão de interceptar uma coluna de reabastecimento IN que, segundo notícias que não se vieram a confirmar, seguiria de Madina/Belel para a área de Bafatá.

Realizou-se ainda uma coluna logística até ao Saltinho.

Vd. Mapa do Sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole) / Zona Leste / Guiné (1969/71)
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Abreviaturas:

Agr = Agrupamento
BART = Batalhão de Artilharia
CART = Companhia de Artilharia
CCAÇ = Companhia de Caçadores
CCS = Companhia de Comando e Serviços
FA = Força Aérea
Gr Comb = Grupo de Combate
IN = Inimigo
LRockets = RPG, lança-granadas
Mil = Miliciano
mort = Morteiro
NT = Nossas Tropas
Op = Operação
Pel CCAÇ = Pelotão de Caçadores (nativos)
PCV = Posto de comando volante (em geral, de avioneta Dornier)
R = Rio
s/r = (canhão) sem recuo
Sold = Soldado

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