segunda-feira, 21 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P283: A CCAÇ 4150: Guidaje, o 'cú do mundo' (Albano Costa)

Texto do Albano Costa (ex- 1º cabo da CCAÇ 4150, 1973/74):

Vou descrever uma história sobre a passagem da CCAÇ 4150 pela Guiné.

Quando chegámos em Setembro de 1973, fomos logo colocados no Cumeré, aí permanecemos à volta de um mês. Até aí tudo normal mas quando começámos a ouvir rebentamentos ao longe, sempre ao fim do dia, começámos a ficar apreensivos. Os mais velhos lá nos iam dizendo:
- São colegas nossos que estão a sofrer um ataque para os lados de X...

Nós, com os nossos 20 anos, estávamos a ser instruídos psicologicamente para a guerra, ainda não imaginávamos o que aquilo era, mas já nos íamos apercebendo do que é que nos esperava.

Quando chegou a ordem de abalada para o mato (naquela altura o calão era assim, como sabem, e ainda hoje para quem lá vai em gozo de férias salta logo a palavra: vamos para o mato), fui informado que íamos para Bigene e Guidage, íamos ficar sobre as ordens do COP 3.

Despedi-me de uns colegas da minha terra (Matosinhos)(1). Disse-lhes para onde ia para onde ia e logo um deles me disse:
- Eh, pá, para onde tu vais, essa zona é muito má, em Maio foi muito massacrada.

Lgo me apeteceu foi fugir, mas não havia alternativa e lá fui eu para o mato no dia seguinte, em coluna passando por Safim e João Landim. Parámos em Bula, aí lembro-me do nosso capitão dizer:
- A partir de agora, é mesmo a sério!.

Eu na altura só pensei:
- Será que volto à metrópole ? - E lá fomos em coluna, mas agora a sério, já com as panhards, na frente, aí sim comecei a sentir a guerra. Para jovens com 20 anos era muito doloroso, é que não éramos informados para o que íamos, as coisas surgiam a qualquer momento... Lá seguimos até S. Vicente, entrámos numa LDG [Lancha de Desembarque Grande] e seguimos pelo rio Cacheu, em direcção a Ganturé, aonde chegados ao fim do dia, só com a racção de combate. Aí deparámos que tínhamos um barracão, sem camas para dormir e, como se não bastasse, não tínhamos refeitório. Para almoçar e jantar só íamos buscar as refeições e vínhamos para o barracão comer. Aí a companhia ficou muito desmoralizada...

Em Bigene estivemos um mês a fazer segurança às colunas que se faziam entre Bigene e Barro, eram as únicas por que a picada de Bigene a Binta estava fechada e só se faziam de barco pelo Cacheu. Lembro-me de fazermos uma operação de grande envergadura que meteu força aérea e naval e a CCAV 3568, levou 24 horas seguidas, na zona de Samoge, Sindina e Tabajan. Foi só o esforço humano, não encontrámos nada a não ser focos da presença do inimigo.

Tudo isto já era a doer e, para piorar a situação, a companhia foi dividida e dois grupos, incluindo o meu, fomos mudados para Guidage (é fazer de conta que foram dois irmãos que se separaram dos outros dois, e isso dói muito). E aí ainda foi pior porque o isolamento era muito grande. Quando ía na coluna comecei a deparar com coisas nunca vistas na picada. Que me desculpem os colegas de Bigene e Barro mas aquela era muito complicada, comecei a ver viaturas nossas todas desfeitas e fiquei ainda mais apreensivo. Os mais antigas diziam que tinha sido uma coluna que tinha sofrido uma emboscada e o inimigo tinha destruído aquelas viaturas, ainda eram bastantes...


O primeiro morto da Companhia

Em certas partes da picada entre Binta e Guidage era muito complicado aí pensei:
- Como vai ser possível aguentar a comissão aqui ?

Passando por Genicó, Cufeu e Ujeque, lá chegámos ao «cú do mundo» que era Guidage, mas para fazer mais ou menos 40 km, demorou o dia inteiro, não foi fácil, mas tinha de ser, fomos bem recebidos pelos colegas, nos dias seguintes começámos logo com saídas para o mato e aí começámos a ouvir estórias de coisas que se tinham passado em Maio [de 1973], que nos deixavam aterrorizados.

Só fazíamos colunas de 15 em quinze dias e nunca havia dia marcado, éramos informados sempre à noite que ia haver coluna no dia seguinte para evitar possível informação ao inimigo. Foram momentos muito difíceis.

A nossa missão era controlar o inimigo, principalmente, o corredor de Sambuiá. O PAIGC tinha a sua base mais importante em Gumbamory, no Senegal, onde se encontrava um corpo do seu exército, reforçada com vários bi-grupos de artilharia pesada, a cerca de 3 quilómetros da fronteira das NT entre Guidage e Bigene, sendo daqui que partiam as suas colunas de reabasticimento para o interior através do corredor de Sambuiá cujo itinerário provável era o seguinte: Cumbamory, Samoje, Talicó, Sambuiá e Malibolom, até ao rio Cacheu.

Tivemos uma emboscada no mato e dois ataques ao quartel: o primeiro foi no dia 8 de Dezembro 1973, fez duas baixas de colegas guineenses da CCAÇ 19; uns dias depois a CCAÇ 4150 teve um morto e dois feridos num acidente (todos vocês que lêem esta crónica, sabem bem o trauma que ficava nas nossas mentes).


O regresso, vinte e seis anos depois

Passado 26 anos regressei à Guiné para rever os sítios por onde passei, e aí sim pude saborear e conhecer a Guiné, foi simplesmente deslumbrante, acreditem que eu tive sempre um certo receio em lá voltar.

Ao longo de dezenas de anos eu convivia com esse pensamento que era quase impossível lá chegar, primeiro porque era longe, segundo porque era muito perigoso, mas um dia uma estrela iluminou-me, e atravessou-se, no meu caminho, um colega nosso, de nome Francisco «Chico» Allen, e então começámos a falar da Guiné ao qual ele me disse que já lá tinha ido algumas vezes, eu quase duvidava do que ele me contava, mas eu sempre com o meu pensamento ainda do tempo de tropa, contrapunha:
- Não, a minha zona era Guidage; além de muito perigosa era difícil lá chegar! - E ele dizia:
- Esqueça a Guiné do tempo de tropa, agora é muito diferente.- Mas eu é que fiquei sempre na dúvida, então ele um dia apresentou-me a esposa, e a D. Zélia, uma senhora muito simpática, me disse:
- Não tenha receio, vá que vai gostar! - E eu lá ganhei coragem e falei com a minha mulher, e ela me disse:
- Se queres ir, vai! - E fui, mas levei o meu filho mais velho, e então aí sim, adorei, quando cheguei a Guidage tudo parecia mentira, parecia um sonho mas tornou-se realidade, e agora estou aqui para ajudar a abrir uma janela para quem puder e quiser ir à Guiné à zona aonde esteve, deve ir, mas que se prepare que leva aquela vacina, que fica rendido, aquela terra é mágica e depois só queremos lá voltar, aquele povo é muito bom, e nós portugueses somos mesmo irmãos (2).

Luís Graça: vou mandar fotos, antigas e actuais, para meteres no blogue sobre Guidage, mas eu tenho fotos de muitos destacamentos que posso enviar. Acho que quem lá vai, ao blogue e às outras páginas, gosta de ver fotos do «seu» ex-quartel. Se for interessante eu posso enviar mas agradeço que me informes como fazer, porque são muitas fotos e eu nisto da Net ainda sou infantil.

Um abraço,
Albano
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(1) Tentei telefonar ao A. Marques Lopes, meu conterrâneo de Matosinhos, mas o número de telemóvel que me deram, não está atribuído, por isso no consigo falar com ele.

(2) Há pouco tempo encontrei um colega, estive com ele em Guidage, só que ele esteve no período de Abril, Maio e Junho de 73, e fiquei impressionado quando falei que tinha estado em Guidage e ele me disse: "Não quero falar disso"... Ainda hoje ele não consegue esquecer o grande amigo que morreu nos seus braços.. Fiquei bastante impressionado.

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