sábado, 17 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P363: Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral (Jorge Cabral)

1. Através do Humberto Reis, reencontrei o Jorge Cabral que é do nosso tempo de Guiné. Falei com ele pelo telefone, soube do crescente interesse com que ele tem acompanhado o desenvolvimento da nossa tertúlia e lido as nossas estórias...

O Jorge era, para mim, o mais paisano dos militares que eu conheci na Guiné: alferes miliciano, foi o comandante do Pel Caç Nat 63, afecto ao Sector L1 (Bambadinca) da Zona Leste, tendo estado em Fá Mandinga e em Missirá (1969/71).

Em Fá não se limitava a ser um heterodoxo representante do exército colonial, actor e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, chefe de tabanca, conselheiro, amigo do PAIGC, poeta, antropólogo, feiticeiro, cherno, médico, sexólogo, advogado e não sei que mais. Um verdadeiro Lawrence da Guiné. Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente cafrealizado!...

Até ao dia em que chegou o circo dos Comandos Africanos (1): montaram tenda em Fá Mandinga e daí só zarparam para a misteriosa Op Mar Verde ... Vendo o caso mal parado, e não querendo correr o risco de ser enforcado num candeeiro público em Conacri, o Jorge lá conseguiu mexer os seus pauzinhos e ser destacado para Missirá, mais a norte, embora se tratasse de um destacamento mais exposto às morteiradas e roquetadas dos camaradas do PAIGC... O que para o Jorge não era problema, já que era o único de todos nós a quem o PAIGG tinha respeito. Desde o famoso dia em que foi atrás deles, na bolanha, a apaziguá-los e a tranquilizá-los:
- Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral!

Ele um dia há-de contar essa estória para gáudio (e cultura militar) da nossa tertúlia... O convite está feito e ele irá aparecer por aqui, um belo dia destes... Mais: irá explicar-nos como é que foi parar, já em finais de comissão, em 1971, a Madina/Belel, sem ter sido convidado... Julgo que lá foi beber uns copos com os camaradas do PAIGC, aproveitando uma boleia dos paraquedistas!...

2. Outro Jorge, mas este Santos, que é um dos principais fornecedores desta tertúlia, tinha-me mandado há tempos, em 7 de Julho passado, uma mensagem com poemas, em anexo, sobre a Guiné. Eu não consigo dar vazão a tudo o que ele me manda: não há nada sobre a Guerra Colonial que lhe escape. Vasculhando nos arquivos da minha caixa de correio, não é que vou dar com um poema do Jorge Cabral, com data de 1970, escrito em Missirá ?

É claro que não resisto a publicá-lo. Com isso mato dois coelhos de um só tiro: dou a conhecer esta faceta de poeta que muitos dos seus camaradas de Bambadinca não conheciam; e, por outro, divulgo também a APOIAR - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítima de Stress de Guerra(2). Esta associação tem uma revista, bimestral, sendo o último número editado o 36º, de Maio-Junho de 2005. Esta associação médico, psicológico e jurídico aos seus associados, ex-combatentes da guerra colonial.

O belíssimo poema do Jorge Cabral aqui vai:

O HELICÓPTERO

Pelo ar lento que aquece
Um pássaro de ferro e aço
Leva o morto que apodrece
Na boca mais um abraço

A gente fica a pensar
Mas mais um morto que interessa
Já vêm mais pelo mar
Vêm muitos e depressa

A gente pensa
Mas fica com o dedo no gatilho
Na garganta um nó que pica
Na preta o ventre com o filho.

Jorge Cabral – Missirá, Guiné – 1970
In Jornal “Apoiar”. 23 (Jan/Mar 2002)

(Selecção de Jorge Santos, membro da nossa tertúlia, e autor da página sobre A Guerra Colonial.

3. O Jorge Cabral é hoje um ilustre advogado na nossa praça e professor universitário, director do Instituto de Criminologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.

Para que os nossos tertulianos tenham uma ideia mais completa desta personalidade fascinante, dou-vos a conhecer uma entrevista que ele deu a dois dos seus alunos (3), como testemunha presencial de uma acto de mutilação genital feminina (MGF) na Guiné, em 1969. Pelo contexto e época, terá sido em Fá Mandinga. O Jorge Cabral deverá ser um dos raros homens (e brancos) a assistir a um controverso ritual de passagem como este, ainda profundamente enraízado na cultura de certos povos africanos. O problema da MGF já foi aqui abordado neste Blogue (4).


Entrevista ao Prof. Dr. Jorge Cabral

p: Quando é que assistiu à excisão?

r: Em 1969

p: Foi na Guiné Bissau?

r: Sim

p: Porque é que quis assistir?

r: Por curiosidade antropológica. Eu fui sempre uma pessoa extremamente curiosa. O problema da colonização portuguesa, que é o problema de qualquer colonização, é que o colonizador não fez um esforço para perceber a cultura do colonizado. A colonização é isto: partir da base que a nossa cultura é que é.

Neste sentido, já que eu estava numa posição privilegiada, procurei compreender alguma coisa dessa cultura e, obviamente, a excisão fazia parte dela. Também procurei compreender o tipo de famílias, as relações familiares, perceber porque é que alguns cortavam as cabeças a outros, qual o significado de cortarem a cabeça e pô-la nos pântanos... procurei entender, embora não seja antropólogo.

Eu nessa altura nunca tinha ouvido falar da excisão... em 69.
Foi uma experiência sobretudo traumatizante. Se calhar tenho o trauma da excisão!

p: Mas foi lá de férias, estava de passagem...?

r: Não, não! eu estava na guerra!

p: Qual foi o tipo de excisão a que assistiu?

r: Foi a mais simples, foi a ablação do clítoris.

p: Em que condições foi feita?

r: As condições eram más... mas estavam várias miúdas para fazer a cerimónia. A cerimónia só tinha mulheres, a rapariga... era uma miudita de onze anos talvez... estava amarrada, era evidente que gritava, gritava bastante e era uma mulher mais velha que fez o corte para a ablação do clítoris.

p: Com que objecto?

r: Com uma faca e sem quaisquer condições de higiene, aliás, como era feita a circuncisão dos miúdos. Era feita com uma faca ou com uma lâmina.

p: Como é que foi feita a abordagem, como é que se proporcionou a hipótese de ver uma excisão?
r: Eu estava numa situação muito privilegiada, primeiro porque eu era chefe daquilo tudo, segundo porque estava só com soldados africanos e com população africana, cada soldado tinha as suas três mulheres, não sei quantos filhos, de maneira que eu era, pelo menos a um nível simbólico, uma espécie de chefe. Nesse sentido, por curiosidade, falei com mulheres, não falei com homens, e disse que estaria interessado. Primeiro negaram, disseram que os homens não podiam assistir e eu lá expliquei, lá entreguei dinheiro e lá consegui.

A cerimónia não é feita na aldeia, é feita fora da aldeia.

p: Porquê?

r: Porque mesmo entre eles é dotado de algum secretismo, é uma cerimónia que tem alguma coisa de religioso por isso mesmo não é feita na aldeia, é feita na floresta.
A rapariga não sabia como era. Há simultaneamente medo mas algum orgulho porque significa uma passagem para uma idade adulta, por isso há essa duplicidade, penso eu, ao nível das miúdas que têm medo, é evidente, porque as outras também já contaram como foi e que vão sofrer muito, mas ao mesmo tempo... se calhar é como usar o primeiro sutiã. Há efectivamente um certo orgulho.

p: Qual é a posição dos homens em relação à excisão?

r: Os homens concordam até porque eles não aceitam para mulher alguém que não seja excisada.

Dentro da própria comunidade uma rapariga que não tenha passado pela excisão, dificilmente arranjará marido. Uma rapariga que não tenha feito a excisão é uma criança por isso elas submetem-se para evitarem a exclusão.

Não podemos generalizar e falar da mulher africana porque mesmo na Guiné não são todas as etnias que fazem a excisão. Normalmente são os islamizados. Há excisões muito mais gravosas principalmente na Somália, na Etiópia.

Há outro tipo de excisão, já agora. É uma excisão que se faz em Angola, eu ainda estou a começar a estudar isso, é uma excisão ao contrário, serve para mulher ter mais prazer durante o acto sexual. Ainda não vi nada disso escrito, li isso num romance. Já perguntei a várias angolanas e elas não sabem nada mas é uma excisão para dar mais prazer à mulher, não é como a outra. Não é a ablação do clítoris, é como um “desembaraçar” do clítoris e também é feita na pré-adolescência, aos 12, 13 anos.

p: A maior parte das pessoas é contra esta prática porque é uma violação dos direitos humanos...

r: Sim, embora isso hoje seja muito discutível há uma posição radical que diz que isto ofende os direitos humanos mas há vozes autorizadas que a defendem e eu já tive a oportunidade de assistir a uma conferência, creio que há três anos, em Valência, em que um professor dizia “O que é que nós temos a ver com isso?! Isso é um valor cultural, porque é que nós estamos sempre a ver de uma perspectiva europeia, europocêntrica o problema?”

Por isso há vozes que discordam desta luta contra a mutilação sexual.

p: Mas hoje em dia há organizações e outras pessoas que trabalham no terreno, no sentido de dissuadirem as mulheres a praticar este tipo de ritual.

r: Pode ter o efeito contrário, não é?!, se é proibido...

P: O isolamento destas tribos torna muito mais difícil o acesso a qualquer alteração na mentalidade destas pessoas?

R: Será muito difícil. Se nós defendêssemos sempre os mesmo valores culturais não havia evolução. É precisamente a mesma coisa, os chineses partiam os pés às crianças, os aztecas apertavam os olhos, o meu avô tomava banho uma vez por mês... quer dizer esses são valores culturais. As coisas alteram-se.

p: O que é que a lei portuguesa diz acerca disto?

r: A lei portuguesa não prevê a excisão. Se aparecer algum caso será um crime contra a integridade física grave, se aparecer algum caso.

Já me contaram um caso que apareceu num hospital em que os próprios médicos nunca tinham ouvido falar da excisão e não foi levantado nenhum processo crime. Os médicos apenas verificaram que havia uma ablação mas não sabiam mais nada.

p: A quem seria aplicada a medida?

r: Neste caso seria contra a mãe. Ela é que é responsável porque leva a criança e, também, contra quem fez isso. É evidente que os casos vão aparecer. Será inevitável que qualquer dia apareça um caso destes, em França já foram julgados alguns casos.

p: Quer dizer que não estamos preparados...

r: Claro que não! É natural que uma miúda apanhe uma infecção qualquer, vá para a Estefânia e... é natural! O que o médico devia fazer era participar imediatamente mas para isso é preciso que os médicos saibam o que é a excisão e que se pratica em Portugal .
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

Já na altura eu tinha escrito o seguinte parágrafo, referindo o nome do Cabral:

"Um dos comandos africanos mais tristemente famosos era o furriel Uloma, filho de régulo, da zona de Varela, e um dos raros felupes que vestiam a farda do exército português, segundo se dizia no meu tempo. Uloma era uma espécie de coqueluche ou mscote da companhia, não só pelo seu aspecto físico de orangotango (sem ofensa para os felupes e para os orangotangos) como sobretduo pelos seus estranhos rituais de guerra e pela sua macabra colecção de cabeças cortadas ao inimigo, conservadas em álcool (trinta e duas, ao que parece, segundo os cálculos do Carlos França, que terá privado com ele, em Fá).

"Essas práticas culturais de bom selvagem teriam a ver com as reminiscências do canibalismo ritual entre os felupes – como me tentava, em vão, explicar, em jeito de antropólogo, com uma garrafa de uísque na mão, o meu amigo Cabral, poeta, antifascista, calejado nas lutas estudantis, antimilitarista, filho de militar de carreira, alferes miliciano, tão dilacerado como eu pela brutal irracionalidade daquela guerra, e que privava como os comandos africanos na sua qualidade de comandante do Pelotão de Caçadores Nativos local, o PEL CAÇ NAT 63".

(2) Sede da Associaão Apoiar:

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1070-023 Lisboa~
Telefones: 213 870 174 / 213 808 000
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(3) Mafalda Sofia Félix dos Santos; Paulo César Lino Belchior de Matos - Mutilação genital feminina. Trabalho apresentado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias no Curso de Pós-Graduação em Criminologia. s/d.

(4) Vd. post de 4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)

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