quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P402: Estórias cabralianas: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...

Guiné > Fá Mandinga > Novembro de 1969 > O Alf Mil Art Cabral e parte dos seus feros guerreiros do Pel Caç Nat 63, incluindo a cabra e o cão.

© Jorge Cabral (2005)

1. Amigo Luís,

Continuo diariamente a acompanhar o teu/nosso blogue, o qual me propícia um fantástico manancial de recordações. Agradeço que corrijas a "arma" a que pertencia, a fim de não suscitar a ira dos homens dos obuses. Era Alferes Miliciano de Artilharia, especialidade sofrida em Vendas Novas, onde fui aspirante durante largos meses, sendo então amigo de alguns jovens Tenentes que mais tarde tiveram papel determinante na Revolução de Abril. Foi nessa altura que convivi com o Agordela e com o Passos Marques, os quais na Guiné voltei a encontrar.

Envio três "histórias" e duas fotos, e um grande abraço, extensivo ao Humberto [Reis], magnífico fornecedor das imagens dos caminhos e trilhos, os quais ainda percorro na busca das bajudas...

Até sempre em todos os dias.

Jorge

(ex-Alf Mil Art, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71)


2. A grande história da guerra da Guiné nunca se fará sem a petite histoire do Cabral, do Jorge Cabral... Ele acaba de me mandar três estórias, qual delas a mais deliciosa, e que eu vou servir como slow food... Meus amigos, isto são pequenas obras-primas de nosso humor castrense, da irreverência e do non-sense que aprendemos a cultivar na Guiné, longe do Vietname, e que nos ajudou a resistir a tudo (sem esquecer o uísque, com ou sem água de Perrier). O absurdo (daquela guerra, do nosso quotidiano, das patéticas figuras de alguns dos nossos comandantes...) só se podia combater com o absurdo do nosso (quase sempre bom) humor...

Aqui vai a primeira estória. Estou grato ao Jorge, por ter arranjado um bocadinho do seu escasso tempo para nós e de se ter lembrado destes gourmands da Guiné...


A mulher do Major e o castigo do Cabral

Quando de Missirá me deslocava a Bambadinca, seguia sempre a mesma rotina. Primeiro visitava o Bar do Soldado, até porque aí tinha que liquidar as despesas alcoólicas efectuadas pelo meu Soldado Ocamari Nanque, que se encontrava preso.

Desta personagem, que depois passou a ordenança do Polidoro Monteiro (1), papel gordo do Biombo, ex-soldado na Índia, falarei um dia.

Feitas as contas, bem acompanhadas de várias libações e seguindo uma hierarquia ascendente, passava ao Bar dos Sargentos, onde continuava a "matar a sede" e só por fim aterrava no Bar dos Oficiais.

Naquele dia quando entrei fiquei surpreendido. Além do simpático e solícito barman, apenas uma branca jovem senhora ali se encontrava. Desconhecendo em absoluto de quem se tratava, reparei que a mesma ficou espantada com a minha aparição. (Na verdade o meu aspecto não era muito civilizado. Enlameado até ao peito – havia atravessado a bolanha de Finete, ostentava um estrambólico bigode e amparava-me num pingalim-bengala prateado).

Logo da porta encomendei:
- Rapaz, uma sandes de chocolate e um whisky quádruplo - e, vendo pelo canto do olho a reacção da dama, iniciei um absurdo monólogo sobre a minha dieta alimentar:
- Ando cheio de fome, os presuntos de macaco não me sabem a nada, a sopa de formigas causa-me azia, até a vinagrada de orelhas de turra me provoca urticária...

O espanto da jovem dera lugar ao pânico, até que entrou o Major, que vendo a mulher pálida e aterrada, se afligiu:
– Que tens querida? Estás mal disposta? Olha, apresento-te o Alferes Cabral, de Missirá.

Não me estendeu a mão, nada balbuciou, saiu quase a correr…
Logo nessa noite recebi uma mensagem:
- Alferes Cabral proibido de se deslocar a Bambadinca, durante sessenta dias.

Cumprido o "castigo" voltei, mas nunca mais vi a mulher do Major. Contaram-me que a avisavam logo que eu entrava no quartel...
_______

Nota de L.G.

(1) Tenente-coronel, spinolista, último comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) na altura em que os quadros metropolitanos da CCAÇ 12 foram rendiidos individualmente (Fevereiro/Março de 1971).

Esta figura já aqui foi evocada, neste blogue, duas ou três vezes, pelo David Guimarães e por mim:

Vd post de 26 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXVI: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (6)

Vd post de 29d e Abril de 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1)

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