terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P517: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (8): Gazela com chouriço à moda do Celestino

Guiné > Guileje > CART 1613 > 1968> Aspectos da construção de uma abrigo-caserna...
© José Neto (2005)

VIII parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado) (1).

© José Neto (2005)


O ano de 1968 entrou com uma novidade.

O esforço sobre o corredor de Guilege diminuiu de intensidade e a actividade operacional concentrou-se mais para a zona da fronteira, com a prioridade de manter seguro o itinerário Gadamael Porto – Guilege.

Estavam para chegar as CAÇ 2316 e 2317 que iam acantonar, em condições precárias, no Mejo e em Guilege com vista a qualquer acção em grande que estava no segredo dos Deuses de Bissau.

As colunas de reabastecimento passaram a ser mais frequentes e despejaram toneladas de mantimentos numa zona contígua ao perímetro fortificado que foi desminado e aplanado para o efeito.

Numa destas colunas, o Alferes Michael, que teimava em postar-se bem alto na torre da sua Fox, até já tinha sofrido ferimentos ligeiros, foi atingido com alguma gravidade pelo fogo duma emboscada.

Veio o helicóptero para a evacuação e foi a muito custo que a 2º sargento enfermeira paraquedista convenceu o Alferes a deitar-se na maca para ir para o hospital. Era um bravo este alferes. Uma semana depois, ainda cheio de pensos, voltou para junto dos seus homens.

Ao mesmo tempo apareceram-nos uns civis e uma secção de Engenharia, comandada por um sargento, com material para abrir um furo hertziano na área do quartel para obtenção da preciosa água potável.

Estes tiveram o azar de apanhar um festival corriqueiro logo à chegada e, após uma semana de perfuração ao ralenti, um olho na máquina e outro na mata, diagnosticaram a impossibilidade de apanhar um qualquer lençol subterrâneo de água que passasse por ali, desmontaram a traquineta e puseram-se a andar para o sossego de Bissau.


Guiné > Guileje > CART 1613 > 1968> Construção de um abrigo para a população civil...
© José Neto (2005)

Entretanto chegaram as duas companhias, pertencentes ao BCAÇ 2835 e tivemos notícias de que a 5ª Companhia de Comandos (comandada pelo Capitão de Artilharia Comando Gonçalves) tinha sido afecta ao nosso Batalhão e estava pronta a actuar na área de Aldeia Formosa, o que adensava as expectativas do que ia suceder nos próximos tempos.
A chegada dum pelotão de Artilharia de 8,8 cm com quatro bocas de fogo, instaladas com a direcção nor-nordeste, acabou com as dúvidas de que ia haver “porrada de criar bicho”.

E no dia D, fins de Fevereiro, desencadeou-se a Operação Bola de Fogo.

A finalidade desta mega-operação era implantar um aquartelamento em Gandembel, perto da ponte do rio Balana, a ser reconstruída e guarnecida com um destacamento de segurança, sensivelmente a meio caminho entre Guilege e Chamarra.

Aquele local era praticamente o grande portão de entrada do Corredor de Guilege e assim pretendia-se, se não acabar, pelo menos dificultar a penetração do IN no interior sul do território.

A primeira fase consistia em limpar e tornar transitável a picada, havia anos abandonada, que ia do cruzamento de Guilege a Gandembel, ou seja, a continuação do itinerário Cacine – Gadamael – Gandembel e daí para norte até Aldeia Formosa. Esta primeira fase da operação estava a ser comandada, a partir de Guilege, pelo Celestino (1).

Foi então que ele me ameaçou pela quinta (e última) vez com uma porrada. Para descomprimir vale a pena contar a cena:

O pessoal combatente tinha saído quase todo e, contando com a besta, estávamos vinte e três militares europeus no quartel. A segurança era feita pelo Pel Caç Nat 51 e Milícias.

Durante a noite anterior tinha sido accionada uma das nossas armadilhas e de manhã deparamos com uma gazela morta no local.

Claro que o Álvaro, cabo cozinheiro, se preparou para ser dia de rancho melhorado. Não era todos os dias que nos aparecia a gostosa e suculenta carne fresquinha de gazela.

Como era da praxe, foi anunciar ao Celestino a composição da refeição, neste caso o almoço. Este, fazendo jus à sua fama de bom garfo, disse ao Álvaro para juntar uma lata de chouriço (dois quilos) para refinar a especialidade gastronómica.

Um tanto encavacado o cozinheiro observou que o animal tinha dado vinte e dois quilos de carne limpa o que, para vinte e três comensais, chegava e sobrava.
-Faça o que eu lhe mando! - berrou o Celestino.

De cabeça baixa, o Álvaro retirou-se congeminando o processo de o quarteleiro dos géneros, o soldado Melo, lhe fornecer a lata de chouriço.

O Melo não foi na cantiga. Ele conhecia bem as regras adoptadas para a recuperação dos prejuízos que já descrevi, e chutou a bola para mim.

Tomei a decisão de não se meter chouriço no tacho, mas levar, para os oficiais, um prato com um desses enchidos cortado às rodelas e preparei-me para o temporal que se adivinhava.

Guiné > Guileje > CART 1613 > 1969> O nosso primeiro posando com uma graciosa bajuda da tabanca
© José Neto (2005)

Quando o Celestino enfiou o guardanapo no colarinho e inspeccionou o manjar, ordenou que o cozinheiro viesse à sua real presença.O Álvaro passou pelo sítio onde eu estava a almoçar e disse-me que o comandante, se calhasse, o ia mandar prender.
-Sossegue. Eu vou consigo.

Antes que o trombone começasse a tocar eu adiantei-me e disse que toda a responsabilidade era minha. O cabo tinha cumprido uma ordem legítima, salientei.
-Legítima?!!! Então você contraria uma determinação do seu comandante e acha que a sua ordem é legítima?
-É sim, meu comandante. A administração desta companhia é da responsabilidade do nosso Capitão Corvacho e minha. E, como é do conhecimento de V. Exª., nós estamos a arcar com muitos prejuízos na alimentação e não nos podemos dar ao luxo de desprezar uma migalha que seja.

O homem emborcava garfadas e ia rosnando os impropérios do costume.A certa altura, virou-se para o Dr. Oliveira Martins e disse-lhe:
-Oh doutor, já viu a tropa que eu estou a comandar? Um reles segundo sargento manda mais que um tenente-coronel!!!

O médico, que também não morria de amores pela besta, abriu a sua resposta contemporizadora com a expressão:
-Bem, meu comandante, eu julgo...
-Você julga? Julga o quê? Você é médico, ou juiz? - interrompeu o Celestino.

Bom. Julga ou cura. Cura ou julga, o fulcro da questão desviou-me para os dois verbos e o médico, que não era pêra doce, aproveitou para lhas cantar, como se costuma dizer, forte e feio.

A porrada ficou pendente, mas o pêndulo às vezes tem caprichos do diabo, como se verá mais adiante.
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(1) Vd post de 8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(6): dos Lordes e das bestas:

"Celestino era o nome com que depreciativamente tratávamos o Ten-Cor. Celestino da Cunha Rodrigues, comandante do BART 1896, sediado em Buba, personagem muito sombria da minha memória pois ameaçou-me com cinco punições, nunca concretizadas. Algumas vezes o trato por besta nesta narrativa, com alguma propriedade".

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