segunda-feira, 8 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P733: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo


VI parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 18-22 (1).


Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > O Alf Mil Raposo, de óculos escuros, com o Furriel Ribas, à sua esquerda, e alguns soldados, observando uma giboia morta perlas NT © Paulo Raposo (2006)


Mansoa: Baptismo de fogo

O sacrifício era muito. Vou contar uns episódios dos muitos que por lá passàmos:

1. Após a nossa chegada a Mansoa, foi-nos distribuído o material de guerra. Já armados, fomos para uma bolanha, nome que se dava a um grande charco de água, que enchia com a chuva.
Esta bolanha ficava para além de uma companhia de balantas, que fazia a protecção do nosso quartel. Naquela zona de Mansoa, sair fora do arame farpado tinha riscos.

Este exercício tinha como objectivo habituarmo-nos a estar debaixo de fogo. Deita-se um grupo de combate, e por cima deste, faz-se fogo.

Aconteceu que logo no primeiro exercício, quando estava o primeiro grupo de combate deitado, há um disparo que sai mais baixo e vai ferir em ambas as pernas um soldado. Depressa foi chamada uma viatura, para o levar rapidamente para o Hospital. Para aquele rapaz, a comissão terminou ali.

Este acidente foi muito desmoralizante para os restantes e mais nenhum outro exercício foi feito. Perguntei-me nessa altura como iria sair dali.

2. Um belo dia o meu grupo de combate estava encarregue de levar e proteger os homens que iam limpar do capim uma faixa grande de ambos os lados da estrada. Assim evitávamos que tivessemos emboscadas coladas à picada.

Dirigimo-nos para o local de trabalho em duas viaturas. Parámos precisamente no sítio aonde tínhamos terminado o trabalho no dia anterior, ou seja ainda na zona já descapinada.

Quando parámos, saltaram do capim alguns elementos IN para a estrada. Fizemos fogo, eles fugiram e não responderam. Se tivéssemos parado 50 metros mais à frente, tínhamos caído na emboscada.

Recuperados da emoção, os homens começaram o seu trabalho e eu dirijo-me para um tronco de árvore, que estava caído, para me sentar. Ao aproximar-me do tronco, este mexe-se. Era uma gibóia, com sete metros de comprido. Enfiei-lhe um carregador em cima e ela continuava bem viva. O Cabo enfermeiro Luís, agarra num tronco de um ramo verde, e, pondo-se à frente dela, bate-lhe continuamente na cabeça, até a cobra se ver perdida.

Uma vez perdida, morde-se a ela própria, para não se humilhar à mão do enfermeiro Luís.

3. Durante as muitas operações de patrulhamento que fazíamos, tivemos numa delas o nosso baptismo de fogo.

Depois de termos passado o dia a andar, paramos para passar a noite. Íamos a nível de companhia. Ao levantarmo-nos, de madrugada, iniciámos o regresso. Estava muito húmido.
Por cima de nós estava o PC em DO para controlar a nossa progressão.

O PC era o nome que dávamos ao Posto de Comando e o DO era um monomotor da Força Aérea, mais precisamente DO-27. Em determinadas operações um posto de comando era enviado para controlar a progressão da força no terreno, e para ter a certeza que esta atingia o objectivo da operação.

Era a maneira evoluída e mais humana do que se fazia nas guerras convencionais de trincheira.
Quando se pretendia fazer um avanço em linha nas forças inimigas a estratégia era a seguinte:

A artilharia bombardeava durante três dias as trincheiras inimigas, para as aniquilar fisicamente, criar um clima de terror e de ansiedade no inimigo, destruindo-o psicologicamente também, dado que não tinham descanso naqueles dias. De seguida dava-se ordem às nossas tropas para avançarem. Imediatamente a artilharia passava a bombardear as nossas trincheiras, para ter a certeza que ninguém ficava para trás.

Hoje, do ponto de vista comercial, os técnicos das mais avançadas empresas de Sillicon Valley dizem:
- Obtem-se o que se inspecciona, não o que se espera.

Este assunto já vem descrito na Sagrada Bíblia. Só depois do dono da seara mandar aparelhar o cavalo, é que as cotovias dizem umas para as outras:
- Agora sim, irmãs, é hora de irmos embora. - Mandar os criados : não basta, é preciso acompanhá-los.

De repente ficámos debaixo de um grande tiroteio, com a irritante costureirinha, assim lhe chamavamos, à PPSH do inimigo, a bater por cima de nós. Era uma arma automática, que tinha uma maneira muito característica de fazer fogo (2).

Instala-se a surpresa e o medo. Quando a nossa resposta se inicia, o medo desaparece, passamos a dominar a situação, e vá de levantar e sair rapidamente da zona de morte. Depois de tanto barulho, tiros e granadas, pensamos que haverá alguns mortos e feridos. Nada disso. Nada aconteceu. Nossa Senhora vai-nos protegendo.

Quando isto acontece na segunda vez notamos que é quase impossível haver vítimas e é então que se instala a confiança.

Havia pois três períodos distintos durante a Comissão: O primeiro, o da chegada, era o do medo do desconhecido, o medo de não sabermos controlar as situações que nos apareciam. O segundo era o da auto confiança, em que nos considerávamos os maiores. Nada nos intimidava. O terceiro era a fase final. Era o pior pois a pouco tempo do embarque e já com a comissão prestes a acabar, tínhamos medo que algo nos acontecesse. Era a fase do tirem-me daqui.

4. Todos os dias havia uma coluna que ia a Bissau e que era acompanhada por um grupo de combate para protecção dos carros. Na volta a coluna formava-se junto ao Hospital Militar.

Sempre que eu ia a Bissau costumava subir à enfermaria dos oficiais para saber se lá estava alguém conhecido. Numa dessas vezes entro e vejo um rapaz amigo, o Alvarez. Tinha entrado comigo para Mafra. Naquela altura, ele tinha um DKW que se via aflito para subir a ladeira de Cheleiros [, estrada de acesso a Mafra].

Era Alferes dos Comandos e, numa operação no Sul, contou-me ele, ia em terceiro lugar e deu de caras com o inimigo, num trilho. Depois da troca de tiros, há uma granada de bazuca do inimigo que explode nas árvores e os estilhaços choveram sobre ele.

Coitado, estava todo esburacado. Depois de várias operações, ficou bom e é hoje um dos melhores comandantes da TAP. Já tive a sorte de voar com ele uma vez.

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Nota de L.G.

(1) Vd último post, de 7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa

(2) Vd. a página de Bill Berg, em inglês, sobre a PPSH bem como fotos desta famosa arma russa que nos punha os cabelos em pé, na Guiné (fotos da autoria de Oleg Volk) . Sobre as armas utilizadas na guerra colonial, consultar também o Centro de Documentação 25 de Abril , da Universidade de Coimbra. Infelizmente há poucos sítios, em portugugês, com as imagens e com as especificações técnicas das armas mais usadas durante a guerra colonial em África. É um campo a explorar eventualmente por um dos nossos tertulianos...

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