segunda-feira, 10 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P949: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (14): regresso às tabancas em autodefesa

Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCAÇ 2405 > 1968 > O Alf Mil Raposo, com o Fur Mil Ribas e mais alguns soldados, fotografados com uma giboia morta.

Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCAÇ 2405 > 1968 > Aspecto da tabanca local.

Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > CCAÇ 2405 > O Paulo Raposo com um homem grande

Texto e fotos: © Paulo Raposo (2006)


XIV parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 40-41 (1).


Regressamos à rotina

Vivíamos pois no meio da população e nunca tivemos qualquer tipo de problemas. Em que condições íamos para lá? Aos soldados era-Ihes dado um colchão pneumático Repimpa de cor verde-tropa, igual aos que se utilizam na praia. As formigas baga-baga tinham umas tenazes que chegavam a ferir. Resultado: no dia seguinte o colchão estava furado, o ar ia-se e os rapazes passavam a dormir no chão.

No que me diz respeito, levava a minha cama, colchão, mosquiteiro, frigorífico e cimento, que roubava ao Furriel Tavares, para pavimentar a Tabanca (2) aonde ia dormir.

No exterior desta colocava um tambor aberto para receber água, e, com duas esteiras, uma no chão e outra lateral, fazia uma casa de banho onde diariamnete, ao fim do dia, tomava o meu banho e fazia a barba.Junto à cozinha, fazíamos um forno para cozer pão. Tínhamos sempre pão fresco.

Sempre achei que pelo facto de viver nesta adversidade deveria manter uma postura limpa e civilizada. Mudava de roupa constantemente, que era lavada por uma mulher local, que dava cabo dela em pouco tempo. Tinham o hábito de lavar a roupa com pedras, pois sabão era coisa que conheciam pouco. Todo este serviço era gerido pelo meu impedido, o Figueiredo.

Vou contar alguns episódios que se passaram quando estive nas Tabancas a nível do meu grupo de combate (3). Os africanos tinham umas cadeiras de verga compridas, construídas por eles, para se estenderem à porta das Tabancas para fumarem o seu cachimbo. Com o incómodo do calor, era também estendido numa daquelas cadeiras que eu arranjava posição para ler.

Um dia estava eu numa dessas cadeiras, debaixo de uma árvore, à sombra, a ler, quando de repente vejo o que me parecia uma folha muito verde, a mexer-se com o vento.

Fixo melhor a vista, e então o que era? Uma serpente muito verde que não tinha mais de um palmo. Vinha na minha direcção ou na direcção da árvore. Dou um salto. O cozinheiro, que passava ali por perto, assistiu à cena, vai buscar a G3 e, com um único tiro, corta a cobra que já estava em cima da árvore, em dois.

Com este alvoroço, aparecem uns africanos, que logo explicam:
- É a serpente mais venenosa que há! - Quando os africanos sobem aos coqueiros e vêem lá uma atiram-se ao chão pois preferem partir uma perna do que serem picados por ela.

Nunca vi ninguém com mais pontaria do que aquele rapaz que fazia de cozinheiro.
Na cozinha tínhamos, além do cozinheiro, o adjunto que ia rodando. Um dia calhou a vez a um rapaz a quem chamávamos de picapau. Já estava bem apanhado pelo clima. Quando havia galinha ou frango para comer, o nosso picapau primeiro depenava o bicho e só depois é que lhe cortava o pescoço.

Como as nossas ementas não variavam muito, resolvi uma vez, por minha iniciativa, comprar uma vaca. Além de ser uma distracção, era uma oportunidade de comermos uns bons e belos bifes.

Os soldados, que muito gostaram deste programa, lá mataram e cortaram o animal. Comemos umas belas refeições e ainda sobrou muita carne que foi guardada cuidadosamente no meu célebre frigorífico de campanha.

Neste entretanto passa pela nossa Tabanca uma companhia de pára-quedistas, que vinha com dois grupos de combate. A solidariedade em Africa é ou era uma coisa que só vista. Fizemos pão e demos de comer a toda aquela gente, quando no fundo nós éramos bem menos do que eles.

Verdade se diga que o Capitão daquela companhia me recebeu na base dos Páras, em Bissau, como um VIP. Tinha o sentido da gratidão.
___________

Notas de L.G.

(1) Vd último post > 6 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli

(2) Tabanca é sinónimo de povoação, composta por um conjunto de moranças (habitações familiares, de forma redonda ou rectangular) que, por sua vez, podiam era constituídas por mais do que uma casa ou palhota. A generalidade dos militares portugueses também usava o termo para designar uma morança ou, melhor, uma palhota. As casas melhores, com mais do que uma divisão, de forma rectangular, eram de tijolo de adobe, rachas de cibe e cobertura de colmo (ou até zinco, fornecido pela tropa). O Paulo Raposo refere-se aqui a tabanca como sinónimo de aglomerado habitacional ou casa.

(3) Vd. outros posts, da minha autoria, relacionados com tabancas em autodefesa:
30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu

Excertos do diário de um tuga (3). Texto de L.G.:


15 de Agosto de 1969:

1. Sare Ganá. A última das tabancas do regulado de Joladu, no sub-sector de Geba. Estive aqui destacado duas semanas, em reforço ao sistema de autodefesa. O que não é irónico, porque a população é fula.

Armadilhada entre as duas fiadas de arame farpado e guarnecida por um pelotão de milícia e grupos civis de autodefesa, Sare Ganá é uma espécie de aldeia estratégica. Aqui termina a nossa soberania territorial, a norte do Rio Geba e começa a zona de intervenção do Com-Chefe que inclui, entre outras, as regiões de Mansomine, Caresse e Oio.

É aqui que vive o régulo, uma solitária figura de aristocrata fula. Todos os seus súbditos, mandingas, balantas e manjacos, que viviam em Joladu, 'foram no mato' (leia-se: aderiram à guerrilha ou fugiram das NT). Hoje o seu regulado está circunscrito ao perímetro de Sare Gana e a mais duas ou três tabancas (Sare Banda, Sinchã Satu...).

Quase todos os dias ouvíamos os Fiats bombardearem Sinchã Jobel, uma base de guerrilheiros a 10 km a norte, e que é inacessível no tempo das chuvas devido às bolanhas e lalas que a rodeiam. Até Farim é tudo terra para queimar. Nenhuma tropa apeada, ao que parece, se atreve a penetrar neste santuário do IN. Fala-se aqui da 'mata do Óio' como um misto de temor e de terror, domínio do sagrado e da morte
(...)

30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXII: As aldeias fulas em autodefesa

17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLII: Fátima, a furtiva gazela

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