terça-feira, 17 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1187: Guidaje: soldado paraquedista Lourenço... deixado para trás (Manuel Rebocho)

Texto do Manuel Rebocho - Sargento-Mor Paraquedista, na Reserva, que foi operacional na Guiné (Maio de 1972/Julho de 1974) e é hoje doutor por extenso, pela Universidade de Évora -, enviado em 2 de Outubro de 2006, e onde se resume o trabalho jornalístico, publicado pelo jornal quinzenário AuriNegra, com sede em Cantanhede (II série, nº 102, de 24 de Setembro de 2006), sobre a trágica morte e o miserável abandono do Soldado Paraquedista Lourenço, em Guidaje.


AURINEGRA ÀS VOLTAS POR GUIDAJE
Manuel Rebocho

Na sua edição de 24 de Setembro último, o Jornal Aurinegra edita um extenso trabalho sobre o Soldado Pára-Quedista Lourenço, enterrado em Guidaje, nascido e criado no concelho de Cantanhede, onde o jornal se publica. Era assim um filho da terra.

Na primeira página surge uma fotografia do Lourenço, com a farda azul de Pára-Quedista, que preenche metade da página, sob o título DEIXADO PARA TRÁS. E, como texto, escreve: “Com 19 anos de idade, o soldado Lourenço tombou no campo de batalha, na Guiné, quando procurava ajudar um camarada ferido. Foi enterrado em Guidaje, em campo aberto junto ao quartel e deixado para trás até hoje. Há agora uma pequena possibilidade de recuperar os seus restos mortais e fazer o luto com a honra devida".

Na página 3, em Editorial do Director, o Dr. António Fresco escreve, sob o título Contra os canhões:

“Estão profundamente marcadas na memória de muitos portugueses as recordações incómodas da Guerra do Ultramar, cujo principal mérito foi o de transformar milhares de jovens inocentes, filhos de um deus menor, em mártires, bodes expiatórios de uma culpa que nunca foi sua, pagando pecados que nunca cometeram. Estes foram os verdadeiros mártires de Abril.

"Se pode dar-se razão à máxima de que não há revolução se o sangue não correu, é possível dizer que este sangue derramado por jovens portugueses em África chegou a Lisboa e fez os seus efeitos. Mesmo ficando em Tite, em Guidaje, no Quanza, no Uíje, no Niassa e em muitos outros sítios cujos nomes nos parecem exóticos mas que para muitos ainda soam a medo e a guerra. Muitos que a protagonizaram e sofrem efeitos que nunca mais se apagaram e muitos outros, famílias inteiras, obrigados a conviver com a dor da perda irreparável.

"E muitos, por razões que a razão não compreende, não puderam sequer fazer um luto devido, uma vez que os corpos dos seus por lá ficaram. É o caso do soldado Lourenço, que hoje ocupa uma parte significativa do AuriNegra. Deixado para trás, no meio da devastação e no teatro da guerra mais sangrenta, na fronteira da Guiné com o Senegal, o filho de Fornos, Cadima, foi enterrado à pressa, embrulhado num lençol e lançado a uma terra com a qual só teve a ver porque uma guerra estúpida a isso o condenou.

"Mais de trinta anos depois, os restos mortais continuam a ser reclamados. E há gente de armas que entende ser dever da Pátria recuperar aqueles que morreram em seu nome. Esta Pátria que nos incita, ainda hoje, contra os canhões, marchar, marchar, não pode ignorar e não pode deixar ninguém para trás.”

O tema ocupa ainda e integralmente as páginas 9, 10 e 11.

Na página 10, com uma fotografia dos pais do Lourenço, desenvolve-se um artigo sob o título Deixado para trás > GUERRA NO ULTRAMAR > Soldado Pára-Quedista de Fornos, Cadima, morto em combate há 33 anos, permanece sepultado no mato a norte da Guiné.
O jornal resume assim, o texto desta página: “Um cemitério improvisado nas imediações do então aquartelamento de Guidaje, a norte da Guiné, guarda, desde 1973, os restos mortais de José de Jesus Lourenço, soldado pára-quedista natural da localidade de Fornos, freguesia de Cadima. O corpo foi enterrado em campo aberto juntamente com os de mais nove combatentes, (outros dois pára-quedistas, cinco soldados do Exército e dois nativos) e nunca foi resgatado, contrariando a máxima dos pára-quedistas segundo a qual ninguém fica para trás".

O jornal identifica ainda os outros sete camaradas do recrutamento metropolitano e esclarece que “em estudo está a abertura de uma conta no banco através da qual amigos e militares possam contribuir”, para os custos das transladações.

Na página 10 o Jornal desenvolve dois artigos, o primeiro sob o título Morte heróica: Soldado de Fornos levou tiro fatal quando tentava salvar camarada ferido.

Como resumo deste título escreve: “A morte do soldado pára-quedista, de 19 anos, da localidade de Fornos, Cadima, ganha nova dimensão quando se conhecem as circunstâncias em que ocorreu. Num depoimento oficial, o sargento da companhia de que José de Jesus Lourenço fazia parte afirma que o pára-quedista encontrou a morte quando tentava retirar um camarada ferido da zona de morte”.

No segundo artigo sob o título Na guerra por opção, José de Jesus Lourenço foi para a tropa como voluntário para despachar o serviço obrigatório.

Com resumo escreve: “Foi o desejo de despachar a tropa que, segundo os seus pais, ainda vivos, levou José de Jesus Lourenço a oferecer-se como voluntário, tinha então 18 anos. Caso não o tivesse feito, provavelmente seria chamado a cumprir o serviço militar cerca de dois anos depois, já depois do 25 de Abril, pelo que dificilmente se bateria pela Pátria no então Ultramar.”

Integrando ainda este artigo são feitas diversas referências à pessoa do Lourenço, todas elogiosas, da responsabilidade de vizinhos e amigos que com ele conviveram e trabalharam.
A página 11 é preenchida com um resumo das operações em torno de Guidaje, particularizando-se aquelas em que interveio a companhia do Lourenço, resumo este, de minha própria responsabilidade, e o mapa do improvisado cemitério.

A contribuição do jornal que, justificada e compreensivelmente, enfatiza toda a investigação em torno do soldado Lourenço, filho da terra, é no mínimo de grandiosidade jornalística e de extrema utilidade, para os nossos propósitos.

A justificação da componente social desta investigação encontrámo-la, quando, já em Fornos, a jornalista, eu e um camarada dos combates na Guiné, que nos acompanhava, interpelámos um habitante sobre o local onde moravam os Senhores (dizíamos o nome dos pais do Lourenço). O homem em causa, que aparentava pouco mais de 30 anos, afirmou não conhecer as pessoas cujos nomes lhe citávamos, mas quando lhe dissemos “são os pais de um soldado Pára-Quedista que morreu na Guiné e o corpo não veio”, o homem respondeu: “Ah, já sei, é ali”. Este episódio revela o quanto a sociedade tem preservado e transmitido às gerações seguintes este lamentável episódio daquele lugar, pois o homem que interpelámos não se pode recordar de algo que aconteceu quando ainda não era vivo: tem-lhe sido transmitido.

Conscientes da componente social de que se reveste o nosso objectivo e da notável contribuição do jornal AuriNegra, cuja abertura da conta bancária nos poderá proporcionar o último meio que nos falta, o monetário, seguimos em frente até entregar às suas famílias os restos mortais dos nossos camaradas que FORAM DEIXADOS PARA TRÁS.

Um abraço a toda a tertúlia, em especial, e a todos os leitores em geral.
Manuel Rebocho
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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de:

14 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P877: Nós, os que não fazemos parte da história oficial desta guerra (Manuel Rebocho)

28 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P919: Vamos trasladar os restos mortais dos nossos camaradas, enterrados em Guidage, em Maio de 1973 (Manuel Rebocho)

21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1099: O cemitério militar de Guidaje (Manuel Rebocho, paraquedista)

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