quarta-feira, 15 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

Guiné > CCAÇ 2402 (Có / Mansambá, 1968/70) > Emblema da unidade




Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > "De pé e da esquerda para a direita, o primeiro sou eu, o segundo é o Francisco Silva e a seguir o Medeiros Ferreira. Só falta nesta fotografia de grupo o Beja Santos, que, por qualquer razão, andava desenfiado. Também aqui falta o comandante da companhia, Capitão Vargas Cardoso" (RA).




Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > De pé, da esquerda para a direita: Aspirantes Francisco Silva e Raul Albino, e Capitão Vargas Cardoso.


Lisboa > Paquete Uíge > A CCAÇ 2402, pertencente ao BCAÇ 2851 partiu para a Guiné a 24 de Julho de 1968, com as restantes companhias do seu batalhão, e ainda na companhia do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70).

Texto e fotos: © Raul Albino (2006)


Damos início à publicação das memórias de campanha do ex-alf mil da CCAÇ 2402, pertencente ao BCAÇ 2851 (, Mansabá, Olossato, 1968/70), que embarcou no Uíge, em finais de Julho, juntamente com o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (1).

Partida para a Guiné

A Companhia de Caçadores 2402 do Batalhão de Caçadores 2851, formou-se no Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora.

Embarcou no paquete Uíge a 24 de Julho de 1968, com destino à Guiné. O BCAÇ 2851 foi acompanhado na viagem pelo BCAÇ 2852.

Achei imensa graça a esta poesia popular, sentida, do soldado António Maria Veríssimo, militar da nossa companhia, retirada do seu livro de poesia Diversos.


Uíge! Volta para a terra,
Muda de rota, de direcção,
Não nos leves para a guerra.

Por favor! Pára p’ra pensar,
Não corras tanto,
Navega mais devagar.

Somos crianças, que vais deixar
Na guerra do Ultramar.
Porque não queres a rota mudar ?

Uíge! Não sigas p’rá guerra,
Muda de direcção! Muda de rota!
Volta p’rá nossa terra
.

A M Veríssimo


Mas voltemos um pouco atrás, mais propriamente à altura em que a companhia se formava na Amadora, comandada pelo então Capitão Vargas Cardoso.

Estive inicialmente incluído na formação, em Évora, de uma companhia independente com destino a Timor. A minha felicidade era imensa, como podem calcular. O quartel de preparação da companhia era o R. I. 16, aquartelamento que na altura mais parecia um museu militar em decadência. Não possuía instalações suficientes, pelo que os oficiais eram convidados a procurar alojamento no exterior. A alimentação também era no exterior, salvo erro, numa unidade de artilharia, que não recordo o nome.

Do que me recordo bem – além da simpatia para connosco das raparigas que estudavam em Évora – era do parque de obstáculos para o treino dos militares:

(i) A Ponte interrompida estava tão interrompida pela podridão das madeiras, que foi considerada vedada ao trânsito;

(ii) A Vala estava seca, o que não seria de estranhar nos tempos actuais com as temperaturas elevadíssimas que temos, mas naquela época só se tinha alguma rotura e como os engenheiros tinham ido para a guerra, as valas tinham virado alfobres, com alguma terra no fundo e ervas a crescer;

(iii) As Paliçadas estavam decadentes, com a madeira apodrecida, não aconselhando a sua utilização sem um seguro contra todos os riscos;

(iv) O Pórtico dava graça de tão baixo que era, parecendo ter-se enterrado no chão com o tempo, mas mantendo-se gloriosamente de pé, com as cordas puídas pendentes;

(v) Lá nos entretínhamos a saltar o Muro e mais algumas brincadeiras. Mesmo o muro, devido à idade avançada, a altura mais alta (1ª), parecia a intermédia (2ª) e a intermédia, devido ao desgaste, estava quase alinhada com a baixa (3ª). Um paraíso portanto. E como eu gostava de lá estar …

Mas foi sol de pouca dura. Ao fim de cerca de três semanas de exercícios, chega uma ordem de dissolução da companhia e redistribuição dos militares. Para mim saiu-me na rifa a rendição individual de um aspirante de uma companhia em preparação na Amadora que iria seguir para a Guiné, a CCAÇ 2402.

Qual pára-quedista, fui cair no meio de um barril de pólvora, que outro nome não se pode dar à composição do quadro de oficiais da companhia em formação. Inicialmente o quadro de oficiais era constituído pelos membros abaixo indicados e eu vi-os, na altura, da seguinte forma:

(i) Capitão Vargas Cardoso – Militar de carreira, de perfil autoritário, muito organizado, com tendência para controlar tudo e todos. Gostava de ser considerado como um pai para todos os seus militares;

(ii) Aspirante Francisco Silva – Formação académica no sector das Letras, politizado tanto quanto a vida académica o permitia, parecia ser um militar apostado em cumprir a sua comissão sem hostilizar ninguém. Para melhor o identificar, ele foi, há poucos anos atrás, Embaixador de Portugal na Guiné-Bissau, além de outros cargos diplomáticos;

(iii) Aspirante Medeiros Ferreira – Formação académica no sector das Letras, altamente politizado, parecia querer levar a comissão até ao fim, mas, se assim era, depressa compreendeu que essa pretensão não era fácil de concretizar. Creio que todos se recordam dele, foi Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal;

(iv) Aspirante Beja Santos – Também oriundo do sector das Letras, politizado, este elemento dispensa apresentação, pois todos o conhecem, pelo menos, como um dos nossos tertulianos mais versáteis na arte de bem escrever, como o Tigre de Missirá, ou pela sua cruzada em defesa do consumidor;

(v) Aspirante Raul Albino – Resto eu, com formação Contabilística e não politizado. Esta minha formação permitiu-me ser inicialmente seleccionado para o CSM na especialidade de Contabilidade e Pagadoria, o que me tornou no mais feliz dos militares ao cimo da terra. Mais uma vez a sorte me foi madrasta, pois acabei – não sei como – por ser reclassificado para o COM, nas especialidades de Atirador Especial e Minas e Armadilhas. Será que viram em mim a capacidade de disparar números e armadilhar escritas?

Viria a crescer posteriormente com a Informática, ao longo de 30 anos na IBM, na especialização de grandes e médios sistemas. Os micro sistemas têm sido para mim um hóbi de velho, que tem a virtude de me manter afectiva e minimamente ligado aos tempos do pioneirismo informático da minha juventude.
– Mas – dirão vocês – onde está o barril de pólvora?

Pois, o barril consistia no clima explosivo que se tinha criado no relacionamento entre o Capitão e os seus Aspirantes.

Quando eu chego ao grupo vejo o Capitão preocupado com a circunstância de levar para a Guiné a dupla Medeiros Ferreira/Beja Santos, sobre os quais não conseguia ter o controlo pretendido e com a perspectiva do relacionamento vir a degradar-se ainda mais com o passar do tempo.

Quanto ao Francisco Silva, não o vi preocupado em sua relação, talvez pensando que ele seria mais fácil de controlar. Algum tempo após a minha chegada, confidencia-me ele (por estas palavras ou semelhantes):
- Sabes? Creio que temos letrados a mais na companhia! – ao que eu lhe retorqui:
- Bem, para compensar, agora tem-me a mim que não sou de Letras, sou de Números!

Depressa me apercebi ao longo desta conversa, por sinal bastante infeliz, que não era mais que uma tentativa de aliciamento da minha pessoa para a sua causa. Tentativa semelhante ter-me-á feito o Medeiros Ferreira. Tentativas inúteis, porque eu era um indivíduo convictamente independente, avesso a alinhamentos e não politizado. Além disto era ingénuo, porque julgava que me podia manter neutral, com o equilíbrio existente a manter-se ao longo da comissão.

Ainda hoje uma dúvida me afecta a alma. Terá a minha resistência a alinhamentos, – comunicada ao Medeiros Ferreira – influenciado de algum modo o desenrolar dos acontecimentos que se seguiram no seio do grupo?

Duas a três semanas antes da partida da companhia, eu era enviado com um sargento, em avião militar, para a Guiné, com a missão de preparar a chegada da companhia em termos de material e equipamento. O que se terá passado durante esse período de tempo, escapou-me, na altura, ao meu conhecimento pessoal, razão pelo qual não o abordo aqui, especialmente agora que o melindre e crítica à falta de rigor se instalaram no seio dos nossos tertulianos, com o caso Ranger Eusébio (2) a servir de exemplo.

A minha surpresa não teve descrição, ao constatar que a companhia chegava à Guiné com duas baixas no quadro de Oficiais: o Medeiros Ferreira e o Beja Santos (2). O capitão tinha ganho a primeira batalha (pessoal), mesmo antes de chegar ao teatro de guerra.

Senti a minha cruz começar a ficar mais pesada...

Raul Albino

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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

17 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1082: Notícias da CCAÇ 2402 e do BCAÇ 2851 (Raul Albino)

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1105: Como escrever um livro de memórias de guerra 'à la carte' (Raul Albino, CCAÇ 2402)

4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1246: O meu livro Memórias de Campanha da CCAÇ 2402 (Raul Albino)

(2) José Medeiros Ferreira, hoje com 64 anos, é professor universitário (Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Nova de Lisboa) e escreve regulamente no blogue, de que é co-editor, Bicho Carpinteiro. E-mail: bichoscarpinteiros@hotmail.com
 


Capa do livro de José Medeiros Ferreira, "Memórias anotadas" 
(Lisboa: Temas e Debates, 2017, 468 pp) (Cortesia da editora)
 

Açoriano da Ilha de São Miguel, nasceu em Ponta Delgada, em 1942... Desertou em 1968, quando estava mobilizado para a Guiné (CCAÇ 2402). Licenciou-se em Ciências Sociais, em Genebra, Suíça. Militante e dirigente do PS, ocupou o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros no I Governo Constitucional (1976/78), presidido por Mário Soares. No início de 2006, desligou-se de todos os cargos dirigentes no seu partido, voltando à condição de militante de base...Morreu em 2014.




Dr. Mário Beja Santos, conhecido especialista no domínio os direitos do consumidor. É assessor principal do Instituto do Consumidor. É também membro da nossa tertúlia...

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados
 

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