sexta-feira, 17 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)






Guiné > Bissau > 1972 > Diversos documentos de despesa, remetidos pelo Carlos Vinhal, relativos às suas estadias em Bissau: (i) Pensão, bar e restaurante Chez Toi; (ii) Hotel Portugal; (iii) Agência de Viagens Correia; (iv) Mamaud Elawar & Cia Lda.

Foto: © Carlos Vinhal (2006)

Recebi vários e-mails do Carlos Vinhal, com documentos em anexo que nos dão indicações, interessantes, sobre o custo de vida em Bissau no nosso tempo. O Carlos Vinhal foi Fur Mil Art e Minas e Armadilhas da CART 2732 (Mansabá,1970/72). Reside na Leça da Palmeira e é um dos tertulianos activos... Com este post do Carlos, damos continuiddae à série Estórias de Bissau (1).


1. Luís: Junto envio uma factura referente à compra de um rádio-gravador que curiosamente há poucos dias foi parar ao ecoponto. A compra foi efectuada numa daquelas casas de comerciantes libaneses que enxameavam Bissau e arredores. Dir-se-ia que eram os chineses lá do sítio.


2. Luís: Junto envio uma factura referente à estadia de dois dias no Hotel Portugal, onde estive na companhia dos camaradas Furriel de Alimentação Costa e Cabo Maciel. Como te deves lembrar, podíamos ser muito ricos, que mesmo assim nos estava interdito o acesso ao Grande Hotel, onde só podiam ficar Oficiais (por mais labregos que fossem) e civis. Nós, os furrielitos, praças e demais maltrapilhos estávamos confinados ao melhor que havia, nomeadamente o Hotel Portugal ou o Chez-Toi.

A propósito do ChezToi, eles tinham um desdobrável, do qual junto parte, que sucessivamente ia aparecendo: Abra com cuidado, Desdobre de vagar e leia com atenção, Vá..., comer..., no..., CHEZ TOI... Especialidade em Cachupa Rica, etc.

Uma curiosidade...


Guiné > 1971 > Cópia de uma nota de cem escudos da Guiné (ou pesos), emitida pelo BNU (Banco Nacional Ultramarino), em circulação no nosso tempo.

Foto: © Jorge Santos (2005). Direitos reservados


Guiné > 1971 > Cópia de nota de 5o escudos (pesos) da Guiné. Frente. Imagem gentilmente enviada à nossa tertúliua pelo Sousa de Castro.

Foto: © Sousa de Castro (2005). Direitos reservados.


3. Luís: Junto envio, por fim, uma cópia da factura do pagamento da minha viagem à Metrópole. Dei 6.000$00 (dos de cá) à Agência de Viagens Correia para pagar a despesa de 6.430$80 e ainda recebi de troco cerca de 170 pesos.

Mando-te esta e outras facturas por as achar históricas, mas farás delas o que quiseres que eu não tomarei a mal. Juro que comigo podes estar à vontade. Aquilo que, indo da minha parte e no teu critério não acrescentar nada ao blogue, podes arquivar no ficheiro morto (vulgo cesto de papéis), sito por baixo de qualquer secretária que se preze.

4. Comentário de L.G.:

Carlos: Eu admiro o teu espírito de coleccionador! Como é possível teres guardado, estes anos todos, estes documentos, relativos a compras ou despesas efectuados em Bissau em 1972, numa moeda que já não existe mais... A não ser que já na altura tu tivesses a visão premonitória da criação do nosso blogue!!!... Para muitos camaradas nossos, estes papéis já não têm qualquer sentido ou significado. Seguramente, para ti, que os guardaste, eles têm algum valor, sentimental ou documental... E ainda bem que os guardaste e quiseste partilhá-los connosco... Eles fazem parte das nossas memórias e das nossas estórias de Bissau por onde todos nós - pessoal do mato - éramos obrigados a passar, nem que fosse por umas horas ou por uns dias; dão, além disso, informações preciosas sobre a economia de guerra... Obrigado, camarada. Aqui nada vai parar ao caixote do lixo, garanto-te. E, quanto mais não seja, podemos vir a entregar os documentos originais ao Arquivo Histórico-Militar...

Já há tempos, na anterior edição do blogue, eu tinha lançado um desafio aos membros da nossa tertúlia, para tentar saber o que se comprava na altura com... cem pesos... Chegámos à conclusão que era... manga de patacão! (Carlos, fico a saber que, já no teu etnpo, em 1972, uma nota de 100 não chegava para pagar uma noite no Hotel Portugal... E obrigado por me teres trazido à memória do Chez Toi: também tenho lá uma ou duas estórias para contar...).

Aqui ficam alguns excertos desses posts do Blogue-fora-nada (2):

Luís Graça:

"Eu tenho ideia que [cem pesos] era manga de patacão, pessoal ! Eu já não me recordo quanto pagava à lavadeira, em 1969/71, mas se fosse serviço extra, era capaz de lhe dar uma nota destas. A minha não fazia favores sexuais, mesmo em dias de festa: não era cristã nem animista, era uma fula, recatada e virtuosa…

"Mas em Bissau ou em Bafatá, uma queca (como os nossos filhos e as nossas tias dizem agora, 'tás-a-ver...) podia custar uma nota (preta) destas... Já não me lembro das cotações no lupanário em tempo de ocupação e de guerra... As verdianas do Pilão, essas, podiam ser até mais caras…

"Com uma nota destas, ó tuga, tu compravas duas garrafas de uísque novo (disso lembro-me bem…). O Old Parr (uísque velho, muito apreciado lá e cá) já custava mais: 130 ou até 150 pesos, se não me engano…

(...) "Ainda em matéria de comes & bebes, um quilo de camarões tigres, do Rio Geba, comidos na tasca do tuga que era turra (ou, pelo menos, suspeito de vender e comprar vacas aos turras), em Bambadinca, com uma linda vista para o rio, custava cinquenta pesos… Um bife com batatas fritas e ovo a cavalo (supremo luxo de um operacional como eu ou o Humberto) na Transmontana em Bafatá já não me lembro quanto custava (talvez vinte a vinte e cinco? ).

"Ainda me lembro, isso sim, de o vagomestre comprar uma vaca raquítica por 950 pesos, depois de bater não sei quantas tabancas da região de Bambadinca… Nas tabancas, fulas, por onde passei e onde fiquei, uma semana ou mais, era costume comprar, mesmo a custo, galinhas e frangos, mas já não me lembro quanto pediam pelos bichos de capoeira (sete pesos e meio?)… As ostras em Bissau custavam 20 pesos (uma travessa)… E por aí fora.

(...) "De qualquer modo, o que comíamos e bebíamos [, em Bissau,] era praticamente tudo importado...O grande ventre de Bissau era alimentado por uma economia de guerra que deu dinheiro a ganhar a muita gente... Manga de patacão, pessoal! ... Desde as rachas de cibe e o cimento para os reordenamentos (a construção de aldeias estratégicas, como a de Nhabijões, deve ter ajudado a dourar a reforma de muita gentinha mais patriótica do que eu) até aos transportes (civis) em comboios militares, sem esquecer os efeitos (mais nefastos do que benéficos) que a guerra teve na pobre economia natural dos guinéus.

Um deles foi a sua própria militarização. Nos últimos anos da guerra, tudo girava à volta (e vivia) da guerra. A guerra tornou-se, ao mesmo tempo, o ópio e a grande sanguessuga dos guinéus (e dos próprios tugas). E a prova disso, trinta e tal anos depois, é a bidonvilização, a lumpenproletarização da população que engrossou Bissau" (...).

Humberto Reis:

(...) "Das chamadas meninas & vinho verde não me lembro, mas dos produtos que eu mais consumia, entre 69 e 71, não me esqueci: Um maço de SG Filtro: 2,5 pesos (sempre que saía para o mato levava 3 a 4 maços para 2 dias); uma garrafa de whisky novo (J. Walker Juanito Camiñante de 5 anos, rótulo vermelho, JB): 48,50 pesos; idem, de 12 anos, J. Walker rótulo preto, Dimple, Antiquary: 98,50; idem, de 15 anos, Monks, Old Parr: 103,50; um whisky, no bar da messe, eram 2,50 pesos sem água de sifão e com água eram 3,00 pesos...

"Quanto à lerpa, ou ramim, uma noite boa, ou má, poderia dar (valor médio) 200 a 300 pesos para a lerpa e 50 a 100 para o ramim.

(...) "Já não me lembro da maioria dos preços mas tenho uma ideia de que uma viagem na TAP em Março de 1970, Bissau-Lisboa-Bissau, me custou à volta de 6 contos e nós ganhávamos cerca de 5.

"O pré dos soldados era de 600 pesos os de 2ª, 900 pesos os de cá e os cabos 1200 pesos. Eu sei dessa diferença pois tinha no meu Gr Comb o Arménio (o vermelhinha) que foi como soldado, visto que levou cá uma porrada (foi apanhado numa rusga pela PM no Porto quando já estávamos no IAO em Santa Margarida) que lhe lixou a promoção.

(,..) "Sei bem, isso não me esqueceu, que o visque era mais barato que a cervejola : 2,50 simples contra 3,00 ou 3,50, além de que dava direito, o whisky, a gelo. As cervejas nunca estavam suficientemente geladas pois os frigoríficos da messe, a petróleo, não tinham poder de resposta para a quantidade de pedidos.

"Não se riam, meus amigos, com a expressão frigoríficos a petróleo, pois era assim mesmo que funcionavam, visto que o gerador eléctrico [de Bambadinca] só trabalhava à hora de almoço e depois durante a noite" (...).

A. Marques Lopes:

"Interessante também esta reflexão (fez parte da nossa vida). No entanto, eu, pessoalmente, muito pouco posso dizer. Lembro-me que pagava 5 pesos quer à minha lavadeira de Geba quer à de Barro; além da lavagem também trabalhavam com as mãos (eram fulas, pois).

"Quanto a tainadas e saber o preço delas, é um bocado difícil pois nunca tive tempo para muitas... Só sei que, quando em Bissau à espera de embarque, paguei 5 pesos aos miúdos que andavam perto do Bento (a 5ª Rep...) a vender sacos de camarão.

(...) "No Pilão, frequentei várias vezes a Fátima, que não era caboverdiana mas sim fula, e dava-lhe 50 pesos de cada vez. Uma rapariga esperta: uma noite, a Fátima propôs-me que eu trouxesse uma grade de cervejas do QG para ela vender aos visitantes (era giro ouvi-la gritar da cama: Está ocupado!, quando os páras ou os fusos batiam à porta dela), dava-me metade da venda (não entrei nisso, claro) " (...).

Sousa de Castro:

"Quero dizer-vos que no meu tempo (1972/74) não era muito diferente: os preços que se praticavam eram mais ou menos os mesmos...

(...) "Puxando um pouco pela memória, eu como 1º cabo radiotelegrafista ganhava 1.500$00, sendo 1.200$00 por ser 1º cabo e mais 300$00, de prémio de especialidade.

"A dita queca, se a memória não me trai, creio que era assim: para os soldados cinquenta pesos; para os cabos sessenta pesos; a partir daqui não me lembro quanto pagavam os mais graduados... Quanto às cabo-verdianas, a coisa era de facto mais cara, em final de comissão paguei cento e cinquenta ou duzentos pesos, isto em Fevereiro de 1974.

"Recordo que, com um peso, comprava quatro ou cinco bananas. Os uísques novos como o Johnnie Walker (cavalo branco) e outros custavam, em 1972/74, cinquenta pesos; o Dimple 100 pesos; o Old Parr 150 pesos; e havia o Monks, a 250 pesos" (...).

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 14 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

(2) Vd. post de:

1 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXII: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (2) (Luís Graça / Humberto Reis)

28 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXIX: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (1) (Luís Graça / Humberto Reis / A. Marques Lopes / Luís Carvalhido / Jorge Santos)

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