quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1324: Blogoterapia (6): Ir a sortes... ir p'ra guerra (Zé Teixeira)

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Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) > 1968 > o 1º Cabo Enfermeiro Teixeira junto a um obus 14 (ou 140 mm), "apontado para a fronteira" [com a República da Guiné-Conacri].

Foto: © José Teixeira (2005). Direitos reservados.


A sorte de ir para a guerra
por Zé Teixeira

Ir a sortes nos anos sessenta/setenta, era o abrir da porta que dava acesso a três anos de tropa na melhor das hipóteses, quando não eram quatro ou cinco, com uma passagem quase certa pela guerra colonial, com todos os riscos de uma guerra, para a qual, nós os mais jovens, não estávamos moralmente e psiquicamente preparados, apesar de toda uma doutrinação política.

Guerra lá longe, em tórridas e desconhecidas terras, contra povos autóctones, de estranhos costumes, conhecedores naturais do terreno que pisavam, com climas (dizia-se) altamente doentios, enfim, gentes armadas da vontade de se verem livres da tutela que Portugal teimava em manter, remando contra a corrente dos tempos. Vontade essa, bem alimentada pelas grandes, médias e até pequenas potências mundiais. Enfim, só alguns teimavam em manter-se cegos para não verem a realidade.

Começava no dia das sortes o drama que afectava o mancebo (candidato a cidadão) e toda a família. A religiosidade aculturada movia de imediato as mães a fazerem uma promessa de irem a pé a Fátima se o seu menino escapasse à guerra. Moviam-se os cordelinhos, quando era possível, onde entrava a presuntaria saborosa ou os contos de réis para os mais abastados, numa tentativa, tantas vezes frustada e frustrante, de evitar a mobilização.

A grande maioria não possuía condições para tais aventuras e submetia-se à sua sorte aguardando com esperança que o seu menino fosse um dos poucos a quem não coubesse a infelicidade de ser sorteado com o prémio da mobilização.

O tempo da recruta voava rápido. Vinha a especialidade, com a maioria a cair na malfadada especialidade de atirador – passaporte para carne para canhão.

Grande parte dos, agora, cidadãos da Pátria partia quase de imediato, porque a guerra não sabia (nem podia) esperar. Alguns ficavam um mês, dois... um ano.

Tempo de agonia que ia largando ao de leve o fumo da esperança de escapar, mas... quando menos se esperava, lá vinha o fatal convite.

Restavam uns poucos felizardos que escapavam, como que por milagre, mas desse não reza a história, como diria o Camões se lograsse viver o nosso tempo.



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Guiné > 1968 (?) > Um desdobrável de propaganda das NT. Imagem gentilmente cedida pelo Zé Teixeira.

Foto: © José Teixeira (2005). Direitos reservados.

O tempo de espera, sobretudo depois da especialidade, era dramático. Quanto mais passava, mais alimentava a esperança de escapar. Eu estava comodamente em casa a gozar o meu primeiro mês de licença a oito dias da saída da escola de enfermagem da incorporação seguinte. Sonhava já com um mês no quartel e outro de licença (a especialidade assim o permitia). Tinha recomeçado a estudar. A tropa ia ser canja !

Mais eis que chega o carteiro com o maldito papel da guia de marcha, não para Coimbra, mas para Abrantes!!! Abria-se nova página na minha vida. Página que levou dois anos a dobrar, que ainda não está totalmente escrita, tantas foram as marcas que deixou.

Dois meses de preparação na técnica guerrilheira e anti-terrorista(será correcto afirmar isto?) e psicológica, profundamente marcados por dúvidas e incertezas, pelos olhos inchados de uma mãe que teima em sorrir para esconder as lágrimas que lhe varrem o coração e depois o embarque para um mundo desconhecido, a Guíné - terra que pisei pela primeira vez em S. Vicente, no Cacheu.

Do antes ficaram alguns resquícios de poesia, forma subtil que encontrei para espantar os fantasmas. Do depois a história que fale.


MARCHA PARA A GUERRA

Estava no campo,
Regando o milho,
Seguindo o trilho
Da vida vivida,
Sempre a trabalhar.
Da tropa, de folga,
Bailava a esperança
De não ir ao Ultramar.

Ai que sorte a minha !
Ver os outros a marchar
E eu a ficar.

O Carteiro veio,
À porta bateu.
Um coração de mãe estremeceu.
Maldito papel,
Que na mão trazia.
O seu filho ia roubar.
Correu para o campo,
As lágrimas nos olhos.
A guerra veio-te chamar.

Ai que sorte a minha!
Ver os outros a ficar
E eu a marchar.

Meti na sacola
Um bocado de pão,
Estendi a mão.
Dei muitos abraços,
Parti a cantar.

Ai que sorte a minha
Ver os outros a ficar
e eu a marchar.


CARNE PARA CANHÃO

Lá no Quartel
Que em Abrantes ficava,
Comecei a aprender,
Como se matava.
De canhota ao ombro,
Ouvido apurado,
Grita o Capitão.
O Turra é como um ladrão,
Ele vem de qualquer lado.

A comida era boa,
Refeição abonada.
Parti para manobras,
Logo de madrugada.
Gritava bem alto,
Este é o meu fado.
Carne para canhão.
O Turra é como um ladrão
Ele vem de qualquer lado.

A noite chegava,
Serena e calma.
Triste como a noite,
Ficava a minha alma.
Gritava bem alto
Este é o meu fado.
O turra é como um ladrão
E vem de qualquer lado.


AMOR EM TEMPO DE GUERRA

Ver-te chegar à minha vida, amor.
É sofrer.
Por saber que para a guerra, eu vou.
Dizem que a Pátria me chama.
Já cá não estou para a semana.
Tu que nesta aventura quiseste entrar,
Acreditas no futuro ?
Estranha forma de amar.
Estranha forma de ser.
A razão do meu viver.
De lutar,
Para voltar, direito.
Escorreito.

Voltarei.
Gritei, na despedida, lembras-te ?
Quando o comboio apitava.
Um corpo morto, ele levava,
Ficava contigo o coração.
Sentado no degrau da Estação,
Enquanto me interrogava.
Que mundo vou conhecer ?
Que Pátria vou defender ?
Será que terei de matar
para viver
...E regressar
Direito.
Escorreito.

Estranha forma de ser.
O desafio aceitar.
Dois anos tu vais ficar,
Tu e eu a sofrer.
Ambos vamos sonhar.
Estranha forma de amar.
A razão do meu viver.
De lutar para voltar
Direito.
Escorreito.


À MINHA MÃE.

Minha mãe, eu vou para a guerra,
Não sei se vou matar.
Não sei se vou viver p'ra voltar.
Porque me ensinaste o amor.
Porque me ensinaste a semear
O bem.
A paz.
Se vou espalhar sofrimento, dor !
Minha mãe, eu vou para a guerra,
Atravessar mares, florestas,
Outros povos, outra terra.
Lutar.
Mas eu não quero matar.
Vem comigo.
Dá-me a mão
Aperta-me contra o coração
Diz-me que eles
Os donos da Pátria.
Não têm razão.

José Teixeira

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