quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1346: PAIGC - Propaganda (1): morte aos colonialistas portugueses e seus cachorros (Carlos Vinhal / Mário Dias / Luís Graça)

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Um guerrilheiro do PAIGC no seu posto de sentinela, na margem de um rio. Fonte: Pelas regiões libertadas da Guiné (Bissau). República Popular da China, Pequim: Edições de Línguas Estrangeira. 1972.

Foto: © Agência de Notícias Xinhua (1972) (com a devida vénia...) (1)





Guiné > Panfleto propaganda do PAIGC, escrito em crioulo (frente e verso). Sem data. A tradução de Mário Dias, reproduzida mais abaixo.

Fotos: © Carlos Vinhal (2006). Direitos reservados.


1. É verdade, João Tunes (2): O nosso blogue não conta a verdade toda, não representa o verso e o reverso da medalha. É inevitavelmente parcelar. Objectivamente, estávamos de um lado. Como em qualquer guerra, há sempre dois lados, duas trincheiras, duas bandeiras, dois exércitos, dois povos... Infelizmente, falamos aqui pouco dos homens e das mulheres, guineenses, caboverdianos e cubanos, que, na Guiné, lutaram contra nós (e nós contra eles). Somos parcos em palavras, quando nos referimos a eles (e elas): IN, inimigo, turras, PAIGC… Uma vez por outro, guerrilheiros, combatentes, militantes… A linguagem era depreciativa, mas no fundo havia respeito e temor pelo inimigo...

Tínhamos uma visão local, maniqueísta e redutora, do conflito: gente de Madina/Belel, escreve por exemplo o Beja Santos em Missirá…Um eufemismo de hoje ? Vizinhos, ao fim e ao cabo. Indesejáveis vizinhos que lutavam pelo controlo de recursos, território, bolanhas, rios, trilhos, picadas e, sobretudo, populações… Fazíamos visitas uns aos outros, de vez em quando. Nada amistosas, por sinal. E a desoras. Às tantas da manhã, ou da noite. Muito raramente ao meio dia. A hora do almoço era sagrada. Só me recordo uma vez termos atacado, justamente em Madina/Belel, um objectivo IN, às duas da tarde... É certo que pagámos caro a quebra do acordo tácito... Porque também havia acordos de cavalheiros naquela guerra que oficialmente não existia... Por outro lado, tínhamos uma estranha maneira de nos cumprimentar quando nos cruzávamos no mato… Às vezes, aleijávamo-nos mutuamente. Às vezes matávamo-nos, uns aos outros.

Que sabíamos nós, uns dos outros ? Muito pouco ou nada. Da gente do mato (sic), conhecíamos as suas armas, sabíamos distinguir o cantar da costureirinha , o matraquear da kalash, o silvo do morteiro… A cor e o feitio das granadas, de RPG ou de canhão sem recuo, com caracteres chineses ou cirílicos (russos)… Mas, e os homens, e as mulheres, as crianças e os velhos que viviam no mato (regiões libertadas, diziam eles) ? Viamo-los, ao longe, quase sempre do ar, a cultivar o arroz na bolanha ou na montar segurança na orla da floresta… Uma vez por ano, fazíamos raides punitivos, queimávamos umas tantas moranças, abatíamos as suas vacas, destruíamos algumas toneladas de arroz… Mas a maior parte dos dias, das semanas e dos meses, ficávamos nos nossos aquartelamentos e destacamentos a guardar a bandeira nacional, o símbolo da nossa soberania, e a curtir a nossa depressão (cacimbados, diziam eles), contando os dias que faltavam para o regresso a casa, ao puto, a milhares de quilómetros de distância...

Quem era essa gente que nos atacava, quase sempre, à socapa, emboscada, escondida atrás das árvores e dos bagabagas, ocultos pelo capim alto ou pelo breu da noite ? Às vezes lá apanhávamos um ou outro, vivo, armado ou desarmado…

Quem era essa estranha gente que nos combatia e que, mais tarde, já lá para o final da guerra, é capaz de gritar, perante as câmaras da televisão francesa, Viva Portugal, abaixo o colonialismo... ?
Vamos começar aqui a divulgar a informação e o conhecimento que temos sobre o PAIGC, que foi objectivamente o nosso inimigo.

2. Mensagem do Carlos Vinhal, de 18 de Novembro de 2006:

Luís: Já agora para compor o ramalhete, envio-te cópia de um impresso (frente e verso) exemplo de acção de contra-psico por parte do PAIGC.

Dá um pouco de trabalho a traduzir, mas é curioso o facto de eles chamarem aos nossos seguidores cachorros de dois pés.

Um abraço

Carlos Esteves Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732
Mansabá 1970/72
Leça da Palmeira
Telemóvel > 916032220


3. Mensagem que mandei ao Mário Dias, o nosso assessor principal para as questões étnico-linguísticas da Guiné, o tradutor oficial da nossa tertúlia para o crioulo, fundador dos comandos da Guiné, hoje retirado no Portugal Profundo, dedicando-se à música coral:

(i) Lá terás que que fazer mais um favor aos teus amigos e camaradas, da Guiné o de traduzir isto, que é para continuares a treinar (e não esquecer) o teu crioulo...

(ii) Já agora diz-me se o crioulo do PAIGC era o da Guiné ou o de Cabo Verde... Ou se estava mais ou menos correcto (refiro-me a esta amostra)...

(iii) Como a população do mato era analfabeta, tenho dúvidas sobre a eficácia destes panfletos, que eram dirigidos aos guineenses que estavam do nosso lado... Que achas ?

(iv) O crioulo de Cabo Verde (havia um para cada ilha...) é diferente do da Guiné ?

Boa continuação no Portugal Profundo



Guiné > Bissau > 1959 > Os 1ºs Cabos Milicianos Mário Dias (o primeiro, de pé, do lado direito) e Domingos Ramos (o primeiro da frente, do lado esquerdo). O Mário e o Domingos fizeram juntos a recruta e depois o 1º Curso de Sargentos Milicianos que se realizou em Bissau, em 1959, e no qual participaram os os primeiros filhos da Guiné. Domingos Ramos era filho de um quadro local da administração colonial portuguesa, com o estatuto de assimilado, expressão cínica usada na época pelas autoridades portuguesas. Ao que sugere o Mário, o Domingos ter-se-á alistado nas fileiras do PAIGC, em Novembro de 1960, depois de ter sido vítima de uma grave injustiça enquanto 1º cabo miliciano, por parte de um oficial português (3).

Antes de morrer prematuramente em combate, em 1966, em Madina do Boé, e de tornar-se um dos heróis da luta de libertação nacional, o Domingos haveria de encontrar-se com o seu amigo e ex-camarada de armas Mário Dias, pela última vez, em 1965... Em circunstâncias insólitas... É uma das estórias mais fantásticas que já li sobre a guerra e a grandeza humana que pode haver mesmo numa situação de guerra.... Foi na região do Xitole, na zona entre Amedalai e os rápidos de Cussilinta, perto da estrada Xitole-Aldeia Formosa-Mampatá... Vale a pena reler o segredo que o Mário guardou estes todos e revelou, em primeira mão, aos seus amigos e camaradas de tertúlia (4). Foi um dos momentos altos do nosso blogue (5).

Froto: © Mário Dias(2006). Direitos reservados.



4. O Mário, que é uma jóia de pessoa, regressado do Portugal Profundo, teve a infinita paciência e a grande generosidade de nos traduzir os panfletos. Mais uma vez (6). Aqui vai o texto dele:


O crioulo da Guiné é diferente do crioulo de Cabo Verde em vários aspectos. Na pronúncia - que varia de ilha para ilha - e na existência em Cabo Verde de um vocabulário mais alargado e adaptado à linguagem contemporânea, com a introdução de palavras mais eruditas que facilmente acrioulam.

O crioulo da Guiné tem-se mantido mais fiel às suas origens no português arcaico sendo, portanto, relativamente menos evoluído. Assim, verifiquei, enquanto vivi na Guiné [, entre 1952 e1966, ou seja, desde os 15 anos até ao0s 29], que, qualquer palavra que não existisse no crioulo tradicional, era simplesmente dita na sua versão portuguesa.

Como já tive ocasião de referir, na Guiné o crioulo era apenas falado, não existindo, pelo menos oficialmente, na forma escrita. Aliás, as próprias autoridades não o permitiriam.

Analisando os panfletos editados pelo PAIGC em crioulo, sou levado a concluir que os mesmos, embora no crioulo da Guiné, terão sido escritos por elementos cabo-verdianos. Neles existem vários termos pouco usuais no crioulo da Guiné e, por outro lado, a escrita nem sempre corresponde à pronúncia que eu ouvia por toda a Guiné. Por exemplo mufunessa (que significa azar, desgraça, pouca sorte) sempre ouvi pronunciar mufneza.

Também não me recordo de ouvir alguém dizer morti mas sim morte; nem portuguis mas português; nem cu sé catchuris mas sim cu si (ou sê) catchoros.

É certo que as línguas são vivas e têm a sua própria dinâmica que vai provocando alterações. Porém, tendo eu saído da Guiné em 1966, e os panfletos em análise serem anteriores a 1974, me parece pouco provável diferenças tão notórias em tão pouco tempo. Daí, eu pensar que a escrita dos panfletos seja de alguém de Cabo Verde, tanto mais que na Guiné não existia o crioulo escrito, enquanto em Cabo Verde já os intelectuais dessa antiga colónia se dedicavam à sua escrita e havia já tentativas da criação de uma gramática de crioulo.

Creio que estes panfletos, que apenas seriam lidos por um reduzido número de guineenses alfabetizados, nem sempre poderiam ser globalmente entendidos devido às diferenças no uso de alguns termos bem como no facto de a grafia usada não corresponder fielmente à pronúncia comummente usada na Guiné.

Feito este pequeno preâmbulo, passemos então ao mais importante: a tradução dos panfletos, respeitando, dentro do possível, a pontuação e grafia.


Irmãos que estão nas tabancas e que receberam armas das mãos dos tugas.


Vede bem o que estais a fazer! Pensai bem no perigo em que vos estais a pôr agora,

porque todos os filhos da nossa terra que pegarem em armas contra nós acabarão

mal, mais dia ou menos dia, quando o tuga verificar que já não lhe servis, fazem-vos

aquilo que fizeram à população de Beli, população de Amdalai e noutros lados.



Irmãos que receberam armas das mãos dos tugas.


É melhor que se juntem a nós, antes que seja tarde de mais porque todo aquele que

repara no erro em que se encontra e quiser juntar-se a nós, não tenha medo de nada

porque na nossa luta não queremos tomar vingança, não queremos matar ou castigar

os filhos da nossa terra! a nossa luta é pela liberdade, respeito, justiça e progresso de

todos os filhos da Guiné e Cabo Verde, que não são cachorros dos tugas! nossa luta,

é luta pela liberdade do povo Africano!


VIVA P.A.I.G.C.!


Morte para os colonialistas portugueses e seus cachorros de dois pés!



Este último panfleto é de difícil tradução por conter expressões com vários sentidos tais como djungutu que significa agachar, baixar-se, e também saltar. Qual o sentido que o autor lhe quis dar?

Contém uma expressão, i ca ta pembi na ragas! que desconheço por completo. As minhas desculpas por tal facto. Não se trata de falta de memória mas sim nunca a ter ouvido.


IRMÃOS,

É bom livrarmo-nos do azar que nos atinge !


Não aceitem que colonialista tuga vos agache (esconda?) atrás dos seus

quartéis, porque todo aquele que se agacha (baixa; esconde) i ca ta pembi

na ragas! [não sei traduzir esta frase] não aceitem receber armas da mão do

colonialista tuga, porque todo aquele que pegar arma do inimigo contra nós,

é inimigo da nossa terra, é inimigo do nosso povo! Não aceitem mais escutar

as mentiras dos colonialistas, porque querem–vos mansos e submetidos

debaixo do seu cativeiro, com vossas mulheres e vossos filhos!



IRMÃOS

Largai o caminho da desgraça e vinde pegar o caminho certo, para a

nossa terra ir para diante.



VIVA P.A.I.G.C.!



Morte para colonialistas portugueses e seus cachorros de dois pés!



Tradução do crioulo: © Mário Dias (2006) (2) . Direitos reservados.


_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 27 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXVII: Com os jornalistas chineses nas 'regiões libertadas' (1972) (A. Marques Lopes)
(2) Vd. post de 4 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1337: O campo de concentração da Ilha das Galinhas (João Tunes)
(3) Vd post de 2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCI: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

(4) Vd. post de 2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIII: Domingos Ramos e Mário Dias, a bandeira da amizade (Luís Graça / Mário Dias)

(5) Vd. post de 2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIV: O segredo do Mário Dias, ex-sargento comando


(6) Vd. pos de:

16 de Maio 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIX: Panfletos de propaganda dirigidos ao 'homem do mato' (Manuel Mata / Mário Dias)

11 de Abril 2006 > Guiné 63/74 - DCXCIV: Panfleto de propaganda, em crioulo, do PAIGC: Irmãos...(1970) (Manuel Mata / Mário Dias)

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