sexta-feira, 17 de março de 2006

Guiné 63/74 - P620: Estórias cabralianas (7): Alfero poi catota noba

Guiné-Bissau > 2005 > Bajuda no banho. 
© José Teixeira (2006)

Simplesmente genial: este camarada, se não existisse, tinha que ser inventado, para compôr ou completar o nosso ramalhete, a nossa caserna, a nossa tertúlia, o grupo (cada vez maior e cada vez mais fantástico) dos amigos e camaradas da Guiné que se reune, virtualmente, todos os dias, sob o espírito, aberto, sadio, maroto, provocador, lúcido, irreverente, desconcertante, descomplexado ... deste Blogue-fora-nada...

Este homem é o Cabral, o Jorge, o nosso Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, que esteve destacado, há muitas luas, nos idos tempos de 1969/71, em Fá Mandinga e depois em Missirá... Na Província portuguesíssima da Guiné, longe do Vietname... Hoje, República da Guiné-Bissau, país independente, de língua oficial portuguesa...

Dele já aqui eu disse (e penso que é o maior elogio que posso fazer dele, na qualidade de seu velho amigo e de fã das suas estórias), que, para além de oficial miliciano, era homem grande, pai, patrão, chefe de tabanca, conselheiro, amigo do PAIGC, poeta, antropólogo, feiticeiro, cherno, mauro, médico, sexólogo, advogado e não sei que mais, um verdadeiro Lawrence da Guiné, que os pares de Bambadinca chegaram a recear (uns, os amigos) ou a desejar (outros, os seus inimigos) a sua total cafrealização... Inimigos é uma força de expressão: em boa verdade, nunca lhe conheci nenhum...

O Jorge mandou-me outra (a sétima) das suas estórias malandras (sic) com o recado (expresso) de "animar as hostes". Ficamos a conhecer outro dos seus múltiplos (e insuspeitados) talentos: desta vez, consertador de catotas... Obrigado, Jorge!


Cabral, Salvador das Bajudas Desfloradas

Finda a comissão, calculem (!), fui louvado. O Despacho do Exmo. Comandante do CAOP 2 referia, entre outros elogios, a minha “habilidade para lidar com a tropa africana e populações”, a qual me havia “granjeado grande prestígio”.

Esquecido, porém, foi o essencial – evitei a dezenas de Bajudas o repúdio matrimonial e a consequente devolução do preço. Essa tão meritória actividade, sim, teria merecido, não um simples louvor, mas uma medalha…

Entre Fulas, Mandingas e Beafadas, as mulheres eram compradas, alcançando-se verbas elevadas. Cheguei a arbitrar casamentos, cujo dote atingiu os trinta contos! Claro que era exigida a virgindade, que às vezes havia desaparecido… Era então que o Alfero odjo grosso era procurado para remediar o que parecia irremediável.

Quanto ao teste pré-matrimonial, a cargo das mulheres grandes, que utilizavam um ovo(!), a questão resolvia-se, com alguns pesos.
O mais difícil era a prova do sangue no lençol, que devia ser exibido no dia seguinte à cerimónia.

Equacionado o problema, adoptei uma solução que sabia já ter sido usada entre outras gentes com sucesso. Comprei em Bafatá pequenas esponjas, as quais embebidas em sangue de galinha, e metidas no local apropriado deram um resultadão.

Não houve mais Bajuda que não casasse em total e absoluta virgindade e confesso que me dava um certo gozo assistir às manifestações de júbilo dos viris maridos, no dia seguinte aos casamentos, no meio da algazarra da Tabanca.

Espalhada a minha fama, acorreram noivas de todo o lado. Ponderei mesmo montar um gabinete especializado, tendo chegado a escrever um folheto publicitário a informar que Alfero poi catota noba, dam trezbintim.

© Jorge Cabral (2006)

Guiné 63/74 - P619: O espírito de união dos operacionais: uma coluna de socorro à malta da CCAÇ 12 (Luís Graça)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Antiga Estrada Xime - Bambadinca > 1997 > A antiga Ponte do Rio Undunduma, vista da nova estrada Xime-Bambadinca.

© Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor de Bambadinca)


Pergunta o João Tunes:

"E nunca vos aconteceu darem convosco, perante os sinais longínquos de um ataque a um aquartelamento próximo mas de outra companhia e outro batalhão, a encolherem os ombros e a dizerem "a malta de X... está a enfardar" (...metendo para dentro a frase-chave calada: "foda-se, antes eles que nós!")?

Comentário de L.G.:

Pois é, João, quantas vezes, à noite em Bambadinca, fumando um cigarro, descontraídos, ou de copo de uísque na mão, nas traseiras do aquartelamento sobranceiro à bolanha, não assistimos ao fogo de artifício, ao longe, tentando advinhar quem eram os desgraçados que estavam a levar porrada, o tipo de granadas que explodiam, os quilómetros que distavam do nosso relativo conforto!... Sem nada fazer ou poder fazer, é certo... Nessas noites tínhamos pelo menos a certeza de poder dormir numa cama com lençóis lavados, na nossa cama... Era dia (ou noite) de folgar as costas, de poupar o coirão...

Mas também é verdade que eramos capazes de pegar na trouxa e zarpar, em socorro de camaradas em perigo, mesmo à noite. Podíamnos contar alguns episódios: lembro-me, por exemplo, de um coluna de socorro a Nhabijões, justamente quando eu lá estava destacado e houve uma alerta de turra na tabanca! (reordenada)... Aqui vai um outro episódio, contado pelo Humberto Reis:

" [Foto da] Antiga Ponte do Rio Undunduma, captada da ponte nova, na estrada que liga Bambadinca ao Xime. Neste destacamento estava permanente um Grupo de Combate da CCAÇ 12, que vivia em buracos como as toupeiras (rodava todas as semanas). Ou melhor dizendo: eram três apartamentos subterrâneos tipo T Zero...

"Com este destacamento passou-se um episódio que diz bem do carácter que presidia à união de todos os operacionais (operacionais eram aqueles que iam para o mato e as sentiam assobiar e não os que viviam no bem bom, dentro dos arames farpados, e que nunca sentiram o medo de levar um tiro).

"Um domingo à noite estávamos a jantar na messe [, em Bambadinca], nesse dia calhou-me estar dentro do arame, e de repente começámos a ouvir rebentamentos para os lados da ponte. Pensámos que era o destacamento que estava a embrulhar e automaticamente nos levantámos (eu e mais alguns até estávamos vestidos à civil), fomos a correr aos respectivos quartos buscar as armas e quando chegámos à parada já lá estavam alguns Unimog com os respectivos condutores à espera (ninguém lhes tinha dito nada mas a ideia foi a mesma - é a malta da ponte a embrulhar, temos de os ir socorrer).

"Até um dos morteiros 81 levámos e aí vai o Fur Mil Lopes, do Pelotão de Morteiros com uma esquadra - o Lopes, natural de Angola (tão bem organizada que era a nossa administração militar, que o colocaram na Guiné!).

"Felizmente, quando chegámos à ponte, verificámos que não era aí, mas sim dois Km mais à frente, na tabanca de Amedalai, pelo que seguimos até lá. [Amedalai ficava a caminho do Xime, antes da temível Ponta Coli]...

"Escusado será dizer que quando o IN notou que chegaram reforços desarmou a tenda, fez a mala e foi-se embora"...

Guiné 63/74 - P618: Mais fotos de Canjadude (CCAÇ 5, 1973/74) (João Carvalho)

1. Mais fotos de Canjadude, do tempo em que os Gatos Pretos da CCAÇ 5 por lá se acolheram (1973/74). Arquivo pessoal do João Carvalho, ex-furriel miliciano enfermeiro. Legendas do fotógrafo. (Comentários off-record de L.G.) (1)


Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > A psico na tabanca. Em pé está o fulano que eu conheço desde o meu primeiro dia de vida. [E no meio, uma bajuda fula, linda de morrer, talvez ligeiramente estrábica... Sob o olhar vigilante da mãe, e rodeado dos irmãos mais pequenos... Repare-se como os tugas , passada a priimeira surpresa da exposição ao nu étnico, se apoderaram rapidamente do termo psico e deram-lhe uma outra conotação... mais épica, mais erótica, mais camoniana... Outra legenda possível: Canjadude, Ilha dos Amores, Lusíadas, Canto IX]
© João Carvalho (2006).

Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > O artista junto a um morteiro. [Morteiro 81 mm: uma arma poderosa, eficaz, mortífera, quando bem manejada, e apontada para as linhas inimigas...] © João Carvalho (2006).

Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > Escola da tabanca de Canjadude em que o Salazar dava aulas, vendo-se ao fundo a saída para Madina do Boé [ Recorde-se aqui a trágica história do professor Salazar Saliú Queta que terá sido executado (barbaramente) pelos homens do PAIGC a seguir à saída das NT, segundo fontes apuradas pelo João Martins...](1). © João Carvalho (2006).

Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74)> Ainda a escola, vendo-se junto um abrigo para a população da tabanca [As populações nas tabancas em autodefesa ou vivendo em povoações importantes, com destacamentos ou aquartelamentos das NT, pagaram uma pesada factura... Mesmo assim, não tão grande quanto a das populações sob controlo do PAIGC, bombardeadas pela Força Aérea, fustigadas pelos obuzes das nossas unidades de quadrícula, obrigadas a fugir sob a ameaça das nossas G-3... ] © João Carvalho (2006).

Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > Aeroporto de Canjadude durante a noite. Fotografia tirada de uma das tais grandes rochas (grandes para a Guiné), ou seja, de uma das rochas em que estava colocado um posto de sentinela. Consegue-se ver ainda o heliporto, que não sei se já existia quando o José Martins passou por estas bandas [Aeroporto, é favor: chamemos-lhe antes uma pista para pequenas aeronaves, como a Dornier-27, que nos trazia o correio e alguns víveres frescos... Falo pelo que conhecia de Bambadinca, por exemplo]. © João Carvalho (2006).


Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74)> Um dos postos de sentinela, á esquerda, e ao fundo os insólitos blocos de pedra de Canjadude... Bajudas transportam bidões que foram oferecidos à população, antes da entrega do aquartelamento ao PAIGC (Setembro de 1974). © João Carvalho (2006) [ A imagem original que estava demasiado azulada, foi editada e retocada pelo Albano Costa, o nosso artista-fotógrafo de Guifões, Matosinhos ].


Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > À direita as chapas de zinco que protegiam o tecto do abrigo do paiol. Mais à esquerda, protegida pelos bidões, a messe. A casa grande era a secretaria [ Canjadude não fugia à regra: adaptou-se aos condicionalismos da guerra... dispensando os bons ofícios dos engenheiros militares de Bissau... A malta virou arquitecto, engenheiro, trolha, marceneiro... O desenrascanço, à boa maneira dos tugas... É preciso fazer um paiol ? Pois, que se faça já aqui, a menos de 100 metros da messe... Admiro-me que não tenha havido, na Guiné - pelo menos, ao que se saiba - grandes acidentes resultantes da explosão de paióis... Em 1973 os foguetões de 122 mm caíram lá perto ] © João Carvalho (2006).


Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74)> A enfermaria em grande plano e à esquerda com uma pequena porta e umas minijanelas, o posto de transmissões [Julgo que o João Carvalho, furriel enfermeiro, também ele, não terá tido mãos a medir no apoio sanitário às populações locais... Uma nobre missão que muito dignificou os serviços de saúde militares... ]
© João Carvalho (2006).

Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74)> A porta para a estrada que levava a Cheche e Madina do Boé [, de má memória para as NT...] . © João Carvalho (2006).



2. Estas fotos mereceram o seguinte comentário do José Martins, que também foi furriel miliciano (de transmissões), da CCAÇ 5, mas noutro tempo (1968/70):

Caros camaradas:

Com estas viagens virtuais, a um tempo real e inesquecível, vamos vencendo o silêncio a que fomos sujeitos durante tanto tempo.

Para os nossos queridos filhos e netos: Aqui vão retalhos duma vida sem viver, mas que continua viva na nossa mente.

Pena é que cada dia que passa sejamos cada vez menos. Vivemos isto pelos nossos pais e por muitos de vós que já existiam e por muitos mais que vieram a existir.

Não calem as vossas vozes nem prendam o vosso pensamento: SEJAM LIVRES e
façam favor de SER FELIZES, para que nós também o sejamos.

Um abalo do vosso camarada, vosso pai e vosso avô incondicional
José Martins

_____________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts anteriores:

23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIV: O nosso fotógrafo em Canjadude (CCAÇ 5, 1973/74)

5 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIX: O ataque de foguetões a Canjadude, em Abril de 1973 (João Carvalho)

28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIII: Cancioneiro de Canjadude (CCAÇ 5, Gatos Pretos)

4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIV: Os últimos dias de Canjadude (fotos de João Carvalho)

4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCV: A última noite em Canjadude (CCAÇ 5) (João Carvalho)

5 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCVI: A dolce vita de Canjadude, até ao dia 27 de Abril de 1973 (João Carvalho)


(2) Vd. post de 6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

quinta-feira, 16 de março de 2006

Guiné 63/74 - P617: A arte (da sobrevivência) (CART 2339, Fá e Mansambo, 1968/69) (Carlos Marques Santos)

Coimbra > Santo António dos Olivais > Aguarela da igreja paroquial (Sofia Santos, s/d)
© Carlos Marques dos Santos (2006)

Coimbra > Santo António dos Olivais > Igreja Paroquial
Texto do Carlos Marques Santos:

Sendo o meu berço de nascimento e porque na altura almoçámos juntos lá perto (eu, tu e o Victor David) envio a título pessoal uma imagem real da Igreja e uma aguarela feita pela minha filha Sofia, licenciada em Pintura (1).

Esta aguarela tem alguns anos e foi realizada ainda antes de entrar em Pintura.
Tenho lido tudo o que se tem escrito. É imparável e riquissimo o teu blogue, mas tal como tu, já quase não consigo organizar ideias e novos documentos. Vou vêr se consigo participar, ponto por ponto, com algo de interesse.

A minha história militar - que é de 41 meses de tropa (hoje falava-se de no mínimo 36 meses), pois fui mobilizado no último dia possível e a minha classificação indiciava que iria para Timor ou S. Tomé - é talvez algo diferente, como já te disse, porque nós vivemos no mato, dentro de arame farpado, sem populações, sem água, sem luz, picando a estrada para irmos a Bambadinca durante 17 Kms, muitas vezes com o apoio dos Obuses 105mm.

Recordo que um dia, numa coluna de reabastecimento de materiais para a edificação de Mansambo foram precisos 2 (dois) dias... Era na época das chuvas...

17 kms em 2 dias? Quem, a não ser nós, acreditaria nisto!?

Ficámos abrigados numa tabanca no meio do percurso, com toda a coluna atascada. Transportávamos 30.000 kgs de diverso material de construção.

Apanhámos, com o consentimento dos nativos, os frangos disponíveis e fizemos churrasco, temperado com as pastilhas de desinfecção da água (seria SAL?).

Digo com o consentimento, porque houve alturas em que não havia consentimento nenhum.
Com os Balantas, de Fá de Baixo, era correr atrás dos leitões, apanhá-los e largar para um churrasco.

Enfim, experiências de vida.

Um abraço Luís,
CMS
_________

Nota de L.G.

(1) Os nossos camaradas Victor David (CCAÇ 2405) e Carlos Marques Santos (CART 2339) são primos, nados e criados em Santo António dos Olivais onde tradicionalmente havia uma rua com o parelelo 98: uma linha imaginária que nenhum estudante podia transpôr...
O nosso camarada CMS é, além disso, um pai babado que, no dia 19 de Março, dia do pai, irá muito provavelmente ter com os seus filhos ao Café com Arte, uma referência obrigatória - dizem-me - para quem vive em (ou passa por) a cidade dos estudantes...

Fui lá há dias em trabalho, a Coimbra, duas vezes no espaço de um mês, mas ainda não deu para dar um salto ao Café com Arte... Tomo a liberdade de citar o que diz o Guia do Lazer do Publico.pt:

Café com Arte

Poderia ser rotulado como o café da cantora Inês Santos - a mesma que venceu o concurso "Chuva de Estrelas" - mas a verdade é que é muito mais que isso. Um espaço cultural que pretende, entre bebidas e aperitivos, mostrar Arte.

Sendo este um projecto de família, convivem neste café-galeria as influências musicais de Inês e a "direcção artística" da sua irmã, que fazem do Café com Arte uma agradável mostra itinerante de pinturas, fotografias, cerâmicas e esculturas, e que o tornam apetecível para uma incursão nocturna à "cidade dos estudantes".

Para os amigos e camaradas da Guiné que ainda não conhecem este espaço, aqui ficam as coordenadas:

Telefone > 239402494

Local > Coimbra, Av. Elísio de Moura 367 - loja 1

Horário> Todos os dias das 12h00 às 01h00. 5ª, 6ª e Sábado, aberto até às 02h00

Observações > Café/galeria, internet. Quinzenalmente, aos Sábados, "Artes de Palco" (música, teatro, poesia)... Grande selecção de chás e de cervejas importadas.

Guiné 63/74 - P616: Convívio da CCAÇ 2405 (Os Baixinhos de Dulombi, 1968/70) (Victor David)

1. Mensagem do Victor David:

Luís:

Peço desculpa de te incomodar mas tentei mandar este mail abaixo descrito para o Jorge Santos, e ele veio recambiado, pelo que te incomodo pedindo o favor de anunciar o nosso almoço no Blogue e no local dos convívios de 2006.

Gostaria de saber se já recebeste as minhas fotos para a Tertúlia e que foram enviadas há uns tempos já, mas, como sou um pouco nabo nestas coisas das novas tecnologias, podem os anexos eventualmente ter ficado perdidos pelo caminho... É que Lisboa é muito longe...

Ainda não me encontrei com o Carlos Marques para me embrenhar no escrito que lhe deixaste - a História do BCAÇ 2852 [mais a História da CCAÇ 12], mas fá-lo-ei em breve.

Espero poder rever-te, em Coimbra,em breve,

Um grande Abraço do
Victor David
Ex-Alf Mil da CCAÇ 2405 (Galomaro e Dulombi, 1968/70)
Coimbra


2. Caro Camarada Jorge Santos:

Tive a felicidade de entrar no Blogue do Luis Graça & Camaradas da Guiné e encontrar aqui em Coimbra o Luis Graça, pelo que passei a fazer parte também da Tertúlia.

Nesse sentido pedia se poderias anunciar o convívio anual da CCAÇ 2405 que se realiza na Guarda, no dia 27 de Maio de 2006, com o seguinte programa:

11h00 - Concentração junto à Capela do Mileu
11h15 - Missa para quem quiser assistir
12h45 - Almoço na Casa da Lageosa, em Lageosa do Mondego

Depois do almoço:

- Tarde Dançante
- Jogos de Cartas (para os batoteiros)


O organizador do encontro deste ano é :

MATEUS ANDRADE COELHO
Tel. 271 239 891 ou Telemóvel 965 807 623

Obrigado antecipadamente

Victor David
Ex-Alf. Mil. da CCAÇ 2405
Coimbra

Guiné 63/74 - P615: Tabanca Grande: Victor David, ex-Alf Mil da CCAÇ 2405 (Dulombi, 1968/70)

Curriculum Vitae militar do nosso novo tertuliano, o Victor David, ex-alf mil da CCAÇ 2405 (Mansoa, Galomaro e Dulombi, 1968/70)

Resenha da minha actividade de militar como voluntário à força:

- Incorporado em Mafra, na Escola Prática de Infantaria, como recruta em 10 de Abril de 1967;

- Especialidade tirada em Mafra: atirador de infantaria;

- Promovido a Aspirante Miliciano em 25 de Setembro de 1967, fui colocado em Abrantes, no Regimento de Infantaria nº 2 (RI2);

- Primeiro trabalho no RI2 : organizar a biblioteca do Quartel!

- Dei uma recruta ainda em Abrantes até ser mobilizado;

- Em Jan de 1968, curso de Rangers em Lamego. Nota: reprovei, mas não fui despromovido porque já era Aspirante!

- Formámos depois Batalhão [2852] em Santa Margarida e embarcámos para a Guiné em Julho de 1968, no N/M Uíge;

- Chegada a Bissau em 30 de Julho de 1968;

- Treino operacional em Mansoa, no chão balanta;

- Ao fim de cinco meses, a CCAÇ 2405 é colocada na zona leste, no chão fula, em Galomaro, onde provisoriamente nos instalámos - num antigo celeiro - até sermos deslocados para Dulombi, onde construimos o Quartel onde nada existia! (até parecia que eramos de Engenharia...) (vd. mapa de Padada);

- Regresso a Portugal em 28 de Maio de 1970;

- Peluda em 29 de Junho de 1970;

- Importantíssimo(!): promovido na disponibilidade a Ten Mil em 1 de Dezembro de 1970! Quase chegava a General!!!

Fotos do arquivo pessoal de © Victor David (2006)

Guiné 63/74 - P614: Praxes... ou a pulsão da crueldade sádica (João Tunes)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Algures (Destacamento do Rio Undunduma ?) > 1969 ou 1970 > O 1º Cabo Branco do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 experimentado uma granada de fumo.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006).


Texto do João Tunes

Caro Luís,

O blogue anda numa tal produção frenética que é difícil acompanhá-la. Valha o que isso representa de saudável no despejo e reequilíbrio da memória. Mas que começa a ser difícil acompanhar a pedalada do sprint memorial, lá disso não me resta qualquer dúvida. E falo só por mim?

Entre tanta produção, eu, ás vezes, já baralho as autorias. Que, diga-se, se vão diluindo dando palco à nossa odisseia colectiva, essa mancha viva que a todos nos marcou.

Embora as dores não sejam transmissíveis, cada um sendo marcado pelas suas, como nenhum passou sem uma e outra marca forte a fazer-lhe cócegas na lembrança, nesta riquíssima troca de experiências acabamos por ganhar uma dimensão que antes não teríamos - perceber que, mais coisas menos coisa, pitoresco aqui, pitoresco acolá, passamos por muito aproximado com cada qual metido lá no seu beco frente à bolanha.

E assim vamos perdendo a hipervalorização do que cada um passou, mais a malta do seu pelotão, da sua companhia, do seu batalhão. O isolamento dos aquartelamentos na Guiné criava-nos uma dimensão reduzida dos acontecimentos, dos sofrimentos e das façanhas. Muitos de nós fomos e voltámos da Guiné com uma ideia ego-localizada, quase de natureza concentracionária, do buraco onde nos enfiaram.

A Guiné estava ali, ali começando e ali acabando. Para uns, Guiné era Mansoa, para outros Aldeia Formosa ou Catió ou Farim. E como elas doíam em toda a parte, o natural é que cada um pensasse que tinha passado pelo pior, desvalorizando-se os outros que, comparando-se com o que tínhamos passado, não podia ter sido pior, logo até devia ter sido melhor.

E nunca vos aconteceu darem convosco, perante os sinais longínquos de um ataque a um aquartelamento próximo mas de outra companhia e outro batalhão, a encolherem os ombros e a dizerem "a malta de X... está a enfardar" (...metendo para dentro a frase-chave calada: "foda-se, antes eles que nós!")?

Julgo que não é mérito menor deste blogue dar-nos, à distância de umas dezenas de anos, essa dimensão mais integrada da realidade da Guiné. Que, no fundo, sempre tendo sido um país pobre e pequeno, sobretudo por via do seu tremendo e complexo mosaico étnico, é, pelo menos em termos de paisagem humana, social e cultural, muitos países metido numa estreita faixa de terra. E ainda hoje está para ser, se vier a ser, uma Nação mesmo.

Alguns entre nós, por força das circunstâncias particulares da sua missão e da sua especialização, ou fruto do aleatório, circulámos por espaços mais amplos e diversificados da Guiné. Foi o meu caso, por ter prestado serviço em três batalhões (um com sede em Bissau e depois no Pelundo, outro com sede em Catió, o último com sede em Bissau), no espaço dos vinte e quatro meses que por lá me obrigaram a andar.

Se isso me deu uma visão relativamente alargada dos chãos da Guiné, inibiu-me o espírito de corpo da cristalização e consolidação de laços dos que se mantiveram constantes na mesma unidade e tecendo, estruturando e fortalecendo, os mesmos laços de relacionamento e de camaradagem. Ou seja, mais desprendido relativamente ao corpo da unidade. O que, como tudo, teve vantagens e inconvenientes. Talvez, venha daí a minha experiência e opinião relativamente às praxes.

Um dos tertulianos escreveu: "Nós, tugas, tínhamos também as nossas praxes e rituais para exorcizar o medo, para reforçar a nossa crença da invulnerabilidade do nosso corpo... Ora, nada como evocar e desafiar a morte, invectivar Deus e o Diabo, fazer bravatas, armar-se em fanfarrão, inocular ainda mais medo aos pobres diabos que chegavam ao mato, o mítico mato da Guiné..." e julgo que foi o Luís que assim bem falou.

Concordo com a apreciação mas se me é permitido direi que a componente praxista, se cumpria um papel de descarga e de iniciação, positiva por necessária ou inevitável, não deixava de ser uma pulsão de crueldade sádica e, nesse aspecto, uma negação da camaradagem. Felizmente, as praxes eram breves e não atingiam níveis de violência intolerável. Mas eram uma forma de violência gratuita e acobardada e disso não passavam, como, aliás, acontece com praticamente todas as praxes (incluindo-se a boçalidade degradante e generalizada das praxes académicas).

Pela minha experiência, os momentos em que me senti mais triste, mais infeliz, mais abandonado, mais animal perdido no mundo, foram os insultos sádicos com que fui recebido em Bissau, sentindo-me ainda mais ridículo no verde vivo do camuflado novo em folha, com os escárnios do "periquito vai para o mato..." e outros do mesmo fio dessa meada. E o único aspecto positivo que retenho dessa experiência praxista foi a minha decisão, logo ali tomada e depois cumprida, de não a reproduzir, nem tal permitir a homens sob meu comando, quando me chegasse a vez de aceder à classe dos velhinhos.

Porque pensava, e ainda assim penso, que a violência da praxe era um acrescento inútil e desproporcionado à violência e dores da própria guerra. Pior que tudo, nas praxes, como em qualquer praxe, é que elas são celebradas em postura de autoridade ampliada de cima para baixo ou quando muito para o lado. Implicando sempre uma situação de partida com superioridade garantida do forte para com o fraco. E todos nós tivemos à mão de semear uns oficiais de merda, carregados de riscos dourados nos ombros, cagões e sem capacidade de mando, fazendo carreira e pés de meia nos caminhos daquela inútil guerra.

E eu nunca entendi que valentia era essa de praxar o desgraçado como nós, o amedrontado como nós, os que vinham passar pelo que havíamos passado, e descarregar o gozo de alívio nesses mesmos, nossos iguais e nossos sucessores, e não nos gajos feitos ao regime, comendo sinecuras e promoções, incluindo fascistas e colonialistas por opção ou por manjedoura, que, de uma ou outra forma, nos tinham levado até ali, praxantes e praxados, ao mesmo cú de judas. Enfim, um mero ponto de vista.

As melhores saudações para ti, caro Luís, e para todos os camaradas tertulianos.

João Tunes

Guiné 63/74 - P613: Aponta, Bruno! (ou outra alcunha do Spínola) (Zé Teixeira)

Luís

Saúde, paz e felicidade.

A propósito do Caco Baldé, toma outra alcunha do dito:

- O Aponta, Bruno... Aí vem o Aponta, Bruno ! - dizia logo o pessoal quando se avistava o Héli que o transportava.

Porquê ? Toda a zona de Buba, Nhala, Mampatá, Chamarra e Aldeia Formosa esteve uns tempos a comer, ao almoço e ao jantar, arroz com arroz e de vez em quando uma amostra de chispe. A barcaça que levava os mantimentos foi afundada pelos nossos amigos, e ficamos a ver . . . barcaças !

Isto gerou um mal estar que mais se agravou com o ataque às 5 da matina, como já contei no meu diário. Devo dizer que a minha companhia estava reduzida a 36 homens operacionais, dado esforço que se estava a fazer com a protecção à nova estrada de Buba para Aldeia Formosa, em que saíamos com o que seriam três pelotões às seis da matina (1). Regressávamos à tarde, no dia seguinte estávamos de serviço à segurança do quartel e logo de seguida abalávamos de novo para a estrada.

Então o homem chega e começa o discurso:

- Pátria está a exigir de vós um grande esforço e vós sois .....blá, blá, blá. Sei que a comida não tem sido a melhor, mas a Pátia exige sacrificios... blá, blá,blá. Quando estiverdes a comer feijão ou arroz, sem mais nada, fechai os olhos e imaginai-vos a comer um belo perú recheado ou um grãozinho com bacalhau, lá em Lisboa... blá, blá, blá.

Acompanhava-o um capitão, seu ajudante de campo, que toda a gente conhece e perante as reclamações do Major e do médico, ele só dizia:

- Aponta, Bruno!

Felizmente tinhamos um excelente médico, a quem presto a minha homenagem no Blogue, o Dr. João Carlos de Azevedo Franco, que à mais pequena mazela, muitas vezes resultante do estado psicológico em que vivívamos, dava uma baixa. Recordo que nesse célebre dia do Aponta, Bruno, , o Spínola disse ao médico:

- Estes rapazes o que precisam é de umas picas, vou lhe mandar uma boa dose de medicamentos... aponta, Bruno!

 Ao que o médico lhe respondeu:

- O que eles precisam é de uns bons bifes e descanso.

Claro está que o Capitão Bruno não apontou o que o médico disse. Não é que oito dias depois chega a barcaça com mantimentos e duas enormes caixas de medicamentos não solicitados ?! Escusado será dizer que foram devolvidas ao remetente, com a informação "medicação não solicitada"e a vida continuou.

Chegou o fotógrafo. Acerca das fotografias que mandaste para a Web no blogue, aí vai a legenda:

1ª - Almoço no Hotel de muitas estrelas em Aldeia Formosa no intervalo de duas colunas de reabastecimento. Chegadinhos de Buba, partíamos no dia seguinta para Gandembel. Agosto de 1968.

2ª - Um leitão à maneira oferecido aos enfermeiros Maiorais pelo grande Mamadu, que toda a gente que passou por Empada recordará com saudade, pois faleceu há três anos. Foto tirada em Agosto de 1969.

3ª - Estou a passar as minhas técnicas da psico a três camaradas Maiorais. Em Empada não havia Fuzas. 1969.

4ª - O famoso pelotão Colhões Negros, uns filhotes dos Maiorais a que tive o orgulho de pertencer: sou o 3º à esquerda, na fila superior ( sem óculos)

Um abraço.
Zé Teixeira

quarta-feira, 15 de março de 2006

Guiné 63/74 - P612: O blogue (que) faz a nossa história (Zé Teixeira)

Guiné > Região de Quínara (Buba) > CCAÇ 2381 (1968/70) > O Zé (Teixeira), o nosso fermero, de marmita na mão, no relativo (des)conforto de um refeitório do mato, em instalações hoteleiras de múltiplas estrelas... Ele não disse nem quando nem onde... (LG)


Guiné > Região de Quínara (Buba) > CCAÇ 2381 (1968/70) > Três tugas partilhando um copo, brindando à vida, à paz, ao amor, à amizade... Não importa onde nem quando... (LG)

Guiné > Região de Quínara (Buba) > O Zé com três barbudos (+ um) que só podiam ser fuzileiros navais, dos que atravessavam o Grande Rio de Buba que eu nunca cheguei a conhecer... (LG)

Guine > Região de Quínara (Buba) > CCAÇ 2381 (1968/70) > Quatro fotos à procura do fotógrafo... Alvíssaras dão-se para a melhor legenda... (LG)
Fotos do arquivo pessoal do © José Teixeira (2006)



1. Texto do camarada Zé Teixeira:

Luís:

Paz, saúde e felicidade.

Acabo de chegar a casa e reler o Meu Diário e ... não sei o que dizer-te sobre as tuas palavras. Sei que são do fundo do coração de um grande homem que tenho a honra, prazer e sobretudo sorte em conhecer. Pena é que só agora, mas ainda é tempo.

Queimam demasiado no seu ardor e ao mesmo tempo exige. Há muito que um grande mestre Baden Powell disse:
- Quando morreres procura deixar o mundo um pouco melhor do que quando o encontraste.

Se todos os homens procurassem seguir este conselho que mundo excelente teríamos. Eu e tu com tanta garra, é isso o que procuramos fazer.

O Diário foi e é apenas e só um pequeno espaço da minha vida que estava na gaveta do sonho, até que apareceste e . . . saltou.

Foi como um renascer do tempo que se tinha ido e voltou para reviver palmo a palmo, passo a passo, minuto a minuto, aqueles dias, meses, anos que nunca mais passavam e já se foram há tanto tempo.

Tem sido um ir e voltar, um viver e reviver cenas tantas delas felizes no meio da infelicidade.
Quantas lágrimas de alegria, no fim da emboscada ou do ataque, abraçados uns nos outros em que não se divisavam as divisas de cada um, mas apenas e só o homem, que mais uma vez escapou.

Quantas lágrimas de dor e raiva contidas e tantas vezes teimosas a descer pela face, perante o colega, o amigo, o companheiro que partia, sem dizer Adeus, camarada!, porque uma bala traiçoeira, um estilhaço perdido, lhe roubou a vida.

Na frente donde partiu cantava-se vitória. Da rectaguarda de onde nos mandaram, ficava a memória e lá, no local, ficava a dor que nunca mais passou.

Obrigado, Luís, pelo teu pequeno/grande e trabalhoso gesto. O blogue faz a nossa história. Não precisamos que outros a inventem. Esta é a verdadeira.

Conta comigo. Um fraternal abraço do
Zé Teixeira


2. Notícias da tertúlia (L.G.):

(i) O nosso Pai Natal, o Humberto Reis, mandou-nos mais uma porrada de mapas da Guiné, digitalizados: Binta, Buruntuma, Cacine, Caio, Cansissé, Madina do Boé, Nambonco, Padada, Pelundo, Piche, Quinhamel, Teixeira Pinto e Tendinto…

Vocês sabem onde fica(va) a zona de Tendinto ? Eu não... Vim agora a saber que é(era) a zona entre Contuboel e o Senegal... As coisas (talvez inúteis e seguramente tardias) que a gente aprende sobre a Guiné de há cinquenta anos... nesta escolinha que se transformou o nosso blogue!!!

Agora só falta o ajudante do Pai Natal pôr tudo direitinho nas nossas páginas na Net (não é no blogue, que não cabem lá…), para os trabalhos práticos da próxima aula de geografia...

Obrigado, Pai Natal!

(ii) O nosso ranger Magalhães Ribeiro (ranger só há um, o Ribeiro e mais nenhum!, que me perdoem todos os demais especialistas de operações especiais da nossa tertúlia...) tem um texto que achei interessante e que faz parte do Cancioneiro de Mansoa: a recepção dos periquitos pelos velhinhos de Mansoa… em Agosto de 1974!!!

Reparem que em 9 de Setembro são esses mesmos periquitos que vão fazer a transferência da soberania (que irónica expressão!)… Agora vejam os mimos com que foram recebidos… Os ritos, as praxes… Todos passámos por isso… O post é de leitura obrigatória....

Outros camaradas (o Paulo Raposo…) deitaram fogo ao cu dos jagudis ou mataram todos os cães vadios da parada (eu, o Humberto, o major B.B.)… Why ?... É caso para lançar o desafio: quem não fez merda, que levante o braço...

Eu tenho uma teoria (especulativa) sobre isto e que já deixei esta manhã no blogue… Querem vocês também debitar a vossa (teoria) ?

(iii) Zé Teixeira: Obrigado pela citação do Baden Powell... Quanto ao resto, não comento por pudor. Concordo contigo num ponto: não queremos fazer história, competir com o Spínola ou o Amílcar Cabral. Queremos apenas contar a(s) nossa(s) história(s)...

(iv) O João Tunes é um senhor professor catedrático em muitas matérias do conhecimento humano e, nomeadamente, de criptografia... Depois de o ler, é que percebo por que é que os gajos, os criptos que eu conheci no meu sector, armavam ao pingarelho... Estes de facto eram os oficiantes do Santo dos Santos... Só não percebo é por que é que o João, com ficha na PIDE, conseguiu chegar a oficial cripto de um batalhão inteiro... Os gajos da PIDE nesse dia ou estavam distraídos ou devem ter metido o artº 4 da função pública e ido às putas... João: Magnífico texto, o teu, como sempre!

(v) Mário Dias: mas que ternura tens tu pela tua segunda terra, pela Bissau da tua adolescência e juventude!... Um dia, se eu lá voltar, à Guiné, vou-te convidar para ser o meu guia de Bissau & arredores...

Guiné 63/74 - P611: Memórias do antigamente (Mário Dias) (3): O progresso chega a Bissau

Continuação das memórias do Mário Dias relativamente à sua experiência na Guiné, como civil, na década de 1950. O Mário foi depois sargento comando durante a guerra (Brá, 1963/66).

Fotos do arquivo pessoal de © Mário Dias (2006)


O progresso vai chegando

Aos poucos, Bissau ia melhorando. Com o decorrer do tempo, passou a ter electricidade durante todo o dia. A velha central eléctrica, situada num edifício próximo da entrada do estádio Sarmento Rodrigues (alguns se lembrarão dele), foi substituída pela nova, instalada em edifício construído de raiz lá para os lados do rio. Que maravilha a possibilidade de se porem de lado os frigoríficos a petróleo!

A pavimentação das ruas começou, como teste, na rua onde se situavam as principais casas de comércio. Os engenheiros não conheciam bem qual seria o comportamento dos solos nem a solidez da pouca pedra que por lá se conseguia arranjar. A experiência resultou, apesar do cepticismo de alguns defensores da tese da impossibilidade de tal obra na Guiné.

Guiné > Bissau > Anos 50 > Primeira rua a ser alcatroada em Bissau. O edifício à esquerda era o estabelecimento comercial conhecido por Pinto Grande, irmão de um outro Pinto conhecido por “Pintosinho” por ser (o estabelecimento) de menores dimensões. O “Pinto Grande”, embora continuando a ser chamado por esse nome, foi, durante a guerra, propriedade de um comerciante anteriormente estabelecido em Bolama, de nome Ernesto de Carvalho que o tomou de trespasse.

A avenida que ligava o rio à Praça do Império tinha uma configuração bem diferente da actual. Possuía uma placa central, larga, cimentada, arborizada com dois renques de frondosas árvores e filas de apetecíveis bancos onde tantas vezes me sentei usufruindo de calmos crepúsculos como só África tem. O trânsito de automóveis, ainda relativamente reduzido, processava-se, assim, por faixas separadas: ascendente e descendente.

Era esta avenida “o picadeiro” - expressão habitualmente usada em muitas terras para definir o local, praça ou rua, por onde os habitantes normalmente passeiam e que serve igualmente de ponto de encontro. Nessa placa central existia, já perto da Casa Gouveia, um quiosque com uma esplanada muito agradável onde se bebia excelente cerveja alemã. O café do Bento, a célebre 5ª repartição, surgiu mais tarde, no jardim, precisamente como resultado deste quiosque ter sido demolido com as obras de remodelação da avenida.

Num domingo de manhã bem cedo, cerca das 8 horas, estava em casa quando ouvi, vindo dos lados da avenida que me era próxima, enorme ruído no qual sobressaía o característico som do arranque de árvores. Fui ver. Toda aquela azáfama era para mim novidade. Nunca tinha visto aquela enorme máquina que, com um simples empurrão e sem qualquer dificuldade derrubava as árvores enquanto outra, lâmina enorme e resplandecente, escavava e, num piscar de olhos, levava à sua frente a placa de cimento dos passeios, os bancos, candeeiros e tudo mais que por lá existia. Ali me quedei, embasbacado como saloio, e com grande mágoa de ver as belas árvores derrubadas, os bancos onde tantas vezes me sentara arrancados e empurrados chão fora e toda a avenida esventrada. Coisas do impiedoso progresso.

Em pouco tempo, ao contrário das obras de hoje que demoram, e demoram, e demoram, a avenida ficou pronta. Alcatroada, com duas filas de candeeiros novos que ainda hoje lá estão, e com novas árvores para substituir as arrancadas. Se me perguntarem de qual gostava mais direi, sem qualquer hesitação, do seu aspecto antigo. Podiam ter alcatroado, substituído os candeeiros de iluminação pública e proceder a outras beneficiações sem necessidade de uma alteração tão profunda. Mas quem sou eu para me digladiar com o saber dos urbanistas?!

Guiné > Bissau > Anos 50 > Avenida Teixeira Pinto, em obras de pavimentação

Aos poucos, outras ruas e avenidas foram alcatroadas e concluiu-se a construção do aeroporto de Bissalanca que veio permitir ligações aéreas a Lisboa. Anteriormente, para se vir a Lisboa ou a qualquer outro ponto da Europa, tínhamos de ir num pequeno avião que saía do campo de aviação de Brá (mais tarde ali ficou instalada a Companhia de Engenharia) até Dakar, por vezes com escala em Ziguinchor, onde então se tomava o avião para Lisboa.

Guiné > Bissau > Anos 50 > Instalações do aeroporto de Bissalanca, em fase de conclusão das obras

Uma outra obra de grande importância e que em muito veio facilitar o acesso ao interior foi a ponte de Ensalmá, na estrada que liga a Mansoa, evitando-se a jangada que anteriormente servia para atravessar o canal que separa a ilha Bissau do continente. O local da “cambança” era na antiga estrada para Nhacra que passava por Santa Luzia.

Esta ponte foi, na a época, considerada uma bela obra de engenharia por ter o tramo central móvel, permitindo a sua elevação sempre que houvesse uma embarcação a navegar por aquele ponto do canal, de grande importância para o transporte de mercadorias, produtos agrícolas e pessoas. O sistema que fazia erguer o tabuleiro era, assaz, engenhoso e simples não necessitando de motor ou dispositivo semelhante. Um simples contrapeso movimentado ao longo de enorme barra que acompanhava exteriormente o tabuleiro, era o responsável pelo “milagre”. Talvez algum dos camaradas da tertúlia tenha chegado a observar directamente como isto acontecia sempre que uma embarcação passava.

Segundo recentemente me informaram, esta ponte já não é usada, pois uma outra foi construída para a substituir, e pelo canal, completamente assoreado, já não passam barcos. Mas fica o registo para a história.

Guiné > Bissau > Anos 50> Ponte de Ensalmá

O primeiro troço de estrada a receber alcatrão foi entre Bissalanca e Ensalmá e resumia-se a uma estreita faixa ao centro com largura somente para um carro. Quando duas viaturas se cruzavam, cada uma delas era forçada a passar com um dos rodados pela borda da estrada não alcatroada. Mais tarde, o alcatrão “alargou” e estendeu-se até Mansoa.

Pode dizer-se que o desenvolvimento da Guiné, começou a avançar, embora timidamente, a partir de meados da década de 50. Novos edifícios iam sendo construídos e surgiam as infra-estruturas indispensáveis ao progresso.

Guiné > Bissau > Anos 50 > Edifício da Capitania dos Portos


Guiné > Bissau > Anos 50 > O novo liceu Honório Barreto. O antigo liceu funcionava no edifício da praça do Império que era também museu e biblioteca. Esse edifício, que ainda lá está embora quase arruinado, era por nós apelidado de “chapéu de palhaço” pela semelhança que o torreão central tinha com o dito chapéu.


Guiné > Bissau > Anos 50 > Uma das muitas moradias que um pouco por toda a cidade de Bissau iam surgindo. Esta situava-se, e situa-se ainda, em frente à residência do Prefeito Apostólico (bispo) e nela residi durante algum tempo por ser propriedade da minha madrasta. Creio que hoje é residência de um embaixador. Qual, não sei.

Outras obras importantes para o progresso de Bissau foram realizadas. As novas instalações da Alfandega e armazéns portuários junto à nova ponte cais, o novo hospital, (hoje Simão Mendes) a nova estação dos correios, renovação de toda a iluminação pública, abertura de novas ruas e avenidas, o quartel dos bombeiros, o novo cinema da UDIB, a sede do Benfica, a sede da Associação Comercial (hoje do PAIGC) e demais realizações que estavam, embora lentamente e com muito atraso, a trazer Bissau para a “civilização”.

Por ter falado no novo cinema da UDIB, será lógica a pergunta: - E antes não havia cinema? - Claro que havia mas as condições em que acontecia dão vontade de rir. O cinema tinha lugar num armazém, mais barracão que armazém, pertencente à Casa Gouveia e situado no quarteirão onde ficava a sede dessa empresa comercial, na rua que a separava do BNU. Cadeiras de madeira tosca, desconjuntadas, chão de cimento todo fragmentado, escuro e abafado mas que, às quintas, sábados e domingos faziam as nossas delícias.

Guiné > Bissau > Anos 50 > O novo edifício dos correios. Anteriormente os CTT eram no edifício que se encontra do lado direito e onde continuou funcionando a Emissora da Guiné ( 1º andar ). De notar a curiosa viatura que era um dos “luxuosos” autocarros da época que, pela semelhança, eram conhecidos por ambulâncias. Esta (ambulância) pertencia à firma A. Brites Palma. Havia ainda, tanto quanto me recordo, outras duas empresas de transportes que faziam carreiras de autocarros (ambulâncias) para toda a Guiné. Eram o “Costa”, sedeado em Bissau e o “Escada” em Teixeira Pinto (Canchungo). Tenho a vaga ideia de existir uma outra na região de Bafatá-Gabú propriedade de um libanês mas não tenho a certeza. Talvez alguém me possa ajudar nesta dúvida. De notar as árvores recentemente plantadas, fruto da alteração do traçado da avenida que referi neste texto.

Guiné > Bissau > Anos 50 > Perspectiva da Avenida da República, obtida a partir da torre da catedral já ao final do dia. O primeiro edifício, de que se vê pouco mais que o telhado, é a sede da uma das importantes firmes comerciais da Guiné: “Nunes & Irmão”. Mais ao fundo, do lado direito, o cinema UDIB e o palácio do governador na praça do Império. O edifício da Associação Comercial (hoje PAIGC) situado na mesma praça, ainda não existia.

Com esta atabalhoada narrativa podem os caros amigos desta tertúlia fazer uma pequena ideia de como era a Bissau dos tempos que antecederam a guerra.

Nesta pequena crónica referi apenas os aspectos urbanísticos. Darei conta, brevemente, da vida laboral e lúdica desses tempos.
___________

9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXII: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite

19 de Fevereirod e 2006 > Guiné 63/74 - LDXVI: Memórias do antigamente (Mário Dias) (2): Uma serenata ao Governador

Guiné 63/74 - P610: Ser cripto no olho do cu de Judas (João Tunes)

Camarada Luís,

Numa tua legenda a uma foto do nosso camarada Afonso M. F. Sousa, com ele confortavelmente instalado e posando para a posteridade como um soba de camuflado à espera de uma cerveja bem gelada, junto ao centro cripto da sua unidade, disseste: "O centro cripto era uma espécie de cofre forte dos nossos aquartelamentos, o santos dos santos, o mais misterioso recôndito da pátria lusa naquele pedaço de terra onde flutuava a bandeira das quinas...". E como é teu costume e abuso, disseste bem.

Confirmo essa aura que circundava a actividade cripto na guerra, num relativismo que ia da treta até à treta e meia. Eu próprio gozei do privilégio dessa casta aristocrática no domínio do acesso ao antro sagrado em que as mensagens a transmitir por rádio eram codificadas para que não fossem conhecidas pela guerrilha.

Como oficial de transmissões, era também o responsável pela actividade de codificação ao nível do batalhão. Pelas regras da segurança militar, dava-se até um dado curioso - os únicos militares com acesso ao centro cripto eram exclusivamente os que nele prestavam serviço, o que excluía qualquer oficial com função de comando, fosse alferes, capitão, major, tenente-coronel ou general comandante-chefe. O que transformava o centro cripto num lugar sagrado. Assim, se o comandante de companhia ou o comandante de batalhão decidissem passar revista a esse local, o regulamento obrigava a que estes oficiais fizessem aviso prévio dessa intenção, com tempo necessário para que todo o material de codificação fosse coberto com cobertores a fim de os sumos oficiais não poderem espreitar e conhecer os códigos em utilização.

Quando havia renovação dos códigos, era o oficial cripto (acumulando com as funções de oficial de transmissões) que fazia a troca (entregando os códigos vencidos e recebendo os novos) dentro de um circuito paralelo e exógeno à cadeia do comando.

Refira-se, ainda, que a acumulação de funções transmissões/cripto se dava exclusivamente no caso do alferes miliciano do batalhão, passando a haver distinção clara de funções relativamente aos furriéis e cabos (que eram só de transmissões ou só cripto).

Outra protecção dada, de resguardo, aos elementos das equipas cripto (normalmente, um furriel e dois cabos) era - julgo que só comparável ao tratamento dado ao capelão e ao cabo sacristão - a sua dispensa de qualquer actividade operacional para prevenir o risco da sua captura pela guerrilha. Ou seja, não se queria que o IN nos decifrasse os códigos das mensagens militares nem os salmos e as penitências com que comunicávamos com a Santíssima Trindade e lhe pedíamos protecção divina.

Por todas estas razões, a equipa cripto (a par do staff religioso) constituía, de facto, uma certa elite nos aquartelamentos, o que, claro, deve ser interpretado à luz da justa e fraca proporção das coisas no universo típico de uma unidade encafuada no meio do mato da Guiné.

A situação referida, o resguardo da fortaleza cripto, deu-me alguns dissabores bem gostosos. O comandante e segundo comandante que me (nos) mandavam no Pelundo (1969/71) não conseguiam engolir a reserva nos seus acessos ao centro cripto. E tentaram, ao princípio, violar as regras, forçando a entrada, sem aviso prévio. Ora, perante essas tentativas de violar as regras militares (claramente estabelecidas e escritas) eram, para mim (melhor para o meu sangue quente de então) uma oportunidade a não perder para exercício de inversão da macacada do cerimonial da hierarquia militarista, metendo um tenente-coronel e mais um major - e que par de jarras! - em sentido e na devida ordem. Não só lhes barrei as tentativas de entradas inopinadas no antro sagrado (sem o necessário aviso prévio para tapar os materiais com os cobertores regulamentares) como lhes comuniquei que a contumácia na prevaricação me levaria a uma participação ao Comando-Chefe por violação das regras de segurança militar por parte do Exmo Comando do Batalhão (e, por regulamento, podia fazê-lo). Cederam eles (serviriam a vingança, a frio, mais tarde...).

O que, por sinal, foi pretexto (a malta queria era pretextos!) para uma rica e bem regada patuscada da malta cripto em comemoração da vã glória de estar para ali encafuada no que - bem dito por ti, camarada Luís - era o santo dos santos daquelas nossas moradias enfiadas lá no olho do cú de judas, se me é prmitida alguma dose de libertinagem na linguagem.

Porque, acho eu e sem desprimor para com opiniões em contrário, se o Judas teve cú, como nós temos, presumindo-se que sim, embora nenhuma autópsia lhe tenha certificado algo mais que a bolsa dos euros traidores, ali na Guiné, na nossa Guiné, estava lá o lugar central do cú de judas - o do seu realíssimo e infecto olho. E ser isto ou ser aquilo, ser miliciano ou chico, ser oficial, sargento, furriel, cabo ou soldado, ser cripto ou não, sacristão ou relapso às santas práticas, no mesmíssimo cú estivemos enfiados, riscando os dias em falta para dali sairmos. E talvez tenha sido isso, afinal graças a um cú e ao cabrão do seu olho, que nos tornámos todos melhores como homens, e camaradas, e amigos. Valha-nos isso.

Um abraço forte para ti e para todos os camaradas e estimados tertulianos.

João Tunes

[Blogador-mor do Água Lisa (6) ]

Guiné 63/74 - P609: Cancioneiro de Mansoa (7): Os periquitos do pós-guerra (Magalhães Ribeiro)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Dezembro de 1969 > Pessoal da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) em fim de comissão, a caminho de Bissau... Na tropa, a velhice era um posto e um periquito um verme... O mato era o inferno, e Bissau as portas do paraíso... Daí a célebre letra da canção: "Periquito vai no mato / Que a velhice vai pra Bissau"... (LG)

© Humberto Reis (2006)

Dos cadernos do Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612 (que esteve em Mansoa por escassos dias, cabendo-lhe a honra de arriar a nossa bandeira em 9 de Setembro de 1974, por ocasião da transferência de soberania do território para o PAIGC) (1).

Os periquitos do pós-guerra

Depois dum período de aclimatação do pessoal da minha Companhia à Guiné, no Cumeré, chegara a hora de cumprirmos a missão fulcral que ali nos levara: substituir a Companhia de Comandos e Serviços (CCS) do Batalhão 4612/72, que se encontrava em Mansoa há mais de dois anos.

Pelo que, naquele fim de tarde de Agosto de 1974, saímos do Cumeré numa ordenada coluna auto. Cerca de meia hora depois sentimos as viaturas a abrandar, e começamos a ouvir, cada vez mais clara e intensamente, longos e arrepiantes pios, semelhantes aos que soltam os pintaínhos:
- Piu, Piu, Piu!!!...- Ena, tanta passarada reunida nas copas das árvores aqui à volta, devem ser mais de mil bicos, que originam este chilrear infernal - pensei eu.

Pus a cabeça de fora da cobertura da Berliet para ver melhor. Não havia árvore nenhuma ali! Então, baixei a cabeça e vi aquilo.

Entre as imensas manifestações que me foram dadas ver (ao vivo!), esta foi inequivocamente uma das cenas mais impressionantes e marcantes que me aconteceram. Julguei, por largos momentos, ter entrado nos domínios dum mundo irreal de fantasia cinematográfica ianque (género Apocalipse Now). Excessivamente incrível para ser verídico.

Afinal a piadura toda, resultava da recepção que os duzentos e tal velhinhos, que íamos render – já bem bebidos, amontoados e dependurados uns nos outros -, nos recebiam em apoteose delirante, como mandava a praxe.

Para eles, nós – os periquitos ou piras -, éramos, para todos os efeitos, os mais reles, insignificantes e desprezíveis piras de toda a tropa da Guiné e do mundo inteiro.

Viam-se cartazes com diversos escritos alegóricos:

- Bem-vindos, periquitos, ao inferno dos vivos!
- Aqui, morrer é o único meio de voltares para casa mais cedo.
- Aqui entras de pé e vais pró Continente deitado num caixote, etc.

Também não faltava uma câmara de TV (uma imitação feita com um velho caixote de madeira), e as respectivas entrevistas fúnebres, extensas e desconexas.

O efeitos do álcool e dos vinte e muitos meses de mato faziam das suas. Os festejos eram ambíguos, umas vezes alegres, outras tétricos. Alguns soldados riam e choravam dizendo coisas macabro-hilariantes, com piadas de todos os tipos: disparatadas, indignificantes e, por vezes, insultuosas.

A imaginação vagueava por ali, vendo-se várias urnas fechadas (mais caixotes com cruzes desenhadas em cima) e simulações de funerais que, eventualmente, seriam dos nossos cadáveres…

Isto tudo passou-se já depois do 25 de Abril de 1974! Já a guerra tinha sido dada como finda! Isto não é ficção! Aconteceu mesmo!(3)

_______

Notas de L.G.

(1) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

(2) Vd. post de 1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVII: Cancioneiro de Mansoa (2): Guiné, do Cumeré a Brá

(...) Enfim, surge um aglomerado
De pavilhões pré-fabricados,
Cumeré, dizia uma placa,
Havia mato por todos os lados.

Após alojado e alimentado,
Acerquei-me da cerca de arame
E pelo que vi, constatei arrepiado:
“Isto aqui era o nosso Vietname”.

Dei umas voltas pelas tabancas
Naqueles dias de aclimatação,
Os velhinhos gozavam e diziam;
- Viv’à liberdade de circulação!

E, continuavam com as bocas:
- Ó periquitos, que por aí andais...
Aí fora, há umas semanas atrás...
O turra comia-vos, tal com’estais!

Aqueles velhinhos enrugados,
Tez enegrecida e voz de bagaço,
De idade, vinte e poucos anos
Pareciam talhados de puro aço.

Um dia, novo destino: Mansoa!
Er’a hora de rendermos o Batalhão
Depois... entregar tudo ao PAIGC!
Foi a nossa derradeira missão!
(...)

(3) Este testemunho do nosso ranger é muito interessante, obrigando-nos a reflectir e a especular sobre o estranho comportamento que atingia a velhice, completamente apanhada pelo clima, na hora da rendição pelos periquitos... Muitos de nós passaram por estas cenas, enquanto periquitos, e voltaram a repeti-las, enquanto velhinhos...

São uma extensão das violentas praxes dos militares, fundamentais para a criação do espírito de corpo e reforço da capacidade de resistência à exposição ao perigo, à captura pelo IN, à morte, à humilhação, à derrota... Julgo que do outro lado, do lado dos combatentes do PAIGC, também as havia: faz parte das culturas guerreiras (dos índios da América do Norte aos felupes do Cacheu)... A ideologia (revolucionária) não chegava para os homens (e as mulheres) do PAIGC darem a vida, arriscarem a sua integridade física, perderem a sua liberdade no caso de captura poelos tugas... Os tipos do PAIGC usavam mezinhos tal como os meus soldados fulas da CCAÇ 12...

Nós, tugas, tínhamos também as nossas praxes e rituais para exorcizar o medo, para reforçar a nossa crença da invulnerabilidade do nosso corpo... Ora, nada como evocar e desafiar a morte, invectivar Deus e o Diabo, fazer bravatas, armar-se em fanfarrão, inocular ainda mais medo aos pobres diabos que chegavam ao mato, o mítico mato da Guiné...

São também ritos de passagem: os mais velhos inciando os mais novos, transmitindo-lhes valores como solidariedade, coragem, determinação, sacrifício... Todos fomos heróis e cobardes, velhinos e periquitos, deuses e homens... O problema é que, quando desembarcámos no cais de ALcântara, em Lisboa, já não éramos mais os mesmos... Não se foi impunemente para a Guiné, para o mato, para a guerra, para aquela guerra... Recorde-se que muitos de nós tiveram, no mínimo, 36 meses de tropa... Ora três anos representam (ou representavam na época) 6% do tempo da nossa vida activa (dos 15 aos 65)...

terça-feira, 14 de março de 2006

Guiné 63/74 - P608: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili

Aviso prévio:
Esta história é, no essencial, verdadeira, mas é aqui romanceada, pelo que não se garante a veracidade total dos factos descritos. Por razões de falta de memória, própria da idade e da distância com a data do que se passou... Que me desculpe o Paulo Raposo pela inconfidência... (RF) (1)


O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili (2)

Dulombi, Junho de 1970, CCAÇ 2405 (3)

O Carvalho Araújo já estava em Bissau para nos levar de volta à Metrópole… Viera cheio de tropa para substituir os velhinhos, ansiosos pelo fim da sua comissão.

O tempo custava a passar para finalmente se dar a rendição, e por isso, cada um à sua maneira ia encontrando formas de apressar o tempo, de esquecer a lentidão inexorável do relógio…

Ao cair da tarde, com a luz alaranjada do sol a começar a esconder-se na linha do horizonte poente, o Paulo Raposo, alferes da CCAÇ 2405, de quem guardo as mais pistorescas histórias, estava sentado perto do bunker do Capitão, com o olhar fixo num ponto afastado a sul do aquartelamento, perto do arame farpado.

Aproximei-me e comentei:

- Eh, pá, não estejas a pensar na morte da bezerra… Já faltou mais e não tarda estaremos em Lisboa a beber umas imperiais e a olhar as bajudas brancas que por lá abundam.

Retorquiu, pedindo-me silêncio com um gesto:

- Senta-te aí, pá, e espera até veres, mais minuto menos minuto, um daqueles jagudis que sobrevoam a tabanca, fazer um voo picado!

O jagudi é uma ave da família dos abutres que existiam em grande profusão na Guiné, para o qual tinha sido promulgada pelo Governo legislação proibindo a sua caça, dado tratar-se de um animal de grande utilidade na remoção de cadáveres, lixo, matéria orgânica em decomposição, etc…

Tinha um aspecto um tanto asqueroso, medonho, embora naturalmente não atacasse as pessoas... a menos que já fossem cadáveres, é claro...

Meio curioso, disse-lhe:

- Explica-te lá…

Apontou o dedo e acompanhei com o olhar a direcção indicada.

- Ali junto àquele poste do arame farpado está uma armadilha que montei para caçar um daqueles filhos da puta – despejou de chofre o Paulo Raposo, rindo muito…

E continuou:

- Tem um laço em arame e um naco de carne fresca perto do laço…O jagudi vai picar a carne e, ao fazê-lo, terá de enfiar a cabeça no laço…

- Depois, com o naco de carne no bico recuará e accionará o arame que se fechará em volta do pescoço…

Triunfante, exclamou, com um sorriso aberto:

- E pronto, depois já dali não sai…..

Embora conhecendo o enfant terrible que era (e ainda é… ) o Paulo Raposo, não entendia bem ainda qual era o seu objectivo. Mas não tardaria a saber.

Tal como previsto, eis que um jagudi mergulha em grande velocidade e, segundos depois, vejo-o debater-se, preso pelo pescoço na armadilha montada pelo Paulo Raposo.

Levantámo-nos de repente e segui o Raposo que corria em direcção ao jagudi, ao mesmo tempo que chamava o cabo enfermeiro, intimando-o a comparecer rapidamente no local…

Com a ajuda de vários soldados e alguns nativos que se aproximaram curiosos, o animal foi imobilizado e foi então que finalmente percebi o objectivo do Paulo.

Mandou o cabo enfermeiro trazer-lhe algodão e com ele fez dois rolos que mandou colocar e atar com adesivo por baixo das asas do infeliz jagudi

De seguida embebeu o algodão em álcool, libertou a ave do laço que a prendia, sempre com vários soldados a segurá-la, e acendeu um fósforo que aproximou do algodão…

Incendiado o álcool, o jagudi foi libertado e, em voo veloz, afastou-se em direcção a Norte, deixando um rasto luminoso na noite que entretanto acabara de cair…

Ficámos olhando a bola de fogo diminuir progressivamente de tamanho e finalmente desaparecer…

Como crianças travessas, riamo-nos todos, meio nervosos, estranhamente orgulhosos com a façanha acabada de praticar, sem que para isso encontrássemos motivo justificativo… E nem interessava…Importante é que tinhamos deitado uma pedrada no charco da monotonia…

As questões ecológicas, hoje tão em voga, eram naqueles tempos e naquela situação de guerra, algo que não nos precoupava…

Talvez os que hoje lêem isto não consigam entender tamanha infantilidade… Mas as circunstâncias e a idade duma geração transformada à força em idade adulta sem ter tido tempo de percorrer as etapas próprias de uma adolescência despreocupada, deverão obter, senão a justificação, pelo menos a compreensão dos leitores.

Mas voltemos ao jagudi

Trata-se de um animal de grande resistência fisica, de carne duríssima e musculosa, capaz de lutar e vencer animais de maior porte e ferocidade, como é o caso de felinos selvagens e até leões (4). Não sucumbiria portanto, facilmente, ao calor do algodão em brasa…

E por isso continuou o seu voo assustado e veloz, certamente na ânsia de se libertar do fogo que o perseguia… E foi assim que poucos minutos depois sobrevoou, já noite fechada, o quartel de Madina Xaquili, a cerca de 15 kms em linha recta, onde se econtrava estacionada uma Companhia de Caçadores composta por madeirenses (5)…

Os sentinelas deram o alerta para uma estranha bola de fogo que se aproximava velozmente em direcção ao quartel e, sem mais pensar, desencadearam forte tiroteio contra aquela “arma desconhecida”…

O intenso tiroteio e alguns rebentamentos eram perfeitamente audíveis no nosso quartel e, por isso, o Capitão Jerónimo mandou estabelecer contacto rádio com aquela Companhia, indagando ao seu homólogo:

- O que se passa? Estão a ser atacados? Precisam de ajuda?

Resposta do outro lado:

- Eh, pá, só sei que estamos a ser sobrevoados por uma coisa luminosa que tem um comportamento muito estranho…

Deve ser alguma arma nova que desconhecemos…

E o nosso Capitão:

- Mas…. estranha, porquê?

A voz nervosa do Capitão de Madina Xaquili, retorquia:

- Eh, pá, parece uma coisa teleguiada, ou com sensores! Quando disparamos para a sua frente, ela recua…Quando disparamos para a sua rectaguarda ela avança! Nunca vi coisa assim…

De novo o Capitão Jerónimo:

- Mas continua? Não conseguem acertar-lhe?

Do outro lado, a resposta:

- Bom, agora já há uns minutos que desapareceu.. Mas acho melhor continuarmos a bater a zona para nos certificarmos que não regressa…

Finalmente o Capitão Jerónimo, pôs termo ao diálogo:

- Ok… Parece que vocês já eliminaram a tal arma …Se precisarem de alguma ajuda, não hesites! Basta pedires… Por agora, boa sorte e terminado!

Escusado será dizer que o Capitão Jerónimo não sabia de nada do que se tinha passado minutos antes com o jagudi

Soubemos, anos mais tarde, contado pelo mesmo Capitão Jerónimo, que ainda ficou mais uns meses em Bissau depois do nosso regresso a Lisboa, que a Companhia de Madina Xaquili teve que pedir remuniciamento dos seus stocks de material de guerra…

Prolongaram o tiroteio até quase esgotarem as munições que tinham de reserva!

Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf
CCAÇ 2405
Dulombi
_____________

Notas de L.G.:

(1) Foi o próprio Paulo Raposo que me mandou estas histórias, à revelia do seu autor. Eis a mensagem telegráfica do nosso tertuliano de Montemor-O-Novo: "E aí vai mais fruta, é pró menino e prá menina"...

Há dias foi o próprio Rui Felício que me deu luz verde para continuar a publicar as "estórias de Dulombi" (a expressão é minha):

"Meu Caro Luis Graça: Fiquei surpreendido pelo facto do Paulo Raposo te ter enviado as minhas estóriss da Guiné...

"!Mandei-as para ele e para o David, mas achei que não devia inundar ou deteriorar o teu blogue com historietas muito pessoais e que pudesses achar descabidas aqui.

"Mas a publicação de uma delas demonstra que, afinal, achas que é merecedora de publicação.. Fico honrado com isso e agradeço-te a distinção.

"Aproveito para te dizer que o Vitor David me recomendou de não protelar muito o envio das minhas fotos (uma antiga e uma recente). Como ele sabe muito bem, sou muito desleixado com os arquivos destas coisas e pedi-lhe que me enviasse, dos arquivos dele, uma foto minha tirada na Guiné.

"Ele já me mandou uma há algum tempo e agora só estou à espera de encontrar uma actual para depois te enviar as duas conjuntamente.

"Um abraço. (Quero que penses numa forma de nos encontrarmos .. gostaria de te conhecer pessoalmente... E renovo os parabéns, já anteriormente dados, para o teu blog). Rui Felício."

(2) O título da estória é da minha responsabilidade

(3) Vd post de 12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXV: Paulo Raposo e Rui Felício, dois novos camaradas (CCAÇ 2405, Galomaro, 1968/70)

(4) Vd. post de 8 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LII: Antologia (2): A fábula do jagudi e do falcão

(5) Julgo tratar-se da CCAÇ 2446 que, juntamente com os periquitos da CCAÇ 12, sofreu um violento ataque, em Madina Xaquili, em 24 de Julho de 1969, ao anoitecer... A CCAÇ 12 teve um ferido grave; e a companhia madeirense dois mortos e vários feridos.

Vd post de 29 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVIII: O baptismo de fogo da CCAÇ 12, em farda nº 3, em Madina Xaquili (Julho de 1969)

Madina Xaquili ficava a sudoeste de Bafatá, na direcção do Rio Corubal. Vd. mapa de Padada.

Guiné 63/74 - P607: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

Guiné-Bissau > Capa da publicação Conhecer para amar, amar para proteger: Rio Grande de Buba e Lagoa de Cufada. Bissau: Tiniguena. 1995.Imagem gentilmente cedida por José Teixeira (2006), um apaixonado pela Guiné e pelo seu povo.


Guiné-Bissau > Brochura editada pela ONG guineense Tiniguena por ocasião de uma visita de estudantes de Bissau a Buba e Cufar, em Abril de 1995. Imagem gentilmenmte cedida pelo © José Teixeira (2006), um amigo da Guiné e dos guineenses, e um grande camarada nosso cujo diário do tempo da guerra colonial (1968/70) chega agora ao fim...

Devo confessar que foi, até agora, uma das grandes revelações deste blogue... Ele soube trazer para o domínio público, com bom senso e bom gosto, não apenas o quotidiano (brutal) da guerra mas também a arte e o engenho do homem português no seu trato (diário) com outros povos, outras culturas...

O Zé, para além de competentíssimo e dedicado enfermeiro, nunca deixou de ser um cristão e um homem que se interrogava (e se dilacerava) com o absurdo daquela guerra... Ele deu-nos conta, ao longo dos dias, semanas e meses que passou em Buba, Quebo, Mampatá, Chamarra e Empada, muita da sua angústia, tristeza e raiva, os sentimentos (contraditórios) que muitos de nós experimentámos, sem nunca os ter passado à escrita, a não ser talvez nos desabafos mal contidos e reprimidos nos aerogramas...

É com pena que chegamos ao fim desta pequena grande aventura humana que foi O Meu Diário... Vamos, no entanto, continuar a contar com a colaboração do Zé, como talentoso contador de estórias, que ele também é... Obrigado, Zé, pela tua generosidade, humildade e sensibilidade... A tua estória não era grande nem pequena: tinha a tua dimensão, a nossa dimensão, a dimensão de qualquer ser humano... Se me é permitido falara em nome do resto dos tertulianos, então eu quero dizer-te que a gente tem orgulho em ti: arrancaste-nos muitas das palavras (de amor, ódio, frustação, admiração, alegria, tristeza...), que gostaríamos de ter dito e não dissemos aqui, no blogue, em público, no meio da parada ou no meio da caserna dos camaradas e amigos da Guiné... (LG)


XIX (e última) parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).


Empada, Ano Novo de 1970

A felicidade é o supremo desejo de todos os homens. A História não é mais que uma longa e louca aventura dos homens à busca da felicidade.

O homem, na ânsia de atingir a felicidade, esmaga o seu irmão. A moral diz-nos que a felicidade se constrói com a vida na medida em que nos mentalizamos da nossa missão como seres humanos, viver a vida em comunidade e agir em conformidade. No entanto esquecem-se rapidamente estes princípios morais. Os governantes, responsáveis pelo bem estar do seu povo, guerreiam, ensanguentam, matam. Destroem para atingiram os seus fins. Alegam que buscam a felicidade para o povo, que é preciso sacrificar uns para que outros vivam felizes, enquanto eles vivem nos seus palácios de egoísmo.

Ah ! esses que se arvoram em condutores do povo, que conduzem as guerras dos seus palácios de vidro, se vivessem no seu sangue, no seu corpo, no seu espírito o que se passa nas frentes de batalha !

Se sentissem o sofrimento de tantos que, num último esforço, se tentam agarrar à vida, no meio de atrozes dores. Se sentissem a dor dos que têm de abandonar tudo o que é seu e fugir, na esperança de escaparem à morte.

Se sentissem a dor daqueles que vêm os seus entes queridos, os seus amigos, ali à sua frente, mortos por uma granada traiçoeira, quando ainda há escassos segundos viviam felizes.

Se sentissem o que é ficar sem uma perna, um braço, ficar inutilizado para a vida e quantas vezes rejeitado pelos seus, como quem deita fora o que já não presta.

Se sentissem o que sente o jovem a quem lhe roubaram os melhores anos da sua vida, a quem atrasaram a sua construção como homem.

O ingrato de tudo isto, é que alegam que se trata de uma causa justa.

O Inimigo também afirma que luta por uma causa justa e que esta justifica ao vida e o esforço de todos.

De que lado estará Deus, se ambas as frentes lutam por uma causa justa ?

Dizem que estão dentro da razão e mandam os outros para a frente. Eles não vão. Lá longe traçam os planos, jogam com as vidas, indiferentes ao sofrimento. . .

A eterna busca da felicidade . . .

Pobre homem cego, que procuras a felicidade e julgas que a consegues, esmagando os outros, servindo-te do teu poder. Esqueces-te que a felicidade, não é mais que a construção de ti mesmo, procurando atingir o HOMEM perfeito.

O Grande drama do homem, é o ser limitado nos seus meios naturais e infinitos nos seus desejos. Procura então, por meios anti-humanos, conseguir os seus desejos.

Pobre bocado de terra que esqueceu a sua origem e o final que o espera . . .

Empada, 11 de Janeiro de 1970

Ainda cá estamos e eles continuam por perto. No dia 9 nove, as 22.30 h. vieram dar-nos as boas festas.

Roquetes, Bazookas e costureirinhas e um quarto de hora debaixo de fogo. Só atingiram a tabanca, queimando algumas moranças. Além do susto houve um ferido nativo que teve de ser evacuado.

[Foi a minha despedida da guerra. Poucos dias depois dei baixa ao hospital e fiquei em Bissau a aguardar o embarque que se concretizou em fins de Abril ].

Brá, 20 de Março de 1970

Continuo em Bissau a aguardar o transporte para junto dos meus. Desde Dezembro que o embarque em sido adiado sucessivamente. Agora dizem-nos, mais uma vez ,que está por dias.
Será o retorno à sociedade, o retorno a vida: dentro de mim continua a revolta pelo que vi e vivi, mas também há uma grande vontade de reagir.

Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > O Zé deixou amigos que ele reencontrou trinat e cinco anos depois... Como, por exemplo, a mulher do filho do Régulo Shambel, de Contabane.

© José Teixeira (2006),

Leça do Balio, 17 de Fevereiro de 2006

Ao reler o Meu Dário (que não era diário) onde apontei algumas das situações mais marcantes da minha guerra, apetecia-me queimar tudo e recomeçar de novo. Tudo o que escrevi, não foram historinhas para depois (agora) de velho, contar aos netinhos. São factos verdadeiros escritos a quente, para não perderem o “sal” da realidade que o tempo teima em dissolver

Hoje, com as feridas saradas, talvez romanceasse um pouco. Talvez lhe juntasse outros pormenores, que com o calor dos acontecimentos foram posto em secundário. Talvez lhe juntasse outras situações que vivi e não escrevi, umas por desleixo, falta de motivação de momento, ou até por não encontra razões de história. Outras por medos “pidescos” de poder ser apanhado.

Com o tempo e com a ajuda provocatória do Luís Graça e dos camaradas tertulianos as estórias irão surgindo.

Mas eu, na Guiné, não vivi e presenciei só e apenas cenas de guerra.

Vivi bons e felizes momentos com os camaradas. O termo camarada reflecte amizade criada em tempos de luta, em tempos difíceis, daí o seu valor e a sua aplicação que devemos usar. Geramos amizades inersquecíveis.

Vivi bons e felizes momentos, em sadio convívio com as populações locais e muito aprendi com elas. Costumo dizer que aprendi ali, na Guiné, as primeiras noções do que é viver em democracia.

Mas... As injustiças por essa Guiné que presenciei foram imensas.

Vi Chefes de Posto, a fazerem justiça pelas suas próprias mãos, julgando e condenando ao chicote homens sem direito a defesa, sem processo, sem inquirição, sem confronto.

Vi Africanos a serem empurrados pela força da baioneta, obrigados a irem viver para sítios que não queriam ( Antotinha), alegando que ali nasceram, ali queriam morrer, sobretudo os mais velhos. Quantos fugiram para o IN !?

Guiné-Bissau > 2005 > O Zé Teixeira regressa à sua segunda terra... Um homem é também as suas memórias, a memórias dos lugares e do tempo onde viveu, soferu, amou... 

© José Teixeira (2006)


Vi Africanos a serem condenados a prisão por não terem dinheiro para pagar o Imposto do Pé Descalço.

Vi Gente carregada de frutos que iam vender à loja do branco e saíam desta bêbados e sem tostão, graças à estratégia montada, para deixar lá os miseráveis pesos que lhe davam pelo sacos de coquenote.

Vi gente a vender o saco de mancarra a um peso e depois o homem branco da loja vender o mesmo saco por 15 moedas. Tendo ainda o desgraçado do produtor de o carregar até ao barco. Ele que teve de rasgar a terra, semear, tirar as ervas daninhas, proteger dos animais selvagens e dos pássaros, proteger das investidas do Inimigo.

Vi e senti quão tão grande era o desprezo que a Mãe Pátria votava aqueles que dizia serem seus filhos iguais aos que do Minho ao Algarve se orgulhavam de serem Portugueses. Onde estavam as escolas, a assistência mínima à saúde, o desenvolvimento ?

Vivi uma guerra que em consciência não queria.
Mas estou aquiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!

Zé Teixeira

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Notas de L.G:

(1) Vd posts anteiores:

1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968

(...) Buba, 21 de Julho de 1968: Agora me lembro, hoje é Domingo... Saí às cinco da manhã em patrulha de reconhecimento à estrada de Aldeia Formosa. Voltei a Buba onde assento desde ontem pelas treze e trinta, depois de uma marcha de cerca de vinte quilómetros debaixo de sol abrasador. O resto da tarde foi para dormir, estava completamente esgotado (...).

2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXI: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (2): Buba/Aldeia Formosa, Julho de 1968


(...) Buba/Aldeia Formosa, 24-26 de Julho de 1968: (...) A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra...

Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o radiotelegrafista morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caíu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino nada pudemos fazer (...).

2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIII: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (3): Aldeia Formosa, Julho de 1968

Aldeia Formosa, 9 de Agosto de 1968: (...) Um pelotão de milícia de Aldeia Formosa foi bater a zona de Mampatá, para confundir o IN e sofreu dois mortos e três feridos. Trouxe orelhas de vários IN, mortos durante o combate. É horrível, Senhor... dois mortos e três feridos e... orelhas de vários IN mortos. Alguns, foi a sangue frio, segundo dizem, depois de serem descobertos com ferimentos que os impediam de fugir. Tudo isto é guerra, enquanto uns estavam na rectaguarda feridos, outros, autênticas feras, procuravam IN, irmãos de raça, para os assassinarem (...).

2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIV: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (4): Aldeia Formosa, Agosto de 1968

(...) Aldeia Formosa, 28d e Julho de 1968: (...) Encontrei em Gandembel o Mário Pinto, meu colega de escola, contou-me coisas terríveis que se têm passado neste aquartelamento fortificado, junto à fronteira com a Guiné-Conacri que tem como objectivo cortar os carreiros de ligação à estrada da morte, impedindo o IN de fazer os abastecimentos (...).

6 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXVII: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (5): Mampatá, Agosto-Setembro de 1968

(...) Mampatá, 7 de Setembro de 1968: Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ? Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não (...).



11 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXL: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (6): Mampatá, Setembro-Outubro de 1968

(...) Mampatá, 17 de Setembro de 1968: Dia de correio. Ainda cedo sentiu-se a avioneta de Sector em direcção a Aldeia Formosa. Aguardamos com ansiedade a viatura que partiu para lá....

O Vitor escreveu-me. Por Bissorã nem tudo corre bem. Segundo ele, num pequeno incidente ficaram dois soldados inutilizados para toda a vida, ambos com uma perna amputada e um outro com a cara cheia de estilhaços. Além destes, uma nativa morta e outra sem uma perna. Tudo por rebentamento de minas A/P, montadas pelo IN.

Numa saída em patrulha a malta vingou-se fazendo sete mortos e dois prisioneiros. O último a morrer foi o tipo que montou as minas e, pelo que ele conta, teve morte honrosa. Todos os africanos verificaram a eficiência das suas facas no seu corpo (...)

(...) Mampatá, 25 de Setembro de 1968: Como é belo sentir nas próprias mãos o pulsar de um coração novo que acaba de vir ao mundo. Um corpo pequenino, branco como a neve, puro como os anjos e no entanto, este corpo vai crescer, a pouco e pouco a natureza encarregar-se-á de o tornar negro como os seus progenitores, negro como os seus irmãos que hoje não cabiam em si de contentes. É puro como os anjos, a sua alma está imaculada, mas virá o tempo em que conhecerá o pecado, terá de escolher entre o bem e o mal (...).


Guiné 63/74 - CDLIV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (7): Mampatá, Outubro-Dezembro de 1968

(...) Mampatá, 29 de Outubro de 1968: (...) A família do sargenti di milícia Hamadu (1) estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:
- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos (...).


19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969

(...) Mampatá, 5 de Janeiro de 1969: (...) Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.

A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).

A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (...).


(...) Chamarra, 23 de Janeiro de 1969: (...) Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.

Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer (...).


24 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (9): Buba, Fevereiro/Março de 1969, 'manga de chocolate'

Buba, 20 de Fevereiro de 1968: Estou em Buba desde 7 de Fevereiro e as perspectivas não são muito boas. Gandembel foi abandonada e o IN entretinha-se por lá. Agora, talvez porque se está a construir uma estrada nova para ligar Buba a Aldeia Formosa, esta linda terra está a ser a preferida pelo IN para as suas brincadeiras.

A estrada nova já causou um morto, o primeiro da minha Companhia quando eu ainda estava em Chamarra. O IN estava emboscado com dois fornilhos montados e, ao fazer rebentar a emboscada, provocou a explosão das armadilhas e um homem, o velho, foi pelos ares. Mais uma vida roubada (...).


30 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXXVI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (10): Abril/Maio de 1969, 'Senhora, nem Tu me salvaste!"

(...) Buba, 19d e Abril de 1969: (...) Um pequeno incidente de palavras entre um soldado da minha Companhia [CC 2381] e um Comando Africano, quando tomavam banho, originou uma luta entre Fuzileiros e Comandos com consequências graves. Parece estar tudo louco (...).

6 de Fevereio de 2006 > Guiné 63/74 - DII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (11): Desenfiado, em férias na Metrópole (Maio/Junho de 1969)

(...) Bissau, 19 de Junho de 1969: Regressei a Bissau depois de um mês de férias na Metrópole onde pude participar no casamento do meu irmão Joaquim.

A minha [licença] de férias foi cheia de aventura. O Comandante não assinou o Passaporte, pelo que não podia ir, apesar de ter a viagem comprada. Mandei um rádio para Bissau a anular a viagem e entretanto o Comandante foi para uma Operação.

(...) Entretanto aparecem dois bombardeiros no ar e o lugar do atirador vago. Ao pressentir que iam aterrar, fardei-me, peguei na mala e dirigi-me à pista com intenções de pedir ao Comandante da Esquadrilha para me levar, só que vejo sair do outro Bombardeiro nada menos que o meu Comandante que regressava da Operação (...).

8 de Fevereiro de 2006 >A Guiné 63/74 - DV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (12): A morte do Cantiflas (Julho de 1969)

(...) Buba, 18 de Julho de 1969: (...) Para morrer basta estar vivo, não interessa o local ou meio. De paz ou de guerra. A morte aparece em qualquer sítio e a qualquer hora. O Cantinflas estava na guerra.. Caíu debaixo de fogo várias vezes, sofreu os efeitos de uma guerra traiçoeira, sem o mais pequeno ferimento, mas a morte espreitava-o impiedosamente e há dias, através de um choque eléctrico, veio ter com ele (...).

9 de Fevereirod e 2006 > Guiné 63/74 - DVIII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (13): Vi a morte à minha frente (31 de Julho de 1969)

Buba, 31 de Julho de 1969: Vi a morte à minha frente. Saí de manhã até à Bolanha de Beafada, a montar segurança à coluna que ia para Aldeia Formosa. Tinha como missão assistir os Picadores que iam à frente a tentar detectar as possíveis minas que o IN costuma colocar. Coloquei a bolsa na 1ª viatura e segui à frente da mesma.

Como havia muitas poças de água, instalei-me ao lado do condutor. Em determinado momento tive um pressentimento e saltei da viatura seguindo à sua frente. Não andei 50 metros e senti um rebentamento, fui projectado pela deslocação do ar e senti algo a cair em cima de mim, deduzindo que eram estilhaços. Pensei:
- Desta não escapo (...).

11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXX: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (14): De que lado estaria Deus ? (Agosto de 1969)

(...) Buba, 7 de Agosto de 1969: As colunas de abastecimento a Aldeia Formosa e povoações limítrofes continuam a dar que falar. Ontem, seguiu mais uma e, ao chegar ao Pontão de Uane, uma mina anticarro rebentou debaixo da 14ª viatura, projectando os seus ocupantes a grande altura, pois a viatura seguia sem carga. Três mortes instantâneas, todas de africanos e nove feridos graves, entre os quais dois colegas meus. Foi este o resultado (...).

20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXVII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (15): um dia negro para a 15ª Companhia de Comandos (Setembro de 1969)

(...) Empada, 9 de Setembro de 1969: Na estrada de Fulacunda, mais 8 Comandos e 3 soldados ficaram sem vida. Houve ainda sete feridos graves, entre os quais o meu amigo Zé João, enfermeiro comando. Uma mina anti-carro de grande potência atirou com a viatura cheia de militares, que estiveram comigo em Buba (15ª Companhia de Comandos) contra um tronco de árvore que se debruçava sobre a estrada, matando uma série deles instantaneamente. No buraco feito pela bomba pode-se esconder uma viatura, tal era a sua potência... (...)

8 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXVII: Dia Internacional da Mulher (5): 'Fermero, ká na tem patacão pra paga, fica ku minha mudjer' (Zé Teixeira) .

XVI Parte de O Meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (16)

9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXX: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (17): Este gajo estava mesmo apanhado

(...) Empada, 16 de Outubro de 1969: Do pelotão que está em Buba chegam novidades. Há dias houve por lá um terrível ataque com tentativa de assalto. Atacaram do sítio habitual do lado do rio com 10 Canhões s/r (...)

Segundo dizem os meus colegas eram mais de duzentos, a avançarem em arco para que se as nossas forças saíssem a envolverem. Felizmente estava emboscado um Pelotão que os detectou. Parece que foi um tremendo fogachal, enquanto os Fuzas perseguiam os que atacaram do lado do rio que pretendiam reforçar as forças de assalto (...).

12 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (18): Empada, Novembro/Dezembro de 1969

Empada, 20 de Novembro de 1969: O Kebá aparecia todos os dias na Enfermaria. É o nosso ajudante no tratamentos da população. Trata as pequenas feridas. Elas já sabem:
- Kebá põe mercuro ! - e ele põe.
- Kebá, parte quinino! - e ele vai buscar LM. Vão-se embora todos contentes.

Ao Almoço lá lhe trazemos uma cantina cheia de comida. É a nossa paga. Há dias deixou de aparecer. Estranho, mas como tem duas mulheres e vários filhos no mato, admiti que tivesse ido embora.

Ontem vi-o a carregar barricas de água, da fonte para o jardim do chefe de posto. Perguntei-lhe porque deixou de aparecer e fiquei horrorizado. Estava preso por não pagar o Imposto de Pé Descalço.

Vim para o Quartel e a minha revolta fez-me agir. Um quarto de hora depois estava a casa do Chefe de Posto cercada por militares armados de G3 a exigirem a libertação do Kebá (...).