quinta-feira, 15 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte) (Luís Graça)




Guiné > Guileje > O ex-furriel miliciano de operações especiais Casimiro Carvalho, da Companhia Independente de Cavalaria 8350, que esteve naquele que ficou conhecido pelo corredor da morte, entre Guilege e Gadamael , entre Outubro de 1972 e Junho de 1973. Ele foi reconhecido como um dos heróis de Gadamael, não só pelos seus camaradas e pelos seus superiores imediatos (o Capitão Quintas, comandante da CCAV 8350, ferido em combate na batalha de Gadamael, bem como pelo capitão comando Ferreira da Silva, nomeado de urgência para chefiar o COP 5, e aqui evocado e entrevistado pelo jornalista do Público)... Mas esse facto nunca foi devidamente reconhecido pela hierarquia do Exército (LG)
Foto amavelmente cedida pelo próprio e enviada pelo seu amigo e camarada © Magalhães Ribeiro (2005)

Segunda e última parte do trabalho de investigação do jornalista Eduardo Dâmaso > (Público, 26 de Junho de 2005) (1)


Histórias reais recordadas 32 anos depois

(i) O soldado da Madeira que só morreu em Bissau

“Recordo um soldado da ilha da Madeira que foi recolhido na bolanha e o seu estado de saúde era tão grave, o seu corpo estava tão cravado de estilhaços, que eu só ia conseguindo tirar um a um da cara com uma pinça. Estava sujo de lama e o enfermeiro teve a ideia de o meter debaixo do chuveiro. Quando lhe tirava as calças, porém, é que verificou que lhe faltava parte da perna e da anca devido à deflagração de uma granada. O pobre soldado estava completamente sem sentidos, talvez, quem sabe, em estado de pré-coma. O éter utilizado na sua lavagem criou uma atmosfera tão inflamável que um dos camaradas nossos ao entrar na coberta a fumar deixou cair um pouco de cinza no balde onde depositávamos as compressas e o algodão, provocando uma explosão na coberta. O gerador foi abaixo criando uma situação de pânico. Nesse momento o soldado da Madeira levantou-se e tentou procurar um abrigo. Mais tarde, saiu do navio vivo, foi transportado para Cacine, acabando por morrer em Bissau... por falta de assistência, dizia-se por lá”.


(ii) Uma bala por cima do coração

“Para a noite estava reservado um dos episódios mais dramáticos. Deu entrada a bordo um guineense, guia das nossas tropas, que tinha alojada uma bala acima do coração. Este homem pesaria entre 110 e 120 quilos. Foi-lhe administrado o último balão de soro e o seu estado de saúde era muito preocupante. O comando entendeu evacuar o homem para que este não morresse a bordo. Para o retirar da coberta – o acesso era feito através de uma escotilha – eram necessários oito homens que o colocaram numa das lanchas. Esta embarcação navegou o que pôde no sentido das luzes do quartel mas depois foi necessário voltar a colocá-lo num zebro por causa da maré baixa. O zebro dirigiu-se a terra mas a partir de certa altura já não era possível navegar. O homem foi então transportado em maca por quatro elementos da tripulação, o cozinheiro, um artilheiro, o escriturário e o electricista, ou seja eu. O enfermeiro segurava o balão de soro. Quando saltámos do bote ficámos com água pela cintura mas o fundo parecia não ser muito mole. Todavia, quando retirámos a maca do bote, com o peso do ferido, pura e simplesmente não nos conseguimos mexer dali. Por duas horas travámos uma luta com um campo de lodo, afundados quase até ao pescoço com a maré a subir. Por fim, o enfermeiro, já exausto, larga o balão de soro em cima do ferido e nada para terra, junto ao quartel. O escriturário quase já não se via na água. Só ao fim de três horas foi possível passar um cabo a partir de terra e puxar a maca e os homens que a tinham transportado.”


(iii) Quando chegámos já não havia lugar para depositar os mortos

“Quando chegámos a terra exaustos o cenário era de dor: chorava-se, gritava-se, havia ataques de histerismo entre os soldados que ali e encontravam refugiados, aguardando a chegada dos companheiros que estavam perdidos nas bolanhas e que tinham sido recolhidos por nós. Chegados a terra o cheiro era nauseabundo uma vez que já não havia sítio para depositar os mortos. O destino era a capela e aí aguardavam as urnas. Os primeiros tinham sido ali colocados já havia cinco dias. Só regressámos ao Orion passadas umas horas. No convés do navio misturavam-se soldados e população também resgatada. A guarnição não se conseguia movimentar. Um verdadeiro inferno. Mais tarde, sei que quando embarquei no aeroporto de Bissalanca de regresso a Lisboa trazia na mala a convicção de que não mais iria regressar àquela terra. Que iria fazer como muitos outros e fugir para França. Passados trinta anos, não consegui”.

Ninguém entregou a condecoração ao coronel

Uma investigação de Eduardo Dâmaso

O coronel Ferreira da Silva resistiu com um punhado de homens ao avanço do PAIGC sobre Gadamael. Sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e com poucas munições. Foram louvados e o coronel chegou mesmo a ser condecorado por Carlos Fabião. Mas nunca recebeu a Cruz de Guerra.

Foi ao pôr do sol do dia 1 de Junho de 1973 que os três ou quatro soldados que sobravam da tropa comandada pelo recém-chegado capitão dos comandos Ferreira da Silva ficaram sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem médico, sem posto de rádio e sem munições de morteiro ali por perto. Foi nesse dia que o hoje coronel reformado e advogado Ferreira da Silva conquistou uma das suas mais vivas memórias da guerra colonial e também uma condecoração, a Cruz de Guerra, que nunca chegou a receber.

Ferreira da Silva, que antes tinha estado em Angola, acabara de poisar em Gadamael no dia 31 de Maio depois de uma nomeação relâmpago para a chefia do Comando Operacional 5 (COP5). Iniciara a comissão na Guiné em Dezembro de 1971, nos Comandos Africanos, e alguns meses depois foi ferido com gravidade. Evacuado para Lisboa, onde convalesceu, regressou à Guiné a seu pedido em Janeiro de 1973 e foi colocado em Bolama a comandar uma companhia de instrução.

A 31 de Maio, pelo meio-dia, chega ao quartel de Gadamael que vivia sob as brasas do episódio da retirada do capitão Coutinho e Lima do quartel de Guileje, situado a cerca de oito quilómetros do primeiro. Ferreira da Silva só teve tempo para um breve contacto com os dois comandantes de companhia ali presentes. Por volta das 15.00 começaram as flagelações com mísseis, morteiros e canhões sem recuo. Nesse dia houve um morto e um ferido.

Chuva de 18 granadas de três em três minutos (2)

Pelo amanhecer do dia 1 de Junho começou o mais crítico de todos os dias da batalha de Gadamael. As granadas dos morteiros 120 eram disparadas a um ritmo de 18 de três em três minutos. Logo pelas dez da manhã uma granada acabou com o pelotão de artilharia. Três mortos e 11 feridos deixaram o pelotão inoperacional. Gadamael fica reduzido ao morteiro 81 que não tinha alcance suficiente. Momentos antes tinha aterrado no quartel um helicóptero que transportava o general Spínola mas este teve de ser empurrado para dentro do aparelho, que levantou voo de imediato. O silvo das granadas a sair foi ouvido no quartel e os rebentamentos ocorreram no ponto de aterragem do helicóptero.

Num quartel com poucos abrigos e um elevado número de militares ali concentrados, os mortos e feridos foram aumentando. Na contabilidade feita ao final do dia eram registados 8 mortos e 27 feridos. Aos poucos foram tentando fazer evacuações de feridos por barco mas o fogo intenso de cada vez que se dirigiam ao cais dificultava muito a acção. Ao princípio da tarde uma granada destruiu o posto de rádio e feriu os dois comandantes de companhia. "Após a evacuação dos capitães fiquei sem elementos de ligação pois não conhecia ninguém em virtude de ter chegado na véspera", afirma Ferreira da Silva.

Num cenário de desespero e com poucos abrigos, os soldados começaram a andar junto às valas de defesa até à aldeia que ficava próxima e não estava a ser atacada. Ferreira da Silva, atarefado com as evacuações só quando o furriel Carvalho, do morteiro 81, lhe foi dizer que já não tinha granadas e que só se encontravam três ou quatro militares na zona crítica é que se apercebeu que a defesa do quartel estava a reduzida a um punhado de homens.

A bravura do cabo Raposo

Quem deu algum ânimo aos poucos que estavam foi desde logo o 1º cabo escriturário Raposo, açoriano, que se voluntariou para fazer o arriscadíssimo trajecto até ao paiol. Enfiou-se numa Berliet e foi buscar munições debaixo de fogo intenso. Gadamael estava cercado, sem artilharia, sem apoio aéreo, sem capitães, sem médico, sem rádio, sem munições de morteiro 81, tinha por companhia apenas três ou quatro militares na linha da frente.

A bravura do cabo Raposo e do furriel Carvalho (3), porém, foi um encorajamento para todos. Com o morteiro 81 municiado pelas granadas trazidas na Berliet, com uma metralhadora que conseguiram montar e os tais três ou quatro militares passaram o resto da noite de 1 para 2 de Junho a lançar umas morteiradas e umas rajadas de metralhadora de tempos a tempos. Só no dia 2 de Junho é que se apercebeu que uma parte significativa dos militares que tinha fugido para a tabanca se tinha deslocado com a população para junto do rio Cacine.

Nos dias seguintes a situação melhorou mas só num dia houve seis mortos entre os paraquedistas (*) que entretanto tinham chegado. O comando foi assumido pelo oficial Manuel Monge, antigo chefe da Casa Militar de Mário Soares e hoje governador civil de Beja. Ferreira da Silva passou a adjunto de Monge, oficial mais graduado. "A 31 anos de distância saliento a acção dos paraquedistas, do furriel Carvalho e do cabo Raposo, do major Monge com quem partilhei, durante meses, aqueles momentos difíceis, mas que conseguimos ultrapassar", recorda o coronel que nunca recebeu a Cruz de Guerra.

Fonte: Público, edição nº 5571, de 26 de Junho de 2005.
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Notas de L.G.

(1) vd. post de hoje > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)
(*) Mensagem de Vítor Tavares : "...para que fosse corrigido o relato de um texto relativo á suposta morte de Para-quedistas em Gadamael , que felizmente não aconteceu".

Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I) (Luís Graça)


Guiné > Região do Cacheu > Rio Cacheu > A LFG Orion a navegar no Cacheu em Janeiro de 1967. 

Foto: © Lema Santos (2006)

A revolta do navio Orion, da Marinha portuguesa, no dia 2 de Junho de 1973 foi decisiva para salvar a vida de centenas de soldados e população que fugiram dos bombardeamentos do PAIGC na batalha de Gadamael. 

Este episódio de desobediência a ordens de Spínola, desconhecido até hoje, é indissociável da resistência travada por meia dúzia de soldados no interior do aquartelamento de Gadamael. As suas histórias são aqui contadas por alguns dos seus protagonistas, como o comandante da Marinha Pedro Lauret, o coronel dos comandos Manuel Ferreira da Silva, e o grumete Ulisses Faria Pereira. Eles são, com outros, os heróis desconhecidos de Gadamael. (Público, 26 de Junho de 2005)


A nave dos feridos, mortos, desaparecidos e enlouquecidos

Uma investigação de Eduardo Dâmaso

Fonte: Público, nº 5571, 26 de Junho de 2005 (com a devida vénia).

[ Notas de L.G. Agradece-se ao Pedro Lauret, ao Carlos Fortunato e ao A. Marques Lopes o envio de ficheiros, em diferentes formatos, com cópia deste notável e original trabalho do jornalista Eduardo Dâmaso que merece especial destaque na nossa secção antológica, reservada a textos já publicados e que, em princípio, não são da autoria de membros da nossa tertúlia].

Passaram 32 anos desse dia 1 de Junho de 1973 mas o comandante Pedro Lauret ainda se recorda do arroz de tomate com peixe que estava a comer e que era também o jantar da guarnição da fragata Orion (1) em missão no rio Cumbijã (2). Ali estavam, estacionados nas águas de um dos muitos rios da Guiné, a comer a tomatada de peixe e a beber cerveja gelada enquanto a noite começava a deitar-se sobre a mata de Cantanhez, tão bela quanto sinistra para os milhares de soldados portugueses que a olhavam como um santuário dos guerrilheiros do PAIGC. Foi à hora do jantar que o comandante, então imediato da embarcação, Pedro Lauret, recebeu a indicação de que estava a chegar uma mensagem de “alto grau de precedência”, ou seja, de António Spínola, comandante-chefe do contingente militar português na Guiné.

O jantar acabou e começava uma inesperada e marcante aventura na vida de todos os homens embarcados na Orion. Pedro Lauret entra na cabine onde a mensagem estava a ser descodificada e percebe logo que têm de preparar-se para levantar ferro. A mensagem trazia ordens do Comando Geral a determinar que a Orion subisse o rio e embarcasse uma companhia de paraquedistas que deveria conduzir para o porto de Cacine.

“Não eram dadas explicações mas de imediato nos apercebemos que algo de muito grave se passava. Embarcar de noite uma companhia de paraquedistas sem qualquer tipo de protecção, naquele local, era muito arriscado”, afirma Pedro Lauret.

A missão secreta chegou à hora de jantar

As ordens destapavam uma outra face da moeda: tirar uma companhia de paraquedistas da região iria diminuir a capacidade militar num local problemático. As missões da Marinha no rio Cumbijã tinham recomeçado em 1972 quando Spínola decidira reactivar cinco aquartelamentos na região de Cantanhez mas a operação não estava a dar resultados. O dispositivo militar tinha sido reforçado com companhias de tropas especiais, paraquedistas e fuzileiros, bem como com diversas unidades do Exército mas mal punham o pé fora do arame farpado dos quartéis eram de imediato atacados.

“Nunca se percebeu muito bem o objectivo desta reocupação”, declara Pedro Lauret que recorda os meios navais envolvidos nessas missões no Cumbijã: a Orion, duas lanchas de desembarque médias (LDM), oito botes zebro, uma companhia de fuzos.

O jantar acabou de imediato para toda a tripulação. O soldado Ulisses Faria Pereira, grumete electricista e moço da botica, foi um dos que perdeu a refeição. “Ao entardecer já a tripulação comia arroz de tomate com peixe frito. Lembro-me que estava de ‘quarto’ e, por isso, só iria jantar depois da rendição. Jantar é uma forma de dizer... O arroz já estava feito em cimento e comi, à boa maneira portuguesa, uns peixinhos fritos com pão e umas cervejas”.

Foram dadas instruções aos patrões das LDM para seguirem em direcção a Cacine pelo canal do Melo (2), um pequeno braço de rio que liga os Cumbijã e Cacine, curto e seguro mas não navegável para embarcações maiores.

A Orion seguiu rio acima e embarcou os paras no local combinado. Foi uma operação morosa pois não havia nenhum ponto para acostar. Os soldados foram transportados em botes depois de montada uma linha de segurança.

Seriam uma oito da manhã de 2 de Junho [de 1973] quando a Orion chegou ao largo de Cacine. Foi a essa hora que também chegaram as notícias dos acontecimentos que tinham estado na origem daquela missão.

Spínola proíbe auxílio a ‘cobardes’

O major Pessoa, do batalhão de paraquedistas que se encontrava em Cacine, subiu a bordo da Orion e explicou o que se estava a passar: a guarnição de Guileje (3), um quartel situado numa zona próxima da fronteira com a Guiné-Conakri, tinha sido alvo de ataques fortíssimos e o comandante da unidade, coronel Coutinho e Lima, sem reforços, sem apoio de tropas especiais, sem meios de evacuação de feridos e mortos, decidira retirar do quartel e evacuar todo o pessoal para Gadamael (4). Foi imediatamente preso e enviado para Bissau às ordens de Spínola. Gadamael estava agora debaixo de fogo intenso e de alta precisão.

O retrato da situação em Gadamael feita pelo major Pessoa era caótico. “As últimas indicações indicavam que de um conjunto de efectivos de quase três companhias, só se encontravam no quartel a defender aquela posição cerca de 30 homens. Os restantes e a população encontravam-se em fuga pelas margens do rio”, recorda Pedro Lauret.

A reacção de Spínola à deserção anunciava-se tremenda. O major Pessoa informou então os comandantes do Orion que tinha estado de manhã em Cacine e Gadamael por brevíssimos instantes e tinha proibido o socorro a quaisquer militares em fuga, considerando-os “uns cobardes”.

“Vou buscá-los nem que seja de canoa”

Apesar das ordens de Spínola, a disposição do major Pessoa era outra. “Informou-nos da urgência de ir socorrer esse pessoal devido ao elevadíssimo risco em que se encontravam. Frisou-nos que se não estivéssemos dispostos a ir contra a determinação do general ele próprio tentaria recuperar os militares, nem que fosse em canoas”, afirma Lauret.

A determinação do major Pessoa, que volvidos trinta e dois anos não quer falar sobre os acontecimentos de Gadamael, percorreu todo o navio. O Orion partiu de imediato em auxílio das tropas fugitivas e nada comunicou ao Comando da Defesa Marítima.

Avançaram as LDM porque havia muitos anos que as LFG não subiam o Cacine para lá da marca da Lira, um sinal com reflector instalado no rio e já próximo de Gadamael (4). A verdade é que não eram conhecidas as condições de fundo para lá dessa marca, mas o navio aproximou-se do quartel o mais possível, sem problemas.

Do ponto onde estava a Orion podia avistar-se uma antena de grandes dimensões e era um evidente sinal da proximidade do inimigo que punha também a Orion na linha de fogo. De imediato foram desembarcados os paraquedistas nos zebros e as LDM começaram a percorrer as margens a recuperar os soldados que andavam perdidos.

“À noite, a coberta das praças estava repleta de feridos”

Havia feridos e mortos. Desaparecidos e enlouquecidos. No convés foi instalado o mais improvisado dos hospitais para assistir aos feridos ligeiros. Os que tinham ferimentos mais graves foram colocados na coberta dos praças. Dentro do possível foi servido pão e cerveja gelada. Lá fora, nas águas do rio, os zebros percorriam incessantemente as margens enquanto as LDM começavam a fazer uma ponte marítima em direcção a Cacine para levar os sobreviventes para um lugar mais seguro e os feridos para uma assistência mais eficaz.

“Penso que teremos recuperado cerca de 300 a 400 pessoas, entre militares e população”, diz Pedro Lauret, evocando uma imagem que nunca mais o abandonou: “À noite, a coberta das praças estava completamente repleta de feridos, não havendo lugar para as praças se deitarem”.

O relato do grumete Ulisses Faria Pereira é feito de rajada, como se quisesse deitar qualquer coisa cá para fora. De resto, isto foi um episódio silenciado ao longo de 32 anos. “Ao longo da manhã foi recebido a bordo um número elevado de feridos, a quem eram prestados os primeiros socorros, administrados pelo enfermeiro Abrantes, auxiliados pelo moço da botica, que por sinal era eu... e que, posteriormente, eram enviados para terra, para terem uma assistência melhor proceder à sua evacuação via aérea para o hospital e Bissau”, diz.

G3 ficaram abandonadas a bordo do Orion

Nessa noite de 2 de Junho de 1973, o cenário não podia ser pior. A maré baixa criou uma massa de lodo que dificultava o desembarque dos feridos. Dentro do barco estavam esgotadas todas as reservas de soro, compressas, desinfectantes. Foi então enviada uma mensagem para Bissau pedindo reabastecimentos mas temendo o pior face ao conhecimento que havia das ordens de Spínola. Na manhã seguinte, porém, um avião da Marinha largava em Cacine tudo o que tinha sido pedido.

O trabalho da Orion continuou nos dias seguintes, fazendo evacuações e começando a retirar do teatro de guerra os paraquedistas feridos. A bordo jaziam a um canto dezenas de espingardas G3: o princípio de nunca abandonar a própria arma já não tinha qualquer sentido. O moral daquela tropa estava abaixo de zero.

Para a história fica o silêncio da hierarquia. Nunca o Comando da Defesa Marítima da Guiné se referiu à desobediência do Orion, do seu comando e tripulação, nem estes sofreram qualquer punição. Na memória ficaram imagens que os protagonistas ainda hoje retêm: em Cacine, por aqueles dias, vivia um Exército enlouquecido, desarticulado, abandonado pela hierarquia, a deambular por entre os seus mortos.

O diário que nunca existiu

O soldado Ulisses Faria Pereira, grumete electricista, moço da botica no navio Orion e ex-seminarista, tinha a "mania da escrita". Todos os dias escrevinhava umas notas sobre a sua comissão militar. Todavia, nunca organizou as suas notas num diário e acabou por perdê-las. Mas se o tivesse feito ele começaria por rezar assim:

Maio de 1973

Já passaram 12 meses e a comissão decorre com toda a normalidade apesar de notar, conversa aqui, conversa ali, que a situação militar está a degradar-se. A nossa rotina é feita dos habituais 'cruzeiros' pelo Cacheu . O Cacheu merece redobrada atenção. É muito estreito, tem muitas clareiras e o navio torna-se um alvo fácil. A navegação do nosso barco é feita com a guarnição em 'bordadas', ou seja, através de equipas constituídas por metade do pessoal que cumpre um turno de seis horas comandada por um oficial e um sargento. A outra metade descansa.

Frequentemente fazemos a navegação em posto de combate devido a informações sobre a actividade do inimigo. E varremos as margens a tiro. Seis homens são destinados às peças de artilharia antiaérea, duas Bofors de 40 mm, uma a ré e outra avante. Nas missões de patrulhamento, quer de dia quer de noite, são colocadas na ponte, tanto a bombordo como a estibordo duas MG42. Na ponte há ainda um morteiro manobrado por um fuzileiro. Pois foi num destes 'cruzeiros', há dias, que já vimos como é má a situação.

A Norte, o PAIGC atacou Guidage (5) e pela primeira vez se sussurrou entre as tropas que usaram mísseis. E também que foi abatido um avião a hélice num dia e um helicóptero no dia seguinte. Nós estávamos aí perto. A tensão foi enorme. Batíamos o rio a toda a hora, noite e dia. À noite em ocultação de luzes. Chegaram, depois, notícias do sul também muito más.

Guidage, Guileje e Gadamael começaram a ser os nomes da morte entre a tropa. O que mais depressa chega aos ouvidos dos soldados é a dificuldade de evacuação de feridos. Recebemos então a missão de embarcar uma companhia de paraquedistas na zona de Bolama e deslocá-los para Gadamael com o objectivo de prestar auxílio às unidades que flageladas pelo inimigo.

Percebemos logo que aquela não iria ser mais uma missão de rotina quando soubemos da possibilidade de o massacre ser de tal ordem que havia militares a fugir para as bolanhas em redor de Gadamael. Após o embarque, as forças especiais foram-se acomodando no convés. Apagámos as luzes e fizemos rumo para Cacine.

Ao longo das primeiras horas da manhã foram recebidas a bordo dezenas de homens feridos. Nestes dias, o Orion funcionou não como lancha de fiscalização mas como um navio hospital, de primeira linha, mas sem médico e apenas com um enfermeiro e um 'curioso' que era eu.

Trinta e um anos depois sobram as memórias de uns tempos de chumbo mas também de uma experiência decisiva na vida de Ulisses, natural de Alboritel, concelho de Ourém, há muito instalado em Almada onde é funcionário da inspecção tributária. Hoje até é capaz de se rir quando se lembra dos truques que a sua imaginação criou para não ser incorporado para a Guiné – como responder tudo mal nos testes do curso da Marinha – e de como o tiro lhe saiu pela culatra. Logo a ele que ficou com a especialidade de electricista sem que tivesse qualquer vocação para tratar de fusíveis e tomadas. Foi excluído do curso mas acabou incorporado no navio S. Roque, embarcação dos mergulhadores da Marinha. Daí até à Guiné foi o tempo de um fósforo a arder. Quando pôs o pé em Bissau era um recruta em prontidão para combater sem que alguma vez tivesse tido contacto sério com armas de fogo...

Jorge Amado e Gorki no navio que atacou Conakri

Quando Pedro Lauret, então um jovem guarda-marinha de 22 anos, chegou ao Orion, em Setembro de 1971, ainda por ali pairava a memória fresca de uma operação secreta. O navio tinha comandado a incursão militar contra a Guiné-Conakri sob a mão de ferro do comandante Alpoim Galvão (7), na mais polémica acção de guerra da campanha colonial portuguesa. Nos porões ainda havia umas boas caixas de champanhe francês e de whisky velho.

O ambiente a bordo era, por assim dizer, agressivo, no sentido em que era profundamente marcado pela lógica pura da guerra. "Foi minha primeira preocupação modificar o ambiente e, dentro das limitações de quem vive em teatro de operações, criar dinâmicas antifascistas e anticoloniais", recorda aquele que em breve seria imediato.

Na bagagem Lauret levava uma formação política na linha das actividades conspirativas de sectores da Marinha contra o regime. Desde 1968 que se organizavam na Marinha movimentos com finalidades políticas e que estavam centrados nas actividades associativas, culturais e técnico-profissionais do Clube Militar Naval (8). Um desses movimentos foi o que pretendia instituir um curso de natureza associativa e sindical que acabou proibido por despacho governamental em 1972. Outro, mais importante, foi o que fomentou clandestinamente uma plataforma política contra o regime e a guerra. Havia debates sobre o marxismo e o estruturalismo com convidados como Maria Lamas e Augusto Abelaira.

Eram dinamizadas actividades culturais nas unidades, como jornais de bordo, bibliotecas e convívios desportivos. Foram ainda criadas comissões de bem-estar, órgãos previstos na Ordenança do Serviço Naval e que juntavam na mesma unidade oficiais, sargentos e praças, servindo de conselho do comandante em vários domínios da vida nas embarcações. Uma das estratégias de aproximação entre oficiais e praças assentava em actividades lectivas para estes. Assim, foram criadas em algumas unidades pequenos núcleos escolares adquirindo maior importância os que se constituíram no próprio Ministério da Marinha e numa colectividade recreativa da Cova da Piedade.

Pedro Lauret, enquanto jovem cadete, relacionou-se mais com este mundo clandestino o que teve uma influência decisiva na sua formação política. Quando chega ao Orion leva já no espírito esta necessidade de trabalhar para tentar mudar alguma coisa no rumo que a presença militar portuguesa em África levava.

Numa curta passagem por Lisboa, em licença, recebe no aeroporto uma biblioteca de bordo. A entrega é feita pelo seu filho da Escola, mais tarde comandante Cambraia Duarte, a quem pedira para que lhe comprasse os livros. Os títulos são sugestivos quanto aos objectivos: "Os subterrâneos da Liberdade", "A Mãe", de Gorki, e "Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes. Começam, assim, as leituras a bordo do Orion e também as aulas a alguns praças, que terminaram com sucesso exames do 2ºano do liceu. "Aos poucos o ambiente foi-se tornando muito diferente do que encontrara. Era um equilíbrio difícil para quem tem de manter a sua unidade em muito elevada prontidão para combate mas contei com apoio total do meu comandante de então, Coelho Rita,", declara Pedro Lauret. Em sua opinião, aliás, a mudança de ambiente no navio acabou mesmo por ser um factor decisivo para a tripulação viesse a ter a capacidade moral para desobedecer às ordens do Comandante-chefe, Spínola, quando o que estava em causa era tão só a solidariedade com aquilo a que chama "o povo português fardado".

(Continua)
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Notas de L.G.

(1) Sobre a Lancha de Fiscalização Grande (LFG) Orion - e não "fragata" -, vd. os seguintes posts:

21 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXIII: Apresenta-se o Imediato da NRP Orion (1966/68) e 1º tenente da reserva naval Lema Santos

(...) "Depois, já promovido a Subtenente, o destacamento para uma unidade naval na Guiné, o NRP Orion - P362 (LFG - Lancha de Fiscalização Grande) onde fui oficial Imediato de Maio de 1966 a Abril de 1968; uma unidade naval de 42 metros, com 2 oficiais, 4 sargentos e 22 praças entre outras 6 idênticas (Argos, Dragão, Hidra, Lira, Cassiopeia e Sagitário).

"Seguiram-se inúmeras operações, apoios à navegação (LDG, LDM, LDP, TT, embarcações e batelões) e oceanografia, escoltas, fiscalização, transportes, ataques e respostas, evacuação de feridos, prisioneiros e até transporte de agentes da PIDE" (...).

4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: A Marinha, as LDG e as LFG (Lema Santos)

(...) "Naquela altura, as LFG (Hidra, Lira, Orion, Cassiopeia e Sagitário) tal como as LDG (Alfange e Montante), tinham comando autónomo, estavam atribuídos operacionalmente ao CDMG e incluiam na guarnição dois oficiais: (i) comandante, em princípio um primeiro tenente dos QP [Quadros Permanentes] da classe de Marinha, era nomeado pelo CEMA com publicação em OA; apenas conhecido um único caso de comando, durante algum tempo, por oficial da Reserva Naval - a Cassiopeia; e (ii) imediato, em princípio um oficial da Reserva Naval, igualmente da classe de Marinha, nomeado em OA e que, por inerência do cargo, substituia sempre o comandante em caso de ausência ou impedimento daquele; alguns deles também foram oficiais dos QP" (...).

25 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXC: Os marinheiros e os seus navios (Lema Santos)

(...) "Limitando-me apenas às LFG e especificamente à Orion, refiro alguns aspectos genéricos:

"O aspecto visual do perfil era claramente o de um patrulha. Em profundidade, havia navio até 2,20 m abaixo da linha de água o que lhes vedava, em alguns rios, o acesso parcial ou, noutros casos, total. O risco corrido da não observação deste princípio náutico, a respeitar na informação dada pela sonda, era o encalhe pura e simples, como sucedeu algumas vezes.

"Estas unidades navais efectuavam inicialmente a docagem de conservação (alagem) nos estaleiros navais de S. Vicente, em Cabo Verde e, mais tarde em Bissau. Significava que, com alguma dificuldade e amargos diversos de estômago, efectuavam navegação oceânica.

"Tinham a base naval em Bissau, na ponte cais em T, frente ao Comando de Defesa Marítima na parte interior da ponte-cais em T onde, na parte exterior atracavam também os comerciais e alguns TT. Estou a lembrar-me do Rita Maria, Ana Mafalda e até mesmo o Funchal.

"Para lá de toda a zona costeira da Guiné, incluindo os Bijagós, eram navegáveis, para as LFG, os cursos do rio Cacheu (até Farim), do Mansoa, do Geba até ao início do Corubal, do Grande Buba até um pouco acima de Bolama, do Tombali praticamente apenas na foz, do Cumbijã até em frente a Cadique e do Cacine até um pouco acima da foz do Unconde.

"Quando a curso dos rios já o não permitia, a navegabilidade mais para montante era preenchida complementarmente pelas LFP. Depois as grandes heroínas do tarrafo, do lôdo, dos desembarques, dos pequenos transportes, as LDM e as LDP; nos imprescindíveis grandes transportes de pessoal, material e abastecimentos as LDG assumiam a função" (...).

(2) Vd. mapa geral da Guiné e mapa de Cacine
(3) Vd. mapa de Guileje
(4) Vd. mapa de Cacoca
(5) Vd. mapa geral da Guiné

(6) Vd. mapa geral da Guiné e o sítio Memórias dos lugares > Guidage, Bigene, Binta

(7) Vd. post de 4 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXVII: Antologia (12): Op Mar Verde
"Trecho do livro de Alpoím Galvão De Conakry ao MDLP (1976), seleccionado por A. Marques Lopes (vd. post de 22 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXX: Bibliografia de uma guerra (9): a invasão de Conacri):

"A LFG ORION fundeou a NW dos molhes de protecção do porto de Conakry. A maré estava completamente cheia, o vento era nulo, e apenas o clarão da cidade iluminava a noite. Os botes de assalto foram colocados na água e, pelas 00.45, a equipa Victor, do comando do 2.° tenente Rebordão de Brito e composta por 14 elementos, largou discretamente em direcção aos molhes. Encostou ao Dique Norte, localizou exactamente o objectivo e partiu ao ataque" (...).

(8) Vd. sítio do Clube Militar Naval, fundado em 1866 e sediado em Lisboa

quarta-feira, 14 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P877: Tabanca Grande: Manuel Rebocho, Sargento-Mor Paraquedista na Reserva - Nós, os que não fazemos parte da história oficial desta guerra

Meus caros tertulianos, com uma saudação muito particular ao nosso inquilino, Luís Graça, permitam-me a impertinência de meter a minha colher.

Fui Sargento Pára-Quedista e estive colocado na Guiné entre os dias 8 de Maio de 1972 e 8 de Julho de 1974, sempre como operacional. Sou, de momento, Sargento-Mor Pára-Quedista, na Reserva e tenho por nome Manuel Rebocho.

Sobre o assunto que o Idálio Reis colocou a Nuno Rubim, posso acrescentar-lhe que a história da sua Companhia, a CCAÇ 2317 do BCAÇ 2835, se encontra disponível ao público e está na caixa nº 74, da 2ª Divisão, da 4ª Secção, no Arquivo Histórico Militar, junto a Santa Apolónia, em Lisboa.

Todavia, e como muito bem acentua Nuno Rubim, os relatórios das operações não constam, nem fazem parte desta história, vá-se lá saber porquê! Mas tenho uma opinião, que pode não passar de uma especulação: as histórias são sempre contadas pelos vencedores, logo, à sua semelhança e medida.

E, como concluí, no final da minha investigação sobre a Guerra da Guiné, que conduziu à minha tese de doutoramento em Sociologia, na Universidade de Évora, nos últimos anos da guerra, não havia, ou praticamente não havia, Oficiais oriundos da Academia em lugares de combate. Então, os relatórios das operações só podem revelar que a guerra foi feita pelos milicianos, que não fazem parte dos vencedores de Abril, logo, suprimem-se os relatórios.

É a vida meus amigos… É a vida.

Um abraço a todos,
do Manuel Rebocho

PS - Ah, faltava dizer-lhes, que tomei contacto com o vosso/nosso blogue, através do então Furriel Miliciano José Casimiro Carvalho, da CCAV 8350 (a que abandonou Guileje, em 22 de Maio de 1973), o grande herói de Gadamael Porto, que, não obstante isso, também não faz parte da história oficial da Guerra da Guiné (1).

Comentário de L.G:

Meu caro Manuel Rebocho: O José Casimiro Carvalho já me tinha falado em ti. Ex-combatente da Guiné e doutorado (ou ainda doutorando ?) em sociologia, estás duplamente em casa, que é como quem diz: deves sentir-te confortável na nossa tertúlia virtual. Como já cá estás dentro, faz o favor de cumprir a praxe: 2 fotos, uma estória... ou as estórias que quiseres, porque o nosso hobby era a blogoterapia... Escrevemos, contamos estórias, mostramos as nossas fotografias, investigamos, apontamos o dedo à muralha de silêncio que se faz à nossa volta, a geração que fez a guerra colonial e que a perdeu (ou talvez não, por que como diz o Leopoldo Amado, a guerra colonial é apenas uma das faces da moeda; podremos ter perdido a guerra, mas ganhámos a paz, ou pelo menos estamos a tentar comquistá-la)...

_____

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73)

Guiné 63/74 - P876: É revoltante o silêncio em torno da guerra colonial (Pedro Lauret, imediato do NRP Orion, 1971/73)



Cópia do título (e da primeira página) do trabalho de investigação jornalística da autoria de Eduardo Dâmaso, sobre a retirada das NT de Gadamael (Junho de 1973) > "A naves dos feridos, mortos, desaparecidos e enlouquecidos: a história secreta do navio Orion, que há 32 anos salvou centenas de soldados na Guiné contra as ordens de Spínola".
Fotos: © Pedro Lauret (2006)


Texto do comandante Pedro Luret:

Caro Luís Graça

Dei hoje conta da vossa existência. Sou praticamente da última geração que esteve na Guiné. Fui imediato do NRP Orion entre 1971 e 1973. Sou hoje Capitão-de-mar-e-guerra reformado. O silêncio que se faz sentir em torno da guerra colonial é para mim revoltante. Se perguntarmos a qualquer jovem, até aos 40 anos, o que foi a guerra, na sua maioria tem apenas ideias vagas. A culpa também é nossa. O que contamos às nossas mulheres, filhos e netos?

Estive na Guiné num momento particularmente difícil, em 1973 após o PAIGC ter colocado em operação os mísseis Strella, e a FAP ter deixado de voar numa primeira fase e posteriormente voar com enormes limitações. Deixaram de se verificar evacuações e apoios de fogo.

Sou do tempo em que o Presidente do Conselho, Prof. Marcello Caetano afirma ao General Spínola que aceita a derrota (como na Índia), mas nunca a negociação (ver livro Depoimento de Marcello Caetano).

É necessário quebrar este silêncio traumático e doloroso.

Faço neste momento parte da Direcção da Associação 25 de Abril, e estamos a trabalhar para lançar um grande site sobre a Guerra Colonial.

Envio, para os fins que entenderem, uma cópia de um artigo (Jornal Público) sobre a actuação do NRP Orion em Gadamael, quando eu era imediato (1).

Um abraço

Pedro Lauret

_________

Nota de L.G.

(1) Documento que está a circular pela tertúlia, para leitura e análise. Trata-se de um trabalho de investigação do jornalista Eduardo Dâmaso, publicado na Pública, separata de domingo do Publico, edição nº 5571, de 12 (?) de Junho de 2005. Título:"A naves dos feridos, enlouquecidos e desaparecidos"... Recordo-me de ter lido na altura este notável documento onde se fazem inéditas revelações sobre a batalha de Gadamael e a dramática retirada das NT, em 2 de Junho de 1973...

Eis o pedido que formulei, ontem, aos nossos amigos & camaradas da Guyiné, que fazem parte da nossa tertúlia:

"(...) Gostava de pedir ao Manuel Lema Santos (que foi imediato da Orion, em 1966/68) e ao José Carvalho ( o nosso ranger, que esteve na batalha de Gadamael, em finais de Maio/princípios de Junho de 1973), que comentassem o notável trabalho de investigação feito pelo jornalista do Público, Eduardo Dâmaso (“A naves dos feridos, enlouquecidos e desaparecidos”), e de que eu vos enviei um ficheiro (pesado) em “power point” com as cinco páginas da reportagem, documento esse que o comandante Pedro Luret (imediato da Orion em 1973) me fez chegar e que eu já reenviei, ontem, para as vossas caixas de correio…

"(...) O ficheiro, com aquele formato e tamanho (quase 5MB), não pode ser inserido no blogue. Eu acho que merece ser melhor divulgado, tal como as batalhas de Guileje e Guidage… Simplesmente, temos que arranjar uma cópia do jornal, digitalizá-la… O texto tem que ser em word ou rtf… Não consigo, por outro lado, saber a data exacta em que foi publicado: sei que foi na Pública, separata do Público, de domingo, correspondente à edição nº 5571, Junho de 2005, talvez 12 de Junho…

"Se alguém tiver à mão uma cópia do original, que me diga… Talvez o A. Marques Lopes tenha esse recorte (A propósito, deves conhecer o Pedro Luret, ele é da Associação 25 de Abril, da tua associação que, pelo que ele diz, está a preparar um grande site sobre a guerra colonial… Sabes mais alguma coisa disto ?)”…

terça-feira, 13 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P875: XXI convívio anual da CART 3494 em Vila Nova de Gaia (Sousa de Castro)






Texto e fotos: © Sousa de Castro (2006)

No dia 10 de Junho 2006 realizou-se o XXI convívio da CART 3494 (Fantasmas do Xime) em Vila Nova de Gaia, no Regimento de Artilharia 5 (RA 5) , ex-Regimento de Artilharia Pesada 2 (RAP 2).
Foi um encontro onde apareceram camaradas que não se viam há mais de trinta anos, foi emocionante. Foi prestada homenagem aos mortos em combate ao toque da música de silêncio, protagonisada por alguns elementos da Banda de Música do Regimento, depondo-se em seguida uma coroa de flores no memorial existente.
Convém referir que esse memorial simboliza todos mortos considerados em combate nas três frentes em que Portugal esteve envolvido (ou seja: Angola, Moçambique e Guiné), dos Batalhões aí formados. É de salientar que existem duas pedras com os nomes de soldados mortos em Angola, duas de Moçambique, mas da Guiné existem três. Quer isto dizer que numa província tão pequena tenham morrido mais doque nas outras duas províncias.
Divulguei o Blogueforanada e incentivei a que participassem nele, vamos a ver se alguém de novo aparece com novas estórias.
De referir também que o menu foi mesmo à moda da tropa, servido no Quartel pelos próprios Militares, tendo constado de rancho, vinho dos temperos, espumoso, whisky, bolo da CART 3494 e café.

Sousa de Castro
(ex-1º cabo TRMS CART 3494 Guiné, Xime e Mansambo, Janeiro de 1972/ Abril de 1974)

Guiné 63/74 - P874: O que é feito dos nossos relatórios de operações ? (Idálio Reis / Nuno Rubim)

1. Texto, com data de 9 de Junho de 2006, do Idálio Reis (ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1):

Caro Nuno Rubim:

Aproveito esta oportunidade para lhe desejar que esteja de boa saúde.

Esta questão do blogue do Luís Graça vem naturalmente despertando alguma curiosidade, mas reconheço que as memórias de há 4 décadas estão confusas na sua incertidão, para além de as de menor sensibilidade estarem já bastante esbatidas. Percebe-se esta inquietude, para quem gostaria de narrar acontecimentos, mas que requerem a precisão e o seu pormenor, ou seja, baseados na sua autenticidade formal.

De forma que tomo a ousadia de me dirigir à sua pessoa, para me ajudar. Julgo eu, que haverá um qualquer Departamento do Ministério da Defesa, um arquivo referente à minha Companhia [, onde me seja possível consultar a sua história, desde militares incorporados, itinerários, confrontos bélicos, datas, mortos, feridos, etc.
Se assim é, onde? Qual o melhor meio de chegar até ela?

Muito cordialmente, Idálio Reis.


2. Resposta, no mesmo dia, do Nuno Rubim (coronel de artilharia, historiador, comandante, entre outras unidades, da CCAÇ 726, Guileje, 1964/66:

Pois, caro Camarada Idálio Reis:

A questão que coloca é o cerne da problemática que respeita à documentação das nossas guerras de África, 1961-1974 !

Porque... simplesmente... desapareceu a quase totalidade dos relatórios de operações das unidades envolvidas !!! E de qualquer das três frentes, Angola, Moçambique e Guiné !

Incrível, mas é a pura verdade !..

Parece que só restaram os Sitreps, Perintreps e os relatórios dos altos Comandos que, como é óbvio, são resumos muito resumidos... e expurgados da realidade da actividade operacional. E que estão à responsabilidade de uma entidade, a CECA, que deles, pelo que tenho sido informado, não abre mão...

Tal como o amigo, e justamente porque me dedico ao estudo da nossa história militar, também eu procurei encontrar os numerosos relatórios de operações e outra documentação que enviei, quer por escrito, quer via rádio, referente às várias unidades que comandei.

E o resultado foi...zero!!!...

E, como muito bem diz, a nossa memória de 4 décadas está bastante esbatida e muitos de nós gostariamos de a confrontar com a documentação oficial então produzida, sobretudo ao nível Companhia.

Para mim o problema é de tal forma absurdo que, numa pesquisa que estou presentemente a desenvolver, encontrei todos os relatórios de operações (no Arquivo Histórico-Militar) que foram redigidos entre 1871 e 1915, no Sul de Angola, matéria que estou a investigar.

Mas no Arquivo Histórico Militar há um processo, referente ao CTIG [Comando Territorial Independente da Guiné], que ainda não consultei. Não tenho grandes esperanças, mas o camarada até podia ajudar. Quem sabe ?...

Eu vou lá na próxima 5ª feira (ainda a confirmar). O meu telefone é o 212 120 446.

Por favor não me fale mais em ousadia. O camarada, tal como eu, passámos por tais provações que nos tornam permanentemente solidários em quanto estivermos neste triste vale de lágrimas...

Um grande abraço,
Nuno Rubim


3. Comentário de L.G.:

Esta questão, aqui levantada pelo Idálio e respondida com frontalidade pelo Rubim, deve merecer a nossa melhor atenção e mobilizar as nossas melhores energias. Temos direito à verdade, incluindo o acesso às fontes de informação e documentação sobre a guerra colonial. Eu fiquei perplexo ao saber, pelo Nuno Rubim, que grande parte da nossa memória colectiva, da memória de toda uma geração, ficou irremediavelmente amputada com a destruição ou perda dos arquivos das unidades que fizeram a guerra colonial na Guiné, em Angola e em Moçambique.

Os arquivos da PIDE, da Legião Portuguesa, do Salazar, do Marcelo Caetano passaram a estar disponíveis, na Torre do Tombo, à consulta dos especialsiats e de demais interessados, com as restrições previstas na lei.

Nós, que fizémos a guerra colonial na Guiné, entre 1963 e 1974, estamos impedidos de saber o que se passou exactamente no dia em que fomos emboscados ou caímos numa mina ou sofremos um ataque no nosso aquartelamento ou destacamento... Alguns de nós conseguiram, à socapa, trazer alguns documentos classificados, nomeadamente a história das respectivas unidades... Mas pouco mais.

Sugiro que façamos chegar aos nossos eleitos, os nossos representantes na Assembleia da República, um pedido para a que esta questão seja esclarecida pelo Ministro da Defesa:(i) quem destruiu ou mandou destruir ou abandonar a documentação relativa à actividade operacional em África (1961/74); (ii) como se pode aceder ao que resta da informação e documentação ainda na posse dos militares; (iii) que razões (legítimas ou não) se escondem por detrás deste muro de silêncio, etc.

O Jorge Cabral, que é jurista, e o Nuno Rubim, que é historiador militar, além de oficial superior do Exército, com larga experiência no TO da Guiné, poderão ajudar-nos a levar a bom termo estas nossas pretensões. Sem esquecer outro nosso historiador, que é o Leopoldo Amado, um outro especialista nesta área, profundo conhecedor dos aspectos político-militares da guerra de guerrilha que foi travada na Guiné contra Portugal.
__________

Notas de L.G.

(1) Vd. post 19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)

(2) Vd. post de 10 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P862: O nosso novo tertuliano, o Coronel Nuno Rubim

Guiné 63/74 - P873: Os nossos (des)encontros do 10 de Junho (Fernando Franco)

Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes > O Sérgio Pereira (à esquerda), ladeado pelo Hugo Moura Ferreira, promotor do encontro da nossa tertúlia (1). O Sérgio foi Fur Mil na CART 1691 (Guileje, 1966/67). O Hugo foi Alf Mil na CCAÇ 1621 e na CCaç 6 (Cufar e Bedanda, 1966/68)

Foto: Fernando Franco (2006)


1. Mensagem do Fernando Franco:

Caros amigos:

Que grande alegria, quando encontramos companheiros com o mesmo sentimento e respeito mútuo. A grandeza de todos nós que naquele dia estiveram presentes pelos ausentes nesta vida, foi como de costume de um tal sentimento que se torna difícil de descrever.

Claro que conheço muitos que estiveram ausentes nesta cerimónia, mas que ainda se encontram entre nós que compartilham o mesmo sentimento.

Obrigado pelo prazer de fazer parte desta tertúlia, junto uma fotografia do Hugo Moura Ferreira e Sérgio Pereira. A ideia de encontrarmo-nos em Vila do Rei, embora por agora não passe de proposta, já tem um aderente, contem comigo.

Fernando Franco (BIG - Batalhão de Intendência, Bissau, 1973/74)


2. Mensagem do Lema Santos:

Caros amigos,

Dou como minhas as vossas palavras. Normalmente, nestas andanças, há sempre uma próxima vez. Basta com a vontade criar a oportunidade e, se for a tal do convívio, tanto melhor.
Manter-nos-emos atentos.

Um abraço para todos,
Manuel Lema Santos
 (Ex-1º TEN RN 1965/72, NPR rion, 1966/68)
_________

Nota de L.G.

(1)Vd. posts de:

13 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P872: A minitertúlia do 10 de Junho de 2006

11 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P863: Os nossos (des)encontros do 10 de Junho (Hugo Moura Ferreira)

8 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P855: Encontro da nossa tertúlia no 10 de Junho, em Belém, Lisboa

Guiné 63/74 - P872: A minitertúlia do 10 de Junho de 2006

Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes >

A escassos metros do grupo do Hugo Moura Ferreira, encontravam-se os seguintes elementos da nossa tertúlia de amigos e camaradas da Guiné, entre as 11 e as 12h: na primeira fila, eu, próprio, Luís Graça (CCAÇ 12, 1969/71), à esquerda, e a meu lado o Carlos Fortunato (CCAÇ 13, 21969/71); na segunda fila, a contar da esquerda para a direita: o Jorge Cabral (Pel Caç Nat 63, 1969/71), o António Duarte (CART 3493 e CCAÇ 12, 1972/74), o Mário Dias (Comandos, 1963/66), o José Martins (CCAÇ 5, 1968/70), o Francisco Baldé (1ª, 2ª e 3ª Companhia de Comandos Africanos, 1969/74) e o João Parreira (CART 730 e Comandos, 1964/66).


Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes>

Descobri, no meio da multidão, o Furriel Comando Francisco Baldé, que esteve em Fá Mandinga, na fase de instrução de aperfeiçoamento operacional da 1º Companhia de Comandos Africanos; apresentei-o ao Jorge Cabral, na época o comandante do destacamento, que era guarnecido pelo Pel Caç Nat 63; ei-los aqui, à minha direita e à direita do José Martins. O Jorge Cabral terá, concerteza, oportunidade de relatar, em mais pormenor, as conversas havidas entre ambos, resultantes deste encontro inesperado...





Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes>
O nosso querido amigo e camarada José martins, que é já um habitué destes encontros. Fez-se acompanhar da esposa, tal como eu... Eu já conhecia o Martins, uma vez que ele trabalha e vive relativamente perto do meu local de trabalho. Recorde-se que o Martins foi furriel miliciano de transmissões na CCAÇ 5 - Os Gatos Pretos (Canjadude, 1968/70).


Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes >
O Martins e o Cabral (que me confidenciou: "Só tu é que me podias trazer ao 10 de Junho"; e eu retorqui-lhe na mesma moeda: "Só vocês é que me podiam trazer ao 10 de Junho").
Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes >
Foi também um grande prazer rever o calmeirão do Carlos Fortunato (furriel miliciano de armas pesadas e minas e armadilhas, da CCAÇ 13, 1969/71) que eu só conhecia de fotografia e de contacto telefónico, mas de quem tinha uma vaga ideia, já que fomos para a Guiné no mesmo navio, o Niassa, tendo chegado a Bissau a 30 de Maio de 1969. Não me foi difícil reconhecê-lo: ele pertencia à CCAÇ 2590 e eu à CCAÇ 2591, que mais tarde deram origem à CCAÇ 12 e à CCAÇ 13, respectivamente. Ei-lo em íntima conversa com o furriel comando Francisco Baldé, da 3ª Companhia de Comandos Africanos (passou também pela 1ª e pela 2ª). O Carlos anima, com muita competência, dedicação e carinho, uma página na Net, respeitante à sua unidade - Os Leões Negros, mais antiga que o nosso blogue. Como bons amigos e camaradas, trocamos fotos e outra documentação. Foi o Carlos que nos forneceu todos os elementos para a criação da página sobre Bissorã.

Segundo informação que me deu posteriormente o Carlos, "o Jorge Cabral vai investigar a história do bisavô do Francisco Baldé, que foi o 1º Rei Africano a visitar o Rei D. Carlos. O seu nome era Samba Ailé Baldé, e tal ocorreu em 1896. A sua etnia era Fula, e foi rei na região do Gabú" (1).
Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes >
Também encontrámos antigos combatentes guineenses, como foi o caso do Rachid (aqui ao lado do Jorge Cabral), que pertenceu à CCAÇ 21 e conheceu malta da CCAÇ 12, como o Abibo Jau, cuja execução pelo PAIGC ele confirmou (assim como a morte violenta do poderoso régulo de Badora)... O Rachid, que também ele teve de fugir para o Senegal, vive e trabalha hoje em Portugal, na construção civil. O Jorge Cabral teve oportunidade de falar mais tempo com ele e de ficar com o contacto dele.
Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes >
O João Parreira e o Miranda, dois veteranos dos velhos comandos de Brá. Foi o João que me reconheceu de imediato, já que eu não tinha nenhuma fotografia actual dele. Ele escreveu-me logo a seguir dizendo: "Caro Luís Graça: Também tive muito gosto em conhecer-te pessoalmente, bem assim como outros tertulianos. O Furriel Miliciano do Grupo Panteras que não fixaste o nome chama-se António Manuel Constantino Vassalo Miranda. Ele não usa computador mas através de outra pessoa mandou-me o ano passado alguns depoimentos interessantes. Um deles foca o assunto do tal baile da Associação em que ele também entrou.
No dia 10 falei-lhe sobre isso e ele disse-me que se achares oportuno eu podia
enviá-lo para o blogue, pois assim completava as duas versões que já publicaste de dois intervenientes. Mais tarde falarei com ele sobre outros depoimentos".

Também o Mário Dias me forneceu, por e-mail, informação adiconal sobre o Miranda a quem eu peço desculpa por não ter fixado o nome, de imediato, embora percebesse que era uma pessoa muito acarinhada e respeitada pelos outros camaradas dos velhos comandos de Brá:

"Também ele faz parte dos velhos comandos de Brá pois foi um dos militares que se deslocaram a Angola em 1963 para receber instrução nos comandos e que, no regresso à Guiné, organizaram e instruiram o grupo que tomou parte na Operação Tridente. Desse grupo que se deslocou a Angola, 3 oficiais, 1 sargento, 3 furriéis e 2 cabos, apenas 3 continuam vivos: eu, o Miranda e o Gil Dias que é meu irmão mas que não continuou nos comandos após a Op Tridente" (1).

Outros encontros > 24 de Setembro de 2005>
Mais de quatro décadas passadas sobre da Operação Tridente (Ilha do Como, 1964), eis alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, fotografados durante o convívio dos Grupos de Comandos que actuaram na Guiné entre 1964/66. Da esquerda para a direita: (i) sold João Firmino Martins Correia; (ii) 1º cabo Marcelino da Mata; (iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; (iv) fur mil António M. Vassalo Miranda; (v) fur Mário F. Roseira Dias; (vi) sold Joaquim Trindade Cavaco(Os postos, referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos).

Foto: © Mário Dias (2005)
Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes >
Tive a oportunidade também de conhecer pessoalmente o Mário Dias, personalidade que admiro e respeito. É claro que o tempo foi curto mas deu para perceber que ele e os respeitantes camaradas da nossa terúlia, que eu ainda não conhecia, eram uns gajos fixes. Incentivei-o a voltar a escrever no nosso blogue. O Mário respondeu-me depois, por e-mail: "Foi para mim maravilhoso ter-te conhecido pessoalmente. Confesso que a minha expectativa não saíu defraudada pois a tua pessoa corresponde exactamente à imagem que de ti fazia. O que mais me impressionou em ti foi essa tua vontade de a todos dares voz e a todos manteres unidos e amigos respeitando todos e cada um. Não é por acaso que és sociólogo.Bem hajas. Quanto à minhas memórias da Guiné, terra cujo fascínio é responsável por este nosso alinhar de memórias, vão continuar em breve. Espero que ainda nesta semana".

Paguei-lhe com igual moeda, o mesmo é dizer, com afecto e amizade: "Mário: retribuo-te de igual maneira… Tu só podias ser um gajo bom, de grande estatura moral, de grande honestidade intelectual, coerente, patriota, amigo dos seus amigos, camarada dos seus camaradas… Um homem revela-se muito no que escreve, até mais do que naquilo que diz… Obrigado também pelas tuas dicas sobre o Miranda"

PS - Também tive a sorte de encontrar o nosso ranger do Porto, o Magalhães Ribeiro, que vinha com a delegação do Porto da Associação de Operações Especias. Prometo publicar uma foto aqui, no blogue, para celebrar a ocasião. Já nos conhecíamos do Porto, do último Natal de 2005. Em contrapartida, desencontrámo-nos dos restantes camaradas, o que eu sou o primeiro a lamentar, como aqui já deixei referido anteriormente. Um grande abraço de amizade e apreço para o Hugo e restantes camaradas: o Lema Santos, o Sérgio Pereira, o Fernando Franco e o Fernando Chapouto (2)

Créditos fotográficos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2006)
___________

Notas de L.G.

(1) Sobre a Op Tridente, vd posts de:

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)

(2) Vd. post de 11 de Lunho de 2006 > Guiné 63/74 - P863: Os nossos (des)encontros do 10 de Junho (Hugo Moura Ferreira)
(2) Eis os elementos informativos que o Carlos Fortunato conseguiu recolher da conversa que teve com o Franscisco Baldé e que que acaba de publicarma sua págimna sobre a CCAÇ 13 - Os Leões Negros (vd. : Guerra na Guiné > O massacre dos soldados africanos)
" (...) Francisco Amadeu Baldé foi um dos comandos que conseguiu sobreviver. Era furriel na 3ª Companhia de Comandos Africanos (tinha anteriormente passado pela 1ª e pela 2ª Companhia de Comandos Africanos).

"De acordo com o seu relato, foi preso e levado para a esquadra da polícia juntamente com outros comandos. Lembra-se como as celas eram pequenas, sendo obrigado a ficar sentado pois não tinham altura para mais.

"O seu destino estava traçado, ia ser fuzilado no dia seguinte, no entanto a sua mulher Áliu, conseguiu pelos contactos que possuía, que um dos altos responsáveis pela segurança do PAIGC, Buscardino, intercedesse e o mandasse libertar (Buscardino seria posteriormente morto, no golpe de estado de Nino Vieira a 14 de Novembro de 1980).

"A partir daqui começou a sua fuga em direcção ao Senegal, dirigiu-se para Sará onde tinha familiares, os quais o recolheram.

"Conta que mesmo no Senegal, o PAIGC continuou a perseguição enviando agentes, com promessas de que podiam regressar à Guine, mas os que o fizeram foram logo mortos ao atravessar a fronteira.

"O seu regresso à Guiné seria apenas depois do golpe de estado de Nino Vieira a 14 de Novembro de 1980.

"Após a tomada do poder por Nino Vieira, terminaram as matanças e as prisões arbitrárias, mas todos os que tinham pertencido ao exército português eram excluídos da sociedade, não havendo trabalho para eles. Contudo Francisco conseguiu arranjar trabalho na embaixada da Líbia, e mais tarde regressar a Portugal, onde reside actualmente".

Guiné 63/74 - P871: Que madrasta Pátria é esta ! (ou comentários ao post do Idálio Reis)

1. Mensagem de L.G., enviada em primeira mão a toda a tertúlia:

Amigos & Camaradas:

Felizmente temos (e tivemos no TO da Guiné) boas (e às vezes grandes…) cabeças… Gostava de receber os vossos comentários sobre este longo, frontal, polémico, mas sempre lúcido, fraterno e generoso comentário do Idálio Reis (o tal sobrevivente de Gandembel/Balana, aliás, todos nós somos sobreviventes, com tudo o que isso implica de heróico, humano e miserável, porque quem sobre-vive, já não vive)…

Felizmente que nesta caserna plural que é a nossa, já não precisamos de cerrar fileiras, de fazer apelo ao espírito de corpo, de pensar pelo mesmo diapasão… A guerra acabou, mas para muitos de nós a Pátria foi e continua a ser madrasta…

O post é este e ainda está fresquinho: 12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P867: Que madrasta Pátria é esta ! (ou o meu comentário à carta do Padre Mário de Oliveira (Idálio Reis).

Espero que o nosso camarada Mário Dias, o veterano dos comandos (1) – que eu tive um especial prazer em conhecer pessoalmente, neste último 10 de Junho, a par do João Parreira, do António Duarte e do Carlos Fortunato, entre outros, incluindo um camarada do grupo dos comandos, os Panteras (de que lamentavelmente não fixei o nome e que me disse ter ganho recentemente uma batalha contra um terrível inimigo, que é a doença!) – volte em breve ao nosso convívio, com as suas magníficas memórias da Bissau de antes da guerra e o seu entranhado amor à Guiné (onde viveu, de 1952 a 1966)...

Mário, que fique claro: este blogue não tem nenhum orientação editorial político-ideológica (o que não é sinónimo de ausência de valores) e julgo já termos dado (todos!!) prova de maturidade e de pluralismo… Este é o blogue da inclusão, e não da exclusão, pelo que não temos que concordar com tudo e com todos…

Mário de Oliveira, ou Padre Mário tout court: Espero os teus comentários ao Idálio Reis… A propósito, eu queria pôr uma foto tua, de menino e moço, fardado de capelão, na nossa fotogaleria; se calhar é pedir-te muito, pior do que ir a Fátima, a pé…

Idálio: tenho que te dar uma nota, aí vai: vinte valores!... Venham agora as estórias das tuas mil e uma noites de Cansissé, antes do inferno de Gandembel e de Balana… Porque em Cansissé, segundo dizia a lenda, não se bebia impunemente a água da fonte dos Fulas… Era verdade ?


2. Comentário do José Martins:

Acabo de ler, em diagonal, ao teu comentário. Digo que em diagonal, pois quase me é impossivel, entre a conferência de um balancete e uma análise financeira, fazer uma análise profunda e interior, que o teu texto deixa antever.

Pelo que li, este texto merece uma divullgação mais vasta.Pode ser considerado libelo acusatório...Pode ser um grito de impotência .... Mas é, sobretudo, um grito de libertação e verdade!

Os meus parabéns e um forte abraço.
José Martins
(ex-Furriel Miliciano, CCAÇ 5 - Canjadude, 1968/1970)
______________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCIV: Apresenta-se o comando Mário Dias, 'pai da velhice'

segunda-feira, 12 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P870: Ideias para um diorama do quartel ou quartéis de Guileje (Nuno Rubim)

Vendas Novas > Museu da Escola Prática de Artilharia > 2004 > Diorama do sistema de defesa artilhada da Barra do Tejo no final do Séc. XV, da autoria de Nuno Rubim (o primeiro, à esquerda).

Foto: © Nuno Rubim (2006)

Retransmissão do último email que enviei ao Pepito:

Caro Pepito

Quanto à(s) maqueta(s) não haveria grandes dificuldades (1). Um dos meus hobbies é o modelismo, embora agora já não tenha tempo para a ele me dedicar. E no caso de se avançar precisaria de ajudantes...

Mas dirigi a execução de vários dioramas, à escala, de que lhe envio uma foto do último, referente à defesa artilhada da Barra do Tejo no final do Séc. XV ( o 1º sistema desse tipo montado no Mundo ). Está em exposição no Museu da Escola Prática de Artilharia, Vendas Novas, museu esse que foi também por mim implementado há perto de vinte anos, mas que tenho melhorado de vez em quando.

Na foto sou o velhote mais à esquerda...

Os materiais que tenho utilizado são a esferovite, plasticard, coberturas vegetais que em lojas da especialidade, tintas Humbrol, etc., etc.

No caso de Guileje duas opções se poderiam colocar : escalas 1/72 (ou HO ) ou 1/35. Estas escalas são as mais adequadas, pois há várias empresas no estrangeiro que comercializam kits (armamento de várias origens ) e soldadinhos que podem ser adaptados e pintados.

No 1º caso teríamos um diorama de cerca de 1,5 x 1, 5 m, no 2º de 3 x 3 m.

Claro que se porventura se viesse a optar pela representação do ataque de 1973, então as dimensões teriam de ser maiores já que, forçosamente, teria de ser incluído o dispositivo do PAIGC o que, por sua vez, exigiria contactos com combatentes da época.

Nada mais fácil do que executar, por exemplo, um morteiro de 120mm ou mesmo um canhão sem recuo B10, em plasticard. Tenho fotografias deles e estou certo que conseguiria desenhos à escala.

Quanto à consulta e participação no blogue por parte de alguns ex-militares da CCAÇ 726 (e estou certo que o mesmo acontecerá com a 1424 )... pois não tenho grandes esperanças. Dos que lá estavam só dois estão ligados à Internet... É bem verdade que alguns netos já navegam..., mas mesmo assim...

O sistema é pois partir pedra com conversas directas e colecta das fotografias possíveis.

Um abraço
Nuno Rubim
___________

Nota de L.G.

(1) O Pepito tinha anteriormente respondido ao Nuno Rubim, nestes termos (11 de Junho de 2006):

"Caro Nuno Rubim:

"Quanto à maqueta é uma excelente ideia. Ocorreu-me isso há muito tempo, mas deixei cair por não saber quem a poderia fazer.

"Para a história do quartel seria óptimo se houvesse as duas: uma antes do grande ataque e outra já a da fase final (1973). Aliás, em termos de reconstrução de edifícios, nós vamos basear-nos nesta última.

"Agora, um aparte: a minha mãe que tem 91 anos, vai todos os dias à Internet (até ao nosso blogue) e diz que se diverte imenso (fala ao telefone com os filhos espalhados pelo mundo através do Skype). Convença os seus camaradas de Guiledje [, da 726,] a frequentarem o nosso blogue". (...)

Guiné 63/74 - P869: O encontro da CCAÇ 726 e a reconstrução de Guileje (Nuno Rubim)

Texto de Nuno Rubim:

Ontem, como já sabem, decorreu o encontro da CCAÇ 726 e, naturalmente aproveitei a ocasião não só para colocar o pessoal ao corrente do Projecto Guiledge, como também informá-los sobre o blogueforanada. Foram, na maioria dos casos..., os netos de alguns camaradas que tomaram nota dos endereços electrónicos....

Das conversas, que terminaram tarde..., resultaram várias conclusões para mim importantes. A mais significativa prende-se com o facto de o quartel de Guileje ter sido praticamente reconstruído depois do grande ataque que sofreu antes de eu lá ter chegado. As obras continuaram durante a minha estadia.

A planta que vos enviei é pois posterior ao ataque, mas ontem prometeram-me uma anterior.
Também ficou alinhavado um encontro meu com dois camaradas que estão a estudar a disposição interna dos edifícios, pelo que em breve teremos novidades.

Esta questão leva-me a uma importante interrogação. Tal como nos projectos de recuperação em que participei, Fragata D. Fernando e Forte de Oitavos, Cascais, é imperativo que se estabeleça a data em que, caso o projecto prossiga, se pretende que seja representado o quartel de Guiledge, já que ao longo da sua história sofreu numerosas obras, ao que me parece.

Evidentemente que também se pode considerar a ideia da feitura de uma (ou mais ) maquetas à escala.

Abraços
Nuno Rubim

Guiné 63/74 - P868: Diabruras dos comandos (João Parreira)

Texto do João S. Parreira (ex-Furriel Miliciano Comando, Brá, 1965/66) (1).


Caro Luís Graça,

Para aliviar um pouco o tema que tenho estado a abordar (2) , aproveito para desanuviar e se nesta altura for apropriado conto a primeira das minhas brincadeiras de mau gosto, diabruras ou disparates, tanto faz.

Esta foi no interior de um pavilhão mas também há as exteriores.

Como já tinha contrariado, sempre no bom sentido, algumas das directrizes do meu Comandante de Companhia em Bissorã (3), que felizmente acabaram em bem e sem inimizades, pensei em Brá comportar-me cândidamente.




Guiné > Região do Oio > Bissorã > CART 730 > 1965 > Guião da CASRT 730, a companhia a que o Parreira pertenceu antes de alistar-se, como voluntário, nos comandos. A divisa não é legível: percebe-se apenas a palavra audazes...

Foto: © João Parreira (2006)

Porém como logo na primeira noite de estadia me fizeram uma malandrice, depressa puz para trás esse pensamento, e dentro do mesmo espírito fiz também algumas patifarias, em que algumas delas poderiam muito bem ter dado para o torto.

Já a manhã daquele dia 10 de Fevereiro de 1965 não me tinha corrido muito bem pois estava eu a dormir profundamente quando às 08H00 me acordaram precipitadamente dizendo que estava uma avioneta na pista à minha espera para me levar para Bissau.

Não contava que assim fosse pois estava programado que só iria no dia 11. Assim saltei da cama meio estremunhado, peguei à pressa nas minhas coisas e saí a correr em direcção à pista.

Tendo chegado ao Quartel dos Adidos em Brá fui apresentar-me ao Cmdt dos Comandos que me disse que depois me chamava para falar comigo e na altura indicou-me o quarto onde eu iria ficar instalado e onde deveria ir levantar os lencóis, almofada, etc.

Na posse do que era necessário fui para o quarto que me tinha sido indicado e dirigi-me para a única cama que se encontrava vazia e comecei a fazê-la estranhando que as mesmas não estivessem adaptadas para levarem mosquiteiros. Seria que em Bissau não existiam anopheles? O certo é que muito deficientemente consegui que o referido protector das picadas daqueles irritantes insectos me cobrisse




Guiné > Bissau > Brá > Centro der instrução e sede dos comandos > 1965 > A cama do Parreira, sem rede mosquiteira...

Foto: © João Parreira (2006)


Agora que estou a falar nisso lembro-me que quando estava em Salisbúria, Rodésia, para onde fui quatro meses depois de regressar da Guiné e apareciam aqueles mosquitos com o seu barulho caracteristico costumava dizer a brincar - cuidado que aí veem os aviões da Zâmbia, o que dada as rivalidades existentes entre aqueles dois países africanos fazia rir os meus acompanhantes.

No dia seguinte mandou-me chamar e depois de me ter dito qual seria a minha situação indicou-me o local onde deveria ir levantar o material de guerra.

Chegou a noite e quando entrei no quarto para me deitar já lá estavam os outros três
camaradas que entretanto tinham regressado de operações. Para além de me apresentar não deu para falarmos mais. Eram eles o Morais (4), o Matos e o Moita.

Durante a noite acordei com imenso calor e com cheiro a queimado, tendo pulado da cama sem saber o que se estava a passar. Não tinham sido causas naturais mas sim um daqueles grandes safados, que como teste ou boas vindas presumo eu, apanharam-me a dormir e pegaram fogo ao mosquiteiro.

Depois disto nunca mais usei nenhum, pois fiquei com a impressão que me ia suceder o mesmo. Coincidência ou não o certo é que passado uns dias não me livrei de ficar de cama com paludismo, em que, dada a elevada temperatura fui contemplado com a visita do médico. Deste modo não tive a mesma sorte que o camarada Magalhães Ribeiro (5).

A minha primeira reacção ao que me tinha acabado de acontecer foi ficar furibundo pois se não acordasse a tempo ficaria com alguma mazela, pelo que tentei saber qual deles tinha sido o engraçadinho, quanto mais não fosse para saber o gozo que aquilo lhe tinha dado, mas fecharam-se todos em copas e eu não insisti.

Também podia ser um acto isolado e nenhum deles saber quem foi, senão o próprio.

No dia seguinte ao fim da tarde, já com ideia do que lhes ia fazer como retribuição, mas sem qualquer ressentimento, escolhi, das granadas que entretanto já tinha colocado debaixo da cama uma de fumos que deixei ficar à mão e guardei no bolso um cordel fino que se podia partir com um puxão, e de seguida fui para Bissau de onde regressei muito tarde na esperança de que quando chegasse já estivessem a dormir.

Assim aconteceu de facto, pelo que sem acender a luz e silenciosamente prendi aos ferros da cama um pé do Moita que estava de fora mesmo a geito, e depois de me certificar agarrei na referida granada e dirigi-me para a porta que abri.



Uma granada de fumos... Foto: © João Parreira (2006)


Já na soleira tirei a cavilha e larguei-a no chão, e de imediato tranquei a porta e fui para o fundo do corredor.

Não sei o que é que se passou lá dentro, mas é de prever que tenham acordado meio sufocados pois ouvi-os a tossirem e depois devem ter corrido para a porta no meio de uma grande fumarada sem saberem o que se passava, mas como eu a tinha fechado não tiveram outra alternativa senão saltar em cuecas para a rua através da janela que tiveram que abrir, e esperar que o fumo se dissipasse.

Passado algum tempo destranquei a porta, e depois de tudo voltar à normalidade fomo-nos deitar, e como se tudo fosse natural nenhuns de nós falou do que se tinha acabado de passar.

Um abraço.
João Parreira

____________

Nota de L.G.

(1) Vd. posts de:

3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros

6 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLI: O 'puto' Parreira, do grupo de comandos Apaches (1965/66)


(...) "Temos connosco o Parreira.Foi furriel-miliciano comando na Guiné e ambos pertencemos ao grupo de comandos Apaches que saiu do 2º curso de comandos realizado na Guiné.

"Entre nós era conhecido por puto Parreira pela sua aparência um pouco imberbe que, aliás, ainda hoje conserva.

"O seu testemunho está correcto e a sua vinda a este blogue será certamente uma excelente contribuição.

"Parreira: ficamos à espera da narração da operação em que perdeu a vida o furriel Morais, morto com um pequeno estilhaço de RPG que lhe atravessou a coluna vertebral. Um abraço. Mário Dias".

(2) Vd. posts de:

31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXII: Mais ex-combatentes fuzilados a seguir à independência (João Parreira)

23 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

22 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXVII: O Justo foi fuzilado (Leopoldo Amado / João Parreira)

(3) Vd. post de 20 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLIII: Com a CART 730 em Bissorã e Olossato (1965) (João Parreira)

(4) O Fur Mil Cmd Morais virá a morrer em combate, três meses depois, no decurso da Op Ciao, em 7 de Maio de 1965. O João Parreira, também conhecido pela sua alcunha, o Uva, já aqui descreveu a morte do Morais, através do Virginio Briote, que cita o seu diário: vd. post de Guiné 63/74 - CCCLXV: Brá, SPM 0418 (3): memórias de um comando (Virgínio Briote)

"8.CAPITÃO MANILHA

"(...) Já quase no final da comissão, em Cameconde, lá para o sul. No diário do furriel Uva [João S. Parreira], um deles, podia ler-se.

“6 Maio 65. Saímos às 15h00 para a operação 'Ciao'.

"Num Dakota até Cacine e depois em viaturas até Cameconde, onde já se encontrava um pelotão à nossa espera. O Capitão Varela foi connosco.

"Saímos às 19h00 em direcção ao objectivo. Segundo as informações que nos foram fornecidas, a base IN era composta por cerca de 80 homens bem armados, comandados por Pansau Na Ina, chefe militar, adjunto do João Bernardo Vieira, de etnia Papel, mais conhecido pelo 'Comandante Nino'.

"Já na madrugada do dia 7, a poucos kms do objectivo demos indicações ao pelotão para permanecer ali e esperar pelo nosso regresso, com a missão de proteger a nossa retirada ou dar-nos apoio, caso fosse necessário.

"Assim, seguimos silenciosamente até perto do acampamento, situado na mata a sw de Catunco. Apesar de termos feito uma aproximação cuidadosa, fomos detectados por uma sentinela. Tentámos assaltar o acampamento. Mas eles estavam bem preparados, reagiram ao nosso fogo e o tiroteio prolongou-se. Quando o fogo deles abrandou, entrámos por ali dentro e vimos material abandonado durante a fuga.

"8 armas, cunhetes de munições, granadas, petardos, equipamentos, minas, fardas, e muitos documentos, entre os quais um caderno que pertencia a um tal Armindo Pedro Rodrigues, com elementos importantes da Ordem de Batalha do PAIGC.

"Carregados com o nosso material e com o que tínhamos capturado, regressámos para junto do pelotão. Juntámo-lo e começamos a vê-lo em pormenor. Faltava o aparelho de pontaria de um morteiro de 88 (?), até então ainda não apreendido na Guiné!

"O Morais afiançava tê-lo visto lá. O tenente Manilha chamou o Amadu e o Morais e disse-lhes para voltarem ao acampamento. Embora estivéssemos conscientes do perigo, arriscámos, partindo do princípio que o IN se tinha retirado após as baixas sofridas. O Morais perguntou quem é que queria ir com ele e com o Amadu. Ofereci-me bem assim como o capitão Varela, o furriel Matos e mais 7 camarada, 10 no total.

"De novo no interior do acampamento a arder. Vi uma árvore gigante, com umas cavidades enormes. Espreitei para dentro de uma, o Morais para a outra, à procura de material, e o restante pessoal, por ali perto, fazia o mesmo.

Subitamente, rajadas de metralhadora e granadas de bazuca caíram-nos em cima. Uma destas rebentou entre nós. Um pequeno estilhaço partiu a coluna do Morais, que caiu sobre uma fogueira. Eu fui atingido no lado direito das costas, mas na altura nem localizei o ferimento.

"Vi o Morais a morrer quando o olhei de relance. Um vago murmúrio, depois mais nada, um ar sereno no rosto, pareceu-me.
" (...)

(5) Vd post de 7 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVI: Cancioneiro de Mansoa (3): um mosquiteiro barato para um pira...

Guiné 63/74 - P867: Que madrasta Pátria é esta ! (ou o meu comentário à carta do Padre Mário de Oliveira (Idálio Reis)

Guiné > Zona Leste > Sector L2 > Geba > CART 1690 > Destacamento de Banjara > 1967 > Jogando à bola... Um ano antes, em 1966, o pantera negra, o moçambicano Eusébio, tinha levado o Portugal "pluricontinental" e "plurracial" de Salazar, a conquistar o 3º lugar no Campeonato de Futebol do Mundo, realizado em Inglaterra... Em 1967, em Banjara, na Guiné, longe do Vietname, tugas e nharros disputavam, descalços, interminávis partidas de futebol, sob a presença tutelar da bandeira verde-rubra da Pátria, que continua a ser madrasta, para milhares de ex-combatentes do Utramar (diz o Idálio Reis) (LG).

Foto: © A. Marques Lopes (2005)
Texto do Idálio Reis (ex-alf mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1)


Uma carta do Mário de Oliveira. Ontem, do apego à vida, aos traumatizados de guerra de hoje

Caro Luís

Num destes dias, formulaste um convite ao Mário de Oliveira para entrar no blogue (2). Desde logo, ele teve o feliz gesto de nos presentear com um excerto de um dos seus livros, quiçá o mais conforme aos nossos propósitos.

O Mário detém um condão singular, que sempre sabe utilizar com uma rara e fluente intuição, tal o modo como prima a sua descrição narrativa, no enlevo das suas palavras.

Mas, para além da sua dotada craveira que o alcandora a uma justificada posição no campo das letras, de um saber académico que toma vulto, o Mário é uma personalidade de fortes ideais e convicções, de uma frontalidade irreverente a concitar um grande respeito, de uma integridade e singeleza de carácter que o cauciona como exemplo, de uma singular dedicação afectiva com o próximo.

Repleto homem de referências, que lhe confere um estatuto de cidadania ímpar, certamente a merecer um comportamento bem diferente daquela que os Poderes instituídos, a que se agrega uma Igreja enquistada e abstrusa, o vem votando a um infame ostracismo.

Li atentamente a sua magnífica aula. Na clarividência do modo em que a expressa e manifesta, intui em si um propósito, o de sugerir uma certa reflexão.

Neste apanágio que nos é concedido, compraz-me na gratitude deste momento que me é conferido, tecer alguns considerandos, cujos pontos de incidência revestem uma atitude conciliatória, expressos através de ideias que desejo formular numa aberta e clara relação de conformidade.

1. «O Mário coloca uma série de interpelações quanto a um eventual beneplácito dos nossos pais e de nós-próprios, ao terem aceite partir para a guerra de África sem o assumir de qualquer resistência... »

As razões que determinaram a isso, foram tantas, que nós todos as colhemos amargamente, dada a grave situação política e social que grassava no País tirano de então.

Qualquer jovem desse tempo sabia que iria ser apurado para todo o serviço militar, e as hipóteses de a curto prazo não demandar África, eram muito remotas. A prestação desse serviço era pois obrigatório, e desde logo, a cumprir com rígidas regras de procedimento.

(i). Começava pelo dia das sortes, que era um etapa entusiasmante na vida de um moço de 20 anos, pois iria marcar a emancipação perante os pais e mesmo no próprio meio de inserção. A obtenção dessa alforria, até tinha direito a que se promovesse uma festa de arromba, como forma para usufruir de eventuais benesses conseguidas por esta ascensão.

Doutrinados para aceder de bom grado, como préstimo de um dos mais honrosos tributos à grei, esse mesmo dia também era de felicidade para os nossos progenitores, em especial para o pai que se ufanava de ter um filho feito homem, à medida da Pátria que iria servir.

(ii). A grande generalidade de nós provinha do oculto mundo rural, pobre e enegrecido. De parcas posses, saía-se da escola quedado pela 3ª ou 4ª classes, e aí se estagnava a um averso iletrismo, para se iniciar na calejada azáfama do trabalho, em geral na ajuda da casa ou então impelido para aprender um ofício a augurar um melhor futuro.

De horizontes cerrados, isolados, submissos aos ditames do poder paterno, despreocupados por mor de ignorância do que se passava extramuros, vivia-se mais interessado com as façanhas do clube do futebol da sua simpatia, e à medida que os corpos desabrochavam, ia-se esmerando para as manifestações dos fins-de-semana que mais os entusiasmavam: os bailaricos.

Inclusos neste meio, havia outros, muito poucos, oriundos de famílias de maiores recursos, que iam estudar para o colégio mais próximo, que os obrigava a calcorrear alguns quilómetros postados sobre uma bicicleta. E deste grupo, em que se tornava fundamental atingir o então 5º ano do Liceu a fim de se alcandorar a um outro estatuto, só um número muito restrito acaba por conseguir tirar um curso superior.

(iii) . A outra fracção é ou tornou-se urbana, ainda que bastante híbrida, mas assente numa perspectiva de horizontes com outros rasgos. Esta geração, é contudo mais heterogénea, onde é possível encontrar toda uma miscelânea social, concorde ao gabarito das famílias de origem. Um leque multifacetado, de vários graus e condições, que se estende da classe operária mais carente, à da mais alta estirpe com reconhecimento pela distinção no porte e atitudes.

É muito em especial das classes mais favorecidas, gente de bem, seja pelo seu poder financeiro, ou pelas suas ligações tentaculares com o Poder, a quem se propiciava guindar a um outro sistema incomum de valores, e conseguir os preciosos favorecimentos para os filhos.

(iv) . Desta amálgama, o Estado Novo nada descurava, sempre atento e vigilante a tudo reconhecer. E a sua actuação, a propaganda de aliciamento que urdia, tinham destinatários feitos à estrita medida de cada um de nós. A uns poucos tornava-se necessário prestar-lhes atenção, em especial a certos universitários, de forma a coarctar-lhes qualquer ousadia, sem o mínimo pejo de tomar uma atitude de maior agressividade.

A grande generalidade dos outros, estavam arrebanhados em tenro pascigo.
Neste diferenciado e estratificado caldo cultural em que só uma substantiva parte era miscível, não foi seguramente por mero sortilégio ou porque ousasse tomar uma atitude mais revel, que me coube a especialidade de atirador de infantaria, que era aquela que nenhum desejava. Hoje reconheço que não poderia ter outra, pois as minhas origens eram demasiado rasas para obter qualquer outra benesse: a mínima da menor.

(v). Mas todos nós, não tínhamos conhecimento que havia uma guerra em África? Sem qualquer dúvida que sim, onde até haviam amigos e familiares, que de vez em quando nos mandavam um aerograma a narrar algumas facetas, onde as saudades mais se sublinhavam, e em que um mais ousado deixava transparecer algum ai mais lamentoso de algumas situações mais atribuladas.

Quantas vezes, estivemos presentes a funerais de conterrâneos ou companheiros, ou a ficar lidar com outros que regressavam em situação de estropiados da guerra? E ante tais tragédias, ficávamos indiferentes? Claramente que não.

Mas mais uma vez, o Estado Novo quase que tinha o condão de nos narcotizar, pois propalava que tais sacrifícios eram feitos em nome de uma Pátria una e indivisível, e que o nosso contributo seria essencial para a vitória certa. E para os que davam a vida, a melhor forma de lhes prestar homenagem, assentava no testemunho de fidelidade a que não nos poderíamos furtar.

E se no dia de hoje, nesta aldeia se testemunhava à sofrida dor da morte, porventura amanhã, num lugar próximo, já estralejavam foguetes e soavam acordes de uma banda de música, a vitoriar o que regressava na protecção da Senhora de Fátima. Procedimentos pessoais inextricáveis, que uma avara e cavilosa acção governativa sabia ardilosamente temperar a seu gosto.

E a guerra, o que era? Para espíritos inscientes, era melhor não julgar. Ficava por aclarar, sentindo-a. E África, até não era um lugar de fixação de muitos Portugueses em busca do seu sustento?

(vi). E cegos partimos. E para a grande generalidade dos que demandaram a Guiné, só sentiram no metralhar no lodo da bolanha ou mesmo no antro de uma trincheira, então que ficavam à mercê de um fadado destino, rogando que a Fortuna o bafejasse.

Aos que tiveram a ventura de chegarem salvos, se por absurdo se vissem confrontados quanto a um eventual regresso, então julgo que a grande generalidade engendraria usar um qualquer estratagema para que experiências penadas não tivessem eco. À primeira todos caem!

2. « O Mário refere-se aos que não obedeceram, apontando os que fugiram, alguns por medo ou covardia, mas a maior parte por convicção, porque estariam mais politizados... »

(vii). Mas quantos desertaram? Muito poucos, mesmo os que viriam a conhecer que o destino próximo era a Guiné. Os rurais não tinham qualquer hipótese, pois que uma fuga era uma aventura a requerer ter como posse uma teia de fortes conhecimentos e a exigir um substancial suporte financeiro, pois não podia fracassar. Os mais urbanizados não necessitavam dessa fuga, pois estavam bem enquadrados no xadrez militar, com boas especialidades que os faziam deter nas cidades. Na Guiné, houve uns tantos, que fizeram a sua comissão em Bissau, sem ouvirem um tiro ao perto, sem lhes ocorrer qualquer perigo.

Mais do domínio dos não-graduados, tentava-se a compra de comissões de serviço, por troca entre colegas, ou então através de suborno, nos bastidores das secretarias.

(viii). Dos poucos que fugiram, se alguma vicissitude se lhes deparasse, haveria o aconchego financeiro bastante até à sua real inserção no País que lhes ofertasse guarida. E porque foi graças ao 25 de Abril, que a grande generalidade acabou por regressar, pergunte-se-lhes pela razão da sua saída do País.
Mas não me apontem que o fizeram por objecção das suas consciências, que os contrariava a participar na guerra fratricida de África. Que me desculpem todos os meus concidadãos que se furtaram à guerra colonial, mas eu só encontro uma razão. Temor.

Fizeram-no por medo, instigados por familiares ou amigos mais próximos, que estavam conscientes da sujeição às ciladas e aos riscos que num qualquer imprevisto momento poderiam incorrer. E se detinham todos os meios para deles se libertarem, por que não utilizá-los como fiança de maior segurança e salvaguarda das suas vidas?

Não me move qualquer ressentimento à tomada dessas posições, pois até julgo crer que se o meu berço fosse mais prendado, também poderia vir a tomar idêntica resolução.

(ix). Todavia, passados mais de três decénios sobre estes acontecimentos, torna-se-me particularmente difícil aceitar, porque nos é hostil, perverso, penalizador, que a grande generalidade dos trânsfugas viessem a ser aureolados de heróis, pelas putativas firmeza e arrojo que então cometeram.

Ao invés, nestes últimos anos, quedo-me taciturno e complacentemente, ao reconhecer que uma substantiva parte dos verdadeiros combatentes das frentes da guerra, subjugados a ferro e fogo impiedosamente, e que se encontram algures por este País, anónimos cidadãos, entregues a si-mesmos, atormentados por uma série de maleitas do foro psicossomático, compulsivas, destrutivas, atrozes, que a nossa sociedade está avessa por omissão, e que só encontram algum lenitivo quiçá nas suas famílias.

Ao constatar que ninguém quer dar a mão a estes desgraçados homens, cingidos a uma teia burocrática sem um vintém, nesta avalanche progressiva e inconsequente dos que sofrem o martírio dos stresses de guerra, sentimo-nos estarrecidos ante tal processo de aviltamento. Que madrasta Pátria é esta, que degreda os seus filhos a tais situações, só porque sobre eles impedem um estigma que mais parece pecado capital, de terem a desdita de doar uma pequena fracção das suas vidas à mais abjecta das submissões. Quão triste conclusão esta. Ao vociferar contra esta tamanha iniquidade, reclamo-lhes uma digna e merecida justiça.

3. « O Mário frisa que foi na Guiné que iniciou o seu êxodo para a liberdade, responsabilidade e cidadania... »

(x). Quase é dado a entender, porventura aos menos complacentes, que tal asseveração no modo em como aqui se insere, se pretexta parecer ser preconcebida. Contudo, subjaz na sua fundamentação, uma reconhecida perspectiva apaziguadora, depurada, que a Vida claramente soube envolver e que só a posse desse bem supremo consegue reconhecer.

Pois assim é.

Qualquer um de nós, em plena flor da vida, que durante quase 2 anos se viu despojado de todo o tipo de privações, impiedados pela perfídia de um minúsculo estilhaço de metralha mortífera, macerados por envolvimentos horrendos, desde o doloroso sofrimento das feridas até ao tombar inerte de tantos companheiros, e que foram e se mantêm, a causa de tantas angústias, consternações, medos, pesadelos, é jus reconhecer que suportou um extenuante, convulso, inclemente e violento embate de sobrevivência.

E é neste impetuoso turbilhão de compadecimentos continuados, que se geram arreigadas razões para pulsões conflituais, consubstanciadas pelo instinto de conservação. Torna-se um sentimento que mais se exacerba quanto maior é a antevisão do perigo, quando nos faz proclamar veementemente que somos detentores de um bem único, inalienável, mas que dada a vulnerável gravidade de risco a que está exposto, o mesmo poder-se-á esvair num súpito instante e tudo acabar inexoravelmente.

E este marcante apego à vida, toma um velado efeito multiplicador, pois que se alapa de forma bem sôfrega por todos. E foi nas ocasiões mais crispadas, e no vagaroso passar das noites desmedidas, que disformes carapaças se adoptavam para a coragem, na frieza, no comedimento, na atenção, na prudência, no desvelo, no que ela nos parecia requerer para aquele instante.

Seguramente que era na manutenção incessante dessa acesa chama, que mais sentíamos o valor infindo da riqueza desse tesouro. Talvez por isso, mesmo encafuados nessas grilhetas, debatíamo-nos por um outro tipo de luta conglobada, assente numa segredada esperança de um aferro obstinado à Vida.

E é nesta forte determinação, que nos forjámos homens mais autênticos, buscando veredas que nos levassem a atingir os propósitos que cá tínhamos deixado, em encomendas por aviar.

Que não restem dúvidas, a ter havido salvo regresso, outro tipo de homem ressurgia inteiramente diferente, cidadão pronto a arrostar contratempos para alcançar os seus reais anseios, pois mais dignos e responsáveis.

Profundamente conscientes do valor da Vida.


Idálio Reis

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69 )
(2) Vd. post de 17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXV: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira )
A propósito da entrada do Padre Mário de Oliveira na nossa tertúlia, o A. Marques Lopes escreveu o seguinte, com data de 17 de Maio último:
(...) "Aproveito para manifestar a minha satisfação pela entrada do Mário de Oliveira na nossa companhia. Quando trabalhei no Campo das Letras fiz o primeiro contacto com ele, creio que em 1994, e ainda bem, pois esta editora já tem publicados vários livros dele. É boa a vinda dele, pois, com a sua experiência de vida própria e a abertura que tem na visão que faz da sociedade e das outras pessoas, estou convencido que será um bom contributo para a nossa tertúlia".
Recorde-se que o Mário de Oliveira, mais conhecido por Padre Mário da Lixa, foi capelão militar em Mansoa: vd. post de 14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCL: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)