quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1540: Os pára-quedistas também choram: Operação Pato Azul ou a tragédia de Gampará, em 4 de Março de 1972 (Victor Tavares, CCP 121)


Guiné > Bissau > Base Aérea nº 12 > O repouso dos guerreiros: pára-quedistas da CCP 121. "Daniel Piedade, com camisola branca descosida no ombro, Victor Batista, no meio, António Marques, o Chamusca, já falecido, a seu lado António Martins e, o que está sentado na mesa, sou eu" (VT).




Guiné > Bissau > Base Aérea nº 12 > O ex-1º Cabo pára-quedista Victor Tavares (BCP 12, CCP 121, Guiné 1972/74).


Fotos e texto: © Victor Tavares (2006). Todos os direitos reservados.



CCP 121 - Março de 1972 > Actividade operacional em Gampará

por Victor Tavares (1)


No dia primeiro do mês de Março de 1972, a CCP 121, comandada pelo Capitão Pára-quedista Moura Martins, seguiu em LDG com partida de Bissau, com destino à península de Gamparà [, ma margem esquerda do Rio Corubal, mais ou menos frente à Ponta do Inglês, vd. carta de Fulacunda] onde permaneceu durante cerca de dois meses, daí partindo para acções de patrulhamento, emboscadas e outras operações de grande envergadura.


Tendo chegado aqui ao meio da tarde, saiu de seguida para um patrulhamento de onde regressou ao início da noite. Aí pernoitou para, na madrugada do dia 2 de Março, partir para o segundo patrulhamento, feito pelo 2º pelotão da CCP 121, o meu grupo de combate.


Preparando a visita do Homem Grande de Bissau


Saíndo pela retaguarda do destacamento, patrulhámos uma vasta área com vários Tabancais e Tabancas isoladas. Fizemo-lo sempre a corta mato por forma a não sermos detectados, emboscámos em vários locais sem que tivessemos referenciado algo de suspeito. A população movimentava-se para algumas lavras onde efectuavam a sementeira de milho e outros cereais.


Notava-se naquela península uma grande dinâmica, comparada com outras zonas do território até pela quantidade de gado bovino que se apascentava nas bolanhas e na orla da mata.


Regressámos ao destacamento já era noite, aonde pernoitámos em pequenas valas individuais que apenas davam para colocar o colchão pneumático, para na madrugada dia seguinte, 3 de Março, iniciarmos novo patrulhamento. Desta vez para o lado oposto àquele do dia anterior. Decorreu sem incidentes, mas com algumas movimentações suspeitas por parte de alguns elementos da população local que, ao contrário do dia anterior, se mostravam menos dinâmicos e mais expectantes, algo estariam a preparar. Regressámos ao destacamento [de Gampará] no final da tarde deste mesmo dia, sem termos problemas.


Quero também dizer que aqui, em Gamparà, os patrulhamentos eram feitos a nível de pelotão. Sempre que saíamos era para zonas diferentes e de uma forma geral regressavamos todos ao destacamento, onde se pernoitava.


Durante estes primeiros dias nenhum grupo de combate da CCP121 teve qualquer contacto com as forças do PAIGC, o que era de estranhar, uma vez que anteriormente as forças do nosso Exército sempre que saíam eram atacadas. Por essa razão é que fomos colocados na península.


Outra das razões era a visita, a este local, do Governador e Comandante Chefe das Forças Armadas na Guiné, General António Spínola. Como toda a gente sabe, a envolvência e a quantidade de militares nestas visitas de propaganda psicológica às populações apenas tinham eco na comunicação social próxima do regime.


No dia 4 de Março de 1972, o comandante chefe António Spínola visitou Gampará, em mais uma acção de psico a esta zona. A visita não correu ao agrado da população, uma vez que as promessas feitas anteriormente pelo Homem Grande ainda não tinham sido compridas, causando algum descontentamento e alarido no meio dos residentes. Isso foi notório durante o discurso, e ao mesmo tempo também preocupante.


Operação Pato Azul (A operação que o primeiro bigrupo da CCP 121 acabou por não executar)


Entretanto e depois do general do pingalim e monóculo abandonar a península, é dada ordem para o 1º Bigrupo de Combate da CCP 121, composto pelo primeiro e segundo pelotões, se preparar para uma operação de três dias, na qual irão participar também a Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123, além de outras forças. Foi dada ordem de saída cerca das 23 horas. Saímos do destacamento de Gampará rumo à Pedra de Agulha e desta até a margem do rio Corubal onde aguardaríamos uma LDG [Lancha de Desembarque Grande] que transportava a CCP 123 e outras forças vindas de Bissau para desenvolver a operação Pato Azul na zona de Tite.


Noite dentro, umas vezes utilizando a picada existente e outras, como era habitual, abrindo caminho paralelamente a estas, lá fomos progredindo na marcha possível com ligação por contacto. Embora fosse uma noite com alguma claridade, esta só se notava quando passávamos nas clareiras. Nesta altura andávamos há cerca de 45 minutos até que algo inesperado aconteceu: seguia na frente a 1ª Secção do 2º Pelotão da qual eu fazia parte e na altura seguíamos do lado direito da picada existente quando surgiu a palavra da retaguarda dada pelo nosso Comandante de Companhia, Capitão Moura Martins, informando para cortarmos à esquerda.


Seguia um pouco à minha frente o Comandante do 2º Pelotão, Alferes Afonso Abreu, que, ou não percebendo a ordem ou para confirmar a mesma, deu meia volta sobre a sua perna esquerda e colocou o seu pé direito do outro lado da picada, num trilho pedonal. Ao fazê-lo e nesse exacto momento deu-se uma explosão, seguida de gemidos de sofrimento do nosso Alferes.


Colocámo-nos em guarda a manter segurança enquanto os nossos enfermeiros - por casualidade os dois com o mesmo apelido, Sousa - se encarregavam de socorrer o ferido, fazendo todos os possíveis para que com garrotes, soro e injecções o não deixassem esvaír-se em sangue, uma vez que tinha ficado sem uma parte da perna, mais precisamente, logo a seguir ao cano da bota. Foi o resultado da explosão da mina anti-pessoal que o nosso Alferes tinha accionado. Impressionante foi que a partir desse incidente grave, o mesmo que era bastante gago, enquanto estava a ser socorrido pelos enfermeiros do 1º e 2º Pelotão, chamava a atenção para termos cuidado com a segurança montada, sem sequer gaguejar um pouco.


Entretanto improvisou-se uma maca e foi pedido pessoal para o transporte da mesma, tudo isto por volta das 24 horas do dia 4 para o dia 5 de Março, estava tudo preparado e organizado iniciando-se a deslocação da maca com o ferido.


Andados os primeiros dois ou três metros, um dos militares pára-quedistas que pegava na maca accionou um fornilho com uma potência tão grande que viria a matar seis militares pára-quedistas, incluindo o ferido, Alferes Abreu. Foram momentos de grande ansiedade e de terror, gemidos, gritos de sofrimento, de todos os lados , uns cegos - caso do Inês - , outros feridos de morte - caso do Furriel Cardiga Pinto que com as suas mãos no abdómen segurava aquilo que restava dos seus órgãos...


O Sousa, Enfermeiro, que até aí tinha sido um herói no socorro ao Alferes Abreu e que seguia ao lado da maca segurando o frasco do soro, viria a morrer ficando sem um dos braços. A cabeça e rosto ficaram bastante mal tratados, ficando completamente irreconhecível, o mesmo se passando com o Alferes Abreu. Identifiquei os dois no Hospital Militar de Bissau para onde fui evacuado de helicóptero junto com alguns dos
corpos,  incluindo estes dois últimos.


No local, os que escaparam à explosão, sem descurar a segurança, foram socorrendo os feridos mais graves dentro das possibilidades da ocasião, tendo sido pedido transporte para socorro ao destacamento de onde tínhamos partido (Gampará), que viriam com uma viatura para transportar os mortos e feridos mais graves. Mesmo assim um dos nossos camaradas que tinha sido projectado pela explosão para uma distância considerável, viria a ficar até à madrugada no local onde morreu por não ter sido encontrado aquando do reconhecimento. Ficou espetado numa palmeira a 2 a 3 metros de altura, de onde foi recolhido pelos camaradas ao clarear do dia. Tinha sido feita a contagem várias vezes e faltava sempre um, quando se verificou que esse militar que faltava era o 1º Cabo Pára-quedista Almeida.


Desta tragédia para a família pára-quedista, que jamais esquecerá este dia , resultaram:

(i) seis mortes, Alf Mil Paraquedista Abreu, Furriel Pára-quedista Cardiga Pinto, PCB/Pára-quedista 47/68 Santos , PCB/Pára-quedista 129/69 Almeida , Sol/Pára-quedista 318/69 Jesus , PCB/Pára-quedista 412/69 Sousa;

(ii) 2 feridos graves e nove com menos gravidade , Furriel Pára-quedista Casalta (Comandante da 1ª secção do 2º Pelotão) , Sol Pára-quedista Inês (evacuado para a metrópole ), Ferreira , Tavares, Ventura, e 1º Cabo Pára-quedista Figueiredo, todos do 2º Pelotão, e o Sold Pára-quedista Salgado - Estilhaço de alcunha - do 1º Pelotão, faltando três por identificar pois, passado todos estes anos, já não me recordo, e ficará para sempre uma saudade enorme D’AQUELES EM QUEM PODER NÃO TEVE A MORTE.


Carregámos os mortos e feridos debaixo de uma nuvem enorme de pó e fumo, para a viatura chegada do destacamento, com um cheiro terrível a pólvora a sangue e a morte. Foram momentos horríveis que os Pára-quedistas da CCP121 tiveram que passar naquela noite triste e inesquecível de Março de 1972, que nunca aqueles que lá estiveram irão esquecer.


Os pára-quedistas também choram


Regressados ao destacamento, os feridos mais graves foram conduzidos para tendas aonde lhes foram prestados os primeiros socorros possíveis, era um amontoado de corpos a serem tratados pelos enfermeiros e socorristas, pára-quedistas e do Exército, que não tinham mãos a medir para aqueles que mais sofriam: uns choravam de sofrimento - porque OS PÁRA-QUEDISTAS TAMBÉM CHORAM! - a perda de camaradas, amigos e companheiros principalmente nestes momentos de tragédia, outros gritavam de dores e alguns, já quase moribundos, em agonia de morte, poucos minutos ou horas lhes restavam de vida, sofriam em silêncio porque já não tinham forças para dar qualquer sinal.


Infelizmente acompanhei muito de perto toda esta tragédia, porque depois de ter ajudado a socorrer os meus camaradas no local e termos feito o regresso, e os ajudar a colocar nos locais aonde foram socorridos, comecei a sentir frio e a tremer. Como me encontrava todo sujo de poeira e sangue, fui lavar-me a um bidão, ao tirar o dólmen - casaco camuflado - sentia algum ardor nas costas e braços e no ombro esquerdo. Ao passar a mão notei logo o que era, estava todo carimbado de estilhaços e estava a perder sangue, daí a razão de estar com tremuras e frio. Antes não liguei porque, como carreguei alguns feridos e mortos, pensei sempre que este sangue seria dos meus camaradas.


Quero referir que, aquando do rebentamento do fornilho accionado, eu e alguns camaradas fomos projectados para o meio da mata pelo sopro da potente explosão. Estou a recordar-me por exemplo do Capitão pára-quedista Moura Martins, meu comandante de companhia, e dos pára-quedistas Liam e Ferreira e do PCB  enfermeiro Pára-quedista Sousa. Este morreu de imediato. Foram para uma distância de mais de 10 a 15 metros, caindo um deles em cima de mim, fracturando-me duas costelas, o que me levou a ser evacuado no dia seguinte para o HMB 241 em Bissau onde permaneci durante dois dias, sendo posteriormente transferido para a enfermaria da BA 12 - Base Aérea 12 - onde eram tratados e recuperados os pára-quedistas feridos.


No mesmo dia 5, no Hospital, fui solicitado para ir fazer a identificação dos corpos
Uma vez que o seu estado era arrepiante, além de duvidoso para quem não tinha acompanhado toda esta tragédia, era difícil fazê-lo com exactidão tal era o estado de pelo menos de dois dos nossos camaradas.


Entretanto já na enfermaria da BA 12, passados uns dias fomos visitados pelo General António Spínola, Comandante-Chefe da Z.A.C.V.G. e Governador da Guiné, acompanhado pelas senhorinhas do M.N. F. [ Movimento Nacional Feminino], para se inteirar do estado dos pára-quedistas feridos em Gampará.


Como nada me impedia de andar de pé, as dores mais fortes eram na caixa torácica
E tanto valia estar deitado como não, tinha sempre dores. Na ocasião desta tão ilustre visita, encontrava-me perto da porta, e ao deparar com a aproximação destes visitantes, não fiquei lá muito a vontade, estava de camisola branca - hoje chama-se T-Shirt - e calças azuis de fato de treino. No entanto coloquei-me na posição de sentido enquanto ele me perguntava aonde se encontravam os feridos. Indiquei-lhe o local e acompanhei a sua rápida visita cumprimentando a despachar os doente - parecia muito ocupado -, demorando dois ou três minutos, e acabando por dizer à saída:
- É só isto, pensei que fosse mais grave.


Ao ouvir isto, não por mim mas por alguns dos meus companheiros que se encontravam bastante mal tratados, apeteceu-me dizer-lhe que quem devia lá estar era o senhor general, mas com isso só podia arranjar era uma sanção disciplinar, mesmo revoltado com o que tinha ouvido, contive-me, despedindo-me das madames que acabaram por nos deixarem uns livros de contos da carochinha e valha-nos Deus que se derretiam em simpatia que era de meter nojo.


Enfim, eram outros tempos... Passados cerca de oito dias regressei ao pelotão, embora ainda em convalescença, e aí acabei a minha recuperação.


Estimado amigo e camarada Luís,  envio-te mais este texto para se assim o entenderes publicá-lo, estás à vontade. Despeço-me com um abraço de amizade para ti e todos Tertulianos.


Vitor Tavares, que também é amigo e vizinho do Paulo Santiago.


P.S. - Quero também informar-vos que a minha companhia - a CCP 121 - já teve o seu encontro anual em Tancos e antes do almoço reunimos para falar sobre os mortos de Guidaje, aonde esteve presente o meu camarada de armas na reserva Sargento-Mor Pára-quedista Manuel Rebocho que, a nosso pedido, fez o ponto da situação. Em meu entender as coisas estão a correr bem. O pessoal está a despertar repentinamente , tenho recebido telefonemas vários, atéde camaradas pára-quedistas que estiveram noutras províncias e de outros que ainda estão ainda no activo.


Vamos ver quem mais se juntará a nás nesta justa iniciativa. Será que os organismos oficiais acordam ?
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Notas de L.G.:


(1) Vd. posts anteriores:


8 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1350: Ataque ao navio patrulha no Rio Cacheu (Victor Tavares)


25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os pára-quedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto


9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os pára-quedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida


26 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1316: A participação dos pára-quedistas na Operação Ametista Real: assalto à base de Kumbamory, Senegal (Victor Tavares, CCP 121)

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