domingo, 13 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4947: Sons e emoções: o Cantanhez e o Dari, a terra ardente e vermelha, a gente boa (Torcato Mendonça / Zé Teixeira)

Guiné-Bissau > Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da semana > 31 de Dezembro de 2006 > Floresta do Cantanhez > "Um número cada vez maior de pessoas, entre nacionais e estrangeiros que vivem na Guiné-Bissau, têm começado a visitar mais assiduamente a Floresta de Cantanhez para apreciar a beleza única desta região onde para além de apreciarem e percorrerem a última floresta primária sub-húmida do país, podem visualizar animais selvagens como os búfalos, chimpanzés e diferentes tipos de macacos como os fatangos e babuínos. O povo acolhedor e o surgimento gradual de infraestruturas de acolhimento são um argumento muito forte para vencer os 270 Km de estrada, com alguns troços em muito mau estado de conservação. A existência de guias ecoturísticos formados permitem escolher vários itinerários e percursos, uns mais ligados à natureza, outros à história, à cultura e até à pesquisa científica".

Foto e legenda: © AD - Acção para o Desenvolvimento (2006) (com a devida vénia...)




1. Já aqui divulgámos, através do blogue (1) ou internamente através da nossa tertúlia, dois belíssimos trabalhos de reportagem feitas na Guiné-Bissau, pelo Carlos Vaz Marques, jornalista da TSF - Rádio Notícias:

Reportagem TSF > Dari, primata como nós
(43 m) (2 de Março de 2007, 19h) >

No sul da Guiné-Bissau, o chimpanzé tem nome de gente. Na pista de Dari, uma equipa de cientistas portugueses estuda, há cinco anos, os chimpanzés das matas de Cantanhez com o objectivo de ajudar a salvar uma espécie ameaçada.

Um jornalista da TSF passou 15 dias com o grupo de investigadores, coordenado pelas primatólogas Catarina Casanova e Cláudia Sousa. Acompanhou o quotidiano das caminhadas pelo mato, da recolha de vestígios, das conversas com os habitantes das tabancas e testemunhou, guardando o registo sonoro do momento raro, o encontro com um grupo de chimpanzés.

'Dari, Primata como Nós' é uma grande reportagem de Carlos Vaz Marques com montagem e sonorização de Alexandrina Guerreiro.

Reportagem TSF > A Guerra do Patacom (33 m) (9 de Março de 2007, 19h) >

«A malta fica sempre a chorar, por causa da falta do patacom» desabafa o mecânico de bicicletas Ansumane no principal mercado de Bissau, que às vezes parece um enorme balneário da selecção portuguesa de futebol. De facto, neste que é um dos cinco países mais pobres do mundo, falta dinheiro para quase tudo.

Na escola primária de Iemberem, a 250 quilómetros da capital da Guiné, só não há falta de alunos, verifica o repórter, gravando o método da cantilena. «As duas coisas que mais matam são a malária e a ignorância» dirá Sílvia, uma missionária brasileira nesta zona remota. Eis a Guiné-Bissau, país entalado entre as bombas, por explodir, da guerra colonial e uma liberdade armadilhada de carências.

A 'Guerra do Patacom' é uma grande reportagem de Carlos Vaz Marques com montagem e sonorização de Alexandrina Guerreiro.


2. vejamos agora a reacção de dois membros da nossa tertúlia, ex-combatentes, Torcato Mendonça e José Teixeira:

(i) Torcato Mendonça (Fundão... e Fá, Mansambo, Candamã...):

Meu Caro:

Foi bonita a festa, pá!... Emociona, tantos anos depois, ouvir os sons da mata, das gentes e saber, sentir, que é de lá. É, Luís Graça, é o som do levantar da madrugada, o chilrear dos pássaros, o despertar daquela terra – vermelha e ardente – com a humidade a subir, os verdes tão diferenciados e lindos da mata. Paramos no tempo, latejam docemente as fontes, semicerram os olhos afastando-se do presente… buscamos e sentimos, leve, levemente o passado.

Encontramo-lo nos sons da busca ao Dari (desconhecia o nome), na reportagem da TSF (a rádio persegue-me desde miúdo), na voz que desconhecia do Leopoldo Amado (2), na fala de outras gentes e na doce cantilena das crianças. Candamã, não, isso diluiu-se no tempo. Tudo connosco mexe, tudo recorda algo de uma parte do meu passado.

Nem tudo é festa, pá, nem tudo é festa. Devagar, com dirigentes empenhados, projectos como a AD, Guiledje e outros, com gente determinada será festa, pá… Será no futuro festa. Acredito e, como eu, muitos.

Confesso que vivi, não tenho pejo em dizê-lo, momentos de emoção. Problema meu. Inquietação minha. Não dá, meu amigo, não dá, parece estar obcecado e isso não dá. Façamos (ou entremos em) período sabático. Serei capaz? Claro que sou. Valerá a pena? Não sei… tentemos…
Até… Um abraço, Torcato Mendonça.

(ii) José Teixeira (Matosinhos e... Empada, Buba, Mampatá, Quebo...):

Pois é Amigo e camarada Torcato. Agora imagina-te a (re)viver ao vivo esta situação que a TSF nos fez chegar. Imagina-te a sentires uma voz atrás de ti e te dizer:
- Tixera, (Teixeira) tu não lembra di mim ? eu vai na fermaria contigo Passa muito tempo... Eu sou o Kebá fermero.

Como reagirias logo no segundo dia de regresso à Guiné ! Imagina entrares na tua caserna e veres nela uma escola e as crianças saltarem de imediato das carteiras e virem fazer-te uma festa e pedir tira postal(fotografia) pra mim ou agarrarem a tua mão e muito admiradas compararem com a delas.

Imagina-te a ouvires uma voz feminina e a participares neste diálogo:
- Tixera, tu lembra Aliu de Mampatá ?
- Sim era o Alfero di milicia e chefe de tabanca.
- Tu lembra Usemane da milicia fidjo, de Shambel chefe de tabanca de Contabane ?
- Sim, mas Contabane foi queimada e Shambel firma em Aldeia Formosa.
- Shambel moreu, mas Usemane é minha marido. Tu lembra fidja de Aliu ?
- Oh ! bajuda bonito ! (E que bonita que ela era em bajuda)
- Odja (olha) para mim ! . . .
- Tu!!!! Dadá ?
- Sim, eu memo ! (Um abraço apertado e longo, lágrimas nos olhos que encerra um misto de alegria e "sôdade" e felicidade )
- Olha minha filhos, minha netos !

Foi vestir o mais lindo vestido, por creme na cara e ronco no peito, chama toda a família e . . . houve festa.
- Mudjer di Shambel stá lá. - E apresenta-me uma velhinha corcunda, cabelo todo branco, de pele enrugada como nunca vi, a qual se abraça a mim e começa uma cantilena:
- Branco i na volta ! branco i na volta ! - om lágrimas a banharem-lhe o rosto. Por mais que eu lhe dissesse que agora só para matar sôdade, ela continuava Branco i na volta !

Tudo isto passados eram trinta e cinco anos após o meu regresso. Tudo isto e muito mais, muito daquilo que ouviste neste excerto radiofónico, eu já revivi. Desde os pássaros, que nos acordavam ou o ruído do macaco-cão que nos alertava para o perigo, a alegria das crianças, a alegria dos adultos que passaram pela guerra, do nosso lado a reviveram cenas de guerra em que ambos participamos e mesmo alguns que a fizeram do outro lado.

Viviam a dois a três quilómetros escondidos no mato. A bolanha onde fui baptizado no fogo. As tabancas onde vivi belos e grandes momentos e . . . momentos aflitivos onde não cabia um feijão no buraquinho.O buraco feito por uma granada de canhão na parede da caserna,(hoje transformada em escola) donde tinha fugido uns segundos antes, isto às cinco da manhã, quando eles resolveram substituir o Cabo de dia ( noite) que nos iria acordar meia hora depois para partirmos para mais uma viagem de montagem da segurança na estrada em construção....

... A bolanha dos Passarinhos, onde vi a morte à minha frente e lhe preguei uma finta ao saltar abaixo da viatura, momentos antes desta pisar uma A/C. O Rio Grande de Buba com toda a beleza das suas margens - vegetação, passarada, tapetes coloridos de caranguejos a esconderem-se no tarrafo com a nossa chegada - (Hoje, infelizmente, transformadas em campos de caju) de onde fui corrido uma vez, quando após o regresso de uma operação me fui banhar e eles estavam na outra margem à minha espera, para fazer a festa e me obrigarem a regressar nú ao quartel a 100 metros.

Peregrinei pelos locais onde vivi a minha guerra com a colaboração activa dos soldados do PAIGC a quem chamávamos Turras. Os ataques na estrada, as emboscadas em que participei. Os locais de onde fui corrido a tiro. Revi e revivi cenas que estavam fixas no sotão da minha memória e me faziam sofrer, desde as tabancas cercadas com duas fiadas de arame farpado e as minas e armadilhas que as envolviam as quais, obrigavam as crianças a não sair do perímetro da aldeia para não serem surpreendidas...

Os companheiros (milicias) de armas que nos reconhecem e começam de imediato a contar o rosário de aventuras que viverem connosco no tempo di guera. Recordam-nos camaradas que fugiram com medo, camaradas que foram assassinados pelos libertadores, outros que estão vivos lá na tabanca di . . . Alguns que se recusam a falar. As bajudas do nosso tempo, as nossas lavanderas de mama firme, hoje mudjer grandi com fidjos machos e filhas, netos que nos apresentam com alegria e orgulho. As bajudas de hoje tímidas a uma certa distância ou alegres a virem-nos cumprimentar. As cantilenas das crianças ritmadas pelas palmas ou pelo pilão a bater no arroz para o descasque.

Tudo isto e o que profundamente sentido não consigo descrever, provocou dentro de mim uma descarga emocional e libertadora Por isso te desafio, a ti e a cada um de nós, que ganhe coragem e volte lá. Cuidado. Primeiro vacina-te, senão podes ao regressar, ficar como eu (ou como o Xico Allen que em média vai lá duas vezes por ano e se fosse rico . . .) - apaixonado pela Guiné,

Um abraço fraternal

J. Teixeira
Esquilo Sorridente

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 8 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1575: A TSF no Cantanhez, com uma equipa de cientistas portugueses, em busca do Dari, o chimpanzé (Luís Graça / José Martins)

(2) O Leopoldo Amado, membro da nossa tertúlia, é historiador e está neste momento a colaborar com o Pepito, com a AD, no projecto Guileje. Ouçam a sua entrevista ao Carlos Vaz Marques, dada no sul, no Cantanhez, em Iemberém, e onde ele fala da necessidade do povo da Guiné-Bissau voltar a ganhar a sua auto-estima, bem como da importância de preservar a memória da guerra colonial / guerra de libertação.

Daqui vai um abraço de todos nós, para ele, para o pepito e para os demais colaboradores da AD, incluindo o Domingos Fonseca (que é aqui entrevistado pela TSF). Ao todo, são 36 técnicos que na trabalham nesta ONG, liderada pelo Pepito.

Na Reportagem da TSF, a guerra continua presente através da memória das gentes do sul, do Tombali, mas também através das granadas (por exemplo, de RPG 2 e 7) abandonadas no Cantanhez, pelos guerrilheiros do PAIGC, no fimd a guerra, para não falar das bombas que não explodiram ou das missas a armadilhas... que não foram desmontadas - nossas e do PAIGC. Acidentes (mortais) com engenhos explosivos do tempo da guerra colonial / guerra de libertação (como gosta de dizer o Leopoldo Amado) continuam ainda hoje, infelizmente, a acontecer.
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Nota de C.V.:

Este poste foi originalmente publicado em 11 de Março de 2007, sob o número 1583, duplicado. Detectado o erro, fez-se uma reedição, com data de hoje.

1 comentário:

Anónimo disse...

Camarada Zé Tixera fazes uma discrição tão real que é como se estivesse presente,e aquela lágrima volta a rolar na face porquê?-Mas que feitiço nos fez aquela gente que mesmo trinta e tal anos depois,tenhamos por eles tanto afecto!Obrigado Tixera.
Joé Nunes1º Cabo MecElect.
Brá 68/70