quinta-feira, 15 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1598: Conto(s) do barqueiro do Geba (Luís Graça)



Africanidades > 8 de Março de 2007 > Do Casamança ao Cacheu

Foto: © Jorge Rosmaninho (2007). (Com a devida vénia...). Extraído do seu blogue Africanidades (Vivências, imagens e relatos sobre o grande continente África vista pelos olhos de um branco... que, por sinal, é também um grande português do pós-império)


Jorge: Roubei-te o teu barqueiro, o teu belíssimo homem da piroga no Cacheu, que eu não conheço. Conheci o Geba, o Corubal, o Udunduma, outros rios, a mesma humanidade, a mesma africanidade...

Revisito de tempos a tempos o teu/nosso blogue, o Africanidades, as tuas vivências, imagens e relatos sobre o grande continente África (re)visto, sentido, cheirado, apalpado, (red)escrito, fotografado, amado por um grande português do pós-império, errante, inquieto, solidário, meridional, global...

Olha, em troca, deixo-te aqui um poema, uma lengalenga que um dia ouvi a um barqueiro do Rio Geba. Não sei fula, nem mandinga, nem balanta. Mas - imagino - a língua dos barqueiros não deve diferir muito de rio para rio, do Geba ao Tejo, e até ao rio da nossa aldeia, como diria o Alberto Caeiro/Fernando Pessoa (O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia /Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia)...

Ao Jorge e ao todos os portugueses errantes, de ontem, de hoje e de amanhã. A todos os barqueiros do mundo. A todos os rios sem ponte. A todos os que querem cambar um rio e não têm barqueiro, nem barca, nem ponte, nem margens, nem pontos de cambança ou de referência... Por fim, ao senhor barqueiro de Caronte para que, quando nos levar, de vez, na sua barca, nos leve com cuidado, com jeito, não vá a gente... acordar. (LG).


Conto(s) do barqueiro do Geba
por Luís Graça (1)


Um homem passa o rio,
a nado.
Um homem atravessa a ponte
sobre o rio.
Um homem cai ao rio,
baleado.

Há uma piroga
no tarrafo.
Metralhada.
E flamingos brancos,
tingidos de vermelho.

Um homem pensa na jigajoga
da vida e da morte.
Um homem olha-se ao espelho.
Um homem porfia,
e nem sempre alcança.
Um homem tem uma crise,
de confiança.

Um homem do norte
camba o rio.
A sul.
A vau.
O Geba Estreito.
Que a última coisa a perder
é a esperança.

Um homem desenha uma ponte,
imaginária,
entre dois pontos
de cambança.
Um homem farda-se,
a preceito.
Um homem põe-se a pau,
a caminho do Mato Cão.
O inferno em frente,
o rio serpente,
e Lisboa ali tão longe,
tão azul,
tão gregária.
Lisboa, o cais
de Alcântara,
uma multidão de pontos negros.
Outra ponte,
outro rio.
Saudades a mais.
Um nó na garganta.

Um homem do norte
faz o corte
epistemológico
dos pré-conceitos etnocêntricos.
Quem sou eu, viajante ?
Quem és tu, barqueiro ?

O homem é o mal escatológico
que atravessa o céu,
de bronze.
O homem é o jagudi
em voos concêntricos.
O homem é a hiena que ri.
O homem é o pássaro-bombardeiro.
O animal alado.
O helicanhão.
O falo de fogo.
O obus catorze.
O RPG Sete.

Um homem é apanhado pelo macaréu
da história.
Como um cão.
Sem glória.
E na bolanha de Finete
descobre que não há ponte
nem salvação,
que há terra e céu,
mas não há elo de ligação.

Um homem perde a memória,
ao afundar-se no tarrafo do Geba.
Um homem chama o barqueiro
da outra margem.
Em vão.
O barqueiro faz contas
à vida
que custa manga de patacão.
E ao progresso que não chega,
ao motor de explosão,
ao motor da Yamaha,
à explosão dos cinco sentidos,
aos Strella,
aos Katiusha,
ao cimento e ao aço,
à liberdade de circulação.

Um homem passa a ponte,
a passo,
a peso pluma.
A ponte armadilhada.
O barqueiro conta um conto
em cada viagem.
O barqueiro de Caronte.
Um peso, irmão.
Um bilhete de ida,
Sem regresso.

Um homem exorta o soldado
a que leve a guerra a peito.
É o capitão,
medalhado,
que nunca irá chegar a oficial general.
O fantasma do capitão-diabo,
vagueando pelo Cuor.
Estatuado,
na capital.

Vou no Bissau,
num barco à vela,
no barco da Gouveia.
Aproveito a maré-cheia
e o cacimbo sobre Ponta Varela.

O milícia, número tal,
vai morrer,
exangue,
como a última estrela
da manhã.
E eu espreito o rio,
da minha torre de Babel.
Um terceiro homem pára.
No semáforo.
Vermelho.
De sangue.
A caminho de Madina/Belel.

__________

Notas do editor do blogue:

(1) Vd. outros poemas do autor, de temática guineense ou africana:


5 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1342: Poema: os meninos da Ilha de Luanda (... pensando nos meninos de Bolama, de Chamarra, de Mansambo ou de Saré Ganá) (Luís Graça)

5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1047: Alá não passou por aqui (Luís Graça)

1 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P930: O Relim não é um Poema (a propósito da Op Tigre Vadio) (Luís Graça)

10 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)

17 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - LIX: Esquecer a Guiné...por uma noite!(Luís Graça)

11 de Julho de 2004 > Blogantologia(s) - XVI: Luanda revis(i)tada (Luís Graça)

Outros textos poéticos disponíveis em:

Blogue-Fora-Nada e... Vão Dois

1 comentário:

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes disse...

Um maravilhoso poema! Com tamanha força humana...só podia ser com a força das raizes africanas.
Parabéns.
Mendes Gomes