domingo, 3 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1812: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (10): As mulheres dos meus homens eram minhas irmãs

X Parte das memórias do Paulo Santiago, ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho , 1970/72). O Paulo é natural de Aguada de Cima, concelho de Águeda. É um fã do râguebi e de desportos de aventura como o BTT e o canyoning.


Luís: Continuo hoje com mais uma das minhas memórias (1). Trata de conflitos rácicos e vou, pela primeira vez, utilizar iniciais a substituirem um nome.

Penso já ter dito em anterior memória que o Pel Caç Nat 53, ao contrário de grande parte de outras unidades, tinha uma composição muito heterógenea: balantas, fulas (futa-fulas, fulas-cativos, fula-forros), mandingas e beafadas.

Apesar de toda esta mistura, havia um espírito de corpo notável, talvez o mérito seja meu, jamais tive dentro do grupo qualquer conflito. É claro que as diferenças comportamentais entre um balanta e um fula eram abissais:um bebia como uma esponja, e era animista; o outro não bebia e era islamizado. Por vezes dizia aos islamizados, quando havia algum balanta mais alcoolizado:
- Nada de criticas,vocês, fulas, gostam de mim e respeitam-me mesmo quando estou de cabeça grande [com os copos]. Eu bebo como um balanta e sou religioso como um fula ou um mandinga islamizado, a única diferença é ser cristão.

A tabanca do Saltinho era composta por mandingas, era relativamente pequena. A menos de 1km - antes da construção e ocupação do Reordenamento de Contabane -, tinha sido improvisada uma tabanca para instalar os habitantes daquela que ficava na estrada que ligava a Aldeia Formosa e tinha sido destruída, Contabane.

Um dos meus soldados, o Iaia Dabó, mandinga, perdeu-se de amores por uma bajuda de Contabane e, um dia, ao anoitecer deram-lhe uma grande arraial de porrada que
o deixou muito maltratado.

Guiné > Saltinho > Pel Caç Nat 53 > 1971 > O Alf Mil Santiago, de bigode e barrete fula na cabeça, ladeado, à sua direita, pelo 1º cabo Verdete, e à sua esquerda pelos Sold Samba Seidi, bazuqueiro, e Abdulai Baldé, um dos seus fiéis guarda-costas.

Foto: © Paulo Santiago (2007). Direitos reservados.


Estava no bar bebendo uns copos, esperando o jantar, quando ouvi dois tiros (sinal utilizado para reunir o 53). Os Furrieis estavam também comigo, o que se estaria a passar? Viemos a correr até as moranças do pessoal que ficavam a seguir à porta de armas do quartel. Estavam todos num alvoroço e armados até aos dentes. Dou meia dúzia de abanões aos primeiros que encontrei, indagando quem dera ordens para reunir o grupo de combate. Muito excitados, começam a dizer-me que vão lixar o pessoal de Contabane por terem atacado um militar do 53.

Procuro meter calma naquela gente mas começo a sentir que não estou a ser bem sucedido, apesar de alguma violência física que utilizo. Noto um grupo a encaminhar-se em direcção à tabanca do Régulo Sambel (nesta data ainda o filho não tinha sido transferido para o 53) , corro atrás, junto com o CapClemente [, comandante da CCAÇ 2701, unidade de quadrícula do Saltinho 1970/72], que entretanto aparecera e a quem explico o que se passa enquanto corremos.

Peço ao 1º cabo Sanhá, beafada, para me dar a G3, tendo ele obdecido. Continuo a correr, pois já estou a ver os militares que iam à minha frente a distribuir coronhadas e pontapés aos primeiros tipos da população que lhes apareceram pela frente.

Ofegante, lá chego aos berros para acabarem com aquela merda. Ninguém me ouve, nem ao Clemente. Mando uma rajada para o ar com a G3 que o Sanhá me entregara e a calma vem por momentos. Vejo que estão lá representadas todas as etnias do meu grupo. Volta a excitação, queriam apanhar o Sambel, ele tinha de pagar pela porrada que deram no Iaia.

Fui buscar o Sambel, juntamente com o Cap Clemente e, à frente de todos, demos-lhe uma piçada: não tinha direito para bater num militar, se tivesse alguma queixa contra ele deveria ter-mo comunicado, jamais poderia fazer outra cena igual.

Acalmados, ainda que com alguns encontrões, lá regressaram às moranças. No dia seguinte, chamei um dos fulas, que se mostrara mais excitado e pus-lhe o problema:
- Tu, fula, andaste ontem a distribuir coronhada nos teus irmãos de raça!?
- Alfero, o Iaia é do 53, no mato é ele que está ao meu lado, não é o Régulo Sambel. - Gostei da resposta...

Passado pouco tempo outro conflito, também à noite e também estava no bar. Aparece-me à porta o Amadú Baldé, um dos auto-intitulados meus guarda-costas, excelente militar, com uma Cruz de Guerra, completamente descontrolado, pois um militar da [CCAÇ] 2701, o 1º cabo M.C. tinha tentado abusar da mulher. Era meu lema As mulheres dos meus homens eram minhas irmãs.

Quem era o 1ºcabo M.C. ? Natural da minha freguesia, ainda meu parente afastado, trabalhava na Secretaria da Companhia, sendo o seu estado natural de bebedeira pura e dura.

Fui ao abrigo onde estava o M.C., com o Amadú e mais alguns do 53 atrás de mim, trouxe-o cá para fora e enxertei-lhe o pelo valentemente, mais furioso ainda por ser um conterrâneo meu a fazer uma canalhice daquelas.

Deixei-o caído na parada, mas ameaçando-me ele com um tiro. Não liguei à ameaça, virando-lhe as costas. Não é que o tresloucado foi mesmo buscar uma G3 para me atingir? Valeram-me os meus homens que estavam perto. Desarmaram-no com a maior das facilidades e, se eu não tivesse intervido, tinham-lhe limpado o sebo.

Nessa noite desapareceu o M.C.... Fiquei preocupado. Vinha de férias pela 1ª vez, daí a uns dias, e,como tudo se sabe, e geralmente com distorções, já começava a imaginar o que iriam dizer acerca da minha pessoa, sendo que os pais e os irmãos eram óptimas pessoas. O Clemente andava fodido.

Ao fim de 3 dias, vindo do lado de Aldeia Formosa, apareceu o M.C. Vinha todo roto. O Clemente mandou formar a [CCAÇ] 2701 e o [Pel Caç Nat] 53 e ordenou ao fugitivo para lhe dizer o que tinha andado a fazer.
-Tentei ir para a República da Guiné, utilizando o carreiro dos djilas, mas comecei a ter medo das minas e armadilhas, perdi-me e andei vagueando ao longo do [Rio] Corubal, até conseguir regressar... Comi umas folhas para enganar a fome - explicou o M.C.

O Clemente disse que era sua intenção dar-lhe a punição máxima, mas em consideração
por mim iria ouvir-me primeiro. Depois de muita insistência, consegui convencer o Cap Clemente a esquecer o incidente.

Paulo Santiago


PS-O M.C. foi para a Venezuela. É raro vir cá, e quando vem provoca distúrbios graves. A própria família não gosta de o ver.

___________

Nota de L.G.:


(1) Vd. post anteriores:

23 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1687: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (9): Maluqueiras na picada Saltinho-Galomaro-Bafatá

12 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1653: Memórias de um Comandante de Pelotão de Caçadores Nativos (Paulo Santiago) (8): A pontaria dos artilheiros de Aldeia Formosa

5 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1564: Memórias de um Comandante de Pelotão de Caçadores Nativos (Paulo Santiago) (7): Fogo no capinzal

13 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1424: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (6): amigos do peito da CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72)

4 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1338: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (5): estreia dos Órgãos de Estaline, os Katiusha

13 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1275: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (4): tropa-macaca, com três cruzes de guerra

19 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1192: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (3): De prevenção por causa da invasão de Conacri

13 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1170: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (2) : nhac nhac nhac nhac ou um teste de liderança

12 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1168: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (1): Periquito gozado

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