terça-feira, 26 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1883: Da Suécia com saudade (2) (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (2): Periquitos, no Rio Cacheu, sem munições...

Guiné-Bissau > Região do Cacheu > 1998 > Travessia do rio Cacheu, em São Vicente.

Foto: © Francisco Allen & Zélia Neno (2006). Direitos reservados

Guiné > Região do Cacheu > Ingoré > 1968 > O 1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2831 (1968/70), posando em cima de uma autrometralhadora Daimler, a famosa Massiel, referida do texto do José Belo. Os Maiorais estiveram cerca de 3 meses em Ingoré, onde a companhia fez o seu treino operacional, tendo depois, no final de Julho de 1968, para Buba e Quebo (Aldeia Formosa). Massiel foi a cantora espanhola que ganhou o Eurofestival da Canção de 1968, com La, Lá, Lá...(ou Tá, Tá, Tá, para o Maioral Zé Teixeira).

Foto: © José Teixeira (2007). Direitos reservados


1. Segundo texto do José Belo, ex-alf mil da CCAÇ 2381 - Os Maiorais. O texto foi escrito em Estocolmo, em Setembro de 1981, e chegou às nossas mãos através do Zé Teixeira. O autor vive na Suécia, desde 1976.

Transcrevo aqui as palavras do Zé Teixeira, em mensagem que nos mandou com data de 15 de Maio último:

"Costa Belo, Alferes do Grupo de combate onde estive integrado. pertenceu ao MFA, foi oficial de segurança em Beirolas e esteve preso em Custóias, na sequência do 25 de Novembro. Após libertado, e reintegrado, decidiu abandonar o exército, perante as traições e compadrios que lá se viviam (palavras dele) e emigrou para a Suécia, onde reorganizou a sua vida. Há cerca de um mês através da Net, localizou-me e temos trocado correspondência (...)(1).

Neste segundo texto, o José Belo "consegue de forma magistral demonstrar como nós, a tropa macaca, qual carne para canhão, éramos lançados às feras, sem dó nem piedade" (Zé Teixeira).

A chegada da CCAÇ 2381 à Guiné: periquitos, sozinhos na margem direita do Rio Cacheu, sem munições, à espera de escolta para Ingoré

por José Belo

Informaram-nos que, cedo pela manhã, a Companhia transbordava directamente do Niassa para uma lancha de desembarque [LDG] que seguiria para local algures no rio Cacheu.

As horas foram curtas para os preparativos, e as despedidas dos amigos que tomariam outros rumos.

Após arrumação das bagagens e controlo do pessoal, procurei lugar cómodo no banco de um Unimog que seguia na lancha, caindo logo em profundo sono.

O calor do Sol fez-me acordar. Choque! As cores, a vegetação, a densidade da mata, a imensidão do rio, o odor a madeiras, as ervas húmidas, as folhas apodrecidas, as aves barulhentas, o Sol trespassando as copas das árvores gigantescas e reflectindo-se, em manchas de luz, no rio.

África!

Depois de sete dias de alto-mar, não sei quantos minutos passei, imóvel, devorando, literalmente, o espectáculo majestoso. O Alferes, sentado a meu lado, acordou também.
- Porra! Parece um filme do Tarzan! - Foram as suas primeiras palavras históricas neste renovar constante de séculos, dos contactos entre as gerações lusas e as áfricas-épicas!

Depois de saudável (?) pequeno almoço de atum de conserva, cebola crua, pedaço de casqueiro duro com margarina manutensão-militar, regado com cerveja Sagres, somos finalmente informados que, dentro de uma hora desembarcaríamios numa pequena enseada na margem esquerda do rio (*).

Aí, deveria aguardar-nos a Companhia de Ingoré que nos iria acompanhar nas primeiras semanas de treino verdadeiramente operacional.

No ponto estabelecido a lancha abicou à margem e nós, com olímpica calma feita de total inexperiência, desembarcámos.

Primeira surpresa: Ninguém se encontrava no local a aguardar-nos. Segunda surpresa:
Devido à grande amplitude das marés, e outras razões de ordem operacional(???) invocadas, o Comandante da lancha esclareceu ter que abandonar o local de imediato. Segundo ele, não haveria problemas de maior, pois informara pela rádio a outra Companhia da nossa chegada.

Havia algo de imensamente ridículo, de cómico, em toda a situação. Cerca de duzentos homens, com bagagens, viaturas, abastecimentos, tudo amontoado em clareira junto ao rio.

Antevia-se, ao longe, na orla da mata densa e pantanosa, uma picada, que cerca de cem metros à frente, se perdia de vista. Estaria minada?

Deslocar um pelotão em reconhecimento?(Sentíamo-nos tão verdes) Aguardar?
E o tempo ia passando!

A nossa presença por certo já estaria detectada pelos guerrilheiros. A lancha fizera uma barulheira incrível ao penetrar no tarrafo, assim como as viaturas ao procurarem desatolar-se na margem.

Por fim, alguém sugeriu que talvez fosse conveniente... montar um arremedo de
segurança, enquanto íamos aguardando.

Bruscamente, naquela pasmaceira paisana à beira-rio plantada, surgiram vozes
enérgicas de comando. Secas. Directas. Objectivas. Montaram-se morteiros, metralhadoras de bipé, e até a pesada Breda, relíquia de guerras passadas! Deslocaram-se secções de atiradores para locais estratégicos.

Após curto espaço de tempo tínhamos algum pessoal instalado defensivamente, empoeirando os camuflados virgens, em arremedos de instruções recebidas nas calmas planuras de Santa Margarida.

O tempo continuava a passar. À medida que as horas iam correndo, e a noite se aproximava, um pesado silêncio começava a surgir. Quando ninguém já se atrevia a conversar, ouviu-se voz perplexa de um Furriel, gritando de uma das secções instaladas, de armas belicamente empunhadas:
- Mas.....NINGUÉM TEM MUNIÇÕES!

Não é a Companhia que nos vem buscar que as há-de trazer para nós? Outra voz (esta em cerrado dialecto Portuense):
- Carago! Lembrem-se de Aljubarrota! Forma-se já um quadrado!

Maio, 1968, Margens do Cacheu

José Belo
_______________

Nota do Zé Teixeira

(*) S. Vicente no Rio Cacheu.


2. Comentário do Zé Teixeira:

Este texto do Belo trouxe-me à memória muita coisa. Efectivamente a nossa entrada no teatro de guerra foi (dito hoje) um tanto hilariante, para quem sabia que ia entrar numa guerra totalmente desconhecida, onde a história recente apontava todos os dias nos jornais mortes e mais mortes. De facto, somos deixados na berma de um rio onde a mosquitagem desde logo começou a tomar conta do nosso corpo e nem uma bala para poder disparar se o IN nos fosse cumprimentar à sua maneira. Ele que com toda a certeza estava avisado da chegada dos periquitos.

E há tantas outras situações vividas e sentidas por cada, um à sua maneira. Eu, à chegada a S.Vicente, só pensei em encostar-me a uma árvore e deixar o pensamento vaguear pelo passado recente, a família, a namorada e o medo do futuro.

O Belo ajudou-me a recordar a angústia que sentimos quando alguém disse qualquer coisa do género: "Se os turras atacarem, morremos aqui todos"... e a alegria que sentimos quando ouvimos o roncar dos motores e nos aparece uma viatura estranha com uma arma que não conhecia, um branco em cima a acenar.

Era uma Daimler cujo nome numa mais me esqueceu, Massiel, o que correspondia ao nome da cantora espanhola que nesse ano tinha ganho a canção da Eurovisão com uma cantiga cuja estrofe era Lá, Lá, Lá . Tenho ainda uma foto da cuja, que no reverso tem escrito por mim: "!Esta em vez de cantar Lá,Lá lá lá, canta Tá,tá tá, Tá" (2).

Toda a velhada gritava Piu ! Piu! Piu !Piu Piu!, ... Mas o que é isto ? Não sabem receber-nos com uma cantilena diferente !?

Pelo caminho, tomamos contacto com os jagudis, no alto das palmeiras, que bichos feios, horrendos mesmo. São assim os pássaros da Guiné ?

Mais além, dois pretos de minitanga, cuja côr se desconhecia tal era o sujo e a catana que ambos levavam (Balantas, descobri uns tempo depois). Será que ainda estamos na guerra da catana? Mas então porque não os matamos, antes que nos cortem o pescoço ? A terra vermelha, o calor no fim de tarde, a forma como os velhinhos se colocavam no terreno, o silêncio cortado pelo grito estranho de pássaros ainda mais estranhos, a selva fechada, outras vezes grandes espaços de palha seca, capim e uma G3 na mão sem balas . . .

Este desencanto quebrou-se quando ao longe vimos umas palhotas de palha, como nos filmes e uma revoada de crianças negras, sujas, esfarrapadas, a correr ao nosso encontro. Depois uns tantos homens, descalços, meios fardados, de Mauser às costas: quem eram? amigos ? inimigos ? porque estavam ali ?

A mulher com os peitos até ao umbigo e aquela criança a chupar a teta tão mirrada!
As outras mulheres de peito ao léu, com as crianças às costas e o melhor da festa as bajudas de mama, redondinha e firme, bonitas como eu nunca tinha imaginado uma preta, semi escondidas atrás das mulheres, com o seu sorriso deslumbrante.

E veio a noite. Camas para dormir, o cimento do chão da caserna (durante dois meses) e depois vieram as histórias dos velhinhos, aterradoras. Feridos, mortos, emboscadas, ataques ao quartel. São capazes de aparecer por cá hoje. Chegaram os periquitos e nós sem munições ! Que belo começo !

Impressionante memória a do Belo, que não pode deixar escapar estes e tantos outros pormenores que agora no aproximar da velhice nos vem à memória de forma acutilante. Precisamos de construir a nossa história, a verdadeira história de uma classe em extinção, a dos antigos combatentes


J.Teixeira (3)
Esquilo Sorridente
_________________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 6 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1818: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (1): Hino à Guiné que nós conhecemos

(2) Acho que o título mais apropriado para este posta,s eria (o espaço não o permite): Periquitos, na margem direita do Rio Cacheu, sem munições, à espera de Massiel...

Há um vídeo no You Tube com a exibição da guapa Massiel, no Festival da Eurovisão de 1968, cantando a referida canção, que esteve originalmente para ser interpretada pelo catalão Joan Manuel Serrat, obrigado entretanto a fugir do país... O ditador Franco ainda era vivo e poderoso. Portugal, representado por Carlos Mendes e a canção Verão, ficou em 11º posição, com cinco pontos...

(3) Vd., entre outros, os seguintes textos do Zé Teixeira:

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXIII: CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70) (José Teixeira)

4 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXX: Pensando... A Guiné que em (re)(vi)vi (2005) (José Teixeira)

3 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVIII: Pensando... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) (José Teixeira)

1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968

1 comentário:

Luís Graça disse...

É espantoso como uma cantatora festivaleira espanhola, Massiel, se torna vedeta dos soldados portugueses, algures no norte da Guiné !... Isso atesta também a importância que a televisão já tinha na época.

Em contrapartida ninguém mais se lembra do nosso pobre Carlos Mendes, com a sua canção Verão, que traduzia bem o estado de espírito da juventude portuguesa, mobilizada para uma guerra em três frentes, sem verão, sem alegria de viver, sem esperança, sem futuro:

O Verão já terminou
Foi um sonho que findou
Não interessa mais pensar (...)

Bom, aqui fica a fresquíssima e bonita canção La, La, La, que o regime franquista da época não permitiu que fosse cantada... em catalão pelo catalão Joan Manuel Serrat (que, em consequência disso, foi obrigado a fugir para o estrangeiro)...

Letra de la canción:
Massiel (La, La, La, 1968)

(La la la la la la la la la la...)
Yo canto a la mañana que ve mi juventud
Y al sol que día a día nos trae nueva inquietud
Todo en la vida es como una canción
Te cantan cuando naces y también en el adiós
La la la la la la la la la la... la la la la la la la la...
La la la la la la la la la la... la la la la la la la...
Le canto a mi madre que dio vida a mi ser
Le canto a la tierra que me ha visto crecer
Y canto al día en que sentí el amor
Andando por la vida aprendí esta canción
La la la la la la la la la la... la la la la la la la la...
La la la la la la la la la la... la la la la la la la...


La historia del LA LA LA en esta interesante web http://www.duodinamico.com/LaLaLa.htm

Fonte: http://www.eurovision-spain.com/iphp/pagina_historia.php?numero=664 [acedido em 26 de Junho de 2007]