quinta-feira, 12 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1946: Estórias de Mansoa (2): um capelão (o padre Mário da Lixa) em apuros na estrada de Cutia (Aires Ferreira)




Guiné > Região do Óio > Mansoa > Cutia > Destacamento de Cutia > c. 1970 > Foto enviada, salvo erro, pelo César Vieira Dias, Ex Furriel Miliciano Sapador, CCS / BCAÇ 2885, um batalhão que esteve em Mansoa e Mansabá desde Maio de 1969 a Março de 1971 (se for outro o dono da foto, que reclame).


Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


Texto do Aires Ferreira, ex-Alf Mil, CCAÇ 1686 / BCAÇ 1912, Mansoa, 1967/69)(1):

Missa em Cutia, por Aires Ferreira

Cutia era um destacamento que tinha um grupo de combate e ficava entre Mansoa e Mansabá e entre o Morés e o Sara - Sarauol [vd. carta de Mambonco].


O Batalhão tinha um Capelão que, um certo Domingo, lá para o fim de 67, resolveu ir celebrar missa a Cutia. Para isso, arranjou uma escolta de voluntários que, comandados pelo furriel S. S., lá foram, com 2 Unimogs e o jipe do capelão.

A missa foi celebrada e, no regresso, um dos Unimogs despistou-se e uma grande parte do pessoal da escolta ficou com ferimentos muito graves, tendo os restantes seguido até Mansoa para pedir auxílio.

Nesse Domingo, eu estava de Oficial de Dia ao quartel de Mansoa e desconhecia totalmente este assunto. Cerca da hora de almoço, passava junto à porta de armas, encontrei o Tenente-Coronel, o Comandante do Batalhão, que me disse:

- Alferes Ferreira, o seu grupo está todo destroçado na estrada de Cutia, o que está aqui a fazer? Vá já para lá.

- Não posso, estou de serviço - disse eu e apontei a braçadeira.

- Dê cá, eu fico com ela. O piquete vai já atrás de si com a ambulância.

Assim foi. Lá fui, munido da pistola Walther, com um condutor que por ali apareceu e chegámos depressa. A cena era trágica. Havia 5 ou 6 militares gravemente feridos e deitados na berma. O único militar que ali estava capaz de dar uns tiros para defender o local, se o IN por ali aparecesse, era … o Capelão, que, de joelhos, na estrada, junto ao jipe, fazia as suas orações, de G3 ao lado.

Logo de seguida chegou o necessário auxílio e todos os feridos foram evacuados e tratados.O Alferes Capelão que faz parte desta história era… o Padre Mário Pais de Oliveira (2), bem conhecido desta Tertúlia e a quem envio um grande abraço.

Aires Ferreira

2. Comentário do editor do blogue:

Esta cena, trágico-cómica, repetiu-se infelizmente muitas vezes na Guiné, devido à frequência de acidentes, graves, com viaturas. A estória tem algo de heróico, insólito e ao mesmo tempo delicioso: estou a imaginar a angústia do capelão, o único homem do grupo em condições de se defender de um eventual da guerrilha, fazendo lembrar os nossos primeiros missionários, a cruz numa mão e a espada noutra, prontos para o martírio (ou o massacre).

Trata-se de um estória que eu recuperei de um poste do Aires Ferreira (1). Quis dar-lhe mais visibilidade e mas ao mesmo tempo fazer também uma singela homenagem aso nossos capelães militares. Muitos camaradas nossos devem-lhes uma palavra de gratidão pelo conforto espiritual e moral que, na missa, na confissão ou na simples conversa de caserna, na dor e na alegria, receberam destes homens, em terras da Guiné.

É uma homenagem a todos eles, independentemente das posições político-ideológicas que tomaram(ou não) perante a guerra, na altura ou mais tarde... A sua tarefa não era fácil, estando o seu múnus espiritual fortemente condicionado pelo seu enquadramento institucional (nem mais nem menos dois pesos pesados, a Igreja Católica e as Forças Armadas, com a PIDE/DGS sempre perto, a vigiar e a zelar pelo "bem da Nação")...

De dois desses homens já aqui falámos, com mais afecto e carinho: o Mário de Oliveira e o Arsénio Puim (3)... Mas a nossa Tabanca Grande está aberta e pronta a acolher o testemunho de outros capelães que queiram aparecer... e até dos sacristães (que os havia em cada CCS de cada batalhão). Ao que parece, só os cangalheiros que vinham expressamente de Bissau para fazer o seu trabalho.

O Rui Felício, (ex-Alf Mil, CCAÇ 2405 / BCAÇ 2852, 1968/70), é o autor da primeira Estória de Mansoa, série que gostaríamos que tivésse continuidade (4). (LG).

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1002: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)

(2) Até à entrada do Aires Ferreira, o Padre Mário de Oliveira era, ironicamente, o único representante do Batalhão de Caçadores 1912 que, de resto, o expulsou do seu seio.... Conheci o Mário de Oliveira, em Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, onde em tempos tinha sido pároco (creio que depois de vir da Guiné, donde fui expulso de capelão militar). Conheci-o no dia do meu casamento, civil, em casa dos meus sogros, em Agosto de 1976. Ele era e é amigo da minha mulher. Passou a ser também meu amigo.

Curiosamente o Nuno Rubim - segundo me confidenciou - encontrou-o há tempos, na Feira do Livro de Lisboa, no stand da sua editora, Campo das Letras (Porto) a a atender os seus leitores e a autografar o seu último livro (Salmos V ersão Século XXI). O Nuno (que se considera, ele próprio, agnóstico) apresentiu-se e ficou a falar com ele pela tarde dentro. Ficou fascinado pela sua personalidade e inclusive foi jantar com ele. No fibnal pediu-lhe para escrever, para o nosso blogue, um texto sobre a organização da assistência religiosa às NT, na Guiné. O Mário prometeu-lhe que sim... Ficamos aguardar com muito interesse e expectativa.

Vd. posts de:

27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCL: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXV: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira )

8 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1825: Mário de Oliveira, na Feira do Livro de Lisboa, dia 9 de Junho de 2007

(3) Sobre o ex-Alf Mil Capelão Puim, da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), vd. posts:

5 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1925: O meu reencontro com o Arsénio Puim, ex-capelão do BART 2917 (David Guimarães)

17 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1763: Quando a PIDE/DGS levou o Padre Puim, por causa da homília da paz (Bambadinca, 1 de Janeiro de 1971) (Abílio Machado)

(4) Vd. post de 31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1006: Estórias de Mansoa (1): 'Alfero, água num stá bom' (Rui Felício, CCAÇ 2405)

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