quinta-feira, 31 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3101: História de vida (12): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)










Alfragide > 31 de Julho de 2008 > Tive a honra de receber em minha casa o Carlos Schwarz da Silva e a esposa Isabel Levy Ribeiro, aproveitando a circunstância de estarem de férias em Portugal, ainda um pouco combalidos da crise palúdica que costumam ter quando chegam a Portugal, nesta altura do ano...

A Alice preparou os petiscos, e os nossos filhos João e a Joana associaram-se ao nosso convívio. À 1 da noite tivemos de dar por interrompida a conversa, a retomar um dia destes em São Martinho do Porto, onde os nossos amigos têm casa de verão (herança do pai Artur Augusto Silva, que fez advocacia por aquelas bandas estremenhas, em Alcobça e Porto de Mós, nos anos 40)...

Não foi um ponto final, mas apenas três pontos de reticências, numa conversa que não só foi longa, íntima, bem diposta como nos permitiu conhecer um pouco melhor a fantástica história de vida deste homem e desta mulher que, em 1975, decidiram voltar a casa (o Pepito) ou escolher uma segunda pátria (a Isabel, que é portuguesa).

Nenhum deles esconde, bem pelo contrário, o facto de terem estudado e de se terem conhecido em Portugal, enquanto estudantes do ISA - Instituto Superior de Agronomia, de terem vivido com alegria e esperança o 25 de Abril e de terem uma ascendêdncia hebraica: A Isabel, sefardita, o Carlos, asquenaze, sendo o avô materno do Pepito um engenheiro de minas que veio, no princípio do Séc XX, da Polónia para Portugal trabalhar nas minas de volfrâmio, na Panasqueira (***) ...

Pelo que percebi, os Schwarz seriam originários de Odessa, hoje Ucrânia. Parte da família morreu em no gueto de Varsóvia e em Auschwitz... A mãe do nosso amigo Pepito é uma grande senhora, com invejável saúde, cultura e idade: tem 93 anos, vive em Paço de Arcos, ainda com autonomia, fala russo, toca violino, lê, consulta com regularidade o nosso blogue, de que é fã, segundo me diz o filho, babado... Para surpresa e emoção dos nossos convidados, o João tocou, no seu violino, uma das obras-primas da música klezmer, o Odessa Bulgar, e ofereceu um exemplarar autografado do EP do seu grupo, os Melech Mechaya...

Já hoje recebi o mail da Isabel e do Pepito que reproduzo a seguir. Deles direi apenas que são pessoas que não conhecem a palavra desistir... (E na Guiné-Bissau, é muito importante a resiliência...).

Eles são uma fantástica lição de vida. Foi um privilégio tê-los em nossa casa. Com o mail vinha o texto que a seguir também se publica. A Isabel e o Pepito não me levarão a mal se eu partilhar, com a nossa blogosfera, esta história de vida. Eles e a sua família (onde se incluem os seus ascendentes), são um grande exemplo para todos nós... Decididamete, o Pepito e a Isabel (que, de resto, está a fazer o seu doutoramento na área, a pedagogia escolar, em que trabalha) honram a nossa Tabanca Grande, e os nossos dois países, os nossos dois povos, Portugal e a Guiné, sem esquecer Cabo Verde, de onde era originário o Dr. Artur Augusto Silva (1912-1983).

Neste texto, faz-se também uma lúcida e corajosa análise retrospectiva das três últimas décadas da história recente da República da Guiné-Bissau, de que os nossos amigos foram/são actores e testemunhas privilegiadas.

Alice e Luís

Alice e Luís: Um grande obrigado pela excelente noite que passámos juntos. Parabéns pelos filhos formidáveis que vocês têm. Sente-se neles a herança de um profundo humanismo que vocês lhes transmitiram.

Descupa, Luís, termos prolongado demais o nosso encontro e afectado com isso o teu trabalho de hoje. Não temos muitos remorsos, pois a culpa é vossa. Com uma conversa tão boa, nem demos conta das horas passarem.
Até S. Martinho
isabel e pepito


PS - Para nos conhecerem melhor segue o texto prometido



Fotos e legenda: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


A SOMBRA DO PAU TORTO
por Carlos Schwarz


JULHO 2008


Aos meus Pais,
Clara Schwarz e Artur Augusto (*),
que me transmitiram
a necessidade de recomeçar sempre,
ensinando-me a aprender
com a História da nossa Família.



1. A EUFORIA DOS PRIMEIROS ANOS


Às 2 horas da tarde daquele dia 26 de Maio de 1975, aterrávamos em Bissau. A Isabel e eu, pais da nossa ainda única filha, Cristina (**), aproveitávamos a boleia do último avião militar português que se deslocava ao jovem país independente para transportar, de regresso à ex-metrópole colonial, o resto de quase 500 anos de presença portuguesa na costa da Guiné.

A alegria de voltar a pisar solo africano fez esquecer o calor tórrido e húmido desta época do ano. A Guiné-Bissau declarara em Setembro de 1973 a sua independência, ainda em plena luta de guerrilha, e agora, menos de 2 anos depois era o País de todas as esperanças.

De um amontoado de casernas militares espalhadas por todo o lado, havia que construir um país de paz e progresso, com a mesma coragem com que um reduzido grupo de 5 homens havia iniciado e liderado, 20 anos antes, uma epopeia libertadora do colonialismo, em que poucos na altura acreditavam.

Como agrónomos entrámos no Ministério da Agricultura, na altura designado por Comissariado. Passámos os primeiros dias sentados num gabinete à espera que a direcção do Ministério decidisse onde iríamos ser “colocados” e o que iríamos fazer. Com o início da campanha agrícola, começou a distribuição de sementes de arroz e mancarra aos agricultores que tinham regressado ao país depois da guerra, vindos dos países vizinhos, e que precisavam delas para a produção alimentar.

Ofereci-me para essa missão e é assim que após uma primeira paragem em Bafatá para distribuir sementes de arroz, carrego 20 toneladas de mancarra com destino a Catió, sul da Guiné-Bissau. Ao chegar a Bambadinca, o condutor do camião redobra de cuidados e atenções. É que, na mesma estrada que ligava a Xitole e depois a Saltinho, tinham “saltado” poucos dias antes, 2 camiões dos “Armazéns do Povo” que se desviaram ligeiramente das bermas da estrada e pisado uma mina.

De olhos esbugalhados, não era só o condutor a dirigir o camião. Também eu o conduzia, sem pestanejar, mas sem pedal nem volante. Era o meu baptismo de “fogo” nas estradas da Guiné-Bissau que continuaram durante alguns anos a ameaçar todos os que a utilizavam, sem que isso impedisse os técnicos de abdicarem das suas missões patrióticas.

Nessa altura fazíamos tudo e ainda nos sobrava tempo. À noite dava aulas de Geografia no Liceu Nacional Kwame N’Kruma para os trabalhadores, enquanto de manhã participava na campanha de protecção da cultura do arroz invadida por uma praga de brocas que estava a pôr a produção alimentar em causa, para voltar à noite a integrar as numerosas equipas de jovens que procuravam neutralizar a invasão de grilos.

É nessa altura que conheço Djibril Aw, agrónomo maliano e especialista de arroz na ADRAO, que marcou decisivamente a minha concepção e atitude profissional. Com um profundo conhecimento da orizicultura africana, uma argumentação técnica clara e convicta, um notável sentido organizativo e uma prática baseada na percepção que os agricultores tinham da sua actividade e das condições em que trabalhavam, não centrada nos “gabinetes de trabalho” [onde], afirmava, se devia passar apenas o mínimo tempo necessário.

Foi ele que me conduziu à paixão pela orizicultura e seus sistemas de cultura, pela história do arroz africano, pela pesquisa e experimentação varietal, pelo estudo e compreensão do conhecimento ancestral dos povos guineenses que o praticam. Ensinou-me a exigência de nós, técnicos, sermos pragmáticos e concretos nas propostas que fazemos aos agricultores. Fez-me ver a importância e necessidade de conhecer as experiências e avanços dos países da zona, como forma de evitar perdas de tempo e meios, sobretudo para um país tão carente como a Guiné-Bissau. Visitei e conheci o Ghana, Mali, Guiné-Conakry, Nigéria, Burkina Faso, Senegal, Costa do Marfim, Libéria, Serra Leoa.

Levou-me a perceber que nas nossas circunstâncias, o essencial não é inventar, mas que a obra do artista se vê através da capacidade que ele tem em adaptar no seu país, as ideias e soluções que outros encontraram ou estão a desenvolver. O que aprendi com Djibril Aw foi determinante para a criação do primeiro departamento técnico do então Comissariado, o DEPA.

Percebendo que se ficasse à espera de directivas dos dirigentes, nunca sairia do ciclo de actividades avulsas e ocasionais prevalecentes, decidi iniciar em Dezembro de 1975, um programa de ensaios de arroz, a partir de 15 variedades fornecidas pela ADRAO. Negociei com a Central Eléctrica de Bissau, a título de empréstimo, um pequeno terreno e água desperdiçada. Era a primeira vez na minha vida que semeava qualquer coisa. Como técnico recém-formado estava em pânico, oscilando entre a falta de confiança no resultado e a expectativa de vir a ser um sucesso.

Já com a totalidade das variedades em plena floração, convido o Sub-Comissário para visitar o campo de ensaios.

À entrada do campo uma tabuleta dizia DEPA. Ele não olhou para o ensaio, fixou-se na tabuleta.
- O que é isto? - perguntou.
- É o Departamento de Experimentação e Produção de Arroz que criámos - respondi eu.
- E quem é que deu autorização para este nome?
- Escolha então você um outro - concluí eu.

Foi a partir daí que me comecei a aperceber do crime que havia sido cometido com a formação de quadros nos países do bloco soviético. Não do ponto de vista técnico, mas da cultura de passividade que “inculcava” ou “impunha” aos seus formandos. Saía-se de lá com o espírito de obediência passiva aos chefes, esperando sempre “directivas” vindas do alto sem nunca se estimular a capacidade criadora e inventiva dos técnicos, sob pena da mesma poder ser considerada um atentado à autoridade dos chefes e no interesse em substituí-los.

Os primeiros anos foram vividos neste clima, tendo mesmo um grupo destes técnicos, acabado por escrever um opúsculo intitulado “Os bem e os mal servidos do Ministério da Agricultura”. Aqui os técnicos eram divididos entre “socialistas”, os que estudaram nos países de Leste, e “capitalistas”, os que vinham de Lisboa.

Sucede que logo a seguir ao DEPA outros departamentos foram sendo criados, todos eles por técnicos que estudaram em Portugal e que traziam consigo a prática do “desenrascanso”, isto é, de não ficarem à espera que lhes dessem condições, mas serem eles próprios a criá-las. Esta postura havia sido adquirida nos movimentos estudantis e nas associações de estudantes geridas por recursos engendrados e inventados pela capacidade criadora dos líderes associativos para contrabalançar as perseguições políticas e o não-apoio do governo fascista português. Isto poderá ajudar a explicar a razão pela qual, apesar de ter havido tantos quadros técnicos superiores e médios, à quase totalidade vinda do Leste não tivesse correspondido um avanço dos programas de desenvolvimento agrícola.

É assim que, sem consultar nenhum dirigente superior do Ministério, não por querer pôr em causa a sua autoridade, mas apenas para evitar os bloqueios burocráticos que certamente seriam colocados, o DEPA cria em Janeiro de 1977 o Centro Nacional de Experimentação e Multiplicação de Arroz de Contuboel, junto ao rio Geba no Leste do País, e a Estação Orizícola de Caboxanque, em Maio de 1977, no Sul.

Era a primeira vez na história da Guiné-Bissau que se criavam dois centros de pesquisa vocacionados, numa primeira fase para a cultura de arroz e numa segunda para as outras espécies alimentares (feijão, mandioca, milho, sorgo, milheto, etc.).

Com base no que a equipa inicial do DEPA, o Alcalá Barbosa, o Malam Sadjo, o Joaquim Dias N’Djai e o Manlafi Mané, viu em Richard-Toll, no delta do rio Senegal, deu-se início pela primeira vez no país, em Janeiro de 77, à cultura do arroz na época seca. Das 300 famílias de agricultores que se inscreveram, apenas 12 iniciaram a preparação do terreno, a lavoura e a sementeira em viveiro. Todos os dias levantavam-se cedo e iam para os campos trabalhar. Atravessavam o centro da vila de Contuboel, ouvindo bocas de outros agricultores que não acreditavam que “o arroz se pudesse desenvolver sem receber água de cima”, isto é, sem ser das chuvas. Foram postas à prova as suas convicções ao ouvirem dizer diariamente que “estavam a trabalhar para nada” e “cansavam-se para acabar com o cérebro feito em pó”; era um teste às suas convicções e resistência.

Em Maio inicia-se a colheita. Uma excelente produção. Muito arroz num momento em que ninguém já tinha reservas de arroz em casa. Então os agricultores das 12 famílias passaram a sentar-se no mercado central, silenciosos, com os balaios (cestas) de arroz novo à frente, a ver os anteriormente descrentes, a correrem aflitos para as lojas a tentar comprar este cereal, base da sua alimentação. O olhar irónico e feliz dos que haviam sido postos à prova era uma verdadeira vitória que contagiou todos em especial nas tabancas à volta. Em 1990 eram já 12.500 pessoas envolvidas na dupla produção de arroz ao longo da bacia do rio Geba.


2 A POLÍTICA DA DESILUSÃO


Amílcar Cabral, a nossa maior referência política, parecia adivinhar os efeitos que Bissau iria provocar nas convicções dos dirigentes políticos do Partido que havia liderado a luta pela independência, o PAIGC. Analisou como ninguém as falsas partidas das independências concedidas pelas potências colonizadoras europeias às suas colónias, nos anos 60. Seguiu e apercebeu-se em directo das atribulações de Sekou Turé na construção de um país que resvalou rapidamente para o autoritarismo, a repressão popular e as divisões étnicas.

Porque conhecia de avanço os perigos e escolhas com que a Guiné-Bissau se iria confrontar depois da libertação total do país e porque sentia que a guerra estava militarmente ganha, Amílcar Cabral dedicou os seus últimos anos de vida à procura de um modelo de organização de Estado que minimizasse os perigos que decorreriam de um sistema organizativo baseado no modelo autoritário, fosse ele colonial ou pós-independente.

Percebeu, antes de todos os outros, que Bissau poderia ser o princípio do fim dos valores de dedicação à causa popular, à solidariedade ideológica e a uma postura de vida baseada em princípios de dignidade e respeito. Chegou a equacionar a possibilidade de cada Ministério ser colocado em cada uma das oito capitais de região, como forma de promover um desenvolvimento descentralizado.

Não teve tempo para desenvolver este conceito. Foi assassinado em 1973 a mando de Spínola, com a conivência expressa ou por omissão de muitos outros sectores, entre os quais militantes do PAIGC e políticos da Guiné-Conakry que não toleravam a sua independência de pensamento e acção. O que é certo é que, ao entrar em Bissau, os líderes e quadros do PAIGC decidiram-se pelo repouso do guerreiro, não resistindo ao charme fatal de uma forma de vida cantada pelas sereias do tempo perdido.

Quando chego a Bissau em 1975, trazia comigo uma carta de apresentação de militante do PAIGC da célula de Lisboa, assinada pelo seu responsável, o caboverdiano Santana. Guardei-a sempre comigo. Apenas via nela um certificado da minha militância e não um atestado para ascender às instâncias superiores do Partido. Perdi-a em 1998 no conflito político-militar.

Assim comecei a militar na Juventude do Partido, a JAAC, onde conheci o melhor dirigente político que alguma vez me dirigiu: João da Costa. Homem de uma cultura fora do vulgar, sempre adoptou uma postura analítica e crítica em relação ao seu próprio partido, à acção dos combatentes da liberdade da pátria, à interpretação da História.

Com virtudes humanas excepcionais e grande capacidade de liderança, com ele aprendi muito do que sei sobre a criação de equipas de trabalho, a sua motivação, a democracia de ser sempre o último a falar e a tomar posições permitindo a cada um colocar as suas perguntas e exprimir as suas ideias. Intransigente na salvaguarda da dignidade e na disciplina, cultivava um relacionamento humano em que a amizade assumia sempre um lugar de primazia.

Recusando-se sempre a “vender a alma ao diabo”, é perseguido sistematicamente nos anos 80 e 90, com falsas acusações de tentativa de golpes de estado, defendido por um advogado vendido ao poder, acaba por morrer durante o conflito político militar de 1998-99. Continua a servir-me de referência de postura e coerência política.

A minha maior desilusão partidária acontece com o Golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980. Aos 30 anos de idade, da ideia que fazia do PAIGC, não cabia a resolução interna de problemas políticos de forma violenta. O debate devia sempre prevalecer. Neste caso, era o Primeiro Ministro [, João Bernardo 'Nino' Vieira, ] que dava um golpe ao Presidente [ Luís Cabral,] que o havia escolhido, sem nunca o contestar abertamente ou nas instâncias do Partido.

Acabei por perceber mais tarde que, na realidade, o que estava em causa não eram divergências políticas, mas o assalto ao poder de uma ala retrógrada que havia perdido essa mesma batalha, sete anos antes, no assassinato de Amílcar Cabral. Incapaz de aceitar estes processos, dois meses mais tarde peço a demissão de dirigente da Juventude do Partido e abandono a vida partidária para me concentrar unicamente na luta política.

Outro momento duro de “engolir” veio alguns anos depois quando o Comandante Paulo Correia, combatente da luta pela independência é por duas vezes seguidas falsamente acusado de tentativa de golpe de estado, acabando miseravelmente assassinado por quem foi seu companheiro de armas durante longos anos.

Conheci Paulo Correia quando ele, depois de ter sido acusado pela 1ª vez de tentativa de golpe de estado, é retirado de Ministro da Defesa e passa a Ministro da Agricultura.

Um dia, estando a passar férias em Lisboa, sou informado por um técnico do DEPA que um director do Ministério tinha desencadeado um ataque em força contra o DEPA, acusando-o de ser um “Estado dentro do Estado”, de não obedecer a ninguém e que tinha chegado a hora de pôr tudo na ordem. Regresso a Bissau e profundamente exaltado entro no gabinete do Ministro Paulo Correia a quem exponho de um só fôlego o meu protesto e revolta. Ouviu-me com atenção e toda a calma deste mundo.

Deixou-me acabar e não respondeu. Falou-me então durante uma hora, com todos os detalhes, sobre a forma como falsamente o envolveram na inventona de golpe de estado de que fora acusado. No fim olha para mim e diz: “já notaste que, depois disto tudo, estou aqui calmo e tranquilo?”. Acabara de me dar a resposta à minha revolta. Na realidade qual era a gravidade do meu caso, quando comparado com o dele, esse sim uma monstruosidade pelas consequências que viria a ter.

Saí com ele em visitas ao estrangeiro e habituei-me a apreciá-lo muito. Sempre o considerei como o melhor Ministro da Agricultura que tive, curiosamente o único que, por não ser agrónomo, fazia questão de ouvir todos antes de tirar as suas conclusões. Acabou por sair dali directamente para as masmorras da polícia onde foi assassinado conjuntamente com alguns outros combatentes pela independência.

Com o Golpe de 14 de Novembro de 1980 reintroduziu-se na história da Guiné a divisão étnica: no início a divisão era entre caboverdianos, apelidados de cavaleiros, e guineenses, chamados de cavalos. Esquecendo-se os seus promotores que. uma vez estabelecida a primeira divisão étnica, outras se lhe seguiriam, surge a estigmatização dos balantas, tanto mística com o fenómeno iang-iang, como política com o caso Paulo Correia, prosseguindo com a divisão entre muçulmanos e animistas, e mais recentemente entre os naturais da cidade e os da tabanca. Tudo isto em função da conveniência e interesse da estratégia do líder político da ocasião.

Kumba Ialá, que viria a ser mais tarde Presidente, revelou-se neste domínio o maior, indo buscar algumas das carecterísticas menos ricas da idiossincrasia balanta, unificou-os à volta de conceitos demagógicos e populistas, em contraponto aos tempos idos de 'Nino' Vieira em que os membros do governo pouco variavam, limitando-se os seus titulares a mudarem de cadeira. Nessa ocasião, lembro-me de um Ministro que, com três pastas num só ano, bateu o recorde olímpico nacional.

Já o antigo animista Kumba Ialá, travestido agora de muçulmano com a designação de Mohamed Ialá Embaló, introduziu pela primeira vez o conceito de acesso universal ao governo, isto é, passou a promover a entrada para o governo de todos os cidadãos que se julgassem capazes e predispostos a serem ministros. Analfabetos houve que aproveitaram a ocasião… A partir dos anos 2000 assistiu-se à mais louca gestão de um Estado, de que há memória. No fundo até durou pouco tempo… porque, entretanto, o Estado desapareceu!

Foi nesse período em que tudo valia, que um dia, deixaram “cair” perto do meu local de trabalho um bilhete anónimo que dizia: ”neste fim de semana vais sofrer um atentado para te matarem”. Entendi isso apenas como uma tentativa de intimidação. Todavia, às 3 horas da madrugada desse dia, três ninjas (polícia especial armada), acorrentavam o velho guarda da casa e iniciam a tentativa de demolição das janelas. Só a intervenção determinante do nosso vizinho, Nelson Dias, nos salvou, a mim e à Isabel, perante o completo desinteresse da polícia que se escusara a prestar socorro. Os assaltantes, esses, nunca foram punidos, embora saiba que a polícia os identificou.


3. O DESENVOLVIMENTO NO SEU LABIRINTO

Em 1991, incluído num grupo de guineenses do qual faziam parte José Filipe Fonseca, Nelson Dias, Isabel Miranda, Roberto Quessangue e Rui Miranda, entre outros, criámos uma organização não-governamental, a Acção para o Desenvolvimento (AD), que pretendia promover uma ética de desenvolvimento local centrada no homem e não no crescimento económico. A AD surgia assim para dar continuidade e potenciar de forma mais aberta as actividades de vulgarização do DEPA.

Num país de cerca de um milhão e meio de almas, onde coabitam 32 etnias, cada uma delas com as suas próprias culturas, organização social e sistemas de produção específicos, é entusiasmante ir descobrindo as suas diferentes lógicas de desenvolvimento e ao mesmo tempo participar com elas na procura de novos caminhos para o seu progresso.

Ao longo do trabalho nas zonas rurais fui-me apercebendo do quão errados e inadaptados são os métodos de concepção de desenvolvimento baseados na introdução dos chamados pacotes tecnológicos ou da visão estanque da promoção por culturas sem a compreensão dos sistemas de produção. A fraca capacidade dos pequenos agricultores impede-os de aderir à série de medidas propostas pelo pacote, o qual exige muito maiores recursos financeiros do que dispõem, ao uso de novas tecnologias que ultrapassam os meios humanos sobretudo familiares, e à mudança radical nos sistemas de cultura e produção, que vêm subverter profundamente os métodos tradicionais, impedindo o pequeno agricultor de controlar e gerir o seu próprio sistema de produção.

Mais difícil e eficaz é aliar uma boa capacidade de observação dos problemas com que os agricultores se debatem, aos diálogos informais com eles e usando o feelling que os agentes de desenvolvimento devem cultivar. Isto ajuda a compreensão do problema prioritário que se coloca e a procura de uma solução técnica ou tecnológica que se adapta ao seu modo de vida e trabalho.

Ouvi a muitos, sobretudo vindos de fora, que o nosso papel, enquanto agrónomos, é o de satisfazer as solicitações dos agricultores, elevando estes à categoria de semi-deuses, que tudo sabem e a quem tudo deve ser concedido. Creio que nada de mais errado existe. A postura mais realista e consequente é aquela em que o relacionamento entre agricultor e técnico se faz com os olhos situados ao mesmo nível, reconhecendo ambos que só da valorização dos dois tipos de conhecimentos, os tradicionais e os mais modernos, poderá haver avanço e progresso, construindo uma parceria baseada no respeito e complementaridade.

Alguns diletantes das questões do desenvolvimento partem do pressuposto que os agricultores tudo sabem e que as tabancas são um mar calmo sem conflitos e contradições internas, que os técnicos vêm subverter e perturbar com modernices. Em 1963, meu pai, Artur Augusto da Silva, no seu texto Pequena viagem através de África, já se referia a este tipo de pessoas que, com uma visão falsa e deformada, mal aportam à Guiné-Bissau ou a África em geral, começam logo a perorar e a fazer afirmações definitivas de quem já tudo aprendeu e tudo sabe.

Contava ele que “… ainda há poucos anos corriam na África Ocidental Francesa, umas notas de mil francos onde se via, em atitude de herói cinematográfico, um europeu, de largo chapeleirão colonial, camisa folgada, calções curtos e umas imponentes botas altas, empunhando uma arma e, arrogantemente, pisando um leão morto. Podemos dizer: a verdade da imagem correspondia ao exíguo valor da nota”.

Assim tenho visto passar pela Guiné-Bissau autênticas romarias de especialistas, pomposa designação que alguns se dão a si próprios ou que certas organizações internacionais atribuem a estes turistas do desenvolvimento. Lembro-me de um, do Banco Mundial, que feliz como uma criança dizia: “Aqui na Guiné-Bissau, sinto-me como o Pai Natal a distribuir presentes, dou dinheiro aqui, mais alí…”. Outros arranjam subsídios vitalícios para “turistarem” pela Guiné fora, recolherem duas ou três declarações avulsas, incluírem seis ou sete da sua autoria que muito ajudam a sustentarem e comprovarem as suas teses de partida que de forma cientificamente desonesta nunca ousam pôr em causa. À segunda publicação são já considerados especialistas, o que lhes permite frequentar e pavonear-se em colóquios e conferências internacionais afirmando a sua pesporrência científica.

No domínio do desenvolvimento rural, perfilhei desde o início a escola francesa, baseada numa visão global do território de desenvolvimento, da inclusão camponesa na pesquisa rural e na procura e seguimento do agricultor “fora-do-tipo”, como inovador de uma solução para um problema técnico, económico ou social que atinge uma comunidade. O facto deste último utilizar um sistema diferente pode significar que ele esteja a procurar a solução para o problema da falta de água, ou da diminuição da mão-de-obra familiar disponível, ou da falta de recursos financeiros para manter a sua unidade agrícola.

Como exemplo de um caso destes, recordo-me de um agricultor que redescobriu um processo de rega gota-a-gota, usando para isso uma grande cabaça de um fruto silvestre, por baixo da qual fez dois pequenos furos por onde escoava lenta e regularmente um fio de água que regava as suas bananeiras. Tinha encontrado, sozinho, uma forma de economizar a pouca água de que dispunha e respondido à reduzida quantidade de mão-de-obra familiar que não tinha na sua exploração.

Já de sentido inverso, a introdução nas tabancas de pequenas unidades de descasque de arroz e que representaram uma autêntica revolução para as mulheres, resultou exclusivamente da capacidade dos técnicos em identificar uma tecnologia localmente desconhecida que viesse aligeirar o seu penoso esforço físico de pilar o arroz, ganhar cerca de duas a três horas diárias de tempo que as mulheres passaram a utilizar noutras actividades sociais e produtivas, e a promover o associativismo de tipo mais moderno a nível das comunidades. Com estas descascadoras, as mulheres passaram a assumir-se como pessoas livres, afirmando-se que agora também elas se tinham libertado do seu colonialista: o pilão.

Uma das maiores dificuldades com que nos deparamos actualmente nos processos de desenvolvimento, é a da tentativa dos financiadores do Norte em padronizar, à sua imagem e semelhança, consideradas como modelos exemplares e de reprodução local necessária, métodos de programação, de intervenção, de organização e de avaliação, como se o progresso da humanidade se fizesse com roupagem pronto-a-vestir, informatizada ou robotorizada, e não com abordagens específicas caso a caso. A mudança de atitude de algumas organizações parceiras parecem querer abandonar a antiga cumplicidade existente na defesa de políticas progressistas de luta pelas populações mais excluídas e no combate político por uma sociedade mais justa, progressiva e solidária, para se deixarem deslumbrar e seduzir pelos modelos de organização e prioridades administrativo-financeiras de tipo neoliberal.

Tem-se a ideia de que certas ONG do norte se perderam no caminho, deixaram de crer nas suas vocações e se docilizaram perante as suas fontes de financiamento, assumindo um mero papel de executores, bons e baratos, das suas políticas governamentais. Para digerir o purgante, algumas passam anos a reestruturarem-se em termos de finalidades e formas organizativas, alimentando o espírito com supostos desafios novos, e acabamos por ter a sensação que, para essas organizações o essencial é que nós funcionemos administrativamente bem, em vez da obtenção de resultados que melhorem as condições de vida das comunidades locais.

Já a nível interno, do próprio país, certas elites políticas e intelectuais persistem numa cultura de recusa da discussão das grandes opções de desenvolvimento, da melhor forma de acabar com a pobreza e dos novos caminhos a trilhar, para se concentrarem nas formas de atingir um poder que sabem efémero e para o qual utilizam todos os meios, mesmo que violentos.

Esta situação assume proporções dramáticas quando se avalia o seu impacto junto das comunidades locais que apreendem rapidamente os sinais dessa cultura de confronto e intolerância e dela se começam a apropriar, introduzindo nas suas práticas as lógicas e os vícios que elas consigo transportam, traduzidos no recurso frequente à violência no seio das famílias e das tabancas como forma de resolver os problemas e contradições ou o obscurantismo da caça a pessoas normais acusadas de bruxaria. Surgem então as tendências tribalistas, de violência gratuita e ignorância.

Pratica-se hoje uma “amnistia sem rosto” para encobrir crimes que se foram cometendo ao longo destes anos, sem identificar e julgar os seus autores, erigindo a impunidade como objectivo político e valor cultural. Como ninguém foi condenado ou se assume como culpado, esta amnistia acaba por cobrir todos e ninguém, tanto os crimes políticos como os de sangue. Os que amanhã vierem a cometer quaisquer actos ilícitos, reclamarão os mesmos direitos que os seus antecessores tiveram, porque “para crime igual, impunidade igual”.

Quando em 1991, o ministro da agricultura de serviço resolveu impunemente aboletar-se com património do Estado e transferir o meio de transporte da coordenadora da pesquisa agrária do DEPA para o seu filho menor poder deslocar-se à escola, isto perante a completa passividade do governo, decidi abandonar a administração pública. Revoltado, expliquei a todos os agricultores e comunidades rurais com quem trabalhava, os contornos da arbitrariedade e a irreversibilidade da minha atitude. É então em Quebo que um velho Homem Grande e amigo me escuta com toda a atenção e perante a minha exaltação diz: “Nota que criaste demasiadas expectativas em relação a quem era e sempre foi medíocre. Julgaste ver o que não existia. Não te esqueças que a sombra de um pau torto nunca pode ser uma linha direita.”

Começava aí para mim, mais uma vez, uma nova vida, onde continuei a procurar viver os desafios do meu tempo. Depois do combate ao fascismo e colonialismo em Portugal, a luta pela instauração da democracia na Guiné-Bissau, a procura de caminhos alternativos ao neoliberalismo para um desenvolvimento justo e solidário e a participação no combate internacional à globalização enquanto expressão de desigualdades, exclusão e pobreza.

Na AD, a luta de uma organização que quer ser “ela própria” e não uma agência de execução de projectos ou de promoção de modas e clichés, sejam eles o ambiente, o género, a luta contra a pobreza, os desafios do milénio, etc.. Colocarmo-nos lado a lado com as organizações progressistas do mundo, que se assumem com desafios de mudança, de procura de justiça social e de solidariedade entre as pessoas, povos e nações, integrando estas acções num ambicioso processo político de envolvimento dos actores locais na procura de respostas democráticas aos desafios do seu próprio desenvolvimento, na identificação de novas formas de organização do Estado que substitua o esclerosado e anacrónico aparelho herdado do colonialismo e retomado por um centralismo democrático, em tudo semelhantes.

O desenvolvimento implica ousar trilhar caminhos novos porque, no dizer do poeta, ao andar-se por caminhos já abertos e conhecidos não se perde nenhuma guerra, mas também não se ganha nada. É gratificante ter-se sido contemporâneo de um grupo de excelentes quadros que contribuíram para o surgimento e sucesso das primeiras vinte e cinco rádios e três televisões comunitárias da Guiné-Bissau que representam hoje a vanguarda neste domínio nos países africanos de expressão portuguesa; para a criação de escolas de tipo novo, designadas de verificação ambiental (EVA) em que é introduzido o princípio da prestação de serviços da escola à comunidade, a capacitação dos professores em ecopedagogia e a sua apropriação pelas populações rurais; o surgimento das primeiras associação de moradores dos bairros populares de Bissau.

Provavelmente um dos segredos do sucesso reside na capacidade de vivermos no coração das comunidades locais, tendo com elas o nosso único compromisso, sabendo identificar os seus problemas e anseios e, com eles, criar dinâmicas de apropriação de processos em que vão crescendo e amadurecendo. Este êxito decorre muito da postura de respeito, simplicidade de procedimentos e forte espírito de missão cultivado de forma natural pelos técnicos.

Outro segredo, poderá ser o facto de a imagem de eficácia resultar da não hipoteca dos resultados a discussões infindáveis e estéreis sobre procedimentos, tão do agrado dos que estão habituados a fazer o desenvolvimento a partir de manuais e computadores, menosprezando a capacidade das comunidades locais em elaborar e conceber elas próprias os seus procedimentos de análise e decisão.


4. RENASCER SEMPRE


Em 1948, um ano antes de eu nascer o meu pai regressava à Guiné-Bissau, onde vivera em Farim a sua infância e, onde tal como os meus avós que lá haviam aportado no final do século XIX, se prendeu pelos encantos e tranquilidade destas paragens. Pressionado pela perseguição política da Ditadura de Salazar e desiludido com a derrota do Movimento de Unidade Democrática [MUD], procura em África aquela paz de consciência que o mundo europeu não lhe podia dar.

Com a minha mãe Clara e meus irmãos Henrique e João volta a nascer, entusiasmado com esta terra e suas gentes, tal como a família dos meus avós maternos renasceram do Gueto de Varsóvia e dos campos de concentração nazis. Saem da Polónia para Portugal para tudo começar de novo.

Já em 1966, a polícia política de Salazar prende-o no aeroporto de Lisboa acusando-o de ser membro do Partido que lutava pela independência da Guiné e Cabo verde, o PAIGC. Liberta-o cinco meses depois, impedindo-o de regressar a Bissau e obrigando-o a recomeçar uma nova vida.

No dia 24 de Setembro de 1973, em casa dos nossos camaradas caboverdianos Manuela e Sabino somos acometidos por uma alegria enorme ao ouvir na rádio BBC a notícia da declaração da Independência da Guiné-Bissau. Meio ano depois, no final da tarde do dia 25 de Abril de 1974, a Isabel e eu estávamos no cerco ao Quartel do Carmo, testemunhando a queda de 48 anos de fascismo e de quase 500 de colonialismo.

Um ano depois estamos, entusiasmados, em Bissau a começar a nossa vida. Primeiro com a Cristina, a nossa primeira filha e logo a seguir com o Ivan nascido em 1975 e a Catarina em 1980. Muitos anos depois, mais exactamente 18, o país é abalado por um violento conflito politico-militar. Os senegaleses, invasores, ocupam, pilham e destroem a nossa casa no bairro de Quelele. Somos obrigados a refugiarmo-nos em Lisboa. Quando 11 meses depois regressamos, não existe pedra sobre pedra das nossas memórias: fotografias, filmes, livros, recordações de toda a vida, haviam desaparecido.

Recomeçámos tudo mais uma vez, menos por convicção, mais por tradição. Hoje as nossas duas netas, Sara e Clara, sabem que desistir é perder e recomeçar é vencer.

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Notas do Pepito


AD - Acção para o Desenvolvimento, ONG guineense

ADRAO - Associação para o Desenvolvimento da Orizicultura na África Ocidental

DEPA - Departamento de Experimentação e Pesquisa Agrícola

Homem Grande - Sábio

Iang-iang- Movimento místico-religioso protagonizado por balantas

JAAC - Juventude Africana Amílcar Cabral

Mancarra - Amendoim

PAIGC - Partido Africano da Independência de Guiné e Cabo Verde

Tabanca - Aldeia

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Nota de L.G.:

(*) Artur Augusto Silva (1912-1983), jurista e escritor:

(i) Nasceu a 14 de Outubro de 1912, em Cabo Verde, na Ilha da Brava, "a ilha dos poetas, das flores e das mulheres bonitas", a ilha que foi também po berço do poeta Eugénio Tavares (1867-1930);

(ii) Ainda estudante, foi Director da revista Momento, que pretendia ser uma espécie de réplica, lisboeta, da Presença, de Coimbra, e onde se propunha abrir uma Tribuna Livre com outros jovens escritores e intelectuais, "em que livremente se discutisse e todos pudessem falar";

(iii) Na Metrópole, "publicou vários artigos, fez reportagens, dirigiu saraus literários, organizou exposições de arte moderna, promoveu conferências culturais na Casa da Imprensa, na Sociedade Nacional de Belas Artes e em vários outros locais de Portugal";

(iv) Licenciou-se em Direito em 1938, pela Universidade de Lisboa;

(v) Em 1939, partiu para Angola onde trabalhou como Secretário do Governador Geral;

(vi) De 1941 a 1949 exerceu advocacia em Lisboa, em Alcobaça e em Porto de Mós, na região da Estremadura (dessa experiência, humana e profissional, colheu o autor matéria-prima para alguns dos seus contos, publicados em O Cativeiro dos Bicheiros);

(vii) Em 1949, partiu para a Guiné onde foi advogado, notário e substituto do Delegado do Procurador da República;

(viii) Foi também Membro do Centro de Estudos da Guiné, juntamente com Amilcar Cabral de quem era grande amigo e com quem viajou várias vezes;

(ix) Participou, em 1949, na criação do Colégio-Liceu de Bissau;

(x) Visitou vários países africanos, recolhendo elementos que mais tarde lhe serviriam para escrever, entre outros livros, Os Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas, tendo-se tornado um grande especialista em direito consuetudinário;

(xi) Cidadão empenhado, africano nacionalista, jurista corajoso, fez questão de defender presos políticos guineenses, muitos deles seus amigos "ou que passaram a sê-lo, acusados de sedição pela potência colonial"; mais concretamente, "foi defensor em 61 julgamentos, um deles com 23 réus, tendo tido apenas duas condenações";

(xii) Em 1966, "já em plena luta de libertação da Guiné", foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, situção violenta e arbitrária que ele recorda "com dor e revolta"; na cadeia de Caxias, escreveu boa parte dos contos de O Cativeiro dos Bichos;

(xiii) "Meses mais tarde, por intervenção de Marcelo Caetano e de outros responsáveis políticos que, embora discordassem das suas ideias políticas, o admiravam como homem de carácter, foi libertado, mas proibiram-lhe que regressasse à Guiné, sendo-lhe fixada residência em Lisboa"; começou a ter problemas de saúde, na sequência da sua prisão em Caxias;

(xiv) Em 1967, recebe um convite de Marcelo Caetano para ir trabalhar como advogado na Companhia de Seguros Bonança. Também Adriano Moreira o convida para leccionar no Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCPU), o que ele recusou, fazendo ver ao portador do convite a incoerência de o terem prendido pelas suas ideias sobre o colonialismo português e depois o convidarem para leccionar matérias relacionadas com Africa...

(xv) Em 1976, de visita à nova República da Guiné-Bissau, foi convidado pelo então Presidente Luís Cabral para trabalhar como juiz no Supremo Tribunal de Justiça;

(xvi) Foi professor de Direito Consuetudinário, na Escola de Direito de Bissau;

(xvii) Faleceu em Bissau, a 11 de Julho de 1983, com 70 anos.

(xviii) Casado com Clara Schwarz, teve três filhos: Henrique, João e Carlos Schwarz.

Vd poste de 20 Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)

(**) Cristina Ribeiro Schwarz da Silva (Pepas, para os amigos e familiares), é a filha mais mais velha de Carlos Schwarz da Silva, guineense, e Isabel Levy Ribeiro, portuguesa.

Tem 35, é licenciada em biologia marinha, casada, com um professor português. Têm uma filha, que foi a primeira neta do Pepito e da Isabel. Trabalha no IBAP - Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau. É Coordenadora para o Seguimento das Espécies. Aprecia o nosso blogue e é de grande utilidade, para o seu trabalho, as nossas velhas cartas militares... Prometi mandar-lhe, através do pai, um CD com as cartas que faltam (Beli, Cassumba, ilhas, etc.) e que, por razõesa de falta de tempo ainda não estão em linha..,

(***) As minas da Panasqueira, na Serra do Açor, concelho da Covilhã, laboram há cerca de 100 anos, e são consideradasa as maiores minas sunterrâneas do mundo, com cerca 12 mil quilómetros de túneis subterrâneos, escavados pelo homem...

9 comentários:

Anónimo disse...

É pena continuarem a existir muitos
paus tortos na Guiné e sombras
direitas produzidas por paus
direitos,Pepito é exemplo,serem
pouco olhadas pelo"poder"
Este texto é uma lição.
Continua Pepito.Tens de vencer.
Melhor,tu és um Vencedor.
Abraço
Paulo Santiago

Anónimo disse...

Pepito,
A Sombra do Pau Torto é um precioso momento de escrita, cheio de força e doloroso realismo.
Após a sua leitura, resta-me o silêncio, em meditação solidária com toda a tua família.
Nunca te arrependas de transmitires a Cultura e Tradição à Sara e Clara e outros que vierem, principalmente na sabedoria de que "o desistir é perder e recomeçar é vencer"!
Para elas o desejo que nunca esqueçam o Homem Grande que foi seu Avô, que mantenham a doce recordação como ainda hoje eu mantenho a do meu.
Um Abraço do tamanho do Cantanhez.

Mário Fitas

PS: Pode ser que nos encontremos em S.Martinho








































ra

Anónimo disse...

Continuo com problemas informáticos. Gravei para guardar e reler, quando me aprouver, esta, chamemos-lhe lição de vida.
Deste a introdução do convívio- feita pelo Luís Graça e Esposa- ao relato sintético de uma montanha de descrições de vivências que, para mim, merecem leitura atenta para apreender e aprender, muito do contido no que escreve.
Só uma afirmação me provocou uma contracção e uma dúvida...aconteceu em Conakry, o mandante?
Agradeço-lhe as informações, votos de boas férias e fortuna para a sua AD, seu Pa´s e Seu Povo. Um abraço Torcato

Anónimo disse...

Pois sim senhor, aqui está uma interessante e ilucidativa "história de vida", a qual, por estranho que possa parecer, não me "soou" a desconhecido....
Sem dúvida que a principal lição a retirar é a de que é indispensável persistir sempre, recomeçar sempre, não desfalecer ou desistir nunca.
Um forte e triplo abraço.
Hélder Sousa

Luís Graça disse...

Meu caro Torcato:

Compreendo muito bem as tuas reacções e reservas em relação à afirmação - mais do que insinuação - de que o Spínola esteve (ou poderá ter estado) por detrás do assassinato de Amílcar Cabral... Com ele, somos nós todos que estamos em causa... Nós, oficiais e cavalheiros...

Falei posteriormente com o Pepito sobre este ponto polémico e eventualmente fracturante. Onde estão as provas documentais que atestam a autoridade (pelo menos, moral) do atentado ?

Spínola estaria interessado em apanhar vivo o Amílcar Cabaral. A verdade é que estavamos em guerra (de guerrilha e contraguerrilha). Dois anos e tal antes, em 22 de Novembro de 1970, havíamos invadido a Guiné-Conacri, com o propósio explícito que decapitar o PAIGC e de ajudar a derrubar o regime de Sékou Touré... O Amílcar Cabral dessa vez teve sorte...

Era um grande trunfo, a nível interno e externo, a captura do inimigo público nº 1. Com o concluio da PIDE/DGS, Spínola terá conseguido pôr agentes duplos em Conacri, incluindo antigos guerrilheiros, libertdados da prisão da Ilha das Galinhas...

Terá havido um aproveitamento (e agravamento) das dissensões internas no PAIGC, entre facções pró e contra Amílcar Cabral, entre caboverdianos e guineenses, e inclusive entre pró-soviéticos e não-alinhados... Ovaldo Vieira terá sido uma das peças fundamentais para se perceber o que se passou... Estava muito próximo (a 20 metros) do casal Cabral, quando Amílcar foi baleado... Infelizmente morreu precocemente em 1974.

A notícia da morte do Cabral correu célere, e logo no dia seguinte havia helicópterios das NT a distribuir panfletos, no Cantanhez, incentivando populações e guerrilheiros a entregarem-se às autoridades...

Uma fonte próxima de Spínola (um oficial português) ainda não há muito tempo, em Bissau, num encontro sobre a guerra colonial, terá repetido (o Pepito ouviu) a célebre frase de Spínola:
- Lá me mataram o homem!

Como quem diz:
- Não era isso que eu queria, eu não o queria morto, mas vivo!

Sabe-se, através da biografia do Amílcar Cabral, escrita pelo diplomata cubano Óscar Oramas (vd, edição portuguesa), que a repressão em Conacri foi brutal e muita gente inocente terá morrido, às mãos dos cubanos e do Sékou Touré, por quem o Amílcar Cabral, de resto, não morria de amores... (Era crítico em relação ao seu regime pró-soviético, tribalista e corrupto).

Infelizmente o dossiê sobre a morte de Cabral terá desaparecido dos arquivos da PIDE/DGS... (Como desapareceram ou foram destruídos muitos outros dossiês, comprOmetores para gente que na época do 25 de Abril se situava à direita, uns, à esquerda, outros)...

Há quem impute essa responsabilidade ao Spínola... Não sei. Podem ser especulações.

Não sou um estudioso do assunto. Não tenho opimião formada sobre o assunto. Fica aqui a porta aberta para quem quiser intervir, serenamente, com factos novos e leituras actualizadas...

Como eu costumo dizer, no nosso blogue não há vacas sagradas, mas também é bom haver um mínimo de respeito pela memória dos mortos que já não se podem defender: Spínola, Marcelo Caetano, Amílcar Cabral, Osvaldo Vieira...

Anónimo disse...

Como eu te compreendo Meu Caro Amigo Luís; como eu te compreendo e, conhecendo-me, conhecendo o meu pensamento politico, evolutivo como tudo na vida, mas firme na minha "matriz" ou "raiz"- fui; sou e serei sempre; DIGO!- Socialista, Republicano...se não quiseres fica no "ciberespaço"- fica o meu pensamento, a minha memória de antigo militar com determinada opacidade,tolhida pela constatação de facto ou tratamento... Assim talvez em respeito pela Memória de Homens pelos quais fui comandado, tive a Honra de ser Comandado- contraio-me ao ler esta oui aquela afirmação, mesmo vinda, como no caso vertente por pessoa que sabe e a "lição de vida" atesta-o.Eu conheço ,eu sei esse e tanto do que aconteceu... Mas aqui neste blogue aprende-se muito e alguns podem dar,aqui, contributos de futuro...assim a mensagem, a tua mensagem, a mim dirigida passe...Aquele AbraçoTorcato

joão coelho disse...

Os meus respeitos para com Carlos Schwarz, pela sua coerência e verticalidade. Bem haja!
Em relação a Amilcar Cabral; uns bons anos depois da independência da Guiné-Bissau conheci, em Bissau, o ex-padre Lipari,italiano, que julgo ter sido o único sacerdote católico que acompanhou a guerrilha do PAIGC, embora como não-combatente (creio que era enfermeiro, não posso garantir). Quando o contactei trabalhava num Departamento (cultural?) do Governo guineense, e foi ele que me disse que sabia que Amilcar tinha sido morto por elementos do grupo que o raptara e que tentavam embarcá-lo num navio que os esperava ao largo da costa. A morte terá resultado da confusão provocada por uma ordem, em crioulo, que soou como "mata"..
quando a ideia seria outra,a de fazer entrar Cabral na embarcação que o levaria ao navio que pairava no mar.
A esta distância não me lembro das palavras que Lipari me disse, e que se confundiam fonéticamente, mas o relato dele foi muito exacto.
Este ex-padre Lipari acabou por se fixar em Portugal, mas não voltei a contactá-lo, não soube mais nada do seu trajecto no nosso país

Saudações

João Coelho

Anónimo disse...

Enviei um comentário há dias atrás e anteriormente a este último publicado. Recebi a mensagem de que aguardava moderação. Não saíu. A moderação resultou numa cruz de index?

João Tunes

Anónimo disse...

De uma maneira geral, os guineenses sabem como, porquê e quem matou Amilcar Cabral, como tambem sabem, de uma maneira geral, quantos guineenses e quem eram, os que "pagaram" pelos tiros dados em Amilcar Cabral, pelo menos nos primeiros anos da independência sabiam e não escondiam. Talvez com o correr dos anos se venham a esquecer.
Como tenho pena que não haja mais guineenses a colaborar neste blog. Força Carlos Scwartz.
Cumprimentos,
Antº Rosinha