quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2065: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (8): Furriel Amorim, morto em combate

1. Mensagem do Raul Albino, ex-Alf Mil, CCAÇ 2402/BCAÇ 2851 (, Mansabá e Olossato, 1968/70) em 22 de Agosto:

Caro Luís e editores
Espero que as tuas férias estejam a ser repousantes. Qualquer um de vocês merece dois meses de férias (pagas a peso de ouro).
Aqui vai o 8.º texto das Memórias da CCAÇ 2402.
Espero que chegue em boas condições ao destino.
Um abraço a todos
Raul Albino


2. Furriel Amorim – Morto em Combate

Em 6 de Novembro de 1968 teve lugar uma operação, sem nome, de patrulhamento conjugado de emboscadas na região de Igate/Peconha, onde estava referenciada uma base do IN, a partir da qual, quase diariamente, saíam elementos que atacavam os trabalhos na estrada Bula-Có, logo ao nascer do dia.



Região do Cacheu > Pelundo > Có > CCAÇ 2402 (1968/70) > Coluna em deslocação de Bula para Có.



Teve a duração de um dia e um efectivo de dois grupos de combate (nesta operação específica, o 1.º e 4.º grupos).
A missão era emboscar o IN, no seu regresso à base na Peconha.
Porque o 3.º Grupo de Combate que eu comandava ficou nesse dia de serviço ao aquartelamento, não serei o mais habilitado a descrever o que aconteceu neste dia infeliz para a nossa Companhia, tendo recorrido a alguns testemunhos de quem esteve presente na Operação e quis participar nesta narrativa.

Logo no início, esta Operação teve algo pouco habitual. Por razões que desconheço, o nosso Capitão Vargas Cardoso decidiu sair com os dois grupos de combate nesta Operação, passando a comandá-la no terreno. Digo pouco habitual, porque não era pressuposto o nosso Comandante de Companhia sair em operações no exterior, nem a isso estava obrigado pela sua hierarquia. Foi portanto da sua inteira iniciativa esta saída para o mato.




Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > De pé, da esquerda para a direita: Aspirantes Francisco Silva e Raul Albino, e Capitão Vargas Cardoso (assinalado com um círculo a amarelo).

Fotos: © Raul Albino (2007). Direitos reservados.


As únicas imagens que retenho na memória com grande consternação, foi o regresso das nossas tropas na sua chegada à porta de armas. Era uma fileira de militares esgotados e abatidos, não tanto pelos contactos com o inimigo, mas principalmente pelo seu estado de saúde. Entravam em pequenos grupos amparando-se mutuamente, com os rostos irreconhecíveis, deformados pelo inchaço provocado pelas ferroadas das abelhas. Em alguns nem se viam os olhos e tinham de ser conduzidos por companheiros como se fossem cegos.

Durante toda a comissão poucas coisas me impressionaram tanto como esta visão do efeito causado pelo ataque das abelhas nas feições e no moral dos combatentes.

Como esclarecimento fica aqui a informação de que o Furriel Amorim, que recebera formação nos Comandos, tinha vindo em rendição individual dois ou três dias antes desta Operação, para substituir um furriel meu que fora evacuado por doença.

Como havia um grupo mais desfalcado do que o meu, não me foi atribuído, indo reforçar o 4.º Grupo de Combate. Foi efémera a sua passagem pela Companhia.

Era casado com uma professora primária em A-Ver-O-Mar/Póvoa de Varzim e esperava ser pai pela primeira vez em Dezembro.

Mas passemos à descrição sucinta da Operação propriamente dita.

Pelas 10,40 horas um pequeno grupo IN caiu na emboscada montada pelas NT, junto à antiga tabanca da Peconha. Reza a descrição oficial que logo aos primeiros tiros foi gravemente ferido o Furriel Amorim, pertencente ao 4.º Grupo de Combate.

Simultaneamente uma rajada terá atingido um enxame de abelhas que investiu furiosamente, pondo em debandada o grupo IN e as NT que estavam emboscadas. Pior coisa não podia ter acontecido e isso marcou esse dia fatídico e tudo aquilo que se seguiu.

Com o furriel ferido e a emboscada abortada pelo ataque das abelhas, foi pedida de imediato, por rádio, a evacuação por helicóptero do Furriel Amorim. A evacuação demorou bastante a ser feita e pelas 12,05 horas o furriel viria a falecer.

Já de regresso, as NT, já com manifestações nítidas de inchaço nos rostos, foram por sua vez emboscadas pelo IN, calculado entre 20 a 30 elementos ainda segundo a versão oficial, utilizando Morteiro 60, Lança Granadas Foguete, Metralhadoras Ligeiras e armas automáticas, durante cerca de 20 minutos. As NT reagiram pondo o IN em fuga.

Neste segundo contacto saiu ligeiramente ferido o nosso Capitão Vargas Cardoso, tendo sido evacuado de helicóptero com o falecido Furriel Amorim, pelas 14,15 horas. Segundo notícia posteriormente obtida pelo BCAV 1915, o inimigo terá sofrido na 2.ª emboscada dois mortos e vários feridos.

Seguem-se os depoimentos de alguns intervenientes nesta operação. Curiosamente o testemunho mais importante, o do Cap Vargas Cardoso, só recentemente chegou à minha posse. Está a ser trabalhado e irá ser incluído no 2.º volume das Memórias de Campanha da CCAÇ 2402. Será posteriormente enviado ao blogue se ele assim o autorizar.

Depoimento de António Coutinho da Silva:

Quando o Furriel Amorim chegou à nossa Companhia, via-se que era um homem activo, falava com o pessoal e estava sempre ansioso por saber situações de guerra, até que chegou o dia de ir para o mato com o meu pelotão (4.º) fazer uma patrulha na estrada de Có para Bula, na região da Peconha.

Estávamos emboscados, quando um milícia nativo subiu a uma árvore para vigiar a zona. Quando viu o inimigo, desceu da árvore e avisou o pessoal de que o inimigo estava perto.
Preparámo-nos para o contacto e quando o Furriel Amorim se levantou com a arma em posição de fogo, o inimigo foi mais rápido e uma rajada veio a atingi-lo gravemente. Apesar de todos os esforços dos nossos enfermeiros nada pôde ser feito, acabando por morrer perto de mim. Foi um momento que nunca mais esquecerei.
Paz à sua alma!

Depoimento de José Manuel Rodrigues Ferreira:

Quando do ataque das abelhas, também passei um mau bocado, perdi a arma G3 e duas granadas de bazuca, na aflição do momento.

Depois de deitarem fogo ao capim e quando tudo se acalmou, fui com um guia à procura da arma e das granadas, mas acabei por encontrar a arma com a coronha toda retorcida pelo fogo.

Depoimento de Armando Cruz Pimentel Pereira:

Há recordações que não posso esquecer, como por exemplo, aquela operação em Có onde o Furriel Amorim veio a morrer.

Ele tinha a mania de não se deitar e isso foi-lhe fatal ao receber uma rajada no corpo e como se isso não bastasse mandaram uma roquetada para uma árvore onde se encontrava um enxame de abelhas, que a muitos deixou a cara inchada pelas ferroadas. Alguns deixaram de ver e tivemos de os trazer pela mão.

Fomos novamente atacados e eles nem viam sequer o suficiente para se atirarem ao chão e protegerem-se.

Teve de vir um helicóptero para levar o morto e também o Capitão. Só aí ficou confiante o Capitão de que era verdade o que eu dizia que as divisas e o lenço verde no mato luzia ao longe. E ali ficou ele, perplexo, sem saber o que fazer, já nem sequer reagia com a poeira que não o deixava ver. Fui então socorrê-lo porque ali podia morrer.

Já no quartel foi-me ver para me agradecer, abraçando-se a mim e chorando por o ter ido socorrer, mas eu não fiz mais que a minha obrigação, foi isso que lhe disse e na verdade senti.

Depoimento de António Joaquim Rodrigues:

Além do segundo ataque a Có, o outro momento que mais me marcou foi a operação que fizemos à Peconha.

Eram dois pelotões e andámos toda a noite para chegarmos ao local de manhã cedo. Aí montámos uma emboscada em forma de L.

Detectei um enxame de abelhas numa árvore grossa e disse ao Alferes Caseiro: - Vamos ficar aqui? Se houver algo estamos tramados com as abelhas!

Assim aconteceu, a minha Secção foi mais para a frente, como era a primeira ficámos à beira do carreiro onde os turras passavam. Nesse dia a minha Secção era comandada por um furriel que era a primeira operação que fazia connosco. Infelizmente ficou ferido.

Nós tínhamos uma sentinela em cima de uma árvore para ver ao longe. No momento em que foi rendido, os turras surgiram, o Capitão só teve tempo de dizer pela rádio: - Caseiro, põe-te à tabela!

Eles mandaram uma roquetada para a árvore onde estava o enxame de abelhas que, espavoridas pelo fogo, picaram todos os que se encontravam ao redor, a ponto de alguns colegas desmaiarem.

O Bilito só dizia: 
- Rodrigues vai chamar o enfermeiro!

Ao que eu lhe respondia:
 - Tem calma, eu também estou mordido e há colegas piores do que tu!

Tive então de ir buscar o enfermeiro para fazer curativo ao furriel ferido, que, salvo seja, apanhou uma rajada no corpo, devido à qual acabou por falecer.

Depois fomos fazer um reconhecimento, porque muitos deixaram no terreno granadas, cartucheiras, barretes, etc.

Momentos depois fomos atacados de novo já em regresso ao quartel. Foi pedido apoio aéreo, mas o helicóptero chegou muito tarde, acabando por evacuar o já falecido Furriel e o nosso Capitão para Bissau.

Depoimento de Manfredo José Abrunhosa da Silva:

Eu estive presente no momento em que o Furriel morreu e assisti à grande tragédia que foi a sua morte.

Nós estávamos no meio da mata, quando fomos avisados por um vigia de que o IN se dirigia para nós. De imediato tentámos estar numa posição que nos defendesse do ataque dos inimigos e ao mesmo tempo estarmos prontos para o atacar.

O Furriel estava no meu grupo e levantou-se um pouco para ver se o IN estava próximo. Ele foi atingido de imediato por uma rajada de metralhadora. O seu lado esquerdo tinha sido completamente atingido, o sangue saltava cada vez que ele respirava, os nervos pareciam que lhe saíam do braço onde ele tinha empunhada a sua arma. Foi terrível assistir a tal sofrimento.

Depois do Furriel ter sido atingido, nós levámo-lo para a sombra de uma árvore onde esperámos pela ajuda do helicóptero. Neste entretanto, o Furriel foi assistido por militares-enfermeiros que fizeram tudo para o salvar. O esforço dos enfermeiros foi inglório, pois os ferimentos eram muitos e profundos. O seu estado era muito grave, mas tudo foi feito, dentro dos possíveis, para o salvar. O Furriel morreu antes de o helicóptero chegar.

Decidimos então levar o corpo do Furriel para o acampamento, mas caímos noutra emboscada. A mim não me mataram porque Deus protegeu-me. Eu rastejei e virei-me para trás para dar indicação a um colega que estava a 5 metros de mim, para lançar o dilagrama que era uma granada lançada pela própria espingarda G3. Ele lançou a granada e depois reinou o silêncio. Depois ouviram-se insultos, fomos chamados de assassinos, de bandidos e mandaram-nos embora para Lisboa.

Pouco tempo depois chegou o helicóptero que transportou o corpo do Furriel. A acompanhar o corpo do Furriel foi o nosso Capitão Vargas Cardoso.

Foram maus tempos, mas felizmente já passaram. Feliz fico eu por tudo ter ficado para trás.

Raul Albino
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Nota do co-editor CV

Vd. último post da série de 16 de Agosto> Guiné 63/74 - P2053: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (7): O Pelotão dos Bravos na Ilha de Jete

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