quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2102: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (1): Mamadu Camará, a onça vigilante

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > 1968 > Mamadu Camará, um dos soldados do Pel Caç Nat 52, sob o comando do Alf Mil Beja Santos que lhe propôs um louvor devido à sua acção heróica na noite do ataque ao destacamento, em 19 de Março de 1969 (1). E no ataque de Agosto de 1969, salvou a vida ao seu comandante, episódio esse que aqui se relata.

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.



Texto do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviado a 19 de Julho último. Correspondente ao episódio nº 1 da Parte II da série Operação Macaréu à Vista, ou seja, ao futuro segundo volume das suas memórias do Cuor e, cronologicamente, ao seu 2º ano de comissão na Guiné (2).



Conforme foi oportunamente aqui noticiado, está já no prelo o livro do Beja Santos, Na Terra dos Soncó: Diário de Guerra (1968/69), em edição do Círculo de Leitores (3). Depois de mais de um mês de um interruptação, por motivo de férias, retomamos a publicação desta série.

Operação Macaréu à Vista - Parte II: Mamadu Camará, a onça vigilante
por Beja Santos

(i) Fogo de Santelmo, fogo de Madina

A partir do meio da tarde, o céu fez-se chumbo, o ar esfriou, ficámos à espera que chovesse, contrariados no meio das obras à volta do arame farpado. Quando parecia que o chumbo passaria a negro, o negro da nuvem espessa que se encaixara como uma abóbada sobre Missirá deixou imprevistamente que os raios e coriscos se acendessem e, como uma faca que rasga a seda, estoiraram estrepitosamente em Missirá, em todo o Cuor.

O anoitecer fez-se dia com aquela iluminação de teatro, espectral. A chuva abundante caiu dos céus, ficou a empapar-se às nossas botas, o sibilar da trovoada gigante levou-nos a fugir para casa. É nesse entretanto da fuga precipitada para as moranças que começa uma flagelação com morteiros e costureirinhas. Do pânico da chuva passou-se rapidamente para a resposta, corríamos nus, em roupa interior, encharcados, enlameados. Quem limpava as armas pô-las em funcionamento, quem fazia a contabilidade mudou de armas, quem cozinhava foi logo responder com metralhadoras, e todo este fogo de resposta amorteceu o som das obusadas que espalhavam o metal destruidor, salpicando a terra.

Os colhidos de surpresa, as mulheres e as crianças que cultivavam e brincavam, atiraram-se para as valas. No morteiro 81, encadeado por aquele maldito fim de tarde desorientador, pois falsa era a noite e o falso era o dia, com precioso auxílio do Queirós, eu punha e tirava cargas das granadas, procurando atinar com as distâncias. Era uma estranha flagelação, era um fogo espúrio, como se estivessem a testar-nos para o tiro a tiro. O Queirós gemia, segurando o tubo sem a braçadeira, o braço em chaga. As explosões chegavam espaçadas, como a lembrar que há muitas maneiras de fazer flagelação.

É então, entre esse dia e essa noite de Santelmo e do fogo de Madina que sou disparado a coice, saio do abrigo de morteiro com forte encontrão, alguém me projecta ao solo. Uma explosão ao pé soergue-me e ao intruso que me arrancara do morteiro 81. Eu desfiro palavrões mas o intruso grita de dor. Desprendo-me do fardo, o Queirós a tudo assiste aparvalhado, ponho-me de pé e vejo Mamadu Camará jazente e depois de tronco arqueado, com o rosto riscado pelo sofrimento. É o Queirós, que sai do atordoamento, que explica o transcendente daqueles instantes:
-Meu alferes, o Camará viu o rebentamento, quis salvar-lhe a vida.

Entretanto, acabou-se a flagelação, que deixou a mesquita com algumas chapas perfuradas, há os pés rasgados do costume, há semblantes enfarruscados e queimados e há ainda alguma luz para deitar contas à vida e ver o que correu mal. Felizmente, nada mais aconteceu, Madina lançou mais um aviso, muito provavelmente vieram patrulhar e antes de retirar deixaram este cartão de visita.

Agora, nada mais me interessa do que agradecer discretamente a Mamadu Camará, que cambaleia, cheio de contusões e rasgões. Nessa noite, depois do jantar, enquanto Missirá faz serão a comentar os acontecimentos, chamo o Mamadu, depois de ter reflectido sobre a sua bravura:
-Mamadu, não tenho palavras para te agradecer, tu estiveste pronto para dar a tua vida para me salvar. Tu merecias uma elevada condecoração. No entanto, vê a posição em que me encontro: se publicitar o teu feito, parece que estou a engrandecer o facto de estar no morteiro, no meu dever a enfrentar o inimigo. Peço-te que me compreendas, prefiro ficar com uma dívida contigo, deixa-me amanhã eu contar a todos o que fizeste por mim. E esta história fica sem ser conhecida por mais ninguém fora de Missirá.

O Mamadu, em todas as conversas sérias, ele que tinha um vozeirão de barítono wagneriano na vida corrente, pôs-se a entaramelar a voz, reduzindo-a a um fio, vacilando na resposta. Ouviu-me e disse:
-Está certo, ninguém tem o direito de saber fora de Missirá esta história. Eu já tenho uma medalha, não preciso de mais.

E ninguém soube até hoje. Chegou o momento da tua abnegação chegar aos quatro cantos do mundo, Mamadu (4).

A noite corre, a tensão é grande, só com os alvores da madrugada é que vamos perceber quem veio flagelar, como retiraram. Como não me saísse do sentimento a impressão desta dádiva total, um ímpeto leva-me a escrever no profundo silêncio da mata. Então simulo poetar:

Mãe, saúdo-te entre cravos olerosos, frutos deiscentes e os feridos que aguardam um helicóptero. Eu sou o fogueiro que subiu ao viaduto de gás e faço ressoar o hino da vitória desses meteoritos que se espalham por esta mata. Saúdo-te num abrigo - casamata, como se pegasse no arado das palavras e para te alegrar do fundo desta guerra. Sim, Mãe, devo-te a vida e a mais alguém. Saúdo o teu segredo num luar textual. É possível que Deus cavalgue a lua neste preciso instante em que ergo as mãos para te beijar e abraçar esse mais alguém que me ensinou o sopro da carne viva. A ti e a esse mais alguém, desejo-vos a hora viva nas palmeiras..

E deitei-me, derreado, agradecido, sem ilusões do sem préstimo desta pseudo-poesia a copiar escandalosamente o génio de Saint-John Perse (5).

Ao amanhecer, reconhecemos os itinerários da gente de Madina, eram um grupo de pouca monta, deixou marcas na estrada de Cancumba, apanhou a estrada principal até Morocunda, seguiu por Biassa.
- Tenho que pedir ao Reis sapador para vir cá, para armadilhar todo este trilho (6).

Mal sabia eu como iria increpar-me contra tal pensamento.


(ii) Em Gambana, o fim das canoas de Madina

Logo a seguir a esta flagelação quase sem memória, substituídas as chapas da mesquita, elaborada a informação que seguiu para Bambadica, com mais um dia a arranjar arame farpado e a patrulhar Mato de Cão, chegou o momento de ir buscar um grupo de sapadores para destruir as canoas identificadas a partir dos Nhabijões. O Reis sapador quis vir e mais entusiasmado ficou quando lhe disse que iríamos até o Enxalé festejar a sua entrada no nosso sector, e esse entusiasmo ficou ainda acrescido quando lhe pedi para vir armadilhar de novo os trilhos de Morocunda e nos arredores de Sansão, para onde eu suspeitava que um dia a gente de Madina nos faria a surpresa de aqui colocar os canhões sem recuo.

Saímos cedo de Finete, seriam sete da manhã, tudo estava cronometrado para afundar as canoas, armadilhar o local e às onze da manhã vermos passar dois batelões a caminho do cais de Bambadica. O Reis desempenhou-se com a sua equipa bem e depressa, três canoas desfizeram-se dentro da lama, depois ele montou um engenho e lá seguimos com duas viaturas a quebrar o silêncio numa estrada cheia de beleza, um dia calmo, ensolarado, aprazimento nos céus e sossego nos nossos corações.

Não vale a pena repetir como foi bom voltar ao Enxalé (7), reencontrar o Taveira, dar-lhe a notícia, foi um almoço apressado com mais conservas que comida feita na hora, o céu não estava de fiar, fora um grupo exíguo, o regresso urgente impunha-se para evitar mais suplícios na picagem da estrada. Recordo que deste vez não houve fogo de reconhecimento para os lados de Sinchã Corubal. Mas o que nunca mais esqueci foi que junto à estrada que ia para Madina o Alcino Barbosa encontrou uma sinalização de proibido, que vinha do antes da guerra. Fez-se fotografar e depois metemos o sinal num dos Unimogs. Sim, era inaceitável um caminho proibido até Madina. Mas a verdade é que só lá voltámos e com sucesso em Fevereiro de 70.

O Reis partilhava a nossa felicidade embora confessasse não perceber o meu entusiasmo em ficar em estreita cooperação com o Enxalé. A verdade é que saírei em Novembro de Missirá, tudo ficará na mesma, não aumentaram os efectivos, não se criou a cooperação desejada entre os dois destacamentos frente ao inimigo comum. Era assim a nossa estranha guerra, com as suas falsas mudanças e o inimigo cada vez mais forte.

Em Missirá, o Reis armadilhou com o fervor que lhe conhecíamos. Desta vez, tudo ficou esquematizado e ele prometeu voltar em breve para confirmar a eficácia do seu trabalho. Quase sempre esquecíamos estes engenhos, até que de madrugada acordávamos com o alvoroço dos estrondos: ou os humanos saíam estropiados com o rebentamento ou as gazelas ou macacos morriam e ficavam pasto dos jagudis. E não voltámos a ter acidentes com militares e civis, dentro e fora do aquartelamento de Missirá.

O Reis partiu e eu adoeci seriamente. Até ao fim de Agosto [de 1969], toda a minha correspondência sairá do punho do [Fur Mil] Pires, a quem vou ditando as cartas para a Cristina, para a família e os amigos. Evitarei nova vinda do David Payne a Missirá, aparecerei aos tombos na enfermaria de Bambadinca e, pela primeira vez em todo um ano de comissão, ficarei ali a descansar e a vitaminar-me, tratando dos líquenes, fungos e pés inchados, dois dias completos. Mas vou regressar sem emenda, vou recorrer dos préstimos do Casanova e do Pires nas idas a Mato de Cão. Até que um dia vai chegar uma mensagem e vou participar na primeira edição da Operação Pato Rufia e depois na segunda (8). Fiquei com sérias razões para detestar o Buruntoni e aquelas operações azaradas.

As obras prosseguem, já chegaram algumas das toneladas dos materiais oriundos do batalhão de engenharia de Brá. A jangada em que trouxe um atrelado para a bolanha de Finete apodreceu, o gerador não virá tão cedo. Terei a alegria de sair da cama, em Missirá, para cumprimentar o capitão Rui Gamito, que aproveitando uma ida à Ponte dos Fulas veio visitar-nos e trazer estímulo.


(iii) Uma viagem à Idade Média, uma ida ao tribunal com Perry Mason

Surpreendentemente, leio indiferente ao torpor da minha prostração. É uma consolação embrenhar-me na leitura de A sociedade medieval portuguesa pelo Doutor Oliveira Marques. É um quotidiano dos nossos ancestrais que eu desconhecia. É um encontro com o Portugal das florestas, refúgio de feras, esse Portugal de um milhão de habitantes que tanto sofreu com a Peste Negra, dividido entre a nobreza, o clero e o povo, que o medievalista nos vai contar com assombrosa mestria: o que era a comida, o vestuário, a habitação, a higiene e a saúde, o afecto, os lazeres e a morte, tudo escrito sempre com uma tocante simplicidade, demonstrando que a História não é um conhecimento hermético destinado a grupos elitistas. Os pobres comem peixe e fava ou castanha. Os condimentos são raros. É vasta a quantidade de fruta posta à disposição de todos. Os ovos são apreciados cozidos, escalfados e mexidos. A descrição dos banquetes são páginas emocionantes.



Capa do livro de A. H. Oliveira Marques, A Sociedade Medival Portuguesa: aspectos de vida quotidiana. 2ª ed. Lisboa: Sá da Costa. 1971 (1ª ed., 1964).

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados



Fico a saber como vestem os homens e as mulheres e as crianças há seis séculos atrás, como se eliminam nas suas casas rústicas onde o conforto parece centrado na cama. A higiene é escassa mas é uma remantada mentira dizer-se que a Idade Média foi o paraíso da imundície. Leio pela primeira vez o que era a comunicação afectiva . Os filhos estão em poder dos pais até ao matrimónio. A religião não pode tudo, a Idade Média não escapou ao incesto como não escapou aos grandes arroubos do amor. Grande livro, que vai marcar o meu gosto pela vida quotidiana, a análise histórica feita de dentro da civilização e da cultura, no claro entendimento das mentalidades.

Li também com satisfação O Caso da Noiva Curiosa, de Erle Stanley Gardner. O livro é tão bom como a capa do Cândido da Costa Pinto é belíssima. Uma cliente vão ao escritório de Perry Mason saber se uma amiga tem o direito de se casar depois de 7 anos em que o primeiro marido esteve desaparecido. Mason apercebe-se que há mais história e faz investigação. O primeiro marido da cliente aparece morto e esta está manifestamente indiciada como homicida. Raras vezes Mason vai brilhar com tanto fulgor no tribunal convertendo as testemunhas de acusação em defesa, levando o segundo marido da sua cliente a uma dolorosa confissão.



Capa do romance policial de E. S. Gardner, O caso da noiva curiosa. Lisboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Vampiro, 29). Capa de Cândido Costa Pinto.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.



Estou a viver o mês de Agosto [de 1969] sem nervo, com pouco sabor, subindo a corda à procura de entusiasmo. Estou literalmente farto de escalas de serviço, listagem de gente que vai para a emboscada, fazer engenharia entre os que ficam em Missirá e o grupo que parte para Finete para arregimentar milícias e daqui seguir-se para Mato de Cão. As minhas cartas, disse-o atrás, são ditadas, não espelham exactamente o que me vai na alma.

Na última semana, parto com 12 homens e entro em Bambadinca para participar na Operação Pato Rufia. Esta aparece descrita em Setembro, mas elide que 15 dias antes vários destacamentos andaram a apanhar bonés com dois guias perdidos, entre a estrada do Xime e do Ponta do Inglês, sem se saber bem como chegar a um acampamento inimigo. Vale a pena contar.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 10 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1578: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (37): O horror do Hospital Militar 241 e o grande incêndio de Missirá

(2) Vd. post de 6 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2031: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (57): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)

(3) Vd. post de 25 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1996: Nas Terras dos Soncó, um livro saído do nosso blogue, em próxima edição do Círculo de Leitores (Beja Santos / Luís Graça)

(4) Cometendo embora uma inconfidência (o Mário e o Círculo de Leitores vão-me perdoar), posso desde já confirmar que o livro Na Terra dos Soncó, terá uma Dedicatória, com o seguinte teor:

A quem combateu comigo, muito especialmente a malta do Pel Caç Nat 52 e dos Pel Mil n.º 101 e 102, nos destacamentos de Missirá e Finete. Uma ternura muito especial ao Cherno Suane, ao Mamadu Djau e ao Mamadu Camará (eles sabem porquê).

(5) Diplomata e poeta francês (1887-1975), Prémio Nobel da Literatura (1960). Vd. sítio da Fundação Saint-John Perse.

(6) "O mais truculutento dos sapadores do Geba", é assim, carinhosamente, que o Beja Santos trata o Alf Mil Sapador Reis, da CCS do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70): vd. post de 18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1442: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (29): Finete contra Missirá mais as vacas e o bombolom dos balantas

(...) O Alferes Reis, o mais truculento sapador da Guiné, veio passar 4 dias connosco. Zaragateámos um pouco por causa da quantidade de trotil que ele pretendia enterrar em todos os atalhos que circundam Missirá. O Reis começa-se a afeiçoar à região e quando eu for operado em Março, será ele que apanhará o vendaval de fogo . Mas hoje ajudou-nos imenso a colocar correctamente as fieiras de arame farpado e deixei-o com carta branca para armadilhar junto da fonte de Cancumba, que é um local que tenta os rebeldes (...).

(7) Vd. post de 26 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2000: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (55): Uma visita a Enxalé, um tornado em Bambadinca, um enterro em Madina Xaquili....

(...) Uma memorável viagem ao Enxalé só para 'partir mantenha': Pelas 6 da manhã de 19 de Julho de 1969, perguntei ao contigente que ia a Mato de Cão se me queriam acompanhar ao Enxalé. Os nossos motoristas foram o Setúbal e o Manuel Guerreiro Jorge. Tal como eu esperava, houve urras e manifestações de alegria, logo uma adesão espontânea (...).

(8) Vd post de 8 Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12 (Luís Graça).

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