domingo, 16 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2110: Cusa di nos terra (9): Susana, Chão Felupe - Parte IV: Mulher e Comunitarismo (Luís Fonseca)


Guiné> Susana> Recolha de lenha para a população

Em mensagem do dia 10 de Setembro de 2007, o nosso camarada Luís Fonseca, ex-Fur Mil Trms (CCAV 3366/BCAV 3846, Susana e Varela, 1971/73), enviou-nos a IV Parte de Susana, Chão Felupe (1).

Dizia, então:

Caríssimos editores:
A prosa de hoje versa a mulher Felupe.

Parte IV: Mulher Felupe

Comecemos por dizer que a povoação mais importante do Chão Felupe, que não da zona norte do Cacheu, tem nome de mulher: Suzana (com z).

Tendo em atenção os nossos padrões de sociedade, poderemos afirmar que a mulher felupe é uma mulher emancipada. Recebe todas as honras e desenvolve um papel extremamente importante na sociedade em que se integra.

Como exemplo, as suas actividades na família estão claramente definidas.
Ocupam-se dos trabalhos ligados à casa (fazer cestos, esteiras, redes de dormir, bem como trabalhos de olaria: vasos, potes e panelas). Podem, igualmente, ocupar-se da extracção do óleo de palma para ser vendido ou trocado, ou ainda proceder à colheita de palha nova para a substituição da existente na cobertura da casa. Cabe-lhes também armazenar madeiras e fabricar carvão para uso na cozinha.

É responsável pela culinária da morança, que pode ser providenciada também pelo marido, faz a limpeza da casa que o marido construiu, tira a água do poço que o marido cavou.

É sempre consultada pelo marido no que diz respeito à educação dos filhos ou outros assuntos do âmbito familiar.

Pode ainda, em determinadas condições, tornar-se uma sacerdotisa.

Quando casa, conserva o nome de solteira, o que de certa forma a faz ainda mais emancipada, tomando como termo comparativo as mulheres de outras etnias e de outros continentes.

Ocorrendo a morte do marido, a casa que ele construiu, os campos de arroz que ele plantou e todos os demais bens não são entregues à viúva mas sim ao irmão mais velho do falecido, que, por norma e bondade, permite que ela continue a habitar a morança. Confesso que nunca me ocorreu questionar o que seria feito se o falecido não tivesse irmãos, dado tratarem-se de famílias, normalmente, numerosas. Também nas pesquisas feitas não encontrei, até ao momento, resposta a tal dúvida.

Se a viúva for ainda jovem, regressará a casa dos pais e voltará a casar. Temos que ter em consideração o significado de jovem na etnia felupe, quando a esperança média de vida é de 47 anos e apenas 3% atingem os 65 anos.

Se for já de idade terá os cuidados dos filhos que além de casa onde morar providenciam também o seu sustento.

Em termos de direito de propriedade o Felupe só admite como privado a sua própria casa e os objectos de uso pessoal, nomeadamente os utensílios de lavoura, caça e pesca. São igualmente propriedade privada um reduzido número de cabeças de gado e os galináceos.

Pertencem à tabanca: a bolanha, as matas e a manada de gado bovino. A bolanha encontra-se distribuída em lotes atribuídos pelo homem grande (ancião mais velho) aos vários elementos da aldeia. As colheitas dos lotes são propriedade de quem a trabalha.

As palmeiras das várias matas, propriedade colectiva, são distribuídas a cada um dos moradores que se entregam à sua limpeza e donde só os próprios podem extrair o vinho.

A manada pode incluir as poucas cabeças de gado particular, mas só com o conhecimento e consentimento dos restantes moradores da tabanca. A manada é entregue ao cuidado dos jovens, alguns mesmo muito jovens, e pasta livremente porque as pastagens não têm dono.

Por decisão do Comandante da nossa Unidade, foi estipulada uma rotatividade das tabancas que entendessem fornecer um animal da sua manada para abate e alimentação da Companhia. Com as tabancas que aceitaram nunca se manifestou qualquer problema, sendo a carcaça pesada e o pagamento feito, à boa maneira Felupe, em géneros (farinha, açucar, muito raramente batatas, que apenas engordam e não criam força e músculos, como o arroz - afirmação felupe).

A grande dificuldade residia no apanhar do bicho que, desde longe, era indicado pelo chefe de tabanca. Tinha que ser aquele e só aquele, sem hipótese de troca. A tropa lá tinha que se preparar para uma pega de caras ou cernelha, com técnica TM (tudo a monte) com a ajuda de cordas, de forma a capturar o animal para o transportar para o aquartelamento. Sinal de melhoria de rancho.

Guiné> Susana> Caçar o bicho era uma autêntica tourada... para a nossa tropa

Os poços ou outros bens de utilidade pública são, como é bom de ver, propriedade de toda a tabanca. Uma bolanha está sempre vinculada a uma dada família, existindo um laço místico com os antepassados. Mesmo que uma dada família não tenha, temporariamente, homens válidos para o cultivo da sua bolanha, esta será explorada, depois de cerimónia religiosa para o efeito, por alguém estranho à mesma que voltará à "sua" família quando esta tiver individuo apto para retomar o seu cultivo.

Que melhores provas de espírito comunitário e solidariedade podemos pedir ?!

Por hoje terminado.
Kassumai

Luis Fonseca
Ex-Fur MilTrms
CCAV 3366

Texto e fotos: © Luís Fonseca (2007). Direitos reservados.
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Nota do co-editor CV

(1) Vd. post anterior, de 5 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2081: Cusa di nos terra (7): Susana, Chão Felupe - Parte III: Trabalho, lazer, alimentação, guerra, poder (Luís Fonseca)

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