sábado, 17 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)

Guiné-Bissau > Bissau, capital do país. Planta da cidade, pós-independência. O bairro do Cupelon fica(va) à esquerda da nossa conhecida estrada de Santa Luzia... Para os tugas, era o Pilão, tout court... Ainda espero vir a encontrar um Fado do Pilão para ombrear com o do Bairro Alto... (LG) 

 Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados. 

1. Mensagem do Helder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72): 

 Caro Luís: Se calhar é uma dúvida bizantina mas sempre a vou colocar .... Relativamente à Sondagem 2 o que é que é para concordar ou discordar, nas suas variantes graduais ? Se concordo que é verdade que nos era dito para não "ir sozinho à noite ao Pilão que os gaijos são todos turras" ou se era mesmo verdade que "não se devia ir sozinho ao Pilão, sobretudo à noite, por os gaijos serem todos turras"? 

 É que realmente a mim também me foi passada a "informação/recomendação", já não me lembro se foi coisa formal ou se foi por ser corrente entre as conversas da nossa malta, por isso, nesse sentido, terei que colocar a cruzinha na concordância. 

 Agora se é para corroborar a verdade que está subjacente às recomendações, já não posso concordar inteiramente porque cheguei a andar sozinho no Pilão (ou era Cupilão ?), embora essas visitas culturais e de prospecção etnográfica fossem feitas de dia, pois à noite (e cheguei a ir lá a um alfaiate que me fez umas calças com tecido que comprei por lá...) ia normalmente acompanhado e apenas em duas ou três ocasiões e para ir ao tal alfaiate. 

 Cumprimentos 
 Hélder Sousa 

2. Comentário do editor LG:

Helder, a tua questão é pertinente e muito mais pertinentes ainda são as respostas que tu próprio dás... de resto, com excelente sentido de humor... Com que então ias ao Alfaiate do Cupilão ?! 

 Comecemos pela dúvida mais simples: Cupilon, Cupilom, Cupelon ou Pilão ? 

No meu tempo (1969/71), eu dizia, nós dizíamos, Pilão... Na planta da cidade de Bissau, capital da Guiné-Bissau, que nos foi fornecida pelo A. Marques Lopes (vd. imagem no topo) , vem Cupelon (de Cima e de Baixo),na parte setentrional, ladeada à direita pela npssa conhecida Estrada de Santa Luzia... Cupelon é, pois, o terno correcto, em crioulo... Cupilão é um aportuguesamento... Pilão é uma corruptela... Mas era o termo mais frequente usado pelas NT... É a minha interpretação, claro. 

 Quanto à dúvida, de fundo, metodológica, tens toda a razão: a pergunta está mal formulada, não é clara concisa e precisa, como mandam os manuais... Cito o proxeneta (no norte, diria: azeiteiro) de um furriel miliciano fotocine que conheci na espelunca do Chez Toi

"Ao Pilão nunca vás sozinho, sobretudo à noite: os gajos são todos turras"... 

 Ao citá-lo, fi-lo intencionalmente como um mero estímulo, positivo ou negativo, para a nossa malta manifestar-se, escrever, opiniar, etc. O assunto, como sabes, é delicado. 

Eu tenho tentado pôr a malta a falar destas coisas ditas marginais do nosso quotidiano de guerra... A frase não é falsa nem verdadeira, mas é óbvio que contem duas ou até três proposições, o que a torna confusa ou, no mínimo, ambígua:
 - Ao Pilão nuncas vás sozinho [, porque é perigoso];
 - Ao Pilão nunca vás sozinho [, porque é perigoso], sobretudo à noite [, o que é ainda mais perigoso];
 - Os gajos [do Pilão, os chulos] são todos turras... 

 A fala do fotocine é primária, grosseira, racista, estereotipada, típica de um boçal representante de um exército de ocupação. Ora a verdade é que o Cupelon era um bairro popular, de gente séria e trabalhadora, habitada também por raparigas que fugiam da guerra (as guineenses) ou da miséria de Cabo Verde (, as caboverdianas, ditas pretas de 1ª )... e tiravam o partido possível da presença massiça de militares, uns em trânsito para o Vietname (mato), outros aquartelados em Bissau e arredores (malta do QG, tropas especiais...). 

 O Pilão era um mito... Alguns dos nossos camaradas - sobretudo os que estavam sedeados em Bissau e Bissalanca - até tinham lá os seus amores... Que eu saiba, nunca ninguém ficou lá sem a cabeça, embora alguns de nós a tenham perdido por lá... Pergunto: Quem não ficou lá pelo menos uma noite, vindo do Vietname (sic), em trânsito, na véspera da partida do avião para férias ou no regresso das férias ? Ou pelo menos, ido lá noite, desenfiado em Bissau, à procura de sexo ? 

 Julgo que o Pilão não era mais perigoso do que o Bairro Alto ou o Cais do Sodré, em Lisboa, naquela época... O que o tornava perigoso era o excesso de álcool da malta da tropa, da nossa tropa, que, às tantas da noite, andava a procura das verdianas ou pretas de 1ª (sic)... 

 Mas eu não sou o mais qualificado para falar do Pilão... Não sou sequer qualificado de todo: nunca lá vivi, falta-me a vivência, o conhecimento empírico... Confesso que passei lá uma noite. Por curiosidade e solidão. Fui lá com um alferes miliciano da CCAÇ 12, na véspera de ir de férias... Não tínhamos nada para fazer em Bissau, estávamos já apanhados do clima, com um ano de guerra pura e dura... E dois já formavam um... pelotão !... 

 Estávamos hospedados numa espelunca: se a memória não me atraiçoa, dessa vez era mesmo no Chez Toi... (onde, por sinal, um dia, já no final da minha comissão, me arrombaram a mala e fanaram-me uma das garrafas de uísque velho que eu levava; o gordo do dono acabou por pagar o prejuízo)... 

 Enfim, a noite no Pilão foi uma experiência deprimente, daquelas que se fazem, nos nossos verdes anos, apenas para experimentar e pôr no currículo... Passei a noite a ouvir a filha da cabo-verdiana a chorar... Às cinco da manhã, zarpei, com a morte na alma... 

 Por outro lado, é bom lembrar que somos da geração em que os jovens ainda se iniciavam nas casas de passe (ilegalizadas por Salazar em 1962) ou seus sucedâneos... Fomos educados dentro dos cânones da moral sexual dominante, a do Cardeal Cerejeira e do Dr. Salazar. 

O exército colonial, esse, era mais pragmático: os serviços de saúde militar na Guiné estavam bem fornecidos de caixas de pomada antivenérea (eram um luxo os preservativos!) e de penicilina!... Quem não apanhou uns milhões de penicilina na Guiné ? ! Aos vinte anos, e para mais na situação-limite que era a guerra, em todas as gerações, fazem-se pequenas loucuras só para transgredir os padrões da moral dominante... Ir ao Pilão fazia parte dos nossos rituais de transgressão... Ia-se até por bravata... Com mais medo ou menos medo, muitos de nós passaram por lá... E outros até - mais felizardos do que nós - tinham lá cama, mesa e roupa lavada... 

 Enfim, respondam à sondagem como quiserem... E sobretudo depois comentem, escrevam, mandem as vossas estórias! 
 ___________ 

 Nota de L.G.: 

 (1) Sobre o Pilão (ou Cupilão ou Cupelon), e as nossas (a)(des)venturas por lá, vd posts de: 14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça) 

(..) Quanto ao Pilão, como escrever-to ? É a grande tabanca, o grande muceque de Bissau, um verdadeiro gueto, um enorme abcesso putrefacto produzido pelo colonialismo e pela guerra, e onde frequentemente explodem as tensões raciais e étnicas. O Pilão é o lumpen… 

Daí as recomendações que te fazem ao chegares aqui - lembras-te ? -, à mistura com histórias mirambolantes, pouco ou nada verosímeis, de cabeças cortadas à catanada:
- Ao Pilão nunca vás sozinho, sobretudo à noite. Os gajos são todos turras. E com as verdianas, muito cuidado, menino, que as filhas da puta já nasceram todas esquentadas! - avisou-me um furriel fotocine, no Chez Toi, uma espelunca de 3ª classe com pretensões a night club, onde os tropas de galões dourados redescobrem o gosto civilizado do champagne francês (marado…), bebido com uma pin-up ao colo, como em qualquer bar rasca, de alterne, na Reboleira do J. Pimenta (...) 


Do meu diário: 14 de Agosto de 1972 > Um dia que nunca mais vou esquecer, pois o Crachá que recebi será o simbolo COMANDO até à minha morte. Foi uma cerimónia bonita com muitos copos, muitas fotos e de tarde fui para Bissau, direitinho ao Pilão, porque o corpo não é de ferro e a Antónia é um mimo. (...). 


Depois de acomodado no Cumeré, uma das minhas primeiras prioridades era vir à cidade encontrar-me com um colega que tinha a informação de estar na Manutenção Militar. E então, quando me encontrei com o velhinho, meu amigo, pedi-lhe para me levar ao Pilão, às bajudas... 

 Então lá fomos os dois, e no caminho fui avisado sobre os preços que na altura eram praticados: 
- Se for guineense, são 50 pesos; se for caboverdiana, são 100 pesos. 

 (...) Entretanto, a companheira furtiva, ao ver notas de 50 e 100 escudos, vendo que eu era periquito, pede-me 100 escudos... Aí eu disse: 
- Não, se quiseres são 50 escudos; se não quiseres, vou-me embora. 

 Ela disse que não, e aí eu vim embora a seco.O meu amigo. quando chego à beira dele tão rápido ficou admirado, e disse:

 - Já ?! ... Nem deu tempo para tirar a roupa!... Então, eu contei-lhe o sucedido e ele disse-me: 
- Fizeste bem, vamos a outro bar. Ora bares era o que não faltava no Pilão ou Cupilon... Eu respondi-lhe: 
- Agora já perdi a vontade, amanhã eu venho cá outra vez para saciar o desejo... 

E assim aconteceu. Cambiei os escudos por pesos, a diferença não era assim muito mas era alguma coisa, e lá fui com a caboverdiana por cem pesos. (...)


(...) E as escapadelas ao Bairro do Cupelon [ou Pilão], e as noitadas da cerveja e das ostras no Café Portugal? E as codornizes fritas do Zé da Amura? Que será feito do célebre Hotel Berta, onde se comiam os melhores gelados do Mundo? Mas o que mais me emocionou foi ver, através das fotos, o estado de ruína desta cidade de terra vermelha. 

Ao lembrar-me de tudo isto e ao escrever estas linhas não consegui travar algumas lágrimas. Sobretudo, porque à distância de quarenta anos no tempo, não mais consegui reunir todos os camaradas desse tempo, todos esses amigos que, como muito bem sabe, eram a nossa família de afinidade durante 24 os 25 meses de comissão. (...). 


Seguimos em direcção ao Pilão, com o Tomás a fazer uma condução à maluca. Falou numa cabo-verdiana que nenhum de nós conhecia, que ficaria perto da casa da Eugénia, essa conhecia eu bem. Corremos imensas ruas e ruelas do Pilão, eram tantos os saltos que o carro dava que o Rita já dizia estar a apanhar mais pancada que numa tempestade no mar. 

A determinada altura, uma das rodas do carro cai num buraco com grande violência, ouve-se um barulho de latas e ficamos com menos luz. O Tomás pára o Peugeot e símos para verificar o sucedido. Com a pancada, um dos faróis saltara do encaixe, ficando virado para o solo, preso pelos fios de ligação. Nenhum problema, continuamos às voltas, à procura das gaijas que nenhum conseguia dizer onde ficavam e o farol acabou por cair, ninguém soube onde. Aí pelas três da manhã, chegamos a um local do Pilão onde se encontrava um grande aglomerado de pessoas, em estado de grande exaltação. Paramos, saímos do carro e vemos no meio daquele maralhal o Alf Mil Domingos, de braço engessado ao peito, prestes a levar, na melhor das hipóteses, uma grande carga de pancada.

 O Comandante Rita, graças à sua estatura, vai furando, connosco atrás até chegarmos ao Domingos, também de cabeça perdida. O que se passara? - O caralho do Oliveira trouxe-me para aqui, bateu à porta daquela gaja, ela diz que está ocupada, o cabrão manda um pontapé na porta, rebenta-a, a tipa grita, começa a juntar-se este maralhal e o gajo deixou-me sózinho. (...) 


(...) De Bissau conheci muito pouco. Apenas o Pilão, e neste Os Dez Quartos, um palácio do Prazer. 

Era o local ideal para um sexólogo, pois tendo todos os quartos o mesmo tecto e paredes incompletas, ouviam-se os murmúrios, os gritos, os ais e os uis, deles e delas, em plena actividade. 

Sempre que lá fui, abstraí-me um pouco da minha função e dediquei-me à escuta, tentando até catalogar os clientes por posto, ramo, forma, jeito, velocidade e desempenho. A noite de véspera do meu regresso foi lá passada. 

Que melhor despedida podia eu, então, ter programado? Para sempre ficou marcada na memória a cena dessa noite. No chão a ressonar e de pistola à cinta, um grande fuzileiro e, encostado a ele, todo enrolado em panos, um bebé. Na cama, ela, semi-adormecida, ordenando uma actuação silenciosa (...). 


Óptimas lembranças da Fátima, uma fula do Pilão, em cuja casa (um quarto apenas...) dormi algumas noites, numa cama onde dormia também o bébé de um ano. Boa rapariga, que fazia pela vida e que, por isso, me fez, uma noite a proposta de eu trazer umas quantas cervejas do QG para ela vender aos seus visitantes: 
- Estou doido, filha, mas não tanto. Nem penses nisso. Boas noites lá passei, uma ou outra com emoção, quando os comandos ou os fuzos batiam à porta e ela respondia:
- Está ocupado! - e eu a ajudava dizendo: 
- Estou eu, vão pra outra! Houve uma noite, não nenhuma destas nem a da proposta dela, que tive de sair a meio. É que o bébé borrou-se todo. Enquanto ela tirava água do pote para lavar o filho e os lençóis, tive de lhe dizer: 
- Fatinha, já não dá. Vou-me embora. (...) 


(...) Cupilon: Bairro tabanca da população, geralmente na periferia, eram um misto de atractivo irresistível e de perigo potencial mas nós, os militares recém-chegados, ignorávamos que a guerrilha tinha apoio em todo o lado, e assim todos os militares chegados a esta querida terra africana procuravam saber onde era e onde ficava (local de africanização e de gozo sexual) sempre apinhado de militares, dado que nele permaneciam lindas bajudas sem cabaço e partiam catota a toda a força: desprendidas da vida teriam nos prazeres da carne sustento bastante para fazerem vida desafogada, que de uma outra forma não conseguiam.

O convívio com aquela gente de população fascinava. Fosse pelo exótico dos usos, fosse pela atracção das raparigas, que designávamos por bajudas, independentemente de o serem. E só o eram enquanto virgens. Os seus erectos seios, tensos de jovem e dos nossos apetites, não escapavam ao despudorado atrevimento dos militares brancos. (...)

3 comentários:

Anónimo disse...

A sondagem 2 é complicada porque no meu tempo não se houvia tal expressão. Em 1967 fui várias vezes "na Pilon" de noite sozinho e nunca senti qualquer ameaça.
Henrique Matos

Anónimo disse...

Verdade. Vivi lá e nunca vi um "turra"

Anónimo disse...

Já estou atrasado tantos anos, mas as minhas histórias, já foram parcialmente contadas aqui noutros postes mais recentes.
Essa de ter medo de ir sozinho ao Pilão?

Tantas noites lá passei, deixando a minha mota à porta...

Nunca aconteceu nada, nem nunca ouvia falar de qualquer acontecimento.

Confirmo sim, que muito se fazia com os copos, e como diz o outro, depois de uns passarinhos (nunca comi codornizes) fritos, com muito molho picante, muito pão e garrafas de vinho de 1 litro de cápsulas, não me lembro dos nomes.

Não vou falar mais, pois já levei a minha dose no Observador, sem qualquer justificação.

Abraços,
Virgilio Teixeira