sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Guiné 63/74 - P2349: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (13): Na despedida de Missirá, em que me tornei um Soncó

Guiné <> Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 (1968/70) > "O mais controverso cozinheiro do mundo, Quebá Sissé, o Doutor (fotografia de Luis Casanova).

"O nosso querido Doutor, colega de quarto de Luis Casanova. Sempre gentil e sorridente, conheci-o a preparar as refeições mais abomináveis que imaginar se pode. Estagiou nas messes de oficiais, sargentos e praças e tornou-se muito exigente. Cozinhava, fazia reforços, ia a Mato de Cão, patrulhava e emboscava. A 1 de Janeiro de 1970, num acidente estúpido, desferiu vários tiros no peito de Uam Sambu, que morreu pouco depois. Fui testemunha de defesa do Doutor, que sofreu horrivelmente com a morte do camarada".

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 > O Alf Mil Beja Santos, rodeado das autoridades civis e religiosas de Missirá: O régulo Malan (à sua direita); o Keban e o padre Mané (à sua esquerda).

Fotos e legendas: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.
Guiné-Bissau > Região Leste > Bambadinca > Missirá > 1970 > O Pel Caç Nat nº 54, comandado epl Alf Mil Correia Alves, que veio subtituir o pel Caç Nat 52, do Alf Mil Beja Santos. Foto do Fur Mil Mário Armas de Sousa, açoriano, que é o terceiro da primeira fila, a contar da esquerda para a direita.

Foto: © Mário Armas de Sousa (2005). Direitos reservados.


Texto enviado, em 31 de Outubro último, pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).


Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (13): A reunião de despedida com os Homens Grandes do Cuor em que me tornei um Soncó

por Beja Santos


(i) A última reunião com os homens grandes do Cuor: o dia e a hora em que me tornei um Soncó e me despedi de Missirá

A 10 de Novembro [de 1969], mesmo sem saber ainda a data da nossa transferência para Bambadinca (1), convido para um almoço o régulo, os chefes de tabanca, o padre Lânsana, Quebá Soncó, o nosso picador, os comandantes das milícias ou os seus substitutos (é que o Príncipe Samba, Albino Mamadu Baldé continua em Bissau, em consequência dos ferimentos da mina anti-carro, e Bacari Soncó ainda está muito debilitado depois das ocorrências dos armadilhamentos de Canturé).

Quebá Sissé e Umaru Baldé esmeram-se num bacalhau cozido com batatas, couves e ovo, vem tudo a fumegar, a pratada é recebida com sorrisos e apetite voraz. Enquanto se servem as laranjadas Fanta, e os dentes de alho, e circula o pimenteiro e a malagueta, agradeço a todos o acolhimento que ofereceram ao Pel Caç Nat 52, informo que toda a documentação sobre a população existente no Cuor, os locais armadilhados em torno de Missirá e Finete, os planos de abastecimento de arroz, os autos de justiça envolvendo a população civil, constam de um dossiê que irei entregar ao alferes Alves Correia assim que o Pel Caç Nat 54 chegar a Missirá.

Dirigindo-me a Lânsana, mostro-lhe o meu caderninho viajante e peço-lhe para ainda conversarmos antes da minha partida sobre as lendas do Geba e o arvoredo do Cuor e do Oio. Apresento desculpas por ter adaptado a vida da população civil às contingências militares, eliminando culturas e as cercas que sempre fizeram parte das vidas das famílias dentro da tabanca.
Imprevistamente, o régulo põe-se de pé, manda chamar Domingos Silva, enxota com voz cortante os cozinheiros e as crianças que rondam à volta dos fogareiros e lança-se num arrebatado discurso.

Pelo Domingos, fico a saber que os laços de sangue dos Soncó passaram a ser os meus; que chegara ontem uma carta de Lisboa em que o seu filho Quebá, a tratar de nova prótese no Hospital Militar Principal, falava com entusiasmo da Cristina, da Mãe e da irmã de alfero, a família portanto ia-se conhecendo aos poucos; que eu ficava responsável por dar aos Soncó toda a ajuda possível, mesmo quando a guerra acabasse; que confiava que Bambadinca mandasse fazer um monumento a Infali Soncó, em Sansão, e que me confiava um anel que pertencera ao seu avô. E com o mesmo entusiasmo e arrebatamento com que este discurso fora proferido, como se tivesse havido um prodigioso ensaio geral, assim que o régulo findou a sua jaculatória, a multidão dos Soncó e dos Mané, à porta da messe, alindados ou engalanados, formaram um semicírculo onde entrei de braço dado com o régulo e fui cumprimentar a mulher grande a quem entreguei pacotes de chá, à falta de melhor lembrança.

Findo o cerimonial do acolhimento a este novo Soncó, o régulo e a sua comitiva convidam-me a ir à mesquita. É neste ínterim que o Domingos me informa que os soldados pretendem uma cerimónia especial do arriar da bandeira e guardei a frase em que ele explicava a razão da homenagem: “para lembrar e agradecer àqueles que não podem partir connosco”.

Só parto ao anoitecer para Mato de Cão, recordo-me que é preciso mostrar ao Alves Correia todos os itinerários alternativos desde Caranquecunda até Gambana ou Chicri, ocorre-me igualmente que tenho de mostrar ao Pel Caç Nat 54 os perigos do percurso entre Cancumba e Morocunda, onde começa a mata densa que vai até Biassa local onde por duas vezes a gente de Madina/Belel montou emboscadas mortíferas, em 1966 e 1967.


(ii) O banimento de Dauda Seidi da milícia de Missirá


Volto a reunir-me com Malã para discutir a expulsão de Dauda Seidi da milícia de Missirá. Dauda é um militar com qualidades mas agiu brutalmente com a mulher, espancou-a de tal maneira que se fez uma coluna de urgência para a levar para tratamento a Bambadinca, a vítima exibia hematomas e ferimentos vários das chicotadas e pontapés, pelo que este procedimento desumano não pode passar impune.
Comprara em Bissau um livro sobre a justiça dos mandingas, ficara a saber que estes comportamentos são castigados com o banimento. Ora, eu não podia aplicar um castigo invocando o regulamento de disciplina militar, era-me indispensável saber a opinião do régulo. Ele não hesitou em responder-me:
-O que Dauda fez, ainda por cima na presença das crianças e das outras famílias, merece a condenação, mande-o de volta para Madina Bonco.
Mesmo sabendo que íamos perder um valoroso soldado, não tive contemplações, pedi ao Pires para se fazerem as contas e avisei o Dauda que amanhã abandonaria o Cuor.


(iii) A última viagem a Mato de Cão

É noite escura quando saímos de Missirá, pela porta de Sansão. Temos o luar a nosso favor, toda a bolanha entre Caranquecunda e Sansão está seca, atravessamo-la sem nenhuma dificuldade, descemos até Maná, contornando a velha tabanca e flanqueando sempre a estrada até Canturé, como se fôssemos até Gambana. O picador, Cibo Injai, chama-me a atenção para as pegadas de vacas bem visíveis na terra seca, o que atesta abastecimento recente da gente de Madina, sabe-se lá se dos Nhabijões, sabe-se lá se de Mero.

É uma noite graciosa, o ar respira-se sem dificuldade, basta a camisa do camuflado, só uma camada de suor é perceptível, mas cedo se evapora e logo o suor oleaginoso regressa. Sempre guiados por essa luz coada, atravessamos o palmeiral de Chicri e subimos para o planalto de Mato de Cão, o amanhecer ainda está muito longe. Tomamos posição em meia lua, sempre com dois observadores nos extremos, de pé, para detectar possíveis movimentos de aproximação de gente de Madina.

É uma noite quase silenciosa, ouve-se o Geba caudaloso, as águas a subir até ao tarrafe, é a maré cheia fundamental para as embarcações civis. Aqui e acolá as hienas soltam os seus gemidos, ouve-se o restolhar dos porcos de mato, o piar lúgubre das aves nocturnas, a ver se pergunto ao Barbosa se este piar das corujas não lembra as da nossa terra. Entre as duas e as três da madrugada, somos despertados pelo ronco dos motores, primeiro um zunido quase suave e persistente, depois em crescendo os barcos aproximam-se. Todos de pé, vemos passar três embarcações fantasmas, são batelões da Casa Gouveia, trazem mantimentos e vão regressar com matérias primas.
O Geba está enluarado e reverbera os mesmos tons enluarados, metalizando-se. É nesse preciso instante que olho à volta, como a despedir-me deste glorioso planalto de Mato de Cão, os seus palmares silenciosos com árvores de grande porte, pergunto-me quantas vezes vim a este local sempre com o coração contrito, à espera de uma emboscada infernal. Penso no Enxalé e na belíssima estrada que nos leva daqui através de Saliquinhé e São Belchior, sempre a beijar o rio, até essa tabanca, na fronteira do Cuor, com a sua aproximação angustiante de um arvoredo denso e anárquico, entregue às leis da natureza.

E regressamos com os primeiros alvores ígneos, como se uma mata incendiada estivesse a anunciar-se, bem lá ao longe. Regressamos por um percurso diferente, desta feita descemos até à tabanca abandonada de Mato de Cão, flanqueamos Chicri e passamos ao lado de Mato Madeira, atravessamos Flaque Dulo e subimos por Gã Gémeos até Caranquecunda. A manhã rompe em todo o seu esplendor quando Missirá nos acolhe, partem homens e mulheres para as culturas e lavagens ou abluções, a vida recomeça dentro do perímetro vegetal. Nem o cansaço subtrai o êxtase deste momento, só diminuído pela dor a tão contraditória dor, de quem vai partir desta terra tão amada.


(iv) Um último poemacto para Lisboa

Tem a data de 11 este aerograma que escrevo no regresso de Mato de Cão. A correspondência da Cristina está cada vez mais triste, evasiva, é como se a sua autora estivesse a perder energia, o sonho e a esperança, a soçobrar ao peso de tanta questiúncula nos meus meios familiares. Então escrevo, ainda alimentando a ilusão de um sopro poético:

Amanheceu sobre os palmares, há o sussurro dos regatos para lá das hortas de caju. Procuro levar um cadinho de calor às tuas mãos, ver renascer um sorriso trocista, um sinal da tua felicidade, confundir o perfume da terra deste trópico, galgando este oceano, com o perfume dos teus cabelos, avisar-te em primeira mão que a guerra acabou. Com o ribombar desta notícia, com o sol transformado em bola de fogo, estamos prontos a partir neste primeiro dia anónimo em que tu já não choras à espera do meu regresso. Missirá chegou ao fim, vão-se seguir meses de dias dobrados fora dos subterrâneos de cimento e das chapas de ferro. Não chores mais e confia na notícia, trago-te o desmentido da guerra, passei uma noite debaixo de uma abóbada coalhada de estrelas e exalto-te provisoriamente neste dia multiplicado, ao arrepio das cinzas, sim, meu amor, vamos recomeçar tudo aquilo que a guerra suspendeu.

Leio e releio, risco, volto a riscar, depois emendo ainda e assino, sem antes deixar de informar que venho de uma noite funda e despeço-me com ternura, garantindo um até amanhã. Escreverei ainda a 13, já anunciando a excitação da partida, prevista a partir do amanhecer seguinte, com viagens ininterruptas do Sintex, levando e trazendo através do Geba. Pela estrada fora, os civis transportaram trouxas e animais, o burrinho levará no bojo as cargas mais pesadas como sacos de arroz que seguirão directamente para a tabanca de Bambadinca.
Escreverei igualmente a 16, nesse dia sairão de madrugada dois pelotões na operação Truta Vivaz, à procura da presença de gente de Madina entre Sinchã Corubal, São Belchior e Finete, com emboscada nocturna. Ficarei em Missirá com duas secções de milícias e apontadores de morteiro, a cumprir o que me pedira Jovelino Corte Real: patrulhar e mostrar todos os locais onde o inimigo camba o Geba e pode montar as emboscadas mais temíveis. Guardo silêncio sobre os patrulhamentos que fiz aos locais mais arriscados com 30 homens quando agora a mensagem é de que nunca se deve sair havendo o risco de contacto com menos de 60 homens.
Só regressarei definitivamente a Bambadinca a 21 de Novembro, vou estrear-me como oficial de dia, vou ficar ligado às mais abomináveis emboscadas nocturnas de que há memória, às estadias no rio Udunduma e ao reordenamento dos Nhabijões, tudo de uma assentada.

Vou sentir-me muito mal em Bambadinca de que tanto gosto, agora é outro mundo, são peripécias novas, como aquela que vos contar a seguir e que envolve um dedo mindinho dentro de um tapa-chamas.


Capa do livro de António José Saraiva, A Inquisição Portugues, 2ª edição revista. Lisboa: Publicações Europa-América, 1956. (Colecção Saber, 31).



(v) Leituras: A Inquisição Portuguesa, um cavalo espantado, alguns policiais

A Inquisição Portuguesa de António José Saraiva, é um livro de divulgação que me impressionou profundamente. É o relato rigoroso de uma das instituições mais funestas da nossa história. A pretexto dos cristãos-novos continuarem a praticar secretamente a sua antiga religião, instalou-se no século XVI o Tribunal do Santo Ofício. Os judeus foram fundamentais no Portugal que se lançou na epopeia marítima, foram tesoureiros-mores, técnicos, médicos, astrónomos, peças singulares na formação de uma nova burguesia que vai abalar o senhorialismo do tipo feudal.
Cedemos aos Reis Católicos e sacrificámos o país, diminuindo-o na cultura, nos negócios, no desenvolvimento. Vai começar um período de perseguições, de esbulhos e confiscos, de intolerância e denúncias que destruíram famílias, fizeram perder obras literárias e científicas monumentais, tudo à base do terror inquisitorial e dos autos-de-fé. Saraiva produziu uma pesada reflexão que se insinua até à actualidade, ao abordar a censura inquisitorial, a limpeza de sangue, que no nosso tempo se traduz na desconfiança por todos aqueles que estão ligados por laços de sangue aos perseguidos e inquiridos da polícia política.

O Cavalo Espantado, de Alves Redol [Lisboa: Portugália, 1960; Col. Contemporânea, 17; 324 pp], é uma outra leitura surpreendente. Um casal de judeus austríacos ruma a Lisboa, à beira da Segunda Guerra Mundial. Um funcionário consular garante um visto, um compasso de espera até os refugiados atravessarem o oceano. O que há de comovente é o encadeado de monólogos que destapam os estados de espírito daquele casal em naufrágio e em ruptura em que Pedro, o funcionário consular terá um papel primordial. O Redol neo-realista dos Gaibéus ou Avieiros dá aqui lugar a pungente relato dramático da Lisboa pobre e acolhedora, trampolim para o sonho americano. É um Redol que eu desconhecia, a fugir ao épico das fainas populares e das sagas da gente trabalhadora, que escreve assim:
Foi esta manhã, que quando caminhava por um pequeno bosque, quando o sol arrefece e as esperança desespera, onde a angústia se esquece e se agarra aos ramos mortos para ainda viver, que tive a sensação de me mover no fundo do mar como um velho tubarão solitário em busca de um refúgio para descansar e morrer... Talvez por causa desta luz de Outono, luz doente e branda, e também doce envolvido por folhas caídas pelas árvores sacudidas pelo vento, como tu e como eu....

Acabei Ladrões de Raparigas, por Mickey Spillane [Lisboa: Livros do Brasil, s/d. Col. Vamprtio, 190. Capa de Limna de Freitas]. O cavaleiro andante Mike Hammer, o mais truculento anticomunista de que há memória, depois de ter caído na degradação alcoólica, regressa para procurar Velda, essa eterna heroína que aguarda ser pedida em casamento por Mike, o seu patrão. Velda, veio do bloco oriental e anda à procura do chefe da espionagem comunista que procura por os EUA de rastos. Confirmo esta poderosa capacidade literária que tornou Spillane um dos autores incontestados do policial negro:
Encontraram-na na sarjeta. A noite fora a única coisa que eu deixara e mesmo assim já pouco dela restava. Ouvira o carro parar, o ruído das portas abrindo-se e fechando-se e de duas vozes. Dois braços levantaram-no e mantiveram-no de pé.
Há intriga e mistério, tiroteio e mortes, a surpresa de quem é o criminoso hediondo fica para o grande final, Mike Hammer dobra mais uma página do justiceiro da América pelas suas próprias mãos.

O Crime do Escaravelho, por S.S. Van Dine [Lisboa: Livros do Brasil, s/d. Col. Vampiro, 91. Capa de Cândido Costa Pinto], traz o fleumático e superintelectual Philo Vance no apogeu das suas faculdades dedutivas. Desta vez, o assassínio aparece ligado à egiptologia. Um mecenas aparece morto em casa de um arqueólogo de renome e todos os indícios apontam contra ele. Virá a saber-se que um criminoso diabólico urdiu um esquema de provas que iriam levar à cadeira eléctrica um rival amoroso. Como é muito peculiar em S.S. Van Dine, acabará por se fazer justiça do algoz que morrerá na teia que ele próprio criou.

Tem piada, tenho aqui para ler O Caso Benson, de SS. Van Dine [Lisboa: Livros do Brasil, s/d. Col. Vampiro, 11. Capa de Cândido Costa Pinto], o primeiro livro que fala de Philo Vance. Espero lê-lo mal chegue a Bambadinca.

É Ussumane Baldé, o meu guarda costas interino, quem me ajuda a arrumar os livros espalhados e a limpar o pó aos discos. Estou cercado das minhas economias, a partir de Abril. O que as cinzas levaram a vontade indómita acaba por refazer. É bem verdade que tudo se remedeia, bens de valor só os nossos valores, a nossa cultura e o amor de Deus passado aos homens. Dentro de dias, estes meus bens partirão comigo, quando eu me despedir do Cuor.

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Nota de L.G.:

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