segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2523: Estórias de Guileje (7): Um capitão, cacimbado, e um médico, periquito, aos tiros um ao outro... (Rui Ferreira)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 > 1971 > O Gen Spínola em visita de inspecção à peça de artilharia 11,4 cm. O então Cap Jorge Parracho (hoje, coronel na reforma) deve ser o primeiro da esquerda. Possivelmente, o oficial que está de costas, seria o comandante do Pelotão de Artilharia... E, quanto ao que está à civil, não sabemos...

Fotos: © Jorge Parracho / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados.


1. Reproduzo aqui, com muito gosto (e naturalmente também com a devida vénia), mais uma das deliciosas estórias que o nosso querido amigo e camarada Rui Ferreira nos conta no seu livro Rumo a Fulacunda (pp. 322-324), cuja 1ª edição remonta a 1999. Aproveito também para lhe mandar um abraço de toda a nossa Tabanca Grande, do tamanho de Lisboa a Viseu (que é a sua segunda terra).

Sem querer adiantar pormenores que tirariam toda a graça ao surreal episódio aqui relatado, devo contudo acrescentar que estas brincadeiras, estas praxes, eram habituais na recepção aos médicos periquitos, sobretudo nas unidades de quadrícula mais isoladas... Poder-se-ia imputar este comportamento de bravata (mas perigoso...) a um pulsão sadomasoquista dos operacionais em relação aos não-operacionais, como era o caso do alferes médico ou do alferes de transmissões ?...

Enfim, talvez algum deles, dos nossos oficiais milicianos, médicos ou especialistas de transmissões (daqueles que fazem parte da nossa Tabanca Grande), nos possa dar o seu testemunho ou dizer mais alguma coisa, confirmando ou desmentindo estas brincadeiras perigosas à chegada dos médicos... (LG)


O ataque ao Guileje (1)
por Rui Ferreira

Revisão e fixação de texto: LG


Mobilizado para a Guiné, em rendição individual, poucos dias após ter abandonado Lisboa, um jovem e recém-formado médico dava entrada, com toda a pompa e circunstância, na guarnição do Guileje, ínfima «ilha» perdida na imensa mata do Cantanhez, no extremo Sul da província que constituiu durante anos, a par de mais umas quantas, um dos alvos privilegiados de ataques do inimigo.

Autor: Rui Alexandrino Ferreira (2)
Título: Rumo a Fulacunda. 2ª ed.
Editora: Palimage Editores.
Local: Viseu.
Ano: 2003.[1ª ed., 2000].
Colecção: Imagens de Hoje.
Nº pp.: 415.
Preço: c. 20€.

Fortemente entrincheirada, dotada de abrigos construídos à base de palmeira de cibe - dura como corno - decidiu, o Capitão Comandante, já um pouco cacimbado, dar as boas vindas ao ilustre clínico, com o ensaio geral, ao entardecer do dia da sua chegada, da reaccão a um violento ataque (3).

Facto que não só se revelou absolutamente desajustado mas perfeitamente dispensável pois, mais dia menos dia, os próprios turras lhe poupariam não somente o trabalho que teve mas o mal aproveitado dispêndio de energias.

Levada, no entanto, a sua por diante, lá decorreu o ataque, entremeados rebentamentos de granadas com tiros de metralhadoras, das armas individuais e colectivas, com a mais viva gritaria, pantominas de toda a espécie, simulacro de feridos, em resumo um verdadeiro pandemónio, unida a Companhia naquela estranha recepcão ao periquito.

Este, profundamente traumatizado e completamente desnorteado, passou la viver dentro do abrigo que lhe fora destinado, ai tomando as refeições, dando consultas, suportando o dia-a-dia, arrastando-se em angustiante depressão agravada com o correr do tempo.

Dias passados, empenhada a Companhia em acção operacional ofensiva no seu efectivo máximo, ficaram no aquartelamento, destinados a sua defesa, os poucos soldados especialistas não combatentes, sob o Comando do 1.° Sargento e em última instância do Alferes-médico.

No regresso e já nas suas imediações, mais uma vez, pela cabeça do Capitão passou brilhante ideia:
-Vamos atacar o quartel para pregar um susto ao doutor!

E se bem o pensou, melhor o executou, com umas quantas rajadas por cima deste. Aí, dado o alarme, com tão pouco pessoal para a sua defesa, como é que aquilo ia ser?
E vá de perguntar ao médico:
- Oh, Dr.! o que é que fazemos?
- Fogo!!! Foooo...go!!! - comandou o médico.

E contra tudo o que seria de esperar, pressionado, sob o peso da responsabilidade, abandonou o abrigo e, em pessoa, passou a dirigir a reacção.
- Fogo? - com quê??
- Com tudo. Fogo com todas! Com tudo! Foooo...go!

E assim os nossos bravos atacantes começaram a ficar em maus lençóis, com elas, a cair por perto, pelo que já de aflitos, bem rápido, desataram na gritaria:
- Alto ao fogo! Somos nós! Soooo....mos nós!

Pois sim! No meio daquele chavascal com tiros por tudo quanto era lado, quem é que os ouvia!?... Valeu, possivelmente evitando o que poderia ter sido uma verdadeira catástrofe, a experiência do pessoal de transmissões.

O elemento de serviço mal se desencadeara o ataque tinha solicitado a intervenção da Força Aérea que, pouco tempo depois sobrevoava a guarnição, graças à qual se conseguiu desfazer o equívoco (?) visto serem todos do mesmo clube.

O pior é que, bem mais rápido do que se poderia pensar, se propagou o acontecido e nessa mesma tarde, no rescaldo da chegada dos rumores que, nem se sabe como, já corriam por Bissau, estes captados pelos ouvidos do próprio Governador, fizeram com que, pouco depois, pousasse no Guileje o heli com o próprio General Spínola. Onde, face às atabalhoadas explicações do ilustre Capitão, na tentativa frustrada de, aligeirando a versão, contar unicamente quanto a loucura do acontecido aconselhava, tivesse levado Sua Excelência a determinar o apuramento do gasto das granadas e munições consumidas que mandou debitar na conta pessoal daquele, promovendo a imediata evacuação do médico para a psiquiatria.

Em beleza…

_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último poste desta série: 31 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2493: Estórias de Guileje (6): Eurico de Deus Corvacho, meu capitão (Zé Neto † , CART 1613, 1966/68)

(2) Por curiosidade, com quem e em que altura se terá passado esta estória ? O Rui Ferreira, por sua vez, esteve em Quebo (Aldeia Formosa), entre 1970 e 1972, sendo portanto vizinho de Guileje... A ter sido passada esta cena no tempo de Spínola, ela terá ocorrida entre 1968 e 1973, envolvendo o pessoal de uma destas seguintes unidades (entre parênteses, indica-se o nome o contacto que temos)

CCAÇ 2316 (Mai 1968/Jun 1969) (contacto: Cap Vasconcelos)
CART 2410 (Jun 1969/Mar 1970) (contacto: Armindo Batata)
CCAÇ 2617 ( Mar 1970/Fev 1971) > Os Magriços (contacto: Abílio)
CCAÇ 3325 (Jan 1971/Dez 1971) (contacto: Jorge Parracho)
CCAÇ 3477 (Nov 1971 / Dez 1972) > Os Gringos de Guileje (contacto: Amaro Munhoz Samúdio)
CCAV 8350 (Dez 1972/Mai 1973) > Os Piratas de Guileje (contacto: José Casimiro Carvalho )

(3) O Rui Alexandrino Ferreira, que foi homenageado em 2007, por ocasião dos seus 64 anos, em Viseu, terra onde vive, é natural de Angola (Lubango, 1943). Fez o COM em Mafra em 1964. Tem duas comissões na Guiné, primeiro como Alferes Miliciano (CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67) e depois como Capitão Miliciano (CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72). Fez ainda uma comissão em Angola, como capitão. Publicou em 2001 a sua primeira obra literária, Rumo a Fulacunda. É hoje coronel, na reforma.

Vd. postes de:

4 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2026: Antologia (61): Rumo a Fulacunda: uma estória que ficou por contar ou a tragédia das CCAÇ 1420 e 1423 (Rui Ferreira)

3 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1810: Convívios (14): CCAÇ 816 (Oio, 1965/67), em Joane, Famalicão, em 5 de Maio de 2007 (Rui Silva)

30 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1800: Álbum das Glórias (14): De Alferes (CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67) a Capitão (CCAÇ 18, Quebo, 1970/72) (Rui Ferreira)

30 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1797: Convívios (13): Viseu: Homenagem ao Rui Ferreira e apresentação do último livro do Gertrurdes da Silva (Paulo Santiago)

15 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1761: A floresta-galeria na escrita de Rui Ferreira

1 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1718: Lendo de um fôlego o livro do Rui Ferreira, Rumo a Fulacunda (Virgínio Briote)

14 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1661: Tertúlia: Notícias de Lafões, do Rui Ferreira, do Carlos Santos e da nossa gloriosa FAP (Victor Barata)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

20 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1448: Os quatro comandantes da CCAÇ 2586 (A. Santos)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1285: Bibliografia de uma guerra (14): Rumo a Fulacunda, um best seller, de Rui Alexandrino Ferreira (Luís Graça)

1 comentário:

Anónimo disse...

Recomendo vivamente aos mais novos a leitura do "Rumo a Fulacunda" do herói da Pátria Rui Alexandrino Ferreira para que tenham conhecimento do modo como se fazia a guerra que as potências estrangeiras nos obrigaram a fazer no ultramar e para que saibam que naquele tempo a maior parte de uma geração não fugiu à guerra e foi capaz de a fazer com motivação e elevado espírito cívico de bem servir a Pátria na defesa do seu território e de toda a sua população.
Obrigado Coronel Rui Alexandrino pelo testemunho e exemplo de vida que nos dá.