sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2570: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (21): Em Bissau, em tempo de Vesperax, curando uma depressão

Açores > São Miguel > 1967/68 > "Dei duas recrutas no BII 18, entre Outubro de 1967 e Março de 1968. Guardo as melhores recordações: parecia a Suíça, ao fazer as provas de ginástica correndo pelos caminhos de terra vulcânica, rodeados de hortênsias, sentia-me feliz. Aquela malta não dava um só problema disciplinar, quando chegou o Natal levei-os ao Coliseu Micaelense ver Lord Jim, uma viatura trouxe-os e levou-os sempre eram 8 km de Ponta Delgada" (BS)


Açores > São Miguel > 1967/68 > Instrução na parada dos Arrifes, S.Miguel. O Botas era um soldado extremoso mas muito atado. Surpreendeu-me perguntando para que servia o cantil... com naturalidade, respondi-lhe que tanto podia levar água como aguardente da Graciosa...




Fotos (e legendas): © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 27 de Dezembro de 2007:


Operação Macaréu à Vista - II Parte > Episódio XXI

EM BISSAU, EM TEMPO DE VESPERAX
por Beja Santos

(i) As insónias agravaram-se, vou algemado para Bissau

A 3 de Janeiro [de 1970], quando estou a preparar os tarecos para quatro dias na ponte Udunduma, Bala, o ordenança do Comandante, vem chamar-me, o Major Sampaio quer que eu vá com urgência à Sala de Operações. Desembaraçado, foi direito ao assunto:
-Oiça, Beja, este mês vai ter um conjunto de operações de grande porte, toda a gente no nosso Sector vai estar em movimento. Acertei com o Major Cunha Ribeiro que uma das forças de intervenção só fará uma dessas operações, o que significa que todos os dias apoiará o reordenamento dos Nhabijões, a segurança da ponte de Udunduma, os abastecimentos às milícias em Amedalai, Taibatá e Demba Taco, idas ao regulado de Badora, correio e o mais que for necessário. Sorteou-se, é o seu Pelotão que vai entrar neste corropio. Dê-se por feliz, V. não sabe, mas neste momento está a decorrer uma operação na zona de Galo Corubal, está lá gente da CCaç 12, do Xime, de Mansambo e do Xitole. Vou agora na DO para lá. O seu trabalho só tem canseira, o risco é mínimo. Sei que anda doente, é uma boa ocasião para reparar forças.

As cartas que enviava para Lisboa e outras paragens deixavam os leitores alarmados ou, no mínimo, atónitos: a letra estava garatujada, incompreensível; casos havia em que as cartas ou bilhetes ou aerogramas iam escritos até meio, parecia que a conclusão ficava para depois, as interrupções eram surpreendentes, para não dizer bizarras; e, excepcionalmente, havia mensagens telegramáticas, quase esotéricas; e um caso houve em que o comprimido que o Vidal Saraiva me receitara (creio que um Valium 10) tivera tal efeito que um risco bem grosso atravessara um aerograma de alto a baixo, rasgando-o.

Em conclusão, estava a ficar fora deste mundo. Com reacções extravagantes (recordo que a um alferes em trânsito, a tomar duche, atirei-lhe com uma embalagem de Vim pela cabeça abaixo, gritou, barafustou, agrediu-o com uma lambada na boca, foi-se queixar ao Comando, tinham chegado os sinais de alarme sobre a minha perturbação), o Vidal Saraiva sentia que eu precisava de uma medicação rigorosa numa outra atmosfera, para eu sair daquele caos. A oportunidade veio a seguir.

Nesse mesmo dia 3, no decurso da Operação Navalha Polida fez-se um prisioneiro que teria de ser ouvido em Bissau, após interrogatórios preliminares em Bambadinca, já que o prisioneiro se revelava conhecedor das várias bases do PAIGC perto do Xime (Ponta Varela, Poidon, Buruntoni ou no Corubal (Galo Corubal, Mina e Fiofioli entre outras).

Regressei da ponte de Udunduma em péssimo estado, estive uns dias nos Nhabijões que deu para perceber, após um patrulhamento minucioso, que as gentes de Madina continuavam a cambar o Geba estreito enquanto prosseguiam as obras do reordenamento que mudavam a face das velhas tabancas.

Houve tempo para conversar com todos acerca do acidente que vitimara Uam Sambu, os rancores que recaíram sobre o Doutor foram-se diluindo aos poucos. Recordo que o papel do Benjamim Lopes da Costa foi decisivo, lembrou a todos o que se passara em Malandim, naquela malfadada emboscada em que morrera uma mulher e ele perdera a cabeça, insultando-me. Depois dos Nhabijões ainda estive dois dias entre Sansacuta, Sinchã Mamajã e no regresso a Bambadinca informaram-me que a meio da tarde seguiria para Bissau algemado ao prisioneiro que fora capturado na região de Seco Braima.

O Vidal Saraiva (*) entregou-me uma carta fechada para o David Payne (*), colocado no HM 241.
Algemado ao prisioneiro, converso com o Pires, nessa época o único furriel em funções, apelo à sua compreensão, nessa altura já sabíamos que estava iminente a vinda do Vitorino Ocante transferido do Pel Caç Nat 63 por troca com o Pina, que partia sem deixar saudades.

(ii) Em Bissau, sonos de quinze horas, a alegria em rever os amigos

A 14, escrevo à Cristina:

“Perdoa a minha exaltação ao telefone, eu devia estar aos berros, tinha acordado ao som do despertador minutos antes, fui a correr para a estação dos correios, com a fralda de fora, tudo resultado das mezinhas que o Payne me prescreveu.
Cheguei no sábado da avioneta, algemado a um rebelde que veio para interrogatórios. O David deu-me logo uma batelada de comprimidos, estou a dormir quinze horas por dia, em casa dele. A Isabel tem sido muito amável, está uma bonita grávida de quatro meses, dá-me almoço e jantar, eu também não aborreço ninguém, só quero estar deitado. Vai ser assim toda esta semana e parte da próxima.
Acredita que desejo ardentemente que venhas para o pé de mim, e tudo farei para que tal aconteça, embora nada saiba sobre o meu futuro, é bem provável que fique em Bambadinca até ao fim da comissão.
Encontrei logo no primeiro dia que aqui cheguei o tenente coronel Teixeira da Silva do agrupamento de Bafatá (agora cidade!) que me disse que ia estudar a possibilidade de eu gozar uma licença. Depois foi falar com alguém dos serviços jurídicos, afinal não tenho direito a férias neste último ano de comissão. Enquanto espero o veredicto final, fui à TAP e marquei uma passagem para 19 de Fevereiro. Como já tens todos os papéis em teu poder, por favor acorda com os teus pais uma data para o nosso casamento. Sugiro que a cerimónia civil seja marcada para os primeiros dias de Fevereiro, se acaso eu não poder ir.
Acabo aqui a carta pois estou muito derreado.
Estou confiante de que daqui a um mês te vou ver”.


No HM 241 procurei falar com o Botelho de Melo, tinha entrado no bloco operatório, a certa altura um dos enfermeiros disse-me que o meu amigo oftalmologista propunha jantar amanhã no Grande Hotel, pelas 20 horas. Disse logo que sim, nos últimos dias os Açores tinham voltado às minhas doces recordações.


2ª Edição, Editorial Inquérito,1959

Capa da das Cartas de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues. 2ª ed.

"Estive quase a levar este livro para a Guiné, parece que a minha Mãe mo pediu para ler. Felizmente! Era mais uma perda para a minha memória desse jantar/encontro com o Armando Côrtes-Rodrigues".

Lembrava-me de um jantar havido em casa do Dr. Armando Côrtes-Rodrigues, nessa altura o último sobrevivente do Orpheu. Recebera-me na Rua do Frias, 101, vestia um traje típico, a casaca parecia que tinha uns guizos, ostentava um sorriso muito aberto, a voz estentória. O encontro fora impulsionado pelo padre Simão Bettencourt, seu admirador.
Pouco recordo o que se disse, mas à saída ofereceu-me duas publicações uma das quais eram as Cartas a Armando Côrtes-Rodrigues, de Fernando Pessoa, com introdução de Joel Serrão.
É a primeira vez que leio cartas de Pessoa, alguma da sua prosa publicada no Orpheu, só conhecia a “Mensagem”, assombrei-me com a sua simplicidade. Por exemplo, a carta que escreve a Côrtes-Rodrigues em 23 de Junho de 1915:

“É uma circunstância violenta e aflitiva. V. pode emprestar-me cinco mil reis até ao dia 1 mês que vem? É aflitivíssimo o caso, creia. O pagamento é a pronto e certo no referido dia 1, se não for antes... Se v. me pudesse fazer isto. Valia-me uma conjuntura em que não tenho ninguém para quem me vire... Não estarei no escritório amanhã senão tarde. Mas, vindo v. cá e deixando-me em envelope a quantia, ser-me-á entregue fielmente quando eu chegue...”.

A dedicatória que Côrtes-Rodrigues escreveu a estas cartas tem a data de Fevereiro de 1968, e termina assim: Esta lembrança afectuosa de um Homem que vive só” (BS)

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Mas não me lembro só de Côrtes-Rodrigues, tenho saudades da família Teves Lemos, da Cremilde e de tantos outros. Dei duas recrutas nos Arrifes, tudo correu muitíssimo bem, percebo agora a admiração que se tem pelos militares açorianos, esforçados e cumpridores.

Saio do HM 241, vou ao Batalhão de Engenharia, em Brá, encontro o Rui Gamito e o Emílio Rosa. As cumplicidades nunca se extinguem, prometera ao Alves Correia interceder para chegar mais material de construção civil a Missirá e a Finete. Pela primeira vez abordo a questão do meu casamento e pergunto ao Emílio:
-Se casar aqui, como espero, tu gostarias de ser meu padrinho?.

Ele disse imediatamente que sim. Almocei com eles e fui a correr para casa descansar. Sentia que o tratamento me estava a fazer bem, havia uma quebra na ansiedade, a opressão parecia passar em certas horas do dia.

(iii) Uma época de cartas de amor e de estudos sobre a Guiné

É uma semana em que pouco escrevo, telefono o que posso, estou determinado a vencer a depressão. Leio numa carta à Cristina o rol das mezinhas que o David me receitou: Valium 10, Vesperax, Chimar e Dalcortil-C. A 25, registo num aerograma:

Voltei à consulta, melhorei muito da depressão e da ansiedade, as insónias apagam-se aos poucos. O que parecia grave não é. Aliás, o prazer de conversar não esmoreceu. Ainda tonto e triste, fui jantar com o Botelho de Melo, ele vai regressar em breve, falámos dos Açores e não ponho de parte que possamos fazer a nossa vida lá.
O Botelho de Melo assiste a todos os sinistrados que chegam ao hospital, eu posso imaginar os milagres que ele faz, nutro por ele uma grande admiração.
Amo-te cada vez mais, desculpa o meu silêncio, desculpa as cartas brutais que por vezes te mando, confesso-te que às vezes me sinto muito ferido com a vossa incompreensão sobre o que aqui se passa, mas depois caio em mim e percebo que é muito difícil aceitar que existe uma guerra na selva, quando essa guerra não faz parte dos noticiários dos jornais, rádio e televisão.
Prometo que amanhã telefono.
Recebe muitos beijinhos de saudade”.


Nos aerogramas falo da sua vinda ao mesmo tempo que falo na minha chegada a Lisboa. É um correio paradoxal em que lhe proponho que venha e em que digo recear que ela fique em Bissau sozinha. Afinal, não tenho resposta para coisa nenhuma, quero e não quero, pareço determinado e depois hesito. Imprevistamente, estou há já dez dias em Bissau, acordo sorridente e a cantarolar, pergunto-me pelo Pel Caç Nat 52 e enquanto faço a barba pergunto ao espelho:

-Não tens vergonha de estares aqui sabendo que o teu lugar é lá? - É nesse instante que me sinto curado, o entusiasmo renasceu.

A meio da primeira semana de tratamento vou até ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, folheio sem qualquer fito livros e revistas, estou à espera de uma ou várias surpresas, vou sempre munido do meu caderninho viajante.
Começo a ler o relatório da província da Guiné Portuguesa, ano económico de 1888-1889, pelo governador interino Joaquim da Graça Correia e Lança.
Copio um parágrafo, para depois fazer perguntas ao comandante Teixeira da Mota: “Se a cultura se for desenvolvendo no rio Geba, como é de esperar num futuro muito próximo devido ao estabelecimento de muitas famílias mandingas desde Malafo até Sambel-Nhanta, a prosperidade da província fica de vez assegurada”. Concretamente, a que estabelecimento se refere Correia e Lança?

Passando para África Ocidental - Notícias e considerações, por Francisco Travassos Valdez, 1864, encontro pormenores sobre a povoação de Geba, páginas 361 e 362:

“Geba contava antigamente dois mil cristãos, além dos habitantes gentios, e de todos os presídios do interior era o mais importante, exceptuando o de Zeguichor, hoje apesar de Geba não ter talvez mais de mil e duzentas almas, incluindo os escravos, está superior em importância a Zeguichor... Geba não tem fortificação alguma ou paliçada, nem maior guarnição do que dez soldados com um comandante militar, mas é um mercado sofrível onde se vende algum oiro, marfim , couros e outros produtos do país, que todos são permutados por sal, cola e mercadorias europeias que vão apara ali de Bissau em grandes canoas, a ponte que esta praça pouco valeria se não fosse o movimento de Geba”.

É nisto que um livrinho me desperta a atenção: trata-se do Dicionário de Crioulo-Português e o autor chama-se Marcelino Marques de Barros. É um investigador que me vai interessar muitíssimo a partir de agora, como se verá.

(iv) De Simenon a Alfonso Sastre


Trouxe comigo Um crime na Holanda, mais uma investigação de Maigret.

Um certo professor Jean Duclos, da Universidade de Nancy fora fazer uma conferência em Delfzijl, perto de Groningen, recebera a hospitalidade de um tal Conrad Popinga, que fora assassinado em casa, o revólver aparecera nas mãos de Jean Duclos, por sinal estudioso em criminologia.
Trata-se de uma investigação muito difícil, muitos dos holandeses não falam francês, Maigret não fala holandês, há um drama latente que envolve toda a família Popinga, há um número excessivo de provas disparatadas, apontando em várias direcções, envolvendo pessoas alheias à família.
A trama é poderosa, Maigret consegue superar todas as dificuldades linguísticas, Maigret apercebe-se das diferentes paixões e ciúmes desenvolvidos por Conrad Popinga, depois de uma maratona de perguntas e respostas a todos aqueles que viveram as circunstâncias do crime, é revelado o criminoso e o seu móbil.

Estou cada vez mais convencido que Georges Simenon é um dos grandes escritores do século, paga a desconfiança de ser um dos maiores nomes da literatura policial. Não é o único.
Simenon tira partido de uma atmosfera de interdições, rancores e maldade em lume brando, tudo envolvido por bolos e genebra nas tabernas locais. Maigret,subitamente, junta as peças do puzzle, reconstitui o crime e indica o assassino. Literatura de 1ª água.




Capa da peça de teatro Ana Kleiber, por Alfonso Sastre.
Editorial Presença, 1963, tradução de Egito Gonçalves, capa de E.Silva.


Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Quis conhecer o teatro de Alfonso Sastre e escolhi Ana Kleiber que muitos consideram uma obra-prima do teatro contemporâneo.
Li algures que Sastre é um herdeiro de Valle-Inclán e seguidor do teatro épico de Bertolt Brecht.
A peça abre com diálogos simultâneos, na recepção do um hotel em Barcelona, de um escritor que está a ser entrevistado por dois jornalistas, o recepcionista dormita e um casal discute. Ana Kleiber chega ao hotel e vai para o seu quarto descansar.
O escritor toma a palavra e esclarece o público que Ana Kleiber morreu naquela noite no seu quarto.
Escritor e recepcionista dialogam, entra em cena Alfredo Merton que tinha encontro marcado com Ana. Segue-se um conversa a três, escritor Alfredo, e recepcionista. Desfiam-se confissões entre Alfredo e Ana, no segundo acto, aparece Cohen, antigo empresário de Ana, que exalta as suas qualidades, tudo acaba em discussão e Alfredo mata Cohen. Surge novo personagem, o contra-regra.
É um teatro circular que acaba como começou, depois de se falar das lutas contra a ditadura, dos encontros e desencontros em que vive a Europa fustigada pelas ditaduras.
É um teatro ágil, didáctico, comedidamente revolucionário, pronto para ser representado em todas as plateias das democracias parlamentares.

Sente-se que é um teatro de combate, doseado, para não espantar a nova burguesia. A capa, há que o reconhecer, era vanguardista na época.

Num dos meus passeios até ao Café Avenida comprei um livro da miss Marple, a amorosa detective engendrada por Agatha Christie. Vou agora lê-la nos intervalos em que as mezinhas me põem a dormir.
Os sonos são pesados e às vezes sonho: com a reconstrução de Missirá, com a travessia da bolanha de Finete, às vezes levo o Paulo Semedo às costas, outras vezes oiço os gritos lancinantes do Fodé Dahaba, é tudo confuso e parece que a química sai vitoriosa, põe-me de pé, pronta a recomeçar uma vida que parecia partida em mil bocados e onde só o amor a Deus, a uma mulher amada e a um conjunto de soldados fazia sentido.

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Notas de CV:

(*) David Payne e Vidal Saraiva foram ambos Alf Mil Médicos no BCAÇ 2852

(1) Vd. último poste da série: 15 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2540: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (20): A morte de Uam Sambu, na Missão do Sono, em Bambadincazinho

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