domingo, 23 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2676: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (2): Um abraço de ermons e (más) recordações do Comandante Manecas

Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Azalai > 29 de Fevereiro de 2008 > O antigo Comandante do PAIGC, Manuel dos Santos, Manecas, em conversa com o Cor Art Coutinho e Lima e com o Alfredo Caldeira...

Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Azalai > 29 de Fevereiro de 2008 > O Zé Teixeira com o antigo combatente do PAIGC Mauindé Baldé que o queria apanhar à unha, no ataque a Mampatá Forreá, de 3 de Novembro de 1968...

Fotos: ©
José Teixeira (2008). Direitos reservados.



1. Continuação da crónica do Zé Teixeira, com as suas impressões sobre o Simpósio de Guileje (1):


(i) CONVÍVIO COM ANTIGOS INIMIGOS

Ao contactar com antigos combatentes do PAIGC, procurava saber a zona de acção onde estiveram envolvidos na esperança de poder olhar bem de frente, olhos nos olhos, quem em tempos idos não hesitaria em me matar, acto que eu possivelmente não cometeria, pois como enfermeiro, a minha arma era a seringa.

Um simpático velhinho perguntou-me se eu estava em Mampatá Forreá em princípios de Novembro de 1968, quando eles tentaram entrar à na tabanca. Era o Mauinde Baldé, se a memória não me falha.

Ao confirmar a minha presença nesse ataque, ele disse-me que a intenção era tentarem apanhar-nos à mão. Foi um dos que já estava dentro do arame farpado, mas teve de voltar para trás rapidamente, perante a nossa reacção.

Excerto do do meu Diário (2):

Mampatá, 3 de Novembro de 1968: O dia 3 de Novembro não será esquecido pelos 'Amarelos de Mampatá' pois tivemos de travar uma luta de vida ou de morte com o IN que aproveitou a hora do almoço em que os militares se afastaram do seu posto de defesa para buscar na cozinha alimentação, para tentar entrar em Mampatá. De algum modo eu fui o responsável pela situação criada, pois incentivei um sentinela durante a noite a mandar um tiro na direcção de uma vaca que estava entre as duas faixas de arame farpado e tocava neste, provocando o tilintar das garrafas que lá tínhamos colocado para não sermos surpreendidos pelo IN ao tentar entrar pela calada da noite cortando o arame. Esta minha atitude passou-se durante a minha hora de ronda e o sentinela assim fez pouco depois, aparecendo de manhã uma vaca com um buraco numa coxa. Claro que o proprietário o Régulo Alfero Aliu ( Alferes da Milícia) vendeu a vaca à tropa. Há mais de um mês que não comemos carne, porque os Africanos se recusam a vender qualquer animal. Assim foi fácil convencer o proprietário a vender a vaca ferida, mas ficou-nos caro. Praticamente todos os postos de sentinela ficaram abandonados à hora do almoço o que não é habitual, mas o estranho foi o turra saber exactamente o que se estava a passar e atacou. Quase todos os soldados tiveram de correr para as suas posições debaixo de fogo e durante quinze minutos a luta foi terrível com 'eles' junto ao arame com fogo cerrado. Chegámos a ter a sensação que estavam cá dentro o que não se verificou graças à nossa capacidade de resistência e por sorte também. Ao tentarem entrar pelo lado de Buba, o Silva Algarvio que não tinha vindo buscar a comida ao refeitório por estar doente, aguentou-os até chegarem reforços e obrigou-os a retirar. Aliás foi ele que deu o sinal. Ao ver um grupo de africanos com armas que não eram a velha Mauser a tentarem forçar a porta em rede de arame farpado, estranhou e abriu fogo, depois. . . foi, cantinas de comida pelo ar e umas loucas correrias para os abrigos de protecção.

Seguiu-se o 'chocolate' do costume. Os assaltantes recuaram para selva e o fogo continuou.
Onze tabancas [moranças] ficaram destruídas pelo fogo, pois utilizaram balas incendiárias e também destruiram o paiol. Fiquei assustado e desorientado porque, dada a intensidade do fogo e a estratégia adoptada pelo IN, contava ter muito que fazer com os feridos talvez mortos, atendendo a que ninguém contava com tal surpresa e os postos estavam desguarnecidos e sobretudo porque tinha pouco material de socorro ( apenas 2 sacos de soro). Ainda debaixo de fogo saí do abrigo onde me protegera e corri pela Tabanca à procura de feridos, junto dos abrigos subterrâneos onde se abrigara a população. Felizmente nada aconteceu, foi só fogo de vista susto e prejuízos materiais. Graças a Deus. Pergunto-me como que a população não foi atingida e as suas casas foram queimadas. Ataque combinado ? Notámos que o 'catequista' muçulmano saiu de manhã cedo para bolanha, o que é estranho pois costuma estar sempre na tabanca a ensinar os putos e só voltou muito depois do ataque. Temos de o trazer debaixo de olho, como disse o Alferes Belo depois de saber a sua ausência.

[O antigo guerrilheiro] não se lembrava das razões porque foram visitar-nos nesse dia. Já lá tinha ido uns dias antes, mas atacara do lado da fonte, estrada de Kumbdjá, como habitualmente faziam, ao princípio da noite

Seguiu-se um abraço de ermons, na alegria de que o passado foi esquecido. O importante agora é construir uma Guiné Bissau.

(ii) O COMANDANTE QUE NÃO QUER FALAR

- Então, comandante, aquele ataque a Buba!... Em Setembro de 1969, não correu bem !
- Não quero falar desse ataque. Não fui apanhado por muita sorte.

Conversa encerrada com o comandante Manecas, o homens dos mísseis Strela.

Relendo o meu Diário:

Empada, 16 de Outubro de 1969: Do pelotão que está em Buba chegam novidades. Há dias houve por lá um terrível ataque com tentativa de assalto. Atacaram do sítio habitual do lado do rio com 10 Canhões, enquanto do lado da pista fazia o desenvolvimento do assalto, procurando apanhar a tropa desprevenida. Segundo dizem os meus colegas eram mais de duzentos, a avançarem em arco para que, se as nossas forças saíssem, as envolverem. Felizmente estava emboscado um Pelotão que os detectou.

Parece que foi um tremendo fogachal, enquanto os Fuzas perseguiam os que atacaram do lado do rio que pretendiam reforçar as forças de assalto. Ao fazer-se o reconhecimento, foi encontrado um rádio, sinal de que o ataque foi bem comandado e o fogo controlado por sentinelas avançadas. Foram descobertas e desenterradas 180 granadas de canhão sem recuo. Foi também ouvido ruído de viaturas.


Quando os Fuzas voltaram ao quartel, foram seguidos pelo IN que os atacou muito perto de Buba. Assim caíram entre dois fogos, o do IN e o de Buba que reagiu a um possível ataque sem saber que o fogo era destinado ao grupo de fuzas.
No dia anterior tinha havido uma coluna a Nhala ,onde apenas foi encontrada uma A/P com dispositivo anti-levantamento eléctrico que felizmente não funcionou por ter as pilhas gastas. Nesta minha havia uma mensagem escrita; Esta é para Alferes Gonçalves. Infelizmente este furriel e não alferes, já está em Lisboa devido a um estilhaço que apanhou noutro ataque a Buba.

Insisto:
- Mas, comandante, vocês queriam mesmo entrar. O quartel e povoação foi cercado do lado da pista, como já o tinham feito em uns meses antes.
- Essa missão competia à infantaria. Eu estava no posto de controlo da artilharia. Tudo estava a correr mal. O levantamento do local tinha sido feito com a maré cheia e atacamos com maré vasa. Não foi possível colocar as armas nos locais previstos. Por outro lado a terra estava mole, os canhões enterraram-se e as granadas caíram quase todas no Rio. Preocupado com a orientação do fogo, não reparei e não fui apanhado por pouco. Foi um dia para esquecer.

E mais não disse o comandante.

Zé Teixeira (2)

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 21 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2669: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (1): Desta vez fui voluntário e estou em paz comigo próprio

(2) Recorde-se que José Teixeira foi 1.º Cabo Enfermeiro, na CCAÇ 2381( Buba, Quebo, Mampatá e Empada ,1968/70). E deixou-nos um notável documento, escrito, com as notas do seu diário, já publicadas na 1ª Série do nosso blogue: vd. poste de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi.

Sem comentários: