sexta-feira, 28 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cananime > Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Um grupo de participantes do Simpósio Internacional de Guileje (1 a 7 de Março de 2008) atravessam, de canoa motorizada, o Rio Cacine, entre Cananime e Cacine... De cima para baixo: o barqueiro, ao entardecer; o José Carlos Marques, jornalista do Correio da Manhã, em primeiro plano, do lado esquerdo; a discretíssima Catarina Santos, da Fundação Mário Soares, com a sua inseparável máquina fotográfica...

Fotos: ©
Luís Graça (2008). Direitos reservados.



1. Mais poemas do dia, do José Manuel Lopes, da Quinta da Graça, no Douro, o José Manuel, muito simplesmente (como era conhecido em Mampatá)... Poemas de um imenso poemário, recebidos, dia a dia, ao longo de uma quinzena, de 16 a 28 de Março de 2008. Foram escritos na Guiné, um por dia.

Por detrás da máscara do José Manuel (que eu não conheço pessoalmente, nem por fotografia, só por voz e por mail), que foi Fur Mil, Op Esp, CART 6250 (Mampatá, 1972/74), há uma voz muito original, pessoal, uma surpreendente revelação da escrita poética sobre a guerra colonial na Guiné... Até agora guardada o baú do sótão...

Muitos dos poemas (assinados por josema) que temos recebido, por e-mail, todos os dias, não têm título. E alguns não estão datados. Vão-se publicando (1), ao sabor da espuma dos dias, e das remessas do poeta, e dos humores do(s) editor(es)... Que já conquistou leitores fiéis aqui, na nossa Tabanca Grande... Eu, o Torcato Mendonça e, seguramente, muitos outros camaradas... Pode morder, que esta poesia é para morder, para comer, para trincar.... (LG).


Calor, cansaço, suor
saudades de tudo
e de um rio...
mas podia ser pior
pois há ali o Corubal
com sombras e água boa
nem tudo é mau afinal
não é o Douro, eu sei
nem o Tejo de Lisboa
são outros os horizontes
falta o xisto e o granito
as encostas e os montes
mas diga-se na verdade
há o Carvalho, há o Rosa
há um hino à amizade
há o Gomes e o Vieira
a sonhar com a Madeira
há o Farinha e o Polónia
gestos e solidariedade
há o Esteves e o Pinheiro
amigos e sinceridade
há o Nina e até amor
também sofrimento e dor
há o desejo de voltar
e um apelo à liberdade.

Josema
Mampatá 1974


Ouve-se um violão
numa noite de luar
tocado pelo Gastão
p'ra algo comemorar
cantigas de Zeca Afonso
de raíz popular
põem magia no ar
mas eis
outro som a chegar
mais grave e persistente
é Guiledje a embrulhar
é a guerra noutra frente
até que o ataque acabe
a festa é interrompida
e recomeça num brinde
à vida da nossa gente.

s/d


As brincadeiras loucas
acabam por ter sentido
se as alegrias são poucas
neste cantinho perdido

já vi tourear uma cabra
entre os arames farpados
e outros ao beber água
ir pelos ares aos bocados

desde o carreiro de Uane
à estrada para Nhacubá
todo o cuidado é pouco
ninguém quer ficar por cá

chegam do patrulhamento
cobertos de pó a suar
anseiam pelo momento
de se refrescar no bar.

Mampatá 1973
josema


Guernica!
pintura
visão, mensagem, recado?
para quem e porquê?
Pearl Harbour, Hiroshima
Londres, Leninegrado
e tantas mais
Vietnam, napalm
e o mundo não reage
se espera que acalme?
se esquece Nabuangongo
Guidage, Guiledje
e as minas de Mueda
dão graças à sua sorte
os regressados
dos corredores da morte
e agora
eis a bomba inteligente
mais importante
que gente
e o mundo estúpido
consente!

s/d


Quantas batalhas e guerras
geradas pela ambição?
quantos pior que feras
mataram o seu irmão?
sem nunca se aperceberem
das causas e da razão
mortes em troca de quê?
a que preço e porquê?
a resposta está no ganho
no lucro que é tamanho.

s/d


Ao menino do papá
"É mais fácil entrar um camelo no cu duma agulha, que
um rico no reino dos céus"


Metam-lhe a agulha no cu
para ver
se ele acorda
não vá morrer de repente
e venha culpar a gente
do encontro
com belzebu.

s/d


O calor húmido nos envolve
abraça-nos a escuridão
e a noite se faz dia
c’o ribombar do trovão
cai a água em catadupa
numa suave carícia
fecho os olhos
que delícia
até sinto um arrepio
sinto-me bem afinal
até chego a sentir frio
e penso que é Natal...

Guiné 1972
Josema


Neste imenso sofrer
pensar Nele ajuda
mas Ele parece não ouvir
então solta-se a raiva
incham as veias do pescoço
outro homem nasce
e cai-se dentro do fosso.

josema
Guiné 1972


Um ruido vem do céu
e há cabeças no ar
hoje é dia de correio
há novas para chegar
faz-se a distribuição
com chamada frente ao bar
para o Santos nada veio
será que vai desmaiar?
p'ró Zé Manel veio a Bola
com as novas do Benfica
p’ró Pinheiro uma encomenda
e alguém lhe manda uma dica
fazendo-se para a merenda
sim de correio foi o dia
não pode haver melhor prenda
é altura de alegria
retiram-se os felizardos
relêem a mesma carta
até afogar a saudade.

Mampatá 1972
josema


Quero irmas não sei onde
tudo
me parece um delírio
sem sentido nem razão
neste mundo desumano
quero fugir
mas não posso
prende-me
o sentir-me solidário
à união dos Unidos (*)
prende-me
o cheiro a mosto
prende-me
o calor de Agosto
prende-me
um regresso ao Douro
prende-me
uma família que espera
por tudo isso
não posso partir.

Bolama 1972
Josema

(*) Cart 6250, Os Unidos
________

Nota de L.G.


(1) Vd. postes anteriores:

27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

3 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2608: Poemário do José Manuel (1): Salancaur, 1973: Pior que o inimigo é a rotina...

9 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2619: Poemário do José Manuel (2): Que anjo me protegeu ? E o teu, adormeceu ?

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2630: Poemário do José Manuel (3): Pica na mão à procura delas..., tac, tac, tac, tac, tac, TOC!!!

19 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2665: Poemário do José Manuel (4): No carreiro de Uane... todos os sentidos / são poucos / escaparão com vida ? / não ficarão loucos ?

1 comentário:

Anónimo disse...

já passa da meia noite passo uma vista de olhos final pelo blogue e escrevo porque o LG põe lá poesia...e leio devagar devagarinho... isso mastigando sentindo...e sei que me deixa melhor e que amanhã volto logo ao abrir do blogue a reler...e penso que devia haver poesia junta aqui neste espaço onde se contam tantas vivências de dor...em letras seguidas sofridas sentidas de prosa e como sabe bem de quando em vez leres a dor e o amor transcrita em poema...em forma diferente a valorizar tanto relato...e agradeço ao Jose Manuel os poemas...e desejo um dia ver estes poemas juntos... como gostava de ver a prosa do Idálio....e páro... Bom f/semana TM