sábado, 29 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2698: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (3): O Abdulai Djaló

Foto 1> Mampatá 2008> A mãe da Maimuna, a minha bebé


Foto 2> Mampatá 2008> A Djubai, sempre alegre e bem disposta


Foto 3> Mampatá 1968> A Djuvai de olho zarolho, mais bonita agora do que em jovem. Como ela se lembrava de mim!


Foto 4> Mampatá 2008> A Adama, mãe do bebé que livrei do paludismo


Foto 5> Mampatá 2008> A família Baldé


Foto 6> Mampatá 2008> Os miudos de Mampatá


Foto 7> Mampatá 2008> A Farmara (ou Fatma) minha lavandera


Foto 8> Mampatá 2008> A Fatma com as cunhadas (mulheres do filho do Aliu Baldé)

Fotos: © José Teixeira (2008). Direitos reservados.


Algumas notas soltas, mas sentidas (1)

(i) O Abdulai Djaló

Ainda não eram sete da matina quando o telefone tocou. Hora serôdia de uma segunda-feira de Páscoa para acordar, quem após muitos anos de labuta, se entregou ao descanso da merecida reforma.

Alô - sou o Abdulai da Guiné ! Quer falar cum sinhor Tissera.

Qual Abdulai seria? O que conheci em Buba? O de Chamarra ? O Abdulai Djaló qui firma na Catió e todas as semanas aparecia, em tempos idos, que muitos dos leitores recordarão, no programa de discos pedidos da emissora oficial da Guiné a pedir a canção Deixa o meu cabelo em paz, para dedicar à sua bajuda, não era com certeza.

Era o Abdulai Djaló meu amigo de Mampatá Forreá, pequena tabanca perto de Quebo, rodeada de guerra por todos os lados, que durante os seis meses que por lá passei, viveu uma paz relativa, pois que apenas sofreu seis ataques, quando Balana, Gandembel, Guileje, Gadamael, Cacine e outros, tinham festival quase diário.

O Abdulai que há dias procurei na sua morança, mas não encontrei.

O Abdulai que após a Independência se ausentou para o Senegal e por lá viveu longos anos, por amor à pele e voltou há alguns anos. Em 2005 ninguém sabia dele.

O Abdulai das longas conversas nocturnas.

Tudo começou quando já noite me recolhia ao abrigo para me entregar nos braços de Morfeu. Uma voz chamou: - Tissera, vem cá!

Era o Abdulai. Estava deitado na enxerga ao lado da esposa. Recém-casados e sem filhos, queriam kunversa cum Tissera. Queriam saber coisas da Metrópole. Difícil foi explicar-lhe que vivia num terceiro andar. Que havia casas com dez e vinte andares.

Como se seguravam? Como se subia lá para cima? Elevadores ? Eram coisas de branco maluco.
E um comboio? Muitas GMC atreladas umas às outras, mas só uma tinha motor e com rodas de ferro!

Na segunda noite estavam novamente à minha espera. Seguiram-se muitas noites di kunversa.

Um dia convidou-me a deitar na cama. Eu, a mulher e ele, ali ficávamos até vir o sono, conversando.

Há dias passei por Mampatá. Abraços, beijos e algumas lágrimas de comoção. A mulher estava lá, mas o Abdulai, esse tinha ido a Bissau. Deu para matar saudades e deixar um abraço.

Agora telefonou para pidir discurpa, dar um abraço e agradecer a minha visita.

Obrigado Abdulai. Até sempre.


(ii) - Mampatá Forreá, terra de gente querida

É a tabanca da Guiné-Bissau eleita pelo meu coração. Nos meses de convivência com as sua população aprendi muita coisa que me foi útil pela vida fora, sobretudo a forma de acolher um forasteiro, a solidariedade de quem vivia como se fossem ermons.

Os usos e costumes do povo Fula. Sentia-me útil e realizado no meio escaldante de uma guerra traiçoeira em que sobrevivia quem conseguisse atirar primeiro e acertar no inimigo, como em todas as guerras.

Voltei lá em tempos de paz. Recebi abraços e beijos, recordei vivências, momentos hilariantes, momentos tristes, momentos de angústia e sofrimento. Palmilhei os mesmos trilhos (continua a não ter ruas alcatroadas, água canalizada e saneamento). Entrei nas mesmas moranças. Encontrei a mesma simpatia nas pessoas. Brinquei com outras crianças.

Pude reencontrar amigos. A Farmara, minha lavandera, continua linda e com a alegria de sempre. O Braima, o Issa, a Answar, mãe da minha bebé, que não consegui ver, agora que já mulher, casou e foi viver para Kumbijá.

A Ádama, mãe da bebé que salvei da morte e passou a ser por opção da mãe, a minha mudjer. De manhã cedo lá vinha ela no colo da mãe trazer água fresquinha ou bananas.
- Mudjer de bó vem parte mantenhas e traz banana pra ti.

À noite lá estava ela na morança à espera que o fermero passasse para partir mantenhas antes de adormecer.

(iii) - Relendo o meu “Diário” > Novembro 1968 / Mampatá /1

... Fui procurado pela irmã mais velha da Fámara Baldé. Trazia-me a sua filha com oito meses que estava doente. Tinha paludismo e estava a entrar na fase crónica, de que quase todos os adultos de raça africana sofrem, os que conseguem escapar na sua fase mais aguda.

A criança apresentava-se muito magra, com 42 graus de temperatura, diarreia e vomitava tudo o que mamava, nem forças tinha para chorar. Acabava de chegar do Hospital de Bissau, segundo me disse a mãe a chorar, sem esperança.

Todos os dias de manhã tinha sua visita. - Fermero parti-me mézinho para minina, na tem febre e bariga ramassa

Que fazer? Eu que apenas tinha aprendido a tratar feridos da guerra!

Estes poucos meses de Guiné ensinaram-me a lutar contra o paludismo nos meus colegas e nos adultos africanos com bons resultados, mas nunca tinha deparado com uma situação tão delicada.

Pedi-lhe para voltar mais tarde que ia pensar o que fazer para salvar a bébé.

Para combater o paludismo nos adultos servia-me de um anti-palúdico injectável misturado com outro injectável para prever a reação negativa do coração. Então pensei que injectando na bébé umas milésimas destes dois produtos talvez salvasse a criança.

Ontem assim fiz, com todo o cuidado, no posto de socorros ao ar livre, no coberto da casa da Answar.
A reacção só se fez sentir cerca de um quarto de hora depois com um pulsar acelarado do coração e um avermelhamento da face.
Depois a acelaração aumentou, os olhos dilataram-se e a menina ficou estática por duas ou três horas.
Que momentos de ansiedade para mim e para aquela mãe que me confiou a sua filha. Esta chorava e dizia: - Tu mataste minina.
Eu pedia-lhe para ter calma e apelava para todos os Santos. Por fim a acelaração do coração começou a baixar e temperatura registou 39 graus. Estava ganha a vida da criança. Abraçamo-nos a chorar um ao outro e a mãe ofereceu-me a menina para minha mulher quando fosse grande.

Ao fim do dia deixei-a levar a menina para a tabanca e chorei sozinho de alegria.

Hoje voltou para me dizer que a minina ká na tem xoro já não vomitou a mamada.
A recuperação foi de cerca de oito dias.

Daí em diante, todos os dias a mãe trazia-me a menina. - Tua mudjer vem parte mantanhas (cumprimentar).

Trazia-me água fresca, numa cabaça, que ia buscar à bolanha a uma nascente de que se servia também o IN. (Que riscos por minha causa).

Trazia-me cachos de bananas e eu tinha de todas as noites ao passar para o meu abrigo ir parte mantanhas à minha mulher. Se não o fizesse, a mãe chamava: - Fermero tu não vens ver tua mudjer e parte mantanhas a ela !"

Dizia-me muitas vezes que quando eu viesse para a Metrópole tinha de trazer a minha mudjer.

Assim foi até sair de Mampatá. Tornei-me um visitante da família Baldé: Fámara, Binta, Auá, e Ádama e, da Answar a mãe da Maimuna...

A Djubai de olho zarolho, mais bonita agora do que em jovem: - Tissera! Mama garandi. Mama piquena, - dizia ela a rir-se enquanto apalpava com a sua mão os seios, hoje escondidos e talvez mais disformes do que eram na altura, recordando o que eu, atrevido, por brincadeira lhe fazia. Se o leitor apreciar as fotografias anexas entenderá melhor esta linguagem, que ela recordou com inaudito prazer e me fez reviver tempos tão belos, quanto perigosos da minha juventude.

A mudjer, ainda viva, do falecido régulo Aliu Baldé, alferes da milícia morto em combate em 1971.

O seu filho, talvez um dos miúdos que no meu tempo de estadia se pinha à porta da cozinha na esperança de “agarrar” uns restitos de comida, a quem agradeço a forma carinhosa e dedicada, como soube ser meu cicerone, nesta aventura.

A famíla da Djovo Ansato, ausente em Bissau, que se juntou toda para me receber.

(iv) - Do meu “diário” > Dezembro,1968 / Mampatá /29

... A bajuda Jobo Ansato ( Joaninha, como eu lhe chamo), começou há tempos a ter um comportamento diferente para comigo. Várias vezes me ofertou fruta, chama-me muitas vezes à noite para a porta do abrigo subterrâneo onde dorme, gosta de conversar comigo e fica ciumenta quando me vê a conversar com outras bajudas, com a Fámara, por exemplo, que é a jovem mais linda que eu vi em toda a minha vida.

Eu, embora notasse essa mudança não conseguia compreender a sua razão de ser. Ontem, como tantas outras vezes fui até à sua tabanca e a conversa virou para os feridos de guerra, as doenças da população e a acção dos enfermeiros e fiquei espantado ao ouvi-la dizer dizer: - No último taque di bandido eu ver Tixera ir por Tabanca, baixo di fogo perguntá tudo dgente si ká na tem firido. A mim nesse dia ficá manga di contente com Tixera. Tixera i amigo di Africano.

Para meu espanto verifico que foi a partir da data do último ataque que sofremos que se deu esta mudança no seu comportamento. Como uma simples acção no cumprimento do meu dever pode influir tanto na maneira de pensar e agir de uma pessoa!...

As crianças que se acotovelavam para me tocar. Os dedos das minhas mãos, não chegavam para tantas mãos.

Calou bem fundo aquele convite da Djuvai: - Tissera volta para cá. Esta casa é para ti!...

Um dia voltarei... de visita.

José Teixeira
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Nota dos editores

(1) Vd. último poste da série, de 23 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2676: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (2): Um abraço de ermons e (más) recordações do Comandante Manecas

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