segunda-feira, 31 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2706: Notas de leitura (10): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de Manuel Amaro Bernardo (Mário Beja Santos)


Artigo que o Mário Beja Santos nos enviou há quase quatro meses (já refilou e com toda a razão...), depois de ter lido o livro Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, Guiné, 1970/1980, de Manuel Amaro Bernardo. (vb).


Capa do livro. Editorial Prefácio, Lisboa, 2007.

A Ignomínia dos Comandos guineenses fuzilados
por Beja Santos

(i) Um relato descosido que não serve a História de dois países.

O coronel Manuel Amaro Bernardo, autor de vários livros onde se versam as nossas Forças Armadas, a descolonização, a guerra colonial e o período revolucionário que vivemos entre 1974 e 1975, afoitou-se agora a contar num trabalho que classifica “de natureza histórica”, a guerra da Guiné, o papel do marechal Spínola na evolução desses acontecimentos e o fuzilamento de Comandos guineenses que tinham servido nas tropas portuguesas (“Guerra, paz e fuzilamento dos guerreiros, Guiné, 1970-1980”, Prefácio, Lisboa 2007).
É raro encontrar um livro tão descosido, tão mal estruturado, ainda por cima contando com um acervo de depoimentos que podiam ter contribuído para iluminar e estabelecer um juízo fundamentado sobre um dos períodos mais conturbados da guerra que vivemos em África e as sequelas da transição para a independência. Importa exemplificar.
Ao encetar o relato com António de Spínola em 1968, na Guiné, colocando-o como o promotor de um projecto que parecia levar a prazo aquela terra martirizada a uma autonomia gradual e à reconciliação de todos os guineenses, referindo seguidamente, sem lógica sequencial para explicar o papel dos Comandos, a inviabilidade da solução militar, a invasão de Conakry, o assassinato de Amílcar Cabral e o esforço de guerra desenvolvido em 1973, tudo se afunda num mar de equívocos e contradições.
Como é que é possível lançar na ribalta Spínola, fazendo dele a grande esperança numa solução político-militar, sem descrever, pelo menos em termos gerais o que ele herdou, a ascensão e a consolidação do PAIGC dentro e fora do território da Guiné, e dar a conhecer a resposta das forças armadas portuguesas em 5 anos de sublevação?
Sim, que Guiné encontrou Spínola em 1968? Qual o sucesso de Cabral e os seus companheiros para mobilizar as populações? Porque é que se discute a contabilidade das populações dentro e fora de controlo quando hoje se sabe que uma grande parte das populações, por razões familiares, não podia radicalizar e viver num quadro de ruptura?
Há uma clara vontade do autor em transformar Spínola no protagonista maior, clarividente e imaculado, fazendo recair sobre Marcello Caetano a responsabilidade do desastre, por não ter encontrado uma decisão política adequada e oportuna.
Em termos de investigação histórica, compulsados os elementos disponíveis e sem perder de vista que se desconhecem ainda as propostas que Marcello Caetano terá mandado apresentar nas conversações secretas com o PAIGC que decorreram de 1973 para 1974, temos aqui um mar de equívocos e falácias, incompatíveis com quem se diz à procura do rigor e da objectividade.
Spínola, que não pode aparecer dissociado do que foi anteriormente a luta entre 1963 e 1968, procurou uma solução militar e uma reorganização das populações que levassem a um claríssimo apoio ao seu projecto Por uma Guiné melhor. É escusado especular se trabalhou com o rasgo necessário e teve do seu lado a sorte indispensável. Até se pode contraditar: abandonou posições militares que provocaram um vácuo catastrófico; promoveu operações dispendiosas e inúteis, como a Lança Afiada, que acabaram por motivar a capacidade de guerrilha; não sensibilizou Lisboa para a constituição precoce de forças armadas regionais, isto quando na Guiné já havia forças de milícias e de caçadores nativos e depois companhias de caçadores, que deviam ter sido naturalmente organizações de quadrícula a sofrer um largo impulso, gerando confiança aos naturais na sua própria defesa, dando a imagem que as forças especiais era a panaceia da guerra. Estas são algumas acusações que poderiam impender sobre a obra de Spínola, argumentação igualmente de valor discutível.
A reunião de Spínola com Senghor, em 1972, em que o governador da Guiné propõe uma autonomia a dez anos, tem que ser encarada como uma proposta que seria liminarmente rejeitada, isto quando o PAIGC já tinha conseguido acantonar as forças armadas portuguesas nos quartéis, reduzindo-lhes drasticamente o espaço de manobra. Acresce que o autor refere os acontecimentos de 1973 e 1974, quando a força aérea perdeu capacidade de actuação com a chegada dos mísseis terra-ar e o PAIGC passou a ter a total iniciativa entre o Norte e o Leste, em todo o espaço fronteiriço com a Guiné-Conakry. Ou seja, o PAIGC ganhara uma capacidade ofensiva indiscutível, as nossas forças podiam ir esporadicamente às suas bases e acampamentos, havia mortes e feridos, mas logo tudo ficava na mesma. A partir de 1973, a solução militar estava irremediavelmente perdida.
Depois, o autor descreve o nascimento do movimento dos capitães, temos a seguir a transição para a independência e chegamos mais tarde aos fuzilamentos dos Comandos africanos. Será que o rigor histórico não exigiria que se explicasse o aparecimento destas forças que surgem neste livro imprevistamente?
O autor recheia o seu relato de anexos com os fuzilados, refere a lei de justiça militar do PAIGC de 1973, os militares exilados no Senegal, somos obrigados a apanhar uma polémica entre o autor e o Dr. Almeida Santos, depois vem a laude a vários amigos do autor e até se fala do distúrbio pós-traumático do stress, e temos em metade do livro relatos de vários protagonistas, alguns deles retirados de livros, outros entrevistados pelo autor.
É raro fechar-se uma obra com o sentimento de decepção e de frustração, como se passou comigo.

(ii) Uma história da Guiné ainda por esclarecer


Posso admitir que o autor tenha pretendido chamar a atenção para um punhado de militares, alguns deles altamente condecorados, barbaramente fuzilados e muitos deles a aguardar justiça e o direito à memória. Se era essa a homenagem que pretendia, falhou redondamente. Não se tira da indignidade do esquecimento estes fuzilados sem um relato histórico apropriado, clarificador, sem cedências à emoção.

Como é que apareceram estes Comandos guineenses que começaram a ser formados a partir de Fevereiro de 1970? Quais as queixas demonstradas que sobre eles recaíram, dos tão propalados crimes que lhes foram atribuídos pelo PAIGC?
Durante a fase de transição para a independência, os representantes das forças armadas portuguesas tudo fizeram, ou não, para os dissuadir a partir, quando se sabia que seriam inevitáveis os confrontos, os ajustes e vinganças, as explosões de ódio? Mas, indo mais a atrás, agiu-se bem na formação das tropas africanas, e se não o que é que falhou para garantir confiança às populações autóctones, de 1963 a 1970? Só foram perseguidos Comandos, não foram perseguidos militares provenientes da infantaria ou da marinha?
Está hoje demonstrada alguma relação causa-efeito entre o golpe de Malam Sanhá e os Comandos africanos refugiados no Senegal com os fuzilamentos realizados em Novembro de 1978?
Os relatos históricos não se fazem juntando uns papéis atabalhoadamente, mesmo que o pretexto seja o descerramento de duas placas com os 53 Comandos fuzilados na Guiné. Afinal, foram centenas os fuzilados que este conjunto de papéis sob a forma de livro nada refere. Não se exalta o esforço dos Comandos esquecendo os outros.
Vamos confiar que um dia se escreverá um verdadeiro relato histórico sobre quem combateu, foi ludibriado e injustamente tratado. Os combatentes da Guiné merecem-no. Os militares que comigo combateram e morreram no pelotão de fuzilamento, viveram o cárcere ou exílio nessa Guiné têm direito à clara certidão da verdade.
__________

Notas de Vb: Arranjo do texto da responsabilidade do co-editor.

(1) Com a devida vénia ao Cor Amaro Bernardo, transcrevo abaixo uma parte do depoimento do Cor Florindo Morais:

Uma oferta demasiado tentadora
(......) Eis senão quando, em meados de Agosto, a notícia surge como uma bomba: o Comandante-Chefe oferece a pronto e desde já, quatro meses de vencimento, mais o subsídio de Natal a quem quiser passar à disponibilidade. Assim lá se foi a lista dos interessados em vir para a Metrópole, continuando no serviço militar (refere-se aqui à grande maioria dos Cmds Africanos, que antes desta oferta se tinham inscrito para virem para Portugal) ...Esgotaram-se em Bissau os frigoríficos, as ventoinhas e demais electrodomésticos, a par das motorizadas. Ainda tentei que percebessem o que estava em causa, mas em vão. Os oficiais declaravam querer permanecer na Guiné, que era a sua Terra, e ser seu dever continuar a lutar pelo seu Povo. (...)
O então Maj Cmd Florindo Morais foi nomeado para a Guiné, já depois de Abril de 1974, para render o também então Maj Raul Folques no comando do Bat Cmds Africano.
(2) Sobre este assunto, ver artigos de
30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2318: Notas de leitura (4): Na apresentação de Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné 1970/80 (Virgínio Briote)
28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2308: Notas de leitura (3): Guerra, Paz e Fuzilamento dos Guerreiros: Guiné, de Manuel Amaro Bernardo (Jorge Santos)
19 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P886: Terceiro e último grupo de ex-combatentes fuzilados (João Parreira)
31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXII: Mais ex-combatentes fuzilados a seguir à independência (João Parreira)
27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (6) (João Parreira)
23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)
6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

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