sábado, 19 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2775: Diários de um Comando: Gampará (Ago-Dez 1972) (A. Mendes) (3): Nem só de guerra vive um militar



Guiné > Zona Leste > COP7 > Margem esquerda do RCorubal > Gampará > 1972 > "Nunca como aqui rapei fome" (AM)...

Guiné > Zona Leste > COP7 > Margem esquerda do RCorubal > Gampará > 1972 > "Em Gampará com o meu grande amigo Furriel Cmd Ludgero dos Santos Sequeira, a quem mais tarde na picada do Cufeu (outra vez) numa mina iria ficar às portas da morte, ficando quase cego até aos dias de hoje. Continuamos grande amigos.Um abraço para ti, Sequeira!" (AM).

Foto: ©
Amilcar Mendes (2007). Direitos reservados.

1. Texto do Amílcar Mendes, ex-1º Cabo Comando, 38ª CCmds (Guiné, 1972/74), cumprindo o seu compromisso connosco (1) de dar continuidades às suas crónicas de Gampará (2).

Diários de um Comando > Gampará (Setembro - Outubro de 1972) > Nem só de guerra vive um militar (3)

por Amílcar Mendes

(Subtítulos: L.G.)

(i) A cerveja de marca Mijo

Em Gampará não existe gerador. As noites são mesmo noite e, tirando umas chamas improvisadas nas garrafas de Cristal, nada se vê. No arame farpado duplo, os sentinelas esfregam os olhos para tentar distinguir vultos junto ao arame farpado. Pendem do arame centenas de garrafas de cerveja vazias que são o último grito em tecnologia de alarme.Nesta terra do nada, nada há.Temos uns bidões vazios, fizemos umas caleiras em chapa para apanhar a água da chuva e é dessa água que enchemos os cantis e nos lavamos.

A população beafada, embora seja muito hospitaleira, é muito ciosa das suas coisas e não abre mão dos animais, somos então obrigados a ir ao desenrasca até porque já atingimos a saturação dos petiscos de Gampará: cubos de marmelada com bianda, bacalhau liofilizado com bianda, chouriço intragável com bianda e tudo acompanhado por cerveja com temperatura ao nível do mijo... Dizia-se então em Gampará quando os hélis vinham trazer mantimentos, que vinham entregar cerveja marca Mijo. Assim se vive em Gampará!

(ii) Feliz Natal e um Ano Novo cheio de 'propriedades'...

Todas as noites e sempre à mesma hora, na ausência de música, ficamos entretidos a tentar contar as morteiradas que brindam o destacamento do Xime! Ficamos à espera quando acaba lá e os tubos sejam virados para o nosso lado... Nunca na Guiné atingi um estado de magreza igual. Nunca na Guiné as condições de vida foram tão miseráveis.

Entramos no mês de Outubro e vei-o cá uma equipa da Emissora Nacional para gravar as mensagens de Natal para a nossa família. Não foi fácil .Todos íamos para um canto repetir vezes sem conta: Queridos Pais, irmão e irmãs e restante familia, dezejamos um Natal feliz e um Ano cheio de 'propriedades'!... Esta ultima palavra era emendada mil vezes, que isto com os nervos e emoção não é fácil !

E como a ladainha era igual para todos, só muito depois é que muitos se lembravam que só tinham irmão ou irmãs, mas isso não era probolema. Estavam presentes as Senhoras do Movimento Nacional Feminino. Animavam-nos porque a meio da mensagem muitos desatavam a chorar. Uma das Senhoras era de uma simpatia sem igual.(Só anos mais tarde soube que era a Cilinha!) .

(iii) O dia mais feliz: quando chegava a LDG com as 'meninas' de Bissau...



Em Gampará um dia verdadeiramente feliz para os militares era quando chegava a LDG e vinham as meninas de Bissau trazidas pelo Patrão, e que tinham por missão aliviar o stress do pessoal.

As meninas chegavam, instalavam-se numa tabanca, o pessoal passava pelo posto de enfermagem (?), recebia o sabão asséptico, o tubo da pomada para meter pelo coiso acima a seguir ao acto... Entretanto formava-se a bicha e trocavam-se larachas para matar o tempo, do tipo Quando chegar a minha vez com tanta gente, 'aquilo' parece o arco da Rua Augusto!.

A seguir era rezar para que o esquenta não aparecesse...


(iv) O nosso regresso a Bissau


19 de Outubro de 1972. Soubemos hoje que metade da 38ª CCmds regressa amanhã e outra metade irá permanecer aqui a fim de dar o treino operacional à CCAÇ 4142 até 3 de Novembro de 1972. O meu Grupo de Combate será um dos que regressa.

Gampará, com todas as privações, teve o mérito de reforçar ainda mais os laços de amizade e confiança da 38ª CCmds. Aprendemos na privação a dar valor às pequenas coisas que a vida nos dá. A amizade entre os praças, sargentos e oficiais é na 38ª CCmds visivél a quem observa a Companhia de fora. Essa amizade irá refletir-se em diversas ocasiões e irá levar a Companhia a muitos sussecos na actividade operacional.

20 de Outubro de 1972. Pela MSG imediata 3831/c , a 38ª CCmds regressa a Bissau, donde segue para Mansoa para um peróodo de descanço, ficando apenas a realizar segurança imediata ao Aquartelamto. (Esse período de descanso só durou três dias, logo aseguir correram conosco para Teixeira Pinto, de tão má memória para a 38ª CCmds)

Amílcar Mendes
1º Cabo Comando
38ª CCmds

Guiné 72-74


PS - Com um abraço para ti, Luís, e todos os tertulianos e continuarei aqui.
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 10 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2742: Blogoterapia (46): Promessa de comando: vou retomar as minhas crónicas de guerra (Amílcar Mendes, 38ª CCmds)

(2) Vd. postes anteriores:

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1930: Diários de um Comando: Gampará (Ago-Dez 1972) (A. Mendes) (1): Um sítio desolador

(...) "Gampará à vista! Desolador! O quartel é só tabancas que a tropa divide com a POP, arame farpado a toda a volta e uma dúzia de torreões com sentinelas. É aqui que iremos viver até quando calhe" (...).

16 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1956: Diários de um Comando: Gampará (Ago-Dez 1972) (A. Mendes) (2): Passa-se fome, muita fome

(...) "Tivemos problemas sérios com a população. O 1º cabo Simão (que meses mais tarde viria a morrer na estrada Teixeira Pinto - Cacheu) roubou um porco que se matou e assou no forno do padeiro para melhorar um pouco a diete do pessoal. Só que, e sabe-se lá como, o Homem Grande da tabanca descobriu e foi-se queixar ao comandante. Fomos obrigados a pagar o porco e de castigo fomos p'rá mata" (...).

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