domingo, 25 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2882: Estórias de Juvenal Amado (9): Há dias de sorte

Foto 1> Galomaro, vista a partir do campo de futebol


Foto 2> Galomaro> Morteiro 81 e traseira da Messe de Oficiais e Sargentos


Foto 3> Galomaro> Cantina> Ivo, Confraria de costas, Juvenal, Sarg Silva, Aljustrel e de barbas o que veio a falecer pouco de depois do regresso.


Foto 4> Galomaro> Abrigo da MG depois do ataque

Fotos e legendas: Juvenal Amado (2008). Direitos reservados


Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor,
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro,
1972/74

1. Estamos a publicar mais uma estória do Juvenal Amado, esta enviada em 22 de Março de 2008.





Há dias de sorte

Galomaro, Zona Leste da Guiné, 1 de Dezembro de 1972 .

O radiotelegrafista José Confraria, à minha frente, acabava de reprovar, franzindo o sobrolho por trás dos óculos, uma jogada minha, naquela partida de sueca que nos opunha ao Glória e ao Costa, dois Sapadores da nossa Companhia.

Faltam talvez 15 minutos para as 22 horas, hora do fecho da cantina.

A cantina não é mais que um telheiro em chapa de zinco, com duas paredes, uma onde está o balcão com as arcas frigorificas a petróleo e a outra em frente, que tapa a vista para as palhotas do povoado de Galomaro. É pois um sítio, que tem uma abertura tipo esplanada, que dá para o arame farpado do lado do campo de futebol e, do outro lado para o Restaurante da Morte Lenta (1).

A partida era, como sempre, muito animada com muitos ralhos da parte dos nossos opositores, que era bem de ver estavam a perder e a caminho de terem que pagar as cervejas, correspondentes aos dez traços marcados a lápis, num bocado de papel.

Escusado será dizer que pagar as cervejas era mesmo assim muito menos doloroso que ouvir as piadas de quem ganhou. Quem ganhava eram sempre uns leiteirosos. As desforras ficavam logo ali prometidas.

O som dos geradores que forneciam a sempre precária iluminação, ouviam-se sem descanso. Os holofotes iluminavam o Quartel em redor, uns cinquenta metros para além do arame farpado.

O Destacamento que servia de casa aos cento e tal homens, que compunham a CCS, era um rectângulo que tinha a nascente o campo de futebol, a Norte a pista de terra batida onde podiam aterrar avionetas ou helis e, a Sul e a Poente éramos rodeados pela povoação.

Foi pois nessa luz pouco precisa, que o Gasolinas (2) viu um estranho movimento de um rebanho de ovelhas e carneiros que, de forma muito ordeira, se estendiam numa linha paralela ao campo de futebol, partindo do lado direito, onde estava o posto de sentinela à frente da oficina da ferrugem, para a esquerda na direcção da bem visível sala da cantina.

O Lourenço periquito (3) que estava de serviço ao mesmo posto, embora fora da sua hora de sentinela, começou a dizer ao atarantado Gasolinas que eram turras, e que fizesse fogo.

Mas o medo do que o Comandante podia fazer a quem desse tiros sem razão, era ainda maior e o nosso camarada recusou.

O Lourenço vai ao nosso abrigo, agarra na G3 e corre para o posto, onde tinha presenciado os tais movimentos suspeitos.

Acabo de bater uma carta e nisto, uma rajada de metralhadora soa agressiva. Fiquei tenso, com o coração aos pulos, podia ser engano e alguém ter disparado sem querer. Mas outra rajada e já estou a correr na direcção do meu abrigo, entro e está o Caramba com os seus quase dois metros, sentado no beliche a rir e a contar entre as gargalhadas, que tinha sido o periquito a dar os tiros e que agora estava lixado com o Comandante (4):
- Logo lhe ia passar a vontade de rir.

Não me convence, estou a pôr as cartucheiras e a pegar na minha G3, pois a minha experiência de andanças pelas companhias operacionais, diz-me que ali há coisa da grossa.

Ouve-se a terceira rajada. Os guerrilheiros após a terceira rajada, sentem que foram mesmo descobertos e é nesse momento, que iniciam o ataque. Neste lapso de tempo ainda se começa a ouvir o tenente Raposo (5) a gritar:
- Quem foi a besta que deu os tir….

Já não acaba a frase, pois as explosões e o matraquear das automáticas abafam a sua voz.

O barulho é ensurdecedor, olho pela fresta do abrigo que está virada para a pista de aviação, meto a espingarda e disparo uma rajada, no acto continuo uma bola de fogo vem na minha direcção, o Caramba puxa-me para baixo, o RPG explode a poucos centímetros de onde eu tinha feito os disparos, já não ouço nada, estou meio cego pelos clarões, olho para a porta e o que vejo são autênticas cortinas de tracejantes, mas é necessário sair para a vala e responder ao fogo do inimigo, não sabemos se já há reacção da nossa parte ou não, aqui está a funcionar o nosso instinto de sobrevivência.

O Dias (6) está à minha frente e quando ele salta para fora, eu salto de seguida e mergulho de cabeça na trincheira, corremos agachados e espezinho o Borges cozinheiro, que está só em cuecas no fundo da vala.

O cheiro dos explosivos sufoca-nos, disparamos sem cessar mas sem vermos nenhum alvo, a não ser os clarões dos disparos. Dentro da minha cabeça, parece que alguém bate sem parar tampas de panelas.

Os RPG explodem contra os telhados, abrigos e à falta de encontrarem onde bater, explodem no ar, mandando uma chuva de estilhaços para baixo.

Os apontadores do morteiro 81 mm que está entre o meu abrigo e a messe dos oficiais, fazem finalmente o primeiro disparo, na atrapalhação penso que não tiraram a cavilha do projéctil, mas tiraram dos outros, a provar isso foi o efeito devastador nas árvores que foram atingidas.

Do outro lado do quartel o maqueiro Russo tinha entrado no abrigo do morteiro 60 mm, disparou a primeira granada. Quando constatou que a mesma tinha ultrapassado o quartel e rebentado na orla da mata, disparou sem parar e talvez tenha sido a reacção dele, que tenha posto em fuga o inimigo.

A nossa posição tinha sido atingida pelo o menos, com cinco impactos directos de RPG, o abrigo da metralhadora MG estava destruído, eles vinham bem informados das nossas defesas e posições.

O som das explosões tinha abrandado, só se ouviam as nossa rajadas, as saídas de morteiro e o som cavo do rebentamento no chão das suas granadas.

Nisto um Jeep com os faróis acesos na direcção da mata, avança pela pista de aviação com o Comandante aos gritos para que parássemos com os tiros, pois o inimigo já tinha retirado. Felizmente não se tinha enganado.

No silêncio e na escuridão olhei para os meus camaradas que estavam na vala, o Caramba, Dias, Piriquito, Ermesinde, todos pensávamos nos mortos que de certo tínhamos a lamentar.

O que se tinha passado tinha sido de uma tal violência, que não podíamos esperar outra coisa. O Pel Rec tinha saído em patrulha nocturna. Como normalmente um pelotão era largado ainda de dia, numa zona a seis ou sete quilómetros do Quartel e depois progredia até um ponto pré determinado onde se emboscava.

Fazia parte da segurança, mas no caso envolveu riscos, pois os guerrilheiros meteram-se entre o quartel e o Pelotão no mato e o batimento de zona, podia atingir esses nossos camaradas.

Só pensava no que lhes teria acontecido. Na minha confusa cabeça, fervilhava toda a espécie de cenários de catástrofe. O que teria acontecido aos meus colegas de jogo? Passado o combate não consigo deixar de tremer.

A pouco e pouco, tudo volta ao normal na anormalidade que é a nossa situação. Passaram horas e alguém vem informar, que o Pelotão de patrulha está perto do aquartelamento e que, é preciso não os confundir com o inimigo e disparar sobre eles. Temos o nervos em franja e tudo pode acontecer.

Com o passar das horas, também fico a saber que afinal não tinha morrido ninguém e nem feridos havia, para além de escoriações motivadas pelas aterragens no chão, havendo contudo alguns camaradas atingidos com pequenos estilhaços.

Quando finalmente amanheceu, o cenário era de alguma destruição a nível dos telhados. Havia grandes pedaços de metralha espalhados por todo o lado. O meu abrigo tinha vários buracos de granada mas só uma tinha entrado ao nível do tecto, cortando como se cartão fosse, as barras de ferro que o sustinham.

Mortes, só as galinhas do periquito, pois a capoeira desapareceu por completo.

Hoje, quando nos encontramos nos almoços ou noutras ocasiões, vêm sempre à baila estes ou aqueles episódios sobre a nossa permanência em terras da Guiné, mas nunca me esqueço do puxão que o Caramba me deu, nem da coragem do Lourenço periquito, que evitou com o seu acto naquele 1.º de Dezembro, que os nomes de muitos de nós figurassem hoje na listagem de mortos de guerra. Os guerrilheiros quando se acabassem de posicionar, fariam um autêntico tiro ao alvo com os camaradas, que se encontravam na dita cantina.

Anotações do autor:

(1) - Refeitório dos praças.
(2) - Gasolinas, alcunha dada ao nosso camarada que era responsável pelos combustíveis. Infelizmente veio a falecer já depois do nosso regresso em acidente de viação.
(3) - Periquito, alcunha dada aos soldados maçaricos, da qual o Lourenço nunca se livrou, embora ele só tivesse chegado à nossa companhia, após quatro meses depois de nós.
(4) - O Tenente-Coronel José Maria Castro e Lemos era o Comandante de Batalhão.
No dia da nossa chegada a Lisboa após alguma espera, tomou a atitude largamente ovacionada por nós, de nos mandar desembarcar do Niassa, uma vez que por parte das autoridades do regime, nenhuma comissão de boas vindas ao Batalhão se apresentou como era da praxe.
(5) - Tenente Raposo comandante de companhia.
(6) - Dias, Soldado do Pel Rec, Pelotão de Reconhecimento e Informação. que veio a falecer, segundo me disseram, debaixo de um tractor na sua terra natal.

Juvenal Amado
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Vd. último poste da série de 19 de Abril de 2008> Guiné 63/74 - P2779: Estórias do Juvenal Amado (8): O último Natal em Galomaro (Juvenal Amado)

1 comentário:

Luís Dias disse...

Caro Juvenal Amado

Tenho lido as suas "estórias" contadas no blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné e tenho-as achado muito interessante e bem escritas, por tal os meus sinceros parabéns.
Aquilo que eu me refiro são meros detalhes porque a essência está lá. Por exemplo no caso da mina A/C, que rebentou com o Unimog da CCS 416, tenho fotos do local do rebentamento, ainda com a viatura lé no sítio e que em breve publicarei no blogue da CCAÇ3491 e consultei também a história da unidade e lá está que a mina rebentou na Estrada Galomaro-Dulombi (faziam a picagem para o Dulombi quando se deu o incidente), a seguir a Mali Bula. Quanto ao morteiro, sei que foi um auxiliar de enfermagem que atirou com o morteiro e se junto à enfermaria o morteiro qua ali estava era o de 60mm, então foi com esse, ele até foi louvado por tal facto. Não tenho também dúvidas de que se não fosse os tiros das sentinelas, o ataque poderia ter produzido efeitos diferentes.
Eu apenas tentei dar-te alguns detalhes que penso saber sobre as tuas ´"estórias", mas a verdade de elas terem acontecido está lá.
Outro exemplo, referes no teu post, sobre se a guerra estava militarmente perdida que uma "Chaimite" foi atingida na estrada, Bafatá-Nova Lamego e eu acho que foi no troço Piche-Buruntuma (estava lá o 2º Gr.Comb da CCAÇ3491-morreu um furiel e ficaram feridos o Alferes e restantes membros da tripulação. Também te alertei para o facto da HK-21 ser uma metralhadora ligeira e não uma met.pesada.
Detalhes...mas o fundamental está lá escrito e bem.
Sei que costumas ir aos almoços do Batalhão e a nossa Companhia fez o dela na semana a seguir, com a participação do Coronel na reserva Moreira Campos. Não consegui foi levar o Dr. Pereira Coelho, que me disse estar numa de aturar as netas ao fim de semana, porque sei que a malta iria gostar de o ver.
Para o ano a festa vai ser em Vila Real e se tu quiseres podes sempre aparecer, porque serás bem vindo.
Um abraço e continua com as tuas magnifícas "estórias". Em breve irei colocar a do "Dia em que o pau da bandeira de Galomaro se dobrou à nossa passagem".
Aceita um abraço
Luís Dias