segunda-feira, 19 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2861: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (32): Operação Pavão Real

Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério Municipal > Talhão Militar Central > Abril de 2006 > Obelisco de homenagem aos soldados portugueses, mortos nas diversas campanhas de pacificação da Guiné. Nesta face, encimada por um medalhão com o busto da República, pode ler-se: Campanha do Cuhor (1907-1908), Campanha de Samocé (1908), Campanhas de Oio e Bissoram (1913), Campanha de Manjacos (1914).

Foto: © Hugo Costa (2006). Direitos reservados.


"No tempo em que o Geba estreito era navegável até Bafatá... Encontrei esta preciosidade no Anuário da Guiné de 1946, p. 544(houve ainda uma edição em 1948), uma iniciativa do Governador Sarmento Rodrigues, quando Teixeira da Mota era seu ajudante. Quando vi a fotografia fiquei a imaginar a beleza de um passeio de Bambadinca a Bafatá,acenando aos agricultores a fainar em ambas as margens...não vivemos esse mundo de paz"...

Na mesma página, há uma referência à Paróquia Missionária de Bafatá, de que eram Párocos os Padres Septimio Munno e Artur Biasuti,sendo Coadjuvtor o Padre Espartaco Marmugi e Auxiliar (leigo ?) Vicente Menasi...Italianíssimos, como se vê. Também há uma referência à Missão de Geba, de que era Superior o Padre Efrem Estevanin e Coadjudores os Padres Felipe Croci e Luiz Andreoleti.

Já agora, e não menos curiosa, é a composição da Direcção do Sporting Clube de Bafatá: Presidente - Carlos Caetano Costa; Vice-presidente - Dr. Fernando Luís Leite de Sousa Noronha; 1º Secretário - Carlos Elbling; 2º Secretário - Armando Avilez de Basto; Tesoureiro - Francisco Malheiros; Vogais - Arif Elawar e Carlos Menezes Ferreira; Suplentes - Adriano Augusto e Francisco Paulo... Tentand advinhar, o Arif deveria ser sírio-libanês, comerciante ou filho de comerciantes; os suplentes poderiam ser guineenses, assimilados, ou cabo-verdianos, emptregados do comércio local ou pessoal menor da administração local... (LG)


Foto (e legenda): ©
Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 25 de Fevereiro de 2008:

Luís, as propostas de ilustração já seguiram. Ainda esta semana, assim o espero, te enviarei o episódio n.º 33, se tudo correr bem o segundo livro está concluído no final de Julho. Terei alguns exemplares do primeiro livro na próxima sexta-feira. Não sei exactamente quando partes, vê lá se me esclareces. Gostaria muito que levasses um livro contigo, para mostrar à comunidade luso-guineense e outros participantes. Um abraço do Mário

Operação Macaréu à vista - Parte II > Episódio XXXII > OPERAÇÃO PAVÃO REAL
por Beja Santos (1)



(i) No rescaldo da operação Tigre Vadio

De 2 a 6 de Abril [de 1970] iremos permanecer em vigilância frente ao Xime, na ponte de Udunduma. Esta é a nossa principal tarefa, mas não deixámos de ir numa coluna ao Xitole e continuámos a apoiar o recenseamento das armas nas tabancas na órbita de Bambadinca.

A 7 escrevo à Cristina:

“Capitulei com o paludismo, é daqueles que não dá tremores nem vómitos, põe só a pele a gotejar, teve dias a fio com arrepios, continuo a beber litradas de água para não desidratar, tapo-me com dois cobertores nestes dias e noites quentíssimos. Mas agora já me sinto melhor, quase convalescente, roubo na enfermaria frascos de vitamina C e complexos multivitamínicos que tomo às grosas, como cereais, e agora os arrepios estão finalmente a passar. Não sei se apanhei este paludismo no Poidom ou em Belel.

"Quando regressámos em 1 de Abril, depois da 'Tigre Vadio', recebemos felicitações de todos pelos resultados operacionais alcançados, se bem que com um grande sofrimento das tropas. Foi meia hora de fogo, houve surpresa total, na nossa aproximação do acampamento dos guerrilheiros, um dos meus soldados que é caçador, Cibo Indjai, tinha descoberto um trilho, depois a avioneta indicou-nos o caminho certo. Este acampamento de Belel estava no meio de uma horta de mandioca e fundo, as habitações em colmo e adobe estavam perfeitamente dissimuladas pela vegetação.

"Infelizmente, no regresso vim buscar água a Bambadinca, na soalheira das três da tarde, o helicóptero foi atingido por tiros que estilhaçaram vidros, julguei ao princípio que se tratava de uma emboscada, agora estou convencido que foi nervosismo e precipitação das nossas tropas que alvejaram a aeronave.

"O regresso teve de tudo: ataque de abelhas, insolações, um corta-mato infernal à procura de Enxalé. Regressei com os pés muito feridos, agora já estou melhor. Chegou entretanto o Pires de férias, deu-me as tuas notícias, e trouxe os livros e discos, quando eu partir para Bissau deixo o pelotão entregue ao Cascalheira, ao Pires e ao Ocante.

"Imagina tu que na noite de 2, já estávamos na ponte de Udunduma, houve um ataque brutal ao Xime, donde partimos na véspera, durou cerca de uma hora, trouxeram canhões sem recuo e morteiros 82, provocaram destruição, elevados danos materiais, felizmente só houve feridos ligeiros.

"Na coluna entre Bambadinca e Xitole tudo nos correu bem, mas as tropas de Mansambo, durante o reconhecimento à estrada, detectaram e levantaram minas anti-pessoais, altamente reforçadas.

"Tenho agora informações a dar-te sobre o nosso casamento. O David Payne escreveu, casaremos em 16 de Abril, pelas seis e meia da tarde. Ficaremos em casa da Elzira e do Emílio Rosa, durante esse tempo eles serão hóspedes dos Payne. A seguir ficaremos no Grande Hotel. O jantar de casamento será num restaurante de nome 'Pelicano', frente à baía de Bissau. Estou a preparar a lista dos convidados, alguns dos meus soldados estarão lá. Escrevi hoje ao meu primo José Augusto Gândara de Oliveira, para Luanda, para o Eduardo Canto e Castro e para o Paulo Simões da Costa, sei que eles vão ficar muito contentes com a participação no nosso casamento. Combinei com a D. Leontina procurar telefonar-te amanhã, a partir de Bambadinca. Se eu falhar à hora aprazada, ela tem uma mensagem para ti. Recebe toda a minha devoção”.

À hora aprazada não se conseguiu a ligação e eu tinha de ir a Samba Juli. No dia seguinte, D. Leontina informou-me com o seu sorriso escancarado:
-Falei à sua prometida logo que os telefones começaram a funcionar, e disse para ela não se esquecer da camisa com as mangas acrescentadas ao tamanho dos seus braços e para trazer as meias de algodão fino. E em seu nome dei-lhe um beijinho e no meu desejei-lhe as maiores felicidades. É tão bonito casarem na Guiné!

(ii) Notícia dos documentos preciosos que me emprestou D. Violete

É na ponte de Udunduma que começo a ler os livros e revistas que foram emprestados à D. Violete pela neta do régulo Mamadu Sissé, um aliado muito leal de Teixeira Pinto. Encontro um comentário de Ramos da Silva, datado de 1915, nos Subsídios para a História Militar e da Ocupação da Guiné, que transcrevo para o meu caderninho:

”Descrever a desgraçada situação política em 1878, definir o que é a Guiné, o seu território: presídio de Zeguichor, praça de Cacheu, presídio de Farim, vila de Bissua, ilhéu do Rei, presídio de Geba, ilha de Bolama e Rio Grande. E nada mais”. O autor fala na criação recente de Sambel-Chior, na margem direita do Geba, onde não há bandeira nem autoridade portuguesa.

Leitura empolgante é a que permite Frederico Pinheiro Chagas em A Guerra da Guiné, vejo que são textos muito sumidos dos Anais do Club Militar Naval, um relato publicado em 1909. Anoto o seguinte:

“Houve há pouco tempo uma guerra entre os biafadas do Cuor, região da margem direita do Geba, e os balantas seus vizinhos, causada, como sempre, pelas incursões destes últimos no território dos primeiros, a fim de roubar mulheres e gado, constante origem das discórdias”.

Confirma-se, pois, o que já lera algures. As ofensas às autoridades começam quando o 2ª tenente da armada José Proença Fortes fora de Geba a Sambel Nhantá, tabanca de Infali Soncó e aqui humilhado. No entretanto, Infali intrigava, arranjara uma inventona sobre a cessão de Badora. Pinheiro Chagas observa que Infali fora imposto pelas autoridades portuguesas aos biafadas. Ele tinha-se revelado um precioso auxiliar na primeira guerra do Oio, mas depois bandeara-se para o inimigo, apoiando os oincas contra os portugueses. Os homens de Infali deram luta.

Quando a lancha-canhoneira Cacheu subia o Geba depois do Xime, para trazer os cristãos de Geba, “mal entrou na parte do rio onde começa a região do Cuor, foi atacada violentissimamente de entre o mato que esconde a margem direita... O fogo do inimigo era constante e a ele respondia a Cacheu com a fuzilaria dos seus marujos e com os tiros de duas metralhadoras Nordenfeld e de uma peça Hotchkiss...

Durava o combate havia horas, a canhoneira seguia devagar, serenamente, para serem os tiros eficazes. Numa volta apertadíssima, junto de Sambel Nhantá, de repente, apareceu um cabo muito grosso de arame farpado. Infali Soncó, que esperava assim impedir completamente a passagem à canhoneira, concentrara aí toda a gente que dispunha, e na ocasião em que a Cacheu aparecia na volta do rio, rebentou da margem direita uma fuzilaria medonha que fez numerosos feridos”.

Eu leio tudo febrilmente, tenho que contar tudo isto ao régulo Malã, vou aproveitar as horas vazias da noite, aqui no Udunduma, para contar estas histórias aos soldados. Durante a leitura, vou anotando dúvidas: fala-se aqui da Ponta Joaquim da Costa, a seguir ao Xime, na margem direita do Geba. Para mim é forçosamente Mato de Cão. Mas será?

Mais adiante escrevo: “Nesta época o régulo mais rico da Guiné era o do Gabu, o regulado tem uma população muito densa e só em imposto de palhota rende anualmente ao governo dezoito contos de reis”. Sambel Nhantá não devia ser uma povoação muito pacifica, em 11 de Outubro de 1885 tinha havido um ataque a esta tabanca comandado pelo capitão Caetano Alberto da Costa Pessoa, também por motivos de desobediência.

Continuo a ler a campanha do Cuor, tenho que devolver amanhã estes documentos à D. Violete, ela vai visitar Fatumana e promete trazer mais papéis. A campanha do Cuor envolveu soldados de Infantaria 13, que vieram de Vila Real. Tudo decorreu em Abril de 1908, sem artilharia, sem cavalaria, sem engenharia, sem material rolante. O governador Muzanty decidiu cambar em Bambadinca numa grande lala (pensei para mim que ele estava a falar de Finete), daqui as tropas marcharam para Ganturé (certamente a Canturé actual) e incendiaram Sambel Nhantá.

Em Gã-Sapateiro (mais tarde chamada Caranquecunda, por onde eu passava praticamente todos os dias) construiu-se um posto militar. Entretanto, Infali Soncó fugiu para Madina, a quinze quilómetros de Caranquecunda, as tropas foram no seu encalço e incendiaram a tabanca. O narrador escreve que então se ergueu no Cuor a bandeira portuguesa ao som de vinte e um tiros de peças de artilharia, os régulos revoltados pediram perdão, que lhes foi concedido.

O posto de Caranquecunda ficou guarnecido por 60 macuas (soldados moçambicanos) comandados por um tenente e por um alferes. E o relato termina assim: “O imposto que os habitantes destas paragens estavam com relutância em pagar começou a entrar rapidamente nos cofres da Província, cobrando-se logo em pouco tempo nas residências de Geba quarenta e seis contos de réis”.

Procuro adormecer, imagino o que foi aquela campanha do Cuor, os soldados de Vila Real a caminhar pelas matas, os macuas em Caranquecunda. O meu caderninho vai-se enchendo com coisas que me entusiasmam. Quando encontrar Gibrilo Embaló vou dizer-lhe que o seu nome Djibril tem a ver com o anjo Gabriel que revelou a Maomé a vontade de Alá. Que uma jibóia na Guiné é conhecida por irã-cego. Que no registos das espécies aladas me esqueci do maçarico, da andorinha do mar, do frango de água, da viuvinha, do noitibó balanceiro e do papa-figos dourado. Que tinha em falta, na minha relação de mamíferos, o rato da bolanha, o macaco do tarrafe e a cabra cinzenta.

Agora estou mesmo exausto, o Lion Brand já está aceso, vou procurar adormecer, mesmo com o zumbido permanente dos mosquitos.


Capa de A Fronteira de Deus, de Martìn Descalz

A Colecção Atlântida, da Editora Ulisseia,incluíu títulos importantes de Vergílio Ferreira,Manuel da Fonseca,Graciliano Ramos,Dinah Silveira de Queroz e Miguel Delibes, entre outros.O capista foi um grande artista do seu tempo, Marcelino Vespeira, como aqui se pode verificar.Não indica tradutor nem ano da edição.

Martín Descalzo recebeu com este livro o Prémio Nadal 1956. Temos a história de fazedor de milagres que vai suscitar anticorpos sociais,políticos e religiosos, a tal ponto que o liquidam.Ele,um simplório guarda de passagem de nível que fora chamado pela população para fazer chover,ao ser assassinado vai convocar a misericórdia de Deus:o seu sacrifício é assinalado com a chegada da chuva.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.



(iii) Os preparativos da Pavão Real

Em 8 de Abril, um pouco antes do almoço no gabinete do major Herberto Sampaio, tem lugar a última reunião com os oficiais que vão participar na batida à foz do Corubal: CCaç 12, Companhia do Xime [CART 2520]e o Pel Caç Nat 52.

O oficial de operações começou por recordar os resultados das duas últimas operações, não deixando de referir as canoas que foram avistadas na outra margem do rio Corubal, as flagelações que sofremos, a tremenda dificuldade em surpreender as populações que trabalham e vivem cercadas por bolanhas e lalas extensíssimas. Pelas informações disponíveis, o inimigo dispõe de um bigupo a actuar entre a foz do Corubal e a Ponta do inglês. O incêndio das habitações na bolanha do Poidom, durante a operação Rinoceronte Temível, de modo algum intimidou os guerrilheiros (2).

Nesta batida, com a duração prevista de dois dias, um dos destacamentos sairia do Xime e iria buscar entre Madina Colhido e Gundaguê Beafada, o outro iria progredir de Ponta Varela flanqueando o Geba, em direcção à foz do Corubal. Com o apoio aéreo, ao amanhecer do dia 10, e de acordo com os itinerários previamente acordados, os dois destacamentos iriam convergir para a Ponta do Inglês, regressando em colunas separadas pelo rio de Buruntoni e passado por Gundaguê Beafada até chegar ao Xime. Acertaram-se pormenores quanto ao apoio de artilharia, transporte de morteiros e apoio de carregadores. Dada a pressão que o inimigo estava a exercer sobre o Xime, era importante partir imediatamente a seguir ao almoço, no dia seguinte, para a operação.


O apartamento fatídico, por A.A.Fair.

Está danificado,pois apanhou as chuvas e humidades das idas ao Xime e os maus tratos da ponte de Udunduma. Nº119 da Colecção Vampiro,uma bela capa de Lima de Freitas , tradução de L.de Almeida Campos.

A parelha Bertha Cool-Donald Lam em todo o seu fulgor: ela, pronta a cortar nas despesas supérfluas,sempre comilona,ele imaginativo,mentalmente ágil,uma outra abordagem de Perry Mason( A.A.Fair era o pseudónimo de Erle Stanley Gardner).Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.




(iv) Os ensinamentos da Pavão Real

Os dois destacamentos envolvidos abandonaram o quartel do Xime ao princípio da tarde de 9, os grupos de combate da CCaç 12 dirigiram-se para Gundaguê Beafada, nós e os grupos de combate da companhia do Xime partimos para Ponta Varela. Confirmámos a passagem recente de forças do inimigo, talvez as que tiveram a atacar o Xime no passado dia 2, talvez gente que andasse à procura de flagelar embarcações à entrada do Geba. Mais uma vez, beneficiando de uma noite enluarada, progredimos por um ponto alto da bolanha do Poindom e quando amanheceu avistámos repentinamente à distância dois cultivadores desarmados que vinham na nossa direcção, o que não constituía surpresa já que a bolanha estava cultivada. Fugiram e devem ter-nos denunciado junto dos outros cultivadores.

Saímos do trilho e a corta-mato entrámos nos palmeirais e depois dentro de uma mata densa onde descobrimos onze casas sobre estacaria com indícios de presença recente, e dois depósitos cheios de arroz, mais adiante um outro conjunto de casas. Nada de armas, nada de munições, eram certamente habitações de quem andava a lavrar a bolanha. Com toda a discrição possível, destruíram-se os víveres e prosseguiu-se a batida.

Pela uma da tarde, com auxílio do PCV, deu-se a convergência das forças e continuou a batida a toda a região até à Ponta do Inglês. O que já tínhamos assinalado na Jaqueta Lisa voltava a confirmar-se: uma ampla rede de trilhos, muito provavelmente utilizados pelos agricultores e seguramente as forças do bigrupo que lhes montava segurança.

Entrámos no aquartelamento da Ponta do Inglês, em completo estado de ruína e, mais adiante passámos pelas tabancas que tinham sido destruídas durante a operação Safira Única, pelas forças da CCaç 12 (3). Sem nenhum contacto e, estranhamente, sem termos sido sujeitos a qualquer fogo de reconhecimento, entrámos no Xime ao fim do dia.

Regressámos a Bambadinca a 11 de manhã, informei o comando que o Poindom estava para dar e durar, impunha-se procurar outros tipos de contacto, desde operações de pára-quedistas até a deslocação de tropas a partir de Moricanhe para pressionar os grupos à volta do Buruntoni. Ainda voltarei uma vez mais à região e para descobrir que o inimigo estava reforçado e possuidor de uma economia própria.

A Toca do Lobo, de Tomaz de Figueredo

2ª Edição, 1964. A capa denota a influência do maior designer gráfico do seu tempo, Sebastião Rodrigues. Impressionou-se a riqueza deste português castiço,ímpar e sincero,nada alquímico.

Diogo Coutinho não tem paralelo naquela literatura fabulosa de Aquilino ou Ruben A. Refugiado na Toca, cercado de memórias, é um morgado de estilo, incapaz de conviver com as burguesias petulantes. Por amor da terra, por amor da tradição, apaga-se na sua inteireza,fidalgo que não capitula nos princípios. Comovem as conversas com os familiares, os criados,os amigos de infância. O arranque do romance tem a magestade rural que permanece até ao fim: «Acima do portão,na verga quase vestida pela hereira que já amortalhara a pedra heráldica, a valer de baetão que a amantasse de lutos,ainda lá se lia uma data,1654, avivada pelo caseiro,por mimo,no tempo da poda a riscos de caco.» É um dos meus livros obrigatórios, quando ponho em dúvida que possuímos uma língua sublime.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.(
)


(v) A Fronteira de Deus e A Toca do Lobo

É um tempo de boas e suculentas leituras, ler é indispensável para quem tem os pés muito feridos, preenche as pausas entre as cansativas operações a Belel e à Ponta do Inglês. Li sobretudo dois livros inesquecíveis: A Fronteira de Deus, de Martín Descalzo, e A Toca do Lobo, de Tomaz de Figueiredo.

O primeiro tem a ver com um milagre que surpreende as poucas centenas de habitantes de Torre de Muza. Um milagre que desencadeia outros milagres, operados por um guarda de passagem de nível, a pedido de uma população que suplica chuva quando todas as colheitas parecem perdidas. O guarda, Renato, é um homem simples que vai sentindo as mudanças operadas na Torre como um pesadelo. Os milagres alteram os comportamentos das pessoas, vai chegar o turismo religioso, Renato torna-se incómodo e será assassinado.

O que há assim de tão poderoso neste livro? A simplicidade que roça a sinceridade. As descrições e os diálogos são plausíveis, o entramado de diálogos é vital para entendermos o estado de espírito do cacique, dos inocentes, dos desesperados, dos que têm sede de justiça. Depois, Martín Descalzo burila vigorosamente o pesadelo de fazer milagres e o incómodo político, religioso e social que eles acarretam. Não chove, os milagres sucedem-se, só se fala do guarda da passagem de nível, os ódios sobem em espiral. Ele será assassinado e Deus parece ter misericórdia do povo da Torre, sobre a aldeia começou a chover quando uma criança fechou os olhos do mártir.

A toca do lobo, de Tomaz de Figueiredo, é assombroso no seu português castiço, na sua incursão pela ruralidade minhota, pela criação de um morgado exilado na sua quinta, incompatibilizado com as vaidades dos políticos e burgueses da vila. Diogo Coutinho vive rodeado de sombras do passado e dos últimos criados fiéis, volta à Toca e aviva todas as suas lembranças: dos pais, das tias, da malta com quem brincou, da prima Aninhas, das caçadas, dos animais, dos livros, das músicas.

É um grandioso português castiço, é um ensaio antropológico ímpar, são recordações forçosamente afectivas, um ajuste de contas com a incompreensão das novas classes face aos morgados de cepa. Leio e releio, reparo que Tomaz de Figueiredo tem mais livros, vou já pedir á Cristina que me traga Uma noite na toca do lobo. Mal sabia eu que iria ficar enfeitiçado para sempre por tão grande escritor.

E li também O apartamento fatídico de A.A. Fair, pseudónimo de Erle Stanley Gardner. Apresenta uma dupla de detectives, Bertha Cool e Donald Lam, ela ávida de dinheiro e comilona, ele imaginativo e tão ágil e cerebral com Perry Mason. São contratados para descobrir uma rapariga desaparecida, o pretexto dado é de que o marido abandonado quer o divórcio. Tudo se passa em Nova Orleães. Afinal não há uma rapariga há duas, a teia torna-se complexa com um assassinato em casa de uma delas. Uma menina de cabaré sabe mais do que diz, e o mesmo se pode dizer do marido que procura a sua esposa desaparecida. Por detrás de tudo isto, está muito dinheiro e um crime praticado há alguns anos atrás. No final, tudo se desembrulha e Donald Lam parte para a guerra. É uma dupla divertida, uma ambiciosa e um observador exímio.

Escrevo e procuro deixar meticulosamente organizada a vida do Pel Caç Nat 52 para as próximas semanas. Vou partir a 14, a Cristina chegará a 15. Cheio de ufania, como se fosse o primeiro homem a deslumbrar-se por uma mulher, confidencio a minha alegria aos outros. De repente, descubro que falo da Cristina, de Lisboa, dos meus estudos, nos serões às escuras na ponte de Udunduma. É uma sensação inexplicável, estou a misturar dois mundos, aquele em que vivi e em que sonho para depois da guerra, tudo dentro deste teatro de operações. Mal sabia eu que ia viver esse paradoxo nas semanas seguintes, ao lado da mulher amada, em Bissau.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. poste anterior, desta série > 10 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2831: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (31): Tigre Vadio: Um banho de sangue no corredor do Oio

(2) Vd. poste de 18 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2771: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (28): A euforia de comandar cem homens na Op Rinoceronte Temível

(3) Vd. poste de 19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLI: Ponta do Inglês, Janeiro de 1970 (CCAÇ 12 e CART 2520): capturados 15 elementos da população e um guerrilheiro armado (Luís Graça)

(...) "Seguindo um dos trilhos, avistou-se um homem desarmado que seguia em direcção contrárias às NT. Capturado, informou que ia recolher vinho de palma, que a tabanca ficava próxima, que não havia elementos armados e que a maior parte da população estava àquela hora a trabalhar na bolanha.

"Feita a aproximação com envolvimento, capturaram-se mais 2 homens, 5 mulheres e 6 crianças. Um dos homens capturados disse chamar-se Festa Na Lona, de etnia Balanta, estar alí a passar férias e pertencer a uma unidade combatente do Gabu. Foi-lhe apreendido uma pistola Tokarev (7,62, m/ 1933) e vários documentos" (...).

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