quinta-feira, 12 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2933: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (3): Manuel Peredo, ex-Fur Mil Pára, hoje emigrante

1. Mensagem, de 8 de Junho, do nosso camarada Manuel Peredo, um português da diáspora, emigrante em França, e que foi Fur Mil Pára-quedista, na CCP 122/BCP 12 (Guiné, Brá, 1972/74), o mesmo é dizer: camarada do Carmo Vicente (CCP 122), do Victor Tavares (CCP 121) e do Manue Rebocho (CCP 123).

Fixação e revisão do texto: Carlos Vinhal.


Caros responsáveis do blogue:

Depois de muito pensar, lá me decidi a exprimir algumas opiniões sobre a guerra da Guiné, mais precisamente sobre os acontecimentos de Gadamael.

Primeiro, a minha apresentação ao comandante do blogue. Chamo-me Manuel do Nascimento Peredo; estive na Guiné de Outubro de 1971 a Novembro de 1973 como furriel miliciano pára-quedista. Conheci muito bem em Tancos e na Guiné o Manuel Rebocho, pertencendo eu à 122 e ele à 123.

Ultimamente tem-se falado no livro algo polémico que o primeiro sargento pára Carmo Vicente escreveu (1). Pertencíamos os dois ao quarto pelotão da 122, portanto estivemos os dois no campo de férias em Gadamael. As suas declarações talvez chocassem algumas pessoas, mas a mim nem por isso e atrevo-me a dizer que são verdadeiras, embora um pouco exageradas.

Eu também digo que o nosso comandante era temido por todos. Até os médicos cumpriam as suas instruções dando como aptos soldados com ferimentos ainda por cicatrizar. O que o Vicente diz do alferes pára C.P., origem indiana, é pura verdade. Sei o que digo porque chegou a comandar o meu pelotão. Quanto ao alferes D… não me lembro de ele se recusar a sair para o mato, a não ser que isso tivesse acontecido quando fui evacuado para Bissau, mas sei que não era um exemplo de coragem.

O facto do capitão T.M. bater nos quatro soldados, não me admiro nada, porque não foi caso único. Podia contar o que o coronel Rafael Durão [, que é uma figura pública conhecida, pelo que não vale a pena ocultar a sua identidade,] fez a um cabo da minha secção na minha presença. O bater nos soldados era moeda corrente nos páras, principalmente durante a instrução em Tancos.

Falando agora nos bombardeamentos de Gadamael, acho que o Vicente exagera um bocado. O pior talvez tivesse acontecido antes de nós irmos para lá, atendendo ao estado em que ficaram as instalações. Quando havia mais movimento no quartel, quase sempre éramos presenteados com um dilúvio de metralha, o que deixa entender que alguém estaria a dar informações ao IN.

Já agora vou descrever um pouco por alto aquilo que ainda está gravado na minha memória. Quando nos disseram em Bissau que íamos para Gadamael, informaram-nos que a situação era muito grave e que não valia a pena irmos carregados ,só o necessário para três ou quatro dias. Quando nos aproximávamos de Gadamael, recordo-me muito bem de ver muita tropa à beira do rio, com uma expressão de terror na cara.

Alguns dizem que desembarcámos em botes, mas eu quase afirmava que foi de LDM e era capaz de jurar que só a minha companhia, a 122, é que desembarcou nesse dia e não me lembro de estarem lá duas companhias de páras ao mesmo tempo. Penso que a 123 nos foi render para a 122 poder descansar uns dias em Cacine.

Mal chegámos a Gadamael, dois pelotões foram logo para a mata, onde passaram a noite. Em Gadamael apenas se encontravam lá uns quinze ou vinte homens, o resto tinha fugido. Recordo-me que veio logo uma Berliet conduzida por um açoriano muito destemido para evacuar os mortos e feridos. Soube pelo blogue que o José Casimiro Carvalho também fazia parte dos que não fugiram. O meu pelotão, o quarto, fazia parte do bigrupo que passou a primeira noite no mato e, quando estávamos a regressar ao quartel, este foi fortemente bombardeado ,originando a morte de alguns soldados do exército que tentaram fazer fogo com o obus 140, salvo erro. Estivemos à espera que os rebentamentos acabassem para poder entrar no quartel.

Um dia ou dois mais tarde morreram mais três soldados e um alferes miliciano, vítimas duma emboscada, muito próximo do quartel. Alguém devia ter um grande peso na consciência por ter mandado para o mato um grupo de apenas duas dezenas de militares, se tanto. Este ataque já foi contado pelo José Casimiro e pelo Vicente.
Aqui o Vicente deve estar enganado. Quem foi primeiro recuperar os corpos foi outro pelotão, o nosso pelotão foi enviado em reforço porque tínhamos acabado de chegar do mato. Encontrámo-nos a meio caminho e demos uma ajuda a transportar os corpos que estavam muito mal tratados : tinham o corpo queimado e ferimentos causados pelas balas. O alferes tinha um grande buraco na cara derivado a uma rajada e um soldado nem calças trazia vendo-se bem o efeito das chamas.

Quando chegámos ao quartel, os colegas dos militares mortos estavam no cais à espera e houve um pormenor que me deixou surpreendido e até chocado. Nenhum deles teve a coragem de nos ajudar a carregar os mortos para a Berliet. Os corpos eram postos no chão e o pessoal ia para as valas. Eu próprio os carreguei com a ajuda de colegas. Quando estávamos com este trabalho, o IN lançou novo ataque e eu só tive tempo de saltar do paredão do cais para me proteger. Foi a minha salvação pois uma granada caiu no local que tinha deixado. Escapei a uma morte certa por décimos de segundo.
Outro pormenor que me surpreendeu : quando íamos resgatar os corpos, um dos soldados que tinha fugido da emboscada dirigiu-se a mim, suplicando-me por tudo quanto me era sagrado, que tentasse recuperar uma medalha ou um fio que a mãe lhe tinha dado. Essa medalha ou fio devia estar no casaco que ele largou durante a fuga. Os ataques iam-se sucedendo e talvez mais espaçados e a tropa que tinha fugido ia regressando ao quartel talvez por se sentirem mais seguros com a nossa presença.

No dia dez de Junho (ninguém no mundo me convencerá que não foi neste dia ) sofremos então uma emboscada que deixou a 122 muito debilitada. Pela manhã fomos montar uma emboscada um pouco distante do quartel. Nada se passou de anormal a não ser uma tentativa do IN em abater um Fiat que voava bem lá no alto : distinguia-se perfeitamente o fumo do míssil que tinha rebentado.

A meio da tarde, iniciámos o regresso ao quartel. Estava previsto o meu pelotão e mais um pernoitarem na mata, já muito próximo do quartel e estávamos já nesses preparativos, quando se deu a emboscada. Os dois pelotões que lá deviam pernoitar encontravam-se já na mata e os outros dois seguiam pelo caminho que dava acesso ao quartel. Os dois bigrupos encontravam-se em posição paralela o que podia ter custado muito caro. Claro que foi um erro de quem dirigiu a manobra. Os dois pelotões que iam para o quartel é que deviam ir na frente. Eu por acaso apercebi-me do erro e disse aos meus homens para não dar fogo. Aquilo nunca mais acabava. Quando os caças Fiat vieram em nosso auxílio ainda o combate não tinha acabado. Não havia árvores de grande porte para nos protegermos. O meu colega do lado esquerdo tentava proteger-se atrás dum arbusto que foi ceifado por uma granada logo por cima da cabeça. O que estava do meu lado direito foi levantado pelo sopro duma granada possivelmemte dum RPG7. Acreditem que foi verdade pois vi com os meus próprios olhos. Há minutos na vida que duram uma eternidade. Resultado da brincadeira :17 feridos, todos causados por estilhaços fazendo eu parte desse grupo com um ferimento na cabeça.

Por absurdo que pareça eu fiquei bem disposto e até brinquei com os meus colegas. Quando estes me viram a sangrar da cabeça disseram-me : o meu furriel já pode estar descansado, já acabou a comissão. Mal eles imaginavam que passados oito ou dez dias estava de novo junto deles. Claro que o ferimento não era grave e, derivado ao medo que os médicos tinham do comandante, eu próprio pedi para voltar à minha companhia. Quando voltei, já a 122 estava a descansar em Cacine e mal cheguei lá fui presenteado com um ataque de paludismo. Veio logo o capitão Terras Marques dizer-me que tinha que recuperar depressa pois precisava de mim para irmos fazer uma operação à fronteira da República da Guiné.

Voltando um pouco atrás. Fomos então evacuados para Cacine em dois botes que iam superlotados e de Cacine seguimos de helicótero para Bissau. Quando eu estava no hospital a aguardar transporte para Bissalanca, chegou o homem do monóculo para ver como estavam os feridos. O médico que o acompanhava apontou para mim e disse-lhe que eu era um dos feridos. Dirigiu-se a mim e perguntou-me como se tinha passado. Quando lhe disse que foi no regresso, logo me perguntou se vínhamos pelo mesmo caminho. Pensei logo que estava ali uma armadilha e lá lhe enfiei o barrete.

Caros amigos,acho que vou ficar por aqui. Desde que descobri o vosso blogue, já perdi muitas hors de sono, para não dizer noites. Até hoje nunca tive a oportunidade de encontrar alguém que tivesse vivido as mesmas aventuras para poder desabafar. Desde que passei à disponibilidade, emigrei para a França onde ainda trabalho e ainda bem que a Internet existe para conhecer as opiniões de outros que também passaram pela Guiné.

Um abraço para todos

2. Caro Manuel Peredo, esperamos que esta tua mensagem seja a primeira de muitas, através das quais colaborarás no nosso Blogue, que todos queremos seja o depositário das nossas experiências na guerra da Guiné.

Poderás aderir formalmente ao nosso Blogue, enviando as fotos da praxe, uma dos teus tempos de tropa e outra actual, em fomato tipo passe de preferência.

Todas as tuas estórias serão bem-vindas, que poderão ser acompanhadas de fotos para as ilustrar.

Na nossa tertúlia temos pouca malta dos Páras, como constatas, pelo que a tua adesão é importante.

Recebe, em nome dos editores e da restante tertulia, um fraternal abraço com votos de bem-estar por essas terras de França.
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Nota de CV:

(1) Vd. poste de 5 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

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