quinta-feira, 26 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2987: Os nossos regressos (1): Lisboa, dois anos depois (Virgínio Briote)

O Uíge zarpou à hora prevista, mais minuto menos minuto. Tripulação civil e transporte de tropas, quase todos com as comissões terminadas. Como era costume naqueles tempos os oficiais e sargentos tinham direito a camarotes, as praças iam lá em baixo, nos porões. Repartia o compartimento com o capitão Viegas. Um homem calado, as falas que bastavam, mais simpático ainda. Não era tempo para grandes conversas.

Último jantar no Uíge. Serventes fardados, mesa com Vista Alegre e Cristofle, uma alegria entristecida.

Texto e fotos: © Virgínio Briote (2008). Direitos reservados

Ao jantar, o comandante do navio com o comandante de bandeira ao lado, deu-lhes as boas-vindas, desejou-lhes boa viagem. Que iriam directos a Lisboa, sem escalas. Que bom, ao menos isso. Depois jantaram com aquelas cerimónias todas que a marinha, seja mercante ou de guerra, gosta de se tratar bem e gosta também que se veja. Quando terminaram, Bissau era uma mancha iluminada, já muito longe.

Encostado à amurada, ficou sozinho, a olhar para trás. Uma brisa fresca, continuava febril, os olhos com água. O que fiz aqui, que levas na memória? Voltarias a esta Guiné, outra vez de arma na mão? Farias o mesmo, da mesma maneira?

Farim, o Ten Coronel Cavaleiro, o Mealha, o infeliz do capitão de Cuntima, o Didi, o Fininho do bar. O enxerto de porrada que vira um deles dar a um negro que caíra na emboscada em Sitató. As mãos, os nós dos dedos, e o infeliz não dizia nada, não sabia nada. A cena do batuque. O pedido que lhe tinham feito para fazerem uma festa entre eles. Que sim, mas só até às 11 da noite. O batuque, muito para lá da meia-noite, não parava nem com o piquete ali, à espera que tudo acabasse. A ordem que dera para darem por finda a festa. Vai já, vai já e nunca mais acabava. A tropa a querer descansar, iam sair lá para as cinco. Pega no gajo e manda-o parar a merda do batuque. Porrada no gajo, o tipo no chão aos gritos, os batucantes em alvoroço. Parou tudo. Começou foi uns dias depois, um auto de averiguações e, se houvesse matéria, um auto de corpo delito, que só não teve seguimento porque o Ten Coronel de Farim lhe pôs ponto final. O administrador de Posto, civil, vira tudo de longe, fizera uma participação ao Governo-Geral, a relatar o que vira, soldados a espancar nativos. A psico, que chatice, a dar passos para trás. Tempos depois, o Ten Coronel pegou-lhe num braço, levou-o para um canto, quis ouvir a história da boca dele. Mandou vir à sua presença, o oficial responsável pelo processo de averiguações, pô-lo ao corrente do que ouvira do alferes. Antes de terminar, ouvira-o dizer, não se bate nestes gajos, nunca permita uma coisa dessas, ouviu? O que lhe custara mais nesta história foi a reacção do Didi, o camarada de Cuntima. Se eu for chamado a depor, ficas avisado que vou testemunhar contra ti. Não se bate em ninguém, muito menos num desgraçado que não se pode defender contra uns gajos de G-3 na mão! Custara-lhe ouvir, é certo, mas acabara por aceitar. Voltaram a falar-se e voltaram a ficar amigos, mais tarde.

Meses depois, lançados num final do dia na zona de Canjambari, nem queria acreditar, viu o saco, o que o capelão das calças do cocó lançara do Dornier! Não pode ser. Mas era o mesmo saco do pão, a olhar para ele, formigas brancas, enormes por todo o lado, o saco todo roto. Os gajos de Canjambari, do alferes ao corneteiro, todos com os cabelos oxigenados, a gargalhada interrompida com as duas morteiradas da praxe.

A bela mulata escura de Cuntima, que reencontrara quando lá voltara, sentados no alpendre da casa dela, com a noite a abrigá-los. A estadia em Barro e Bigene a dar-lhe a volta, a marcá-lo. Achas que a tua presença foi benéfica para a população, como te disseram tantas vezes? O Rasas que conheceste, os outros Rasas todos com quem tiveste de conviver, em quartos espalhados por Buba, em Tite, no Xitole, em Mansoa, no Hospital, pela Guiné toda. Até o Rasas tu encontraste em ti, não uma vez, mas muitas, vezes demais. O Joaquim com as costas todas furadas, eram balas 7,62, nossas, de quem havia de ser, o médico "legista" para ele, uns dias depois. O Kássimo, voz de menina, um bailarino no mato, o Roberto e a carta da mulher endereçada ao capitão Leandro. A nossa filhinha morreu, cuidado com o meu marido, peço-lhes por tudo, senhores alferes e capitães, por tudo! Desenrasque-se, alferes, o capitão a assinar no envelope.

O Matos, o miúdo do AN-PRC10 com a coronha partida da G3 no meio do fogaréu, e agora, que porra? O Álvaro com um estilhaço alojado no ombro. O Caeiro, um bigodinho fino que lhe raparam no hospital, para lhe tirarem areia e pedacinhos de ferro da cara, o Angola, um grande soldado. A saída prematura do Furriel Azevedo e a falta que fez.

E o Silva à procura da sua morte, mais de quinze dias depois de terminar a comissão, uma azelhice sem retorno. E logo ali, um minuto antes ou depois, um guerrilheiro desesperado, arma branca na mão para os dois metros curvados do Albino. A MG-42 naqueles dedos de artista, a desenhar a cara de um gajo com um cigarro na boca, até o fumo subia. A carta do padre da terra do Silva a querer saber pormenores. Que é que este gajo quer que eu diga? Desenrasque-se, escreva qualquer coisa que fique bem, o capitão sempre a chutar. O Guimarães das Taipas, um falador e o Mamadú Djaló que só falava quando alguém se dirigia a ele. O Moura, um beirão com pouco mais de metro e meio de alegria, o Bacar Djassi do caso de Barro, "intelectual" e com vontade própria, um assunto bem arrumado. O Black, o Pascoal, o valente Carvalho, um alentejano de força, a quem dera o fato novo que comprara em Lisboa, numa alfaiataria junto ao elevador de Santa Justa, um dia antes de embarcar. Para que queres o fato, pá? É um azul invulgar, lindo, o Leite, o tal apanhado à mão em Sare Bacar, a opinar. Mudara de cor em Bissau, parecia um espelho, um azul eléctrico, faíscas para todo o lado. O Caleiro, calças numa poça escura, sem um ai, encarrapitado nas costas de um deles a caminho do heli, amor de Mãe e de fetura noiva no braço. O Furriel Valente de Sousa e o Sargento Valente, sempre a moderar-lhe os ímpetos. E outros que ficaram pelo caminho. E o caso de Jolmete, a arrastar-se quase até ao fim. Uns dias antes de ir para Mansoa, um alferes dos serviços de justiça do QG dissera-lhe que afinal o Ministro lhe tinha agravado a pena para 10 dias de prisão disciplinar agravada. Como, isso ainda mexe? Ora, vamos lá ver. Era verdade, pois claro, estava lá na ordem de serviço, prontinha a sair. Onde pára o nosso Brigadeiro, na vivenda dele? Onde fica? O nosso Comandante está lá dentro, preciso avisar, a sentinela negra à frente, é urgente? Pode entrar, o Brigadeiro e coronéis num salão, portas envidraçadas, à volta de uma mesa de bridge, então há problemas? 10 dias de prisão disciplinar agravada, do Ministro do Exército, sobre aquele assunto que o meu Brigadeiro tinha dito estar sob o seu controle. Para saber da minha boca, com os meus respeitos, meu brigadeiro, boa-noite. E o capitão Leandro, dias depois a dizer-lhe da conversa com o Comandante Militar que não apreciara nada a entrada intempestiva.

Crescera tão depressa, com tanta merda que tinha feito, se pudesse voltar atrás estes dois anos! Sinto-me velho, faço 23 dentro de dias, lembrei-me agora. Deitava-se tarde, levantava-se tarde, ainda não arrumara as horas do sono. Tomava o pequeno-almoço e o almoço ao mesmo tempo.



... E agora só paramos em Lisboa!

As tardes passava-as nos conveses, junto à balaustrada, sentado naquelas cadeiras que os navios têm. Sempre com bom tempo, mar também, olhava para longe, vinham-lhe lembranças, adormecia, voltava a olhar, memórias futuras, como seriam, como seria o reencontro com os seus, com a namorada. Arrepios de febre, de medo e contentamento. Só deveria ter à sua espera o conhecimento de Angra. Numa correspondência cada vez mais esporádica, meses sem lhe dar notícias, ela na mesma. Recebera para aí há um mês um postal dela, de Lisboa, tinha vindo para o continente, fixara-se na Parede. Deves estar a sair daí, não? Não voltes a escrever, não vale a pena, arranco no mês que vem, parece que é o Uíge que vai levar este esqueleto. No dia em que chegara com a mala nova ao quarto, já em Sta Luzia, tinha uma carta dela. Iria procurar saber a data da chegada do navio, esperava poder estar lá e, quem sabe, reeditar a correspondência ao vivo. Não, agora é outro tempo. Foi bom, passou. Uma noite daquelas, já se deviam ver as ilhas de Cabo Verde, o comandante do Uíge informou-os que teriam que escalar S. Vicente. Atracariam no Mindelo, só o tempo para meter águas. Como é possível, para meter águas? Não as meteram antes, só agora é que se lembraram que lhes está a faltar água? Nunca mais chego a Lisboa.

O N/M Uíge, que tantos milhares de tropas transportou, de Lisboa para Bissau e de Bissau para Lisboa, ao longo da guerra do Ultramar, aqui visto do Mindelo, Cabo Verde, com o Monte Cara ao afundo...

Meio-dia no Mindelo. Tanta vontade de partir dali, que nem saiu do navio. Ficou-se aquele tempo todo no barco, a olhar para a cidade, para os montes, Clicks na Ricoh até acabar o rolo. Muitas mais horas do que lhes tinham dito, finalmente tiraram as amarras, outra vez no bom caminho.
Nem acreditava, devia estar a sonhar, um ponto ao longe primeiro, uma recta de pontos uns minutos depois, uma curva cada vez maior no meio do rio, o Tejo a levá-lo até Lisboa, desde a manhã cedo desse dia, 27 de Janeiro.
 
Finalmente Lisboa e a sua belíssima nova ponte, que levou menos de 4 anos a construir (de 5 de Novembro de 1962 a 6 de Agosto de 1966), uma obra emblemática do Estado Novo

Tinha embarcado em Lisboa em 10 de Janeiro de 1965, pôs os pés pela primeira vez em Bissau, em 19 do mesmo mês e ano. Embarcou em Bissau em 19 de Janeiro de 1967, exactamente dois anos depois. Uma cena já filmada muitas vezes, uma multidão no cais, na Rocha Conde de Óbidos, gente de idade, muitas roupas escuras, de inverno, algumas jovens também. Tinha tudo preparado, mala e saco em cima da cama. Vai assim, só com a camisa vestida? É Janeiro em Lisboa, sabe? Não tinha nada mais para vestir, também não tinha frio, o calor da Guiné, mais o calor que sentia de deixar para trás aquele tempo todo. Foi lá para cima, para o ponto mais alto que pôde, ver a multidão, lenços no ar, os militares aos gritos, ó Nuno olha-me para aquela brasa, um esqueleto qualquer lá de baixo com um lenço na mão a acenar cá para cima, um contentamento que não há palavras que contem. Saíam aos trambolhões, malas com eles a caírem pelas escadas. Não vem? Fico para o fim, não tenho ninguém à minha espera, pelo menos quem eu queria.

Saíram todos, uns mais lentos, agora mais espaçados e lá em baixo, os abraços intermináveis, os choros de alegria, e uns óculos escuros no meio de um cabelo farto até aos ombros, um casaco preto comprido, uma figura que lhe fez lembrar a Juliette Grecco, era ela, o conhecimento de Angra. É pá, os teus pais estão aqui em baixo! Saiu mais depressa do que contava, num rápido passava-se com ele o que se estava a passar com os outros, abraços e lágrimas nos olhos do pai, a mãe aos gritos, o meu menino, o choro pela cara abaixo, Angra a meia dúzia de metros, sem saber o que fazer, depois discreta a acenar-lhe, a dizer-lhe adeus para sempre. Depois, a Mercedes a andar por aquela Lisboa, a 24 de Julho, o Terreiro do Paço, a rua da Prata, até ao Rossio. Os olhos a passarem por tudo. Mataste muitos turras? Juntaste muito dinheiro? Mal respondia ao que lhe perguntavam. Eram horas de tirar a farda. Passou por uma loja (Lourenço e Santos?), na esquina do Rossio com os Restauradores, um casaco azul-escuro, calças cinzentas, camisa branca e uma gravata a condizer, nem reparou que era tudo dois números abaixo para aí. Almoçaram no Solmar. A olhar para o salão do restaurante, dois anos, tudo na mesma, como se tivesse estado lá ontem.

No Depósito de Adidos, pediram-lhe que aguardasse, só o tempo para lhe passarem um papel para as mãos. Passa à disponibilidade desde amanhã o Sr. Alferes Mil. ...., indo domiciliar-se em Fonte Seca, freguesia de Fonte Seca, concelho de Braga. O portador deste documento deverá apresentá-lo quando lhe for exigido pela autoridade militar ou civil, em substituição da sua caderneta militar. Quartel em Lisboa, 24 de Fevereiro de 1967. O Comandante, Fulano Ferreira de tal, coronel.

Na estrada para o Porto, mal deu pela viagem, fartou-se de dormir. Nem se lembra onde ficou, talvez em casa dos pais em Fonte Seca, ou em casa dos tios em Gaia. Recorda-se, isso sim, do dia seguinte, a seguir ao almoço. O eléctrico para o Monte dos Burgos, o 6 por ali acima até ao Carvalhido, o passo acelerado até à rua dela, o toque na campainha, a corrida pelas escadas acima e ela a vir por ali abaixo.

vb

4 comentários:

Luís Graça disse...

Meu querido amigo, camarada e editor vb:

O teu blogue, intimista - Guiné, Ir e Voltar > Tantas Vidas: http://tantasvidas.blog.pt/ - é um mar, de águas profundas, semeado de pérolas. Fico feliz por, de vez em quando, poder apreciar esses tesouros que, discretíssimo como tu és, tens aí... não direi escondidos, mas guardados a bom recato, longe da multidão, sem alardes.

Parabéns, VB, por este portentoso, denso, tenso, terno, cheio de raiva contida, que é o regresso do Gil e dos seus camaradas a casa. Lisboa, Porto, Braga, dois anos depois... Nunca mais foram os mesmos. Não mais fomos os mesmos. Não foram os mesmos que atravessaram a ponte sobre o Rio Tejo, ainda em construção na viagem para lá... E que estava pronta e inaugauda, no regresso... Cansados, desfalcados, com a vida por fazer e refazer...

Porra, quando é que passas isto a livro ? Tens talento que sobra!

Luís Graça

Anónimo disse...

Tenho que confessar: sinto vaidade ao ler as tuas palavras e as do Torcato. E, ao contrário de muitos que dizem serem imerecidos os elogios que recebem, eu sinto que os mereço, dei o que pude e, importante, diverti-me também muito à medida que ia lendo e pondo ordem na papelada fecheda desde 1967. Nos primeiros anos após o regresso, ouvia muito, falava pouco e sonhava às vezes com aquela terra. Depois as imagens foram-se esbatendo até uma altura em que disse para mim mesmo: eu não estive lá!
É um prazer estar convosco.

Luís Graça disse...

Já agora vamos lá a saber o que é o Torcato Mendonça escreveu:

Cheguei agora do Cardiologista. A conversa do costume, a intromissão no PSA – não é do meu foro mas somos amigos…contas feitas entre PSA … ná… mas fez bem em recomeçar o Duagen, mais vale prevenir. O rol com o receituário habitual. Você está bom,, Tudo bem Doutor. Passe lá pela Clínica ou faça aqui um electro… depois falamos. Vai-te… boas férias, meu caro doutor. Cuidado com o calor.

Farmácia, levanta e paga. Porra para que é preciso tanta merda e tanto dinheiro borda fora. Vou beber um café e, se a tipa lá estiver, limpo o olho…não está, azar o meu. Vou pôr esta “trapalhada” em casa.
Entro, ia despir o pólo mas ainda não saiu a senhora que cá trabalha. Então tudo bem? Tudo! Estou como novo – velho da gaita ou gaita velha.

Arrumo a “trapalhada” e venho abrir o computador. Espero e, zás!, aí está o meu Camarada VB em escrita de regresso. Paro tudo e leio e releio e paro e arranco. GOSTO! MAS GOSTO MESMO. Caiu como mel. Lindo! Fico sentado e fico dois: um sentado o outro, só cabeça, vagueia pelo texto lido e relido e entra no regresso dele, dois anos ou três depois…e o sonho a paranóia que tinha: Tenho que ver a puta da ponte do botas por debaixo… nem que parta ou quilhe estes cabrões ou esta merda toda…e um dia, madrugada a vir, frio de rachar aí está ela - a ponte. Ainda a tentar curar a bebedeira da véspera… olha o aço e ri…agora se o Uíge for ao fundo vou a nado…paro, bolas era só para dizer ao VB: escreve mais….

Digo-te, meu querido amigo, que é obrigatório escreveres mais. Senti uma alma nova. Sinceramente veio no momento próprio, exacto e vou guardar o texto. Vou fazer CC ao luís e ao Carlos para te obrigarem a escrever.

Não se agradece. Como direi? Obrigado por este tempo de prazer e emoção vividos.

Não releio senão não vai.
Obriguem o Virgínio Briote a escrever mais assiduamente

Abraços dos Fortes para ti e para o Luis e o Carlos. Que vidas…que vidas!!!!

Torcato Mendonça
torcatomendonca@gmail.com

Luís Graça disse...

Mensagem do Paulo Santigo, com data de 28 de Junho, enviada ao pessoal da nossa tertúlia:

Camaradas

Mandei um comentário ao P2987,mas parece que não atino muito bem com aquela janela dos comentários.
Penso que escrevi,mais ou menos,o que se segue

"Magnífico texto.O Briote escreve e descreve com excelente
veia literária,só com o inconveniente de serem poucos os escritos.Continua a publicar,aquilo que escreves está
repleto de 'sumo'. E...porque não um livro?"´

Abraço
Paulo Santiago
pja.paulo@gmail.com