quinta-feira, 17 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3068: Blogoterapia (61): Chorar faz bem... (Jorge Félix)

1. Em 30 de Maio, recebemos, para nosso conhecimento, esta mensagem de Jorge Félix, o nosso Piloto Aviador, dirigida ao nosso camarada António Marques Lopes, Coronel na situação de Reforma:

Caro Marques Lopes: Tenho o privilégio de conviver contigo às quartas-feiras e poder compartilhar emoções que são de dificil transcrição.

Poderia esperar por o próximo encontro e esclarecer pessoalmente aquilo que, depois de ler a tua mensagem, pretendo dizer.

Como me envias uma mensagem pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, vou fazê-lo pela mesma via com primeiro conhecimento à tua pessoa. Há pouco, quando acabei de ler a tua mensagem, disse para comigo:
- E agora como é que vou sair desta? Não posso olhar para o lado, como fazemos, quando uma lágrima teima atraiçoar-nos, naqueles instantes em que recordamos bravuras.

Falar, como fazemos, parece mais fácil do que ter que escrever. Narrar as tais emoções é muito complicado.

É dificil esquecer, mas quando se tem que recordar é penoso. E tu, na mensagem obrigaste-me a ler o que te disse (num sentimento de: É pá, isso não tem importância que eu também já fiz o mesmo !), quando eu já tinha a ideia, que só transportávamos, a más horas, algum material.

Eu queria continuar a dizer que transportei muita malta, que convivi com gajos bestiais, que tudo fiz para lhes tornar a vida mais risonha, mas não queria ter que olhar para os instrumentos ou assobiar para o lado, ignorando o que se passou à minha frente, e a minha memória felizmente anda a apagar.

Caro Marques, o incidente que eu relatei, com a não identificada traiçoeira lágrima, só se destinava a falar de um almoço onde convivemos, mas feliz ou infelizmente transbordou para outros horizontes. Para ti foi bom, como dizes, sempre que possível, para mim foi uma experiência que já não sei definir e não quero voltar a ter.

Lentamente, e se me permites Marques Lopes, vou levantando voo e com amizade me despeço até á próxima quarta.

Vamos falar, falar, falar, para termos muito pouco para escrever.

Pode ser que alguém pergunte a alguém:
- E a tua comissão como é que foi? - e alguém responda:
- A minha foi boa, senão não estava aqui.

Caro Amigo Marques Lopes, um grande abraço.
Jorge Félix

2. Dizia Marques Lopes a Jorge Félix (1)

Caro amigo:

Chorar fez-me bem, porque alimenta esta dor que eu não consigo (nem quero) apagar. Contei-te que tive de matar uma professora em Samba Culo e, como sempre que o faço, tive de chorar.

Porque nunca quiz matar, porque fui obrigado a matar.
Já disse uma vez, e é verdade que tentei ao longo da minha vida banir esta mágoa, mas sem o conseguir.


Muitos copos bebi para tal, mas, como viste, por mais copos que beba não consigo. Disseste-me que, como piloto de helicóptero, também mataste com certeza. Também eu te disse que, nas emboscadas, se calhar tinha matado também, assim como eles mataram dos meus. Nunca sabemos. Mas esta soube. Era eu que estava à frente dela e fui eu que disparei. E não queria.

Reavivou-me a dor, mas esta catarse do nosso encontro permitiu-me manifestar esta mágoa.
É bom, sempre que possível.
Obrigado.
A. Marques Lopes



3. Comentário de Carlos Vinhal:

Estes e outros desabafos contam-se e ouvem-se nos encontros da minitertertúlia de Matosinhos, todas as quartas-feiras, normalmente reunida à mesa da Casa Teresa.

Ontem, dia 16 de Julho, tive o prazer de conhecer o nosso camarada Jorge Félix, Piloto de Helicópteros na Guiné entre 1968 e 1970, que me chamou a atenção para uma mensagem dele que, sendo continuação de uma conversa com o nosso outro camarada da tertúlia de Matosinhos, António Marques Lopes, não tinha sido publicada. Assumo culpas pessoais e apresto-me a repôr hoje mesmo a legalidade.

Estes convívios espontâneos onde cabe sempre mais um, venha o camarada de onde vier, é uma forma salutar de catarse como fica demonstrado por esta e outras trocas de correspondência.

Umas vezes é mais fácil falar, outras escrever, para expressar o que vai na alma de um combatente que tem recalcamentos com dezenas de anos. Ninguém o compreende a não ser outro combatente, que viveu ou viu de perto situações semelhantes.

Tive a oportunidade de agradecer ao Jorge Félix o quanto ele e os seus camaradas pilotos da Força Aérea Portuguesa fizeram por nós. Eles eram os nossos verdadeiros anjos da guarda. Como em tudo na vida, quando na terra ninguém nos pode valer, olhamos para o céu.

Deixo aos nossos leitores esta foto curiosa, tirada pelo Jorge Félix, brilhante fotógrafo, num dos convívios de Matosinhos.



Foto © Jorge Félix (2008). Direitos reservados.


Aproveito a oportunidade para realçar a presença, ontem em Matosinhos, do meu ex-capitão Jorge Picado que se deslocou propositadamente de Ílhavo para conviver com esta espectacular tertúlia e do José Manuel, da Régua, que pelos vistos também se deixou arrebatar por este grupo de bons camaradas.
Quando demos conta, estávamos 18 à mesa e apenas duas pessoas não eram ex-combatentes.
CV
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Nota de CV:

(1) - Vd. Poste de 29 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2900: Blogoterapia (54): Chorar faz bem, chorar fez-me bem, camarada Jorge Félix (A. Marques Lopes)

1 comentário:

Anónimo disse...

Se puderem vejam aqui
http://incursoes.blogspot.com/
onde se fala dos encontros semanais na Teresa.
Cumprimentos
Amílcar Dias